quarta-feira, 9 de março de 2011

Capítulo 2 - iniciando...


Flores no Asfalto


Capítulo 2 


    - Deixa eu te apresentar ao Crânio.

    JB encontrou HD na hemeroteca e foi logo arrastando o rapaz, não sem esclarecer que o verdadeiro nome da eminência era Wilson, mas por se tratar de um gênio, o apelido se justificava.

    O gênio estava em sua cadeira de rodas. Paciente. Todo jovial, braços robustos, olhar curioso. Um cobertor cobria as pernas.

    Sua calma, sua imobilidade, era compensada por suas leituras vorazes, isso quando não escrevia longas páginas de pensamentos e monólogos, ou ousava sonetos camonianos. Uma enciclopédia viva, as bibliotecárias elogiavam.

    E o Crânio (permita-se o apelido) folheava “Crime e Castigo”, de Dostoievski, eminente autor russo, cujas personagens de consciência atormentada e situações-limite incomodaram existencialmente muitos livre-pensadores. Mas será Dostoievski apenas um cristão torturado? Revolucionário, que preso, se converteu à causa de seus carcereiros?

    E abordaram o excesso de consciência na mulher de Leopold Bloom, quando Molly regurgita pensamentos noite adentro. Ambos mui orgulhosos a elogiarem a obra de James Joyce, “Ulisses”.

    E discutiram o cinismo enquanto grande invenção do Ocidente, e basta citar o exemplo de Diógenes, o Cínico, ou Falstaff, de Shakespeare, e o rir de si mesmo (o que difere de Hamlet, que sabe – ou hesita – demais e se afunda, no trágico).

    E prometeram um ao outro uma discussão ao nível filosófico a la Schopenhauer sobre o como sobreviver com a Consciência de si mesmo, carregando um fardo de um sentir-se sempre incompleto.

    - O fardo do Vazio é que nos aniquila.

    Crânio adorava estas frases de romances filosóficos. (E não fora ele que indicara Jostein Gaarder para a curiosa Elen? E que depois HD foi ingênuo o suficiente para emprestar o volume?) Mas não adiantemos.




    Certamente que as palavras de cortesia de JB em seu carisma de sorrisos amplos, houvera por derreter certo gelo no coração de HD, deslocado nos tramites e arquivos da Biblioteca. Precisava de luz no caminho e teve. JB nunca negou uma dica, uma orientação, até inconveniente às vezes, HD nem precisando.

Naqueles corredores, onde vez ou outra, o Crânio a deslizar de estante a estante, com dúvidas tantas e palpites outros, e discutiam Dostoievski ou declamavam Florbela Espanca, quando não folheavam os jornais e reclamavam a mesmice, “o mudar para continuar o mesmo”, coisas assim, ou abraçam junto ao peito o Rosa, aliás, um volume do Rosa, geralmente o clássico “Grande Sertão:Veredas”, e alçavam olhares de inegável saudosismo.

    - Guimarães Rosa? Sim, eu leio. Escreve livros que você só lê com um dicionário Português-Brasilês ali do lado.

    - É porque, veja você, é no descostume de desler o mundo que o homem se manifesta, no olhar aberto em demasias, assim imoderadamente, tipo minha tia Deolinda dizia, ela, lavadeira, lá na ribeirinha, beira de Jequitinhonha, com os olhos vidrados d’água, a lembrar do seu homem morto no pó da estrada, tiro pelas costas, e aquilo de trazer cascatas nos olhos da gente.

    Quando JB assim começava, HD até se sentava.

    - Nas ribeirinhas, em busca da terceira margem, eu em versejar o aqui de dentro, sem outro rumo na vida, cristãmente em ajudar os necessitados, não igual dizem por aí que o fraco a gente termina por derrubar. Não, deusquelivre! Caridade. Um cuidar que nunca se viu! Amor ao próximo que se aprende, e cada pessoa um poema. E estilo! Não rabisco num papel, mas carne-e-fôlego, um rir e um chorar, vai de um subir-descer na vida aceitar. E todos irmãos, que o Pai é um só. O entedio? Que quando confiança tenho, pra ouvinte de paciência, não poupo fala, e tudo vai de transbordo. E eu ainda de ir ao barraco da escola do arraia, eu sozinho e eu, nos pastos de berros, e uns vôos de anu, e ainda não sabia que eu era menino assim feliz, pois não, feliz desabendo de rir, comendo poeira do sertão, e inté que catei os cadernos e fui prum colégio, na cidade que tinha até fonte de luz na praça, e um professor, Sô Acyr, que ajuda minha mãe com passagem e conheci o parque da Capital, num domingo de olhos arregalados.

    Nisso, HD se acomodava, que o rio tinha ainda muito que transbordar.

    - Então que circulando em torno d’eu o novo mundo, que assombro!, de mirrado no meu canto, a querer estender asas e qual!, buraco maior que as pernas, só colhia dissabores, em tentando só sozinho conseguia nada, nadamente, Num desandar de sobre as vontades da gente, quase num desistir, conheci o WS, numa mesa de bar, e ele salvador de letras e rabiscos, mão toda estendida, tirou do poço fundo o lá caído, este que vos confessa, vexame não tenho, e o vôo do anu-poesia num arrepio só, desusado, fundoso, com cara-coragem... O WS? Sucintamente assuntando, ele vinha como que em asas, todo lá encimando. Bicava de mesa em mesa. Um filhote sob as asas, que era o MC, de óculos e brilho. E de livro aberto, os livros, que vendiam como a cura da peste, para separar os ignorantes dos sábios, para encantar moça bonita nos braços do namorado. Mas sem poesia de enfeite, que WS não é disso, homem-de-plumas, voando lá longe, lá encima! Ousava ter jeito de acompanhar o anu, o pássaro-sílabas que voejava acima das cabeças e cachaças.

    - E os estudos? – HD, no torpor do interesse.

    - Ah, os estudos! E estudo na Capital, num quartinho de pensão da Sagrada Família, com livros de mofo-memória e gritos dos vizinhos e mascates, e um trânsito dos quintos dos infernos, e eu moendo a coluna no asfalto, os joelhos doendo, a vender plano de saúde, que Jesus-os-tenha, e a cursar a escola de gente grande descabeçado caído na carteira, noite de sono, sem sono escuranoite, vivendo assim, só Deus sabe, e você veja, o WS publicou o meu livro e eu enviei exemplar para minha mãe, e ela respondeu e lágrimas, não no envelope, que molhava tudo!, mas se telefone gotejasse, ah, então gotejava!

    E, por ventura, vinha um estudante de olhos esticados para o arquivo da hemeroteca, o que livrava HD da descrição rosiana dos vultos familiares de JB, o de olhos úmidos.



    Naquela tarde, HD não se surpreendeu ao encontrar o Crânio em companhia dos livros, mas não esperava que Crânio estivesse lendo algo obscuro como um Bhagavad Gità.

    Grosso volume entregue aos dedos ágeis do gênio, mas julgara ser uma Bíblia daquelas católicas, mas era a sabedoria indiana que atraía a atenção do erudito Crânio.

    Não era mito que o autodidata estudava quinze horas por dia, até porque o que mais poderia fazer?

    - Pouco conheço de Oriente, meu amigo. Ainda nem entendi o Ocidente...

    Era a desculpa de HD. Nada mais que a senha para o Crânio iniciar o seu monólogo sobre as grandes figuras da filosofia indiana, os mitos e as viagens, a visita dos deuses, e não satisfeito, aborda os pensadores chineses, os monges do Tibet, a mensagem de esperança do Dalai-Lama.

    HD ali, pacientemente sentado, ouvindo e pouco contribuindo, percebe que outrora jamais faria semelhante visita, ou concessão, com toda aquela boa-vontade em estar atento às palavras do outro.

    - Sabe, meu amigo, acho que todo esse interesse por orientalismos não passa de uma frustração com o Ocidente.

    E HD, tão pacientemente quanto antes, esclarece nada entender de brâmanes, castas, avatares, carmas, e que pouco se interessa por filosofias dualistas ou não, niilistas ou não, que sua preocupação atual é entender como é feita a programação das rádios, como é movimentada a propaganda governamental, em como funciona a Indústria Cultural.

    Então Crânio empresta um volume de “18 de Brumário” ao nosso HD, pois “A Dialética do Esclarecimento”, percebia-se, ele já havia lido.

    E durante um chá com broa de fubá, entram num acordo não escrito de só conversarem sobre literatura, e criticando as tantas traduções de “O Corvo”, The Raven, de Edgar Allan Poe, passam a excomungar as academias e os beletristas.




    Na visita anterior, HD encontrou Wilson, o Crânio, lendo o Baghavad Gità, e folheando volumes de Poe, além de obras de Karl Marx. Agora depara-se com o irmão de Crânio, o solene Hudson, dedicado a leitura de um livro que denuncia a “corrosão do caráter” nas sociedades modernas.

    Quando Hudson se ausenta um momento, HD se apossa do livro e, notando ser uma obra de autor cristão, comenta que é coisa dos reacionários, que fazem um diagnóstico até coerente, mas a cura que apresentam é o retrocesso – o fundamentalismo.

    - O homem de ontem tinha mais caráter que o homem de hoje? – HD começa, coçando o queixo, todo pensante. – Talvez, ontem a identidade se formasse mais sólida, mais rochosa, até. Mas será que somos piores hoje? O que há é muita depreciação, “Nos últimos dias, os homens serão egoístas, mentirosos, vaidosos, desprezadores de pai e mãe, mais amigos dos prazeres...”, ah, vocês conhecem o versículo... E os homens não foram sempre assim?

    O irmão religioso defende um exame do texto bíblico, no que se filia aos neoreformistas, afastados do emocionalismo dos neopentecostais, e sua visão dos problemas sociais não é desfocada, mas as curas que sugere são até mais desastrosas que a doença. E concorda ser assim pois o homem é teimoso e mau por natureza.

    - Natureza humana? Esse papo de que o homem é naturalmente bom ou mau? Uma boa discussão? Dividamos os times: o homem é mau, a sociedade o domestica, temos aí Maquiavel, Hobbes, Freud; ou o homem é bom, a sociedade o perverte, temos então La Boètie, Rousseau, Bakhunin, Marx.

    Crânio, pensaroso no seu canto, percebe a distinção e mostra-se indeciso entre o otimismo de Rousseau e a suspeita de Freud. HD prefere confrontar Marx e Freud, lembrando das carências.

    - Se todas as necessidades de um homem forem satisfeitas, ele será virtuoso? Se recebeu carinho, porque ser agressivo? Se tem o que comer, por que vai roubar? Mas o homem está constantemente insatisfeito, em ânsia permanente. Saciado o apetite, surge a libido, e obtido o prazer, brota a cobiça, junto com a vaidade e a intriga.

    Crânio concorda. – Hoje quer comer, manhã, uma companheira, depois uma morada, então um carro, e amplia a casa, chegam os filhos, a escola dos filhos, agora dois carros, a faculdade dos filhos...

    Os interlocutores acompanham, ele continua, enquanto HD observa o crepúsculo além da varanda.

    - Quem vai satisfazer os apetites do individuo e conserva-lo pacífico? Quem vai alimentar, acariciar, dar casa, carro e roupa lavada? Quem vai distribuir a renda?

    - É de se pensar se o Estado seria capaz. Apaziguando a cobiça. Mas quem o arquiteta? A quem defende? Para os nossos pensadores citados é geralmente considerado opressor, não libertador.

    - E o Estado de Bem-Estar Social?

    - Pode amortecer a luta de classes, mas não a supera. Salvou a Europa nórdica, onde sem qualquer revolução a nobreza ainda viceja, mais de duzentos anos após a cabeça de Luís 16 ter rolado...

    - Sem considerar os fascistas monarquistas...

    - O fascismo é fascinante? – HD provocante, no sem-rumos da prosa.

    - A perversidade tem livre vazão. – diz o religioso.

    E HD cita o exemplo de Eichmann. Homem polido, cortês, fiel cumpridor dos deveres. Mesmo que sejam o sistemático extermínio de pessoas indefesas.

    - O homem era um simples burocrata. Cadáveres? Nada mais que números numa planilha. Veja o Sr. Adolf. Terá assassinado alguém? Digo, diretamente. Pois lembro que foi soldado na Primeira Guerra, mas na batalha o assassinato é anônimo.

    Crânio lembra os fascistas com apoio cristão. HD não se surpreende. – Veja o Plínio Salgado. O sujeito conseguiu o prodígio de ser fascista e cristo ao mesmo tempo. De orgulhar o generalíssimo Franco!

    Crânio não disfarça um sorriso irônico. Hudson, o irmão, é o único a continuar solene, em profunda atenção. Preocupa-se com tantas digressões, “Ficaremos aqui até de madrugada!”

    HD adianta-se em esclarecer que não estuda as guerras como um hobby, ou para saciar ímpetos militares, mas porque quanto mais se informa, mais se espanta, mais irracional acha tudo aquilo, assim é vacinado contra qualquer militarismo.

    - Mas ainda bem, se algum dia acharmos tudo aquilo normal, então estaremos incapazes de qualquer indignação!

    - Mas não vivemos assim, meu caro? – HD com amargura. – Olhamos a miséria nua e crua e subimos o vidro do carro, fechamos a janela, desligamos a TV. ‘Boa noite, querida, que estou entediado. Me acorde às seis.’

    Olharam-se em silêncio. A noite invadia os pensamentos. Algo pesava, não era só angústia. Era hora do jantar.

    HD aceitou o convite.




    O rapaz de roupa preta e camiseta de banda de som pesado, todo sério, adentra a Biblioteca e logo pergunta sobre livros de filosofia. Atendido pela bibliotecária, que disponibiliza rapidamente alguns volumes da coleção Os Pensadores. Pronto para a leitura, o rapaz acomoda-se numa mesa lateral.

    HD continuou na Hemeroteca. Caso a Bibliotecária saísse, HD poderia ajudar os estudantes. Fichas catalográficas fora de ordem eram a sua preocupação atual.

    Outro rapaz entra e procura pesquisa, ou alguns recortes, sobre Terrorismo. A bibliotecária está pronta para servi-lo. Começam a folhear revistas e pastas da hemeroteca.

    A bibliotecária comenta sobre os grupos irlandês e basco, e apresenta grupos anarquistas e palestinos, depois espalha recortes sobre os terroristas islâmicos, e os atentados contra os Estados Unidos.

    - Pois o IRA é que bizarro. Antes d detonar as bombas, os caras ligavam, avisando sobre o atentado!

    Vera e o seu senso de humor. HD não pode deixar de comentar a origem do Exército Republicano Irlandês e seu terrorismo um tanto romântico, e lembra cenas do filme “Michael Collins”, que narra as vicissitudes do IRA após a queda de Parnell, e de como Collins, não exatamente um fanático, é morto antes de alcançar seus objetivos. E morto por traição dos próprios companheiros!

    - Visavam desmoralizar o governo inglês, e forçá-lo à negociação. Nada de ênfase em eliminação física que se nota nos terroristas fanáticos.

    A sempre falante bibliotecária comenta outros filmes sobre terroristas, tipo “Inimigo Íntimo”, outro sobre irlandeses versus ingleses, ou “O Informante”, sobre a CIA atuando dentro dos EUA e sua face fascista.


    HD não pode deixar de comentar (ainda que as fichas catalográficas continuem fora de ordem) a ilegalidade de tal atuação, uma vez que tal Agência foi criada para atuar no exterior do país. E comenta que nos filmes os agentes, em dada idade, são aposentados e enviados para ilhas secretas (supõe-se) para que não divulguem o que sabem (são homens que sabem demais) e claro que há toda uma teoria da Conspiração que insinua eliminações físicas.

    - É até importante essa série de filmes feitos a partir de arquivos. Muitos dos quis só agora abertos! Desmistificam as ações, o trabalho dos agentes, as razões dos espiões-duplos. Já estamos cansados de James Bond.

    O Arquivo vai ter que esperar, pois HD segue lembrando que já passou a era do terrorismo, digamos ‘romântico’, e que se o IRA era ingênuo (imaginem os árabes visando antes de atacarem o World Trade Center!) o ETA, o grupo basco, é ultrapassado, sem apoio popular, visto terem surgido contra o fascismo centralista do Generalíssimo Franco, que se arrasou até os anos 70, e restaurou a monarquia.

    - E nem vamos comentar o terrorismo de esquerda. As falanges vermelhas italianas e o Baader Meinhof alemão.

    Voltam à questão da CIA atuando no interior dos EUA e de como de tanto lutar contra o fascismo os EUA se tornaram fascistóides! - Já notaram a quantidade de filmes de guerra made in USA? – HD sentou-se à mesa lateral para melhor dissertar. – A República agora é Império. Filmes para que os jovens inflem seus peitos de orgulho e morram pela glória da p´tria (a qual julgam democrática!) em terras distantes. Quantos filmes belicistas desde o Vietnã? Podem fazer uma lista! “Platoon”, “Apocalypse Now”, “Rambo”, “Resgate do Soldado Ryan”, para citar os mais famosos. Depois de derrotar a Cartago fascista e a Gália pseudo-comunista, a nova Roma torna-se refém do espírito guerreiro, isto é, da indústria bélica.

    E HD continua a trazer à lembrança que o método (se realmente existe) de eliminar agentes e não aposenta-los, se assemelha aos métodos de regimes “totalitários”, não importa se de ‘direita’ ou de ‘esquerda’. Apesar de muitos preferirem usar a “lavagem cerebral” e não a eliminação física. – Querem devotos, não mortos.

    Então é a vez de Vera, a bibliotecária, citar a obra “1984”, do inglês George Orwell e filme baseado na obra, onde a cena da “redoutrinação” é destaque. HD lembra que o protagonista se tornou, ao fim, um defensor do sistema que ele condenava. A bibliotecária acha que o protagonista foi eliminado, pois o “Big Brother”, o Grande irmão, não tem absoluta certeza da “devoção” dele.

    - Mas, minha querida, o livro é um alegoria. O cara encontra sua amada num parque – e não trocam palavra! Logo deu resultado a tal “reprogramação”.

    A bibliotecária até aceita que seja ‘alegoria’, onde várias interpretações são possíveis. HD aponta na estante o volume de “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, e não é demais lembrar como os ditadores conseguem ‘convencer’ os dominados.

    - Pois há um limite para a eliminação física. Morrem somente os mais ‘recalcitrantes’. Talvez seja o caso do romance. O qual prometo que vou reler. – HD apazigua a polêmica.

    Agora é Vera quem está animada. Cinema é sua obsessão e parece que o assunto vai render. “MIB – Homens de Preto”, onde o governo oculta informações, para o melhor bem-estar dos cidadãos, ou “A Rede”, onde uma internauta-maníaca é perseguida, ou “Matrix” ou “13o. Andar”, ambos sobre a Realidade enquanto ‘simulacro’, simulação digital.

    - Eu queria saber por que filmes assim fazem tanto sucesso. Isso desde “Metropolis”, ou “Blade Runner”, onde o que parece humano é replicante, é máquina. Ou esse “Matrix”, onde tudo nada mais é do que imagens desfilando mente adentro. Identidade e Realidade. É o existencialismo em revival, seis décadas depois? Virou entretenimento ou estamos um tanto esquizofrênicos? Perceberam que todos os filmes tratam da questão: Quem Somos?

    - Ou o que somos? – a bibliotecária Vera esboça um sorriso. – Talvez uma tomada de consciência, mesmo acompanhada de pipoca e refri. Faz pensar sobre a massificação, a homogeneização das culturas e mentes. A Globalização.

    - Mas a Globalização é considerada ‘processo histórico’. O problema é a norte-americanização do mundo. Mas há quem diga que sempre há um Império. Um poder para centralizar e guiar hegemônico os povos e as economias. Egito, Grécia, Roma, Grã-Bretanha ou United States, não importa. Trata-se de um ‘papel histórico’.

    - É. A História se repete.

    - Sim. E o Império não pode negar seu ‘papel histórico’. Quer queiram quer não, são o Império da vez.

    - Marionetes de marionetes.

     As atenções se voltam para o rapaz que lê Os Pensadores, a um canto, tão silencioso.

    - Tal o Big Brother. Quem vigia quem vigia à tela? – HD mais enigmático. – Quem vigia quem? Quem guia quem?

    - E cuidado com a Oráculo.

    - Você também desconfiou dela? Afinal, aquilo que você quer é o que te ensinaram a querer. O que você quer é o que eles querem que você queira.

    - Quem arquitetou a Matrix?

    - A matriz hollywoodiana. Mas esqueçamos os tantos efeitos ou as trilhas sonoras estressantes. Imaginemos agora ter em mãos o script, o texto, os diálogos...

    - Esquecendo a parafernália digital. – diz o rapaz que lê filosofia.

    - Sem tantas explosões e tiroteios... – lembra a bibliotecária.

    - Certo. A Matrix engloba tudo. Portanto questionar sobre a mesma já está no programa! A dúvida sobre o Sistema já está programada e é sempre esperada! Trata-se, assim, de uma auto-análise do Sistema. – Pausa para certificar-se da atenção dos demais.- Tratando-se de um sistema fechado, não h´espaço para a liberdade, tudo é pré-determinado.

    Pausa para pensamento profundo e metafísico. Mas logo quebrada pela bibliotecária Vera, a lembrar novamente do filme “13o. Andar”, onde não há o tal andar (tão temido!) e o protagonista sai a procura de um assassino, e vai percebendo que ao seu redor se passa uma simulação, um jogo, e que por sua vez alguém joga o jogo, um jogo dentro do jogo.

    - As caixas chinesas, a mamãezinha russa. – HD, surpreendido.

    - Uma dentro da outra, ao infinito. – o rapaz meio aos Pensadores, empolgado.

    - Mas, voltemos ao onipresente “Big Brother” de Orwell. Quem vigia aquele que vigia à teletela? Hein? Estou aqui, ali uma câmera, lá um vigia de olho em mim. Mas quem está de olho nele? Quem, afinal, observa todos?

    - O mestre dos fantoches? – o rapaz já esquecendo os Pensadores.

    No entanto, Vera, a bibliotecária, não encerrou seu comentário quanto ao filme do jogo-dentro-do-jogo, referindo-se a possibilidades outras para os acontecimentos do jogo. – Tipo uma mesa surgir numa sala, ou uma cadeira a mais, ou a menos, uma visita chegar, ou alguém sair, coisas assim.

    - Tipo os programas de videogame, onde o obstáculo surge à esquerda da tela numa fase, e na próxima, pode surgir à direita, e em outra, aparece no meio. Ou seja, o programa mantém os elementos, digamos 1 – 2 – 3, mas varia, em outras combinações, 1 – 3 – 2 ou 2 – 1 – 3 , ou outras.

    “Espero que eles sejam bons em Matemática. Que tal os múltiplos universos paralelos? Só para um leve brainstorm.” - Assim existem alternativas a cada possibilidade. Ao entrar aqui poderia ter dado um passo a mais, deslocado dez centímetros e derrubado a pilha de livros na segunda mesa à direita, ou estaria no horário do lanche, e não haveria este diálogo. Entendem? Mas imaginem se tais possibilidades coexistissem simultaneamente, separadas por segundos e milímetros! A realidade em que derrubo a pilha de livros e aquela em que passo sem incidentes. A realidade em que vou lanchar às dezesseis horas e a que vou lanchar às quinze horas. E que pudéssemos transitar de uma para a outra!

    Talvez o esperado brainstorm de HD se modelasse mais num monólogo, mas o rapaz às voltas com os Pensadores parecia interessado. HD não poderia deixar de provoca-los. – Já leram o conto “O Jardim das Sendas que se bifurcam”, de Jorge Luis Borges? O protagonista ouve que várias realidades coexistem. Aquela em que ele passa uma mensagem, a outra onde é preso. Aquela em que o interlocutor é amigo, a outra em que são inimigos. Ao fim, o protagonista mata o interlocutor, quando este distraído, vira as costas. Assim acaba por realizar numa só Realidade ambas as possíveis – aquela em que são amigos (pois não passaram a tarde conversando?) e a outra em que são inimigos (onde um acaba por assassinar o outro). Pra cada ‘sim’ e ‘não’ um caminho aberto no Tempo, um jardim, sim, mas um tanto bizarro.

    Mas a Vera continua insistindo no filme “13o. Andar”. – Mas no filme é como se houvesse o 4. pois surgem coisas novas!

    - Mas aí então é um ‘sistema aberto’, com livre criação de elementos, o 4, depois o 5, e os demais, somando-se os elementos anteriores. O sistema fechado é diferente.

    HD procura ilustrar suas palavras de forma lúdica. Com uma folha de ofício, enrolando-a, demonstra o circulo, extremidade unidas, e em seguida, a espiral, transformando a folha num canudo. - O círculo é o Eterno Retorno. Nietzsche leu bastante os Pré-Socráticos, que devem ter lido os indianos, e tal. Já a espiral, mesmo sendo labirinto, tem um começo e um fim. E se for esticada – HD desenrola a folha – temos um ente linear, característica da visão cristã: da Criação ao Juízo Final.

    Mais brainstorm, segundo o script. HD nem concede uma pausa. – O Eterno Retorno, uma obsessão não só de Nietzsche, onde sendo o Universo finito, e todas as combinações já se fizeram, e todos se repetem, o que já foi será. Esse momento repete-se infinitamente o mesmo! Um círculo do qual não temos consciência. Eu levanto esta caneta (claro, um pouco de movimento e didatismo, senão o tédio...) neste gesto agora. E infindas vezes antes e infindas vezes depois. Não há como o mundo ser diferente do que é. É o melhor possível. Lembra Leibniz, que dizia que vivemos no melhor dos mundos possíveis, pois Deus é perfeito e não pode criar um mundo imperfeito. Toda imperfeição é sempre aparência, pois tudo concorre para o nosso bem. E,claro, acabou sendo satirizado pelo Voltaire, que criou o Doutor Pangloss, que apesar das atribulações do pobre Cândido, sempre vê algo de positivo, ao crer que tudo acontece para o nosso próprio bem!

    Agora parece que o rapaz interessado em filosofias está começando a se situar meio a ‘tempestade cerebral’. Argumenta que a série 1 – 2 – 3, sugerida por HD, é muito limitada,provendo apenas seis combinações, mas HD logo o interrompe lembrando que trata-se de um exemplo didático, que a série pode ser infinita, e que podem ser ditadas regras para a formação de novos elementos a partir dos básicos 1 – 2 – 3 , tipo o 4 (1 + 3) e o 5 (2 + 3), e assim por diante.

    - E se sugeri a série de três é por termos aqui um exemplo prático. Você, estudante, é o 3. Eu, o 1, interfere com o 2, a nossa bibliotecária, e ambos conquistamos a sua atenção. Sem a discussão, eu organizaria o Arquivo, e a Vera atenderia o pessoal, e você faria sua pesquisa e continuaríamos desconhecidos. Mas houve uma “interferência”, pois um “tema” uniu três pessoas vindas de pontos diversos (pensem bem!) , unidos aqui por interesses diversos, e justamente para tal debate, pois de repente estamos numa ‘Matrix’ e esta está se auto-analisando através de nossas perspectivas, em um roteiro já previsto, numa cena já programada!

    Ignoremos os olhares de apreensão, e continuemos. – A Matrix se protege divulgando a Caricatura de si mesma. Ora, se a Matrix faz auto-análise (pois não esconde o que é, imaginemos, mostrando-se aí em tantos filmes e livros!) faz em forma de entretenimento. Se alguém realmente perceber a simulação e for divulgar, todos pensarão tratar-se de alguém comentando um filme tal e tal. Ninguém levará a sério! O cara, se insistisse, seria isolado, para “medidas terapêuticas”! Em “Cidade das Sombras”, o assistente do detetive descobre o ‘simulacro’, a experiência onde são cobaias, e passa o tempo todo a rabiscar espirais, denunciando o labirinto. E o que fazem? Camisa de força nele!

    Percebendo ter a audiência nas mãos, HD continua, reclinado em sua cadeira. – Vejam, por exemplo, a questão dos alienígenas, o maior sucesso nos cinemas, onde não passam de anõezinhos verdes e carecas, ou lulas gigantes, ou altos-magricelas-raquíticos-cabeçudos-de-olhos-imensos. Ora, rir dos ‘aliens’ é a melhor forma de não acreditar neles! Tais seres disformes construiriam naves interplanetárias?

    O estudante amigo da filosofia não oculta a preocupação, mas agora HD não pode parar. – Mas e os homens de preto que sempre aparece quando um evento suspeito ocorre? Algo “não-identificado”. E o Caso Roswell? O que aconteceu? O que o governo oculta da população? Algo que causaria pânico coletivo? Um acordo com os ETs para impedir uma invasão? “A verdade está lá fora”, não é o que diz a série “Arquivo X” ? Pensem com calma. Por que será que tais filmes fazem sucesso? Não borbulha tal suspeita no “inconsciente coletivo”? Afinal, agora percebemos, vivemos numa teia de ignorância.

    Sombras de suspeita pairam sobre a sala de leitura. Mas não é agora que HD vai desistir. – Temos, ou não, a tendência de acharmos que o nosso umbigo é o centro do universo? Pensamos que tudo gira ao nosso redor, a procura de um “Sentido”, uma profunda Significação para os eventos, digamos, casuais. Se atravesso a rua e justamente naquela hora o sinal se abre, verde para o transito, eu passo a resmungar que “é só eu por o pé na rua para o sinal abrir”, aí eu preciso correr e tal, mas se eu soubesse antes a distância que me separa do cruzamento, e minha velocidade, e o intervalo de variação das luzes do semáforo, seria suficiente um breve cálculo e entenderia as razões matemáticas. E poderia ter me apressado, atravessando assim a rua calmamente. – pausa para conferir a atenção, técnica retórica não menos importante. – Se chego a um cruzamento e um carro quase me atropela, vou pensar que os Céus estão contra mim! No entanto, tal se deve às mesmas razões matemáticas. A minha distância até o cruzamento, a distância do veículo até o mesmo cruzamento. Em seguida, a velocidade de ambos. Assim descobriremos que o tempo para posição igual cruzamento é o mesmo! Mas o que imaginemos? Que o carro teve infindos momentos para passar ali, mas passou JUSTAMENTE quando ali atravessávamos. Atribuímos um Significado ao encontro. Não há coincidências para o coração. Daí brota toda a superstição.

    Não sei se alguém está acompanhando a digressão, que começou em terrorismo e cinema e já se perdeu em labirintos matemático-metafísicos. Mas não é momento para hesitar diante da oportunidade de esclarecimento da massa ignara.

    - Quais as posições diante da estatística dos eventos? Aqueles que pensam que sabendo a posição e a velocidade de todas as partículas do universo (ou mais modestamente, de um sistema, em dado momento) poderia se prever, a partir do movimento das massas, o futuro (nada mais que as futuras posições das mesmas). Outros acham tudo incerto, pois avaliamos sua posição, não é exata a velocidade, e sendo calculada esta, não confiamos na posição. Aqueles que afirmam que “Deus não joga dados”, havendo uma Ordem na Natureza, leis físicas irrevogáveis (ou alteradas em condições extremas, à velocidade da luz ou em buracos-negros). Outros declaram que tais leis físicas (e outras causalidades) são produtos da mente humana, em busca de uma ordenação universal. E ainda há quem pense em um pobre gatinho numa caixa, sem sabermos se está vivo ou morto, logo cinqüenta por cento vivo e cinqüenta por cento morto.

    Espero que alguém tenha entendido, pois vou continuar. – Determinados ou livres para a espontaneidade? Tudo pré-programado – Matrix, the movie! – ou alguma lacuna para o ato criativo, novo e inesperado? Se somos determinados e tudo é uma simulação, e nossa mente é um programa, não há transcendência. Um deja-vù pode ser uma repetição de seqüência, um gato preto passando duas vezes no corredor. Ou uma semelhança, assim como 1 – 2 – 3 e 3 – 2 – 1. E o que poderia atrair nossa suspeita seria seguidas ocorrências de tais falhas ‘operacionais’. Mas onde situar o absurdo? O que julgamos ‘comum’ não seria um absurdo? Se todos os dias você encontra as mesmas pessoas, um carro branco ou verde passa por sua rua, todo dia, entre meio-dia e uma hora da tarde, se patenteia o comum ou o absurdo?(pausa) Melhor agora é voltarmos às referências a filmes. - O mesmo carro passando por sua rua, todos os dias, ao mesmo horário. Suspeito, não? Que o diga o ingênuo Truman, que só desejava ser “espontâneo”. Não é assim em “Truman Show”? O protagonista se entrega à ações desconexas, um tanto ‘loucas’, dizendo estar sendo ‘espontâneo’. Liberdade o romper uma suposta causalidade? Livres no projetar-se ou livres por pensarmos que somos livres? Liberdade penas enquanto co – ‘livres para’ e não ‘livres de’?

    A bibliotecária passa a olhar o relógio. Hora do lanche? Ou medo da Supervisora ou (pior!) da Diretora, que podem não gostar da palestra?

    - Interferência? – pergunta a malicioso, o rapaz acompanhado pelos Pensadores.

    - Nada. A chegada da Diretora é prevista. Faz parte do programa ela aparecer à tarde.  Estranho seria se o telefone tocasse e ela justificasse a ausência. O roteiro vai pela facilidade, a nossa mente (cheia de reentrâncias) é que complica.

    Recolhendo os recortes, enquanto o estudante agradece, Vera, a bibliotecária, tem um olhar sonhador. Talvez a pensar que aquele Hector Dias tem uma imaginação e tanto. Mas é perceptivelmente hora do lanche, e ela deixa o novato do Arquivo junto com o rapaz dos Pensadores.

    HD folheia uma antologia de poesia, encontra “Especulações em torno da palavra homem”, “Mas que coisa é o homem, / Que há sob o nome?”, enquanto o rapaz revela seu interesse em estudar Filosofia, “Um ser metafísico? Uma fábula...”, pois o Saber é a mais alta aquisição do ser humano, “Quanto vale o homem?”, e a Ciência é o mais alto Ideal das mentes iluminadas, ansiosas por desvelarem as leis intrínsecas da Realidade, “E são tão engraçadas / As horas do homem?”, no intuito de trazer a Verdade ao convívio dos seres nas trevas da ignorância, “Como vive o homem, / se é certo que vive?”, considerando-se a conveniência de aliar Conhecimento e Esclarecimento, uma vez que o Poder deve levar necessariamente a um maior grau de Perfeição, “Que milagre é o homem? / Que sonho, que sombra? / Mas existe o homem?” Carlos Drummond de Andrade.

    O rapaz se resumia agora ao silêncio da Biblioteca. HD se voltou, após ler o poema. O rapaz explicitamente esperava algo, uma palavra de apoio, e HD ousaria decepcioná-lo?

    - Sei. Mas acho que você está lendo Platão demais.




(esboço de carta para Darío Sabine)
(carta jamais enviada)



Os grandes escritores são híbridos, deslocados, estranhos para si mesmos, com suas identidades frágeis e cambiantes. Vejamos. Fernando Pessoa, educação inglesa, vida pacata em Lisboa, sebastianismo e misticismo; James Joyce, irlandês a escrever em inglês, perambulando pela Europa levando Dublin no bolso; Sartre, origem alsaciana e vivendo o drama francês; Camus, franco-argelino, cercado de africanos francófobos; Hemingway, um ícone ianque nos palcos de guerras europeus e simpático à Cuba; Clarice Lispector, ascendência ucraniana, infância no Recife, carreira no Rio, vivencia mundo afora, com o marido diplomata, não se admira que vivesse a perguntar-se “Quem sou eu?”; Natalie Sarraute, que na França vivia se lembrando da Rússia; Milan Kundera, em Paris retratando sua saudosa Boêmia; Gunter Grass, entre os poloneses e os prussianos, agarrado ao tambor e aos seus três ano; Ismail Kadaré, das montanhas albanesas, exilado em Paris; e muitos outros. Veja o conterrâneo do Castillo, o Dorfman, fã do Pato Donald, que descende de russo (certo?), viveu na Argentina, nos States, no Chile, novamente nos States, transitando com um dilema a tiracolo, se emigra do espanhol para o inglês.




    Poderia mesmo acreditar?! Um convite do próprio WS! Um telefonema no cair da noite, direto do Salão do Livro. Evento temático referente a literatura portuguesa moderna. Surreal! Mas aceitou prontamente, até porque precisava conversar com o poeta-editor.

    Pensava em Hélio Lúcio e até levou consigo textos do amigo. WS ainda ausente, então o jeito foi acomodar-se no auditório e deixar-se por conta dos versos. Sofrendo a consciência da efemeridade, o poeta Hélio Lúcio realmente dispunha de vocabulário rico e muita imaginação, flertando com simbolistas e modernistas, sem esquecer os poetas da decadência, “existências vãs!

    Um dos poetas amigos de WS acaba de chegar, mas desconhece HD. Assim, a primeira pessoa a notar o rapaz foi a bela secretária lusitana, a distribuir a programação do evento. Os intermediadores serão acadêmicos e literatos mineiros. MC, outra sombra de WS, adentra o auditório, mas sem perceber o nosso HD, que já começa a imaginar-se invisível por artes que desconhece.

    E quando WS apareceu (afinal!), suas múltiplas ocupações não permitem que ele perceba HD na platéia. A montanha que vá até Muhammed! WS está de excelente ânimo e seu sorriso já é saudação suficiente. Depois acomodou-se ao lado de HD. Do outro, apareceu MC. E começaram a conversar, de forma a impossibilitar a HD a compreensão do que se passava na mesa de debates. Um jovem autor lançava um romance? Um prestigiado poeta e editor, outro título de poemas? O caso é que os amigos conversam ATRAVÉS de HD que tenta inutilmente entender o que diz a crítica literária e romancista lusitana. Já não bastasse o sotaque! Acho que os excelentíssimos poetas aqui querem escandalizar os presentes. Mesmo diante da autoridade ali representada pelo simpático cônsul português.

    E se escândalo é o que querem, logo conseguem. Surpreendente como suas faces, suas vozes se transmutam em geradores de emoções! Estarrecendo os incautos, que presenciam uma voz agônica elevar-se de um corpo agônico! O poeta é o ator que faz reviver a emoção que gerou o poema! Ressuscita seu sofrer e o dramatiza!

    Não está solitário, em sua emoção, o nosso HD. Ao seu lado, uma senhora se agita e suspira, e não hesita em palmas abundantes, até levantando-se, no que é imitada por todos!

    O que os audazes poetas queriam era quebrar o solene academicismo do momento, com a crítica ocupada em longa exposição da produção literária contemporânea em Portugal, mas ninguém poderia imaginar WS caído pelo chão, e sendo arrastado, al um fardo, por MC que bradava, desferindo violentos murros no próprio peito, com suas palavras catárticas sob o jugo das inclemências e absurdos do existir, e ressuscitado, WS a exibir-se em contorções de serpente, até levantar-se de súbito e ousar retrucar a primeira voz, denunciando a rejeição, o indivíduo alienado de si mesmo. (Os lusos estavam perplexos!) E depois de correrem, gritando pelo corredor, entre as cadeiras da platéia, e de MC tirando a camisa (com motivos florais!) de WS, com explícita fúria, cada um voltou à sua cadeira, calmos e disciplinados! “Bravo!”

    Assim o evento se dividiu em antes e depois. Os lusos em comentários, a digerir o escândalo, que tais ‘empolgações’ não existiam em Portugal, onde se o poeta se apresentar com roupa um pouco diferente, já é discriminado, imagine-se então jogar-se ao chão, em convulsões, a rastejar e tirar a camisa! Nada pareciam entender da performance, que brotou ali tal a revivificação do sentimento, o mesmo que levou a gênese das palavras, aquelas cristalizadas no papel em pungentes versos!

    Os lusos ainda “digerindo o salazarismo reacionário”, e sem a “benção do tropicalismo”, viam tudo com preconceitos “caretas”. Quem assim esclarecia era a senhora ao lado, a que não poupou aplausos. HD mirava suas memórias a se perguntar: Quem seria? Sim, pois ele a conhecia. Uma amiga do WS, de um sarau de lançamento de uma coletânea de contos de conhecido magistrado recém-falecido... Uma noite de gala, diga-se. No Automóvel Clube.

    Tapete vermelho, lustres floreados, escadarias estilizadas, uma viagem no tempo. Papel de parede parisiense, quadros franceses, canapés do Segundo Império, e todo um bom-gosto que os colonizados sempre copiam. Ao chegar, HD encontrou WS recepcionando a fina flor da elite. A livresca TFM. Os senhores e as senhoras, aparentes do magistrado, que agora colhiam os louros, e os direitos autorais. Mas os poetas estavam na sala à direita, à meia-luz, acomodados em poltronas e cadeiras em semi-círculo e em declamações intimistas.

    Com seus poemas irônicos, destaca-se famoso poeta, com um quarto de século de carreira, e não menos destacados os amigos de WS, a saber, o entusiasta MC e o modernista ED, que se alternam em vozes e clamores, enquanto HD é convidado a sentar-se. Ao seu lado, gentil senhora que, em sorrisos amáveis, não hesita em segurar-lhe o braço, a insistir em que o rapaz declame algo, “Você não quer ser poeta?”, mas ele ainda a pensar de onde a conhece, “Eu sou poeta, ms hoje sou boa ouvinte.”

    Apresenta-se como Nélia Lemos, e mesmo tendo idade para ser mãe de HD, conserva toda uma jovial vivacidade, com autoridade de anfitriã, mesmo em casa de outros, disposta a fazer apresentações, de braços dados ao rapaz, a passear pelo salão, Eis o jovem poeta Hector Dias, querida Miriam, Querida Carmen, um jovem poeta amigo meu, Meu querido Arthur, apresento-lhe o poeta Hector Dias, e HD é todo sorrisos diante de senhoras de gosto artístico e de senhores de nobre educação, e Nélia, sempre agarrada ao seu braço, ironiza, “O que você vê? Diga-me, você que é poeta!”, é um desafio e ela não dá trégua, “Vai me dizer que não percebeu?”, “O que? Do que se trata?”, “Ora, mas assim você me decepciona! Olhe o cenário diante de seus olhos, meu querido!”, “Um teatro?”, diz HD, encenando igualmente.

    Belo cenário, aliás. Uma linda mocinha recebe sorrisos junto à entrada, certamente a filha do autor falecido (e não falecido autor) que, de vestido de debutante (mas com suas deliciosas dezoito primaveras) e corpete e cabelo solto, é toda sorrisos e simpatia. Outras moças passeiam de braços dados, com trajes menos clássicos, não muito preocupadas com assuntos literários. Dois rapazes de fino trato, porte lusitano, estão junto às janelas do salão principal. Um deles à rigor, cabelo à escovinha, gel a la anos 50. o outro, sim, realmente todo Elvis Presley, contraponto óbvio, jaqueta preta e topete, que (olhando-se melhor) parece o Morrissey. Serão irmãos? Conversam, mas sem afastarem os olhares das mocinhas, o rebelde sem causa parece ser o mais velho, no entanto o todo à rigor, o mais responsável, talvez o autor do convite ao irmão para prestigiarem o evento social.

    Distribuindo saudações e sorrisos de fotografia, Nélia ainda em insistências, “Não vai declamar um poema seu?”, e recusa champanhe apenas para devolver a taça e derrubar outras duas, em altivas desculpas, quando o garçom aproxima-se para varrer os cacos, “você não é poeta, Hector?”, “Eu sou poeta, mas não de salão.” E aponta os colegas, junto às senhoras em glamoroso roteiro de emoções e aplausos.

    Nélia Lemos ergue a voz e recita versos de seu novo livro, que ela mesma fez questão de ilustrar, em vistosa aquarela, exímia artista plástica que é, e vê-se que seus poemas muito agradam aos presentes, e o próprio WS em seus arrebatamentos agrolíricos, sobre os quais HD escrevera, conquistando assim a atenção e respeito do poeta. Atenção que WS poderia conceder, caso HD estivesse pronto a esperar, as aquela noite acenava com gestos brumosos de um sonho, ou algo lido em algum memoralista francês, perdido entre entusiasta da poesia e arrivistas do sistema judiciário, lembrando que é Bloomsday, e que poderia estar no episódio Circe de Ulisses, caso o ambiente não fosse de tão alta respeitabilidade. Não, esta noite não merece uma espera, merece um grito, e ainda que WS solicite a HD a espera de um momento, desta vez, ou daquela vez, HD não se deixou à espera.


    E quando Nélia Lemos, reencontrada, o convida para um brinde, a comemorar o “maravilhoso momento de estar ali entre artistas e poesias a sentir-se toda viva.” Por que negar companhia a tão simpática escritora? E ela precisava de alguém para conversar. Lamentava a futilidade de tantos eventos e elogiava sem pausas o talento do ‘estrondoso’ (termo que ela repetia) WS.

    Sendo alguns anos mais velha que sua mãe, HD via naquela senhora a imagem de meio século de História. Ele nutria essa mania. Via as pessoas mais velhas como ‘arquivos’ ambulantes. E não se enganara desta vez. Nélia Lemos começara a abrir as gavetas da memória.


    De tropicalismo, a saudosista Nélia chegou a resistência armada após um seqüência de raciocínios e lembranças que HD infelizmente não acompanhou. Não que a interlocutora fosse desinteressante ou piegas, mas, ao contrário! É que ele se esforçava por se lembrar do que fazia ali, ou porque viera. Um convite, aliás, dois, o de WS primeiro. Depois esta escritora quinquagenária que revela um passado esquerdista revolucionário! E esta senhora (que é mesmo um arquivo-vivo!) está lembrando seus tempos de resistência, prisões nas mãos dos agentes da segurança e da ordem, enumerando siglas que HD reconhece, lidas em relatórios,nunca ouvidas dos lábios humanos. Lábios que tenham levado choques ou não, murros ou não. Tudo tão remoto! Seus pais sempre foram muito discretos quanto a comentários sobre a finada Ditadura Militar, uma vez que foram fiéis cumpridores de seus deveres para com a pátria. Se assaltaram bancos? Se seqüestraram embaixadores? Se distribuíram bombas nos órgãos de repressão? Se marcharam para os sertões em combates armados? Se entraram selva adentro até os rebeldes do Araguaia? O que é isso, menino?!

    Claro, coisas de subversivos! E eis uma bondosa senhora a sua frente, pagando a cerveja, e lembrando de como sobreviveu a dois interrogatórios, o segundo com direito a certa dureza por parte dos agentes, gente nada gentil, ela sorri, mostrando na pele outras marcas. Arame torcido ou cigarro aceso.

    A sorridente Nélia, de sorriso melancólico, precisa desabafar. E por acaso (haverá acaso?) tem diante de si um poeta e historiador, atualmente arquivista, discreto funcionário público, pronto a ouvi-la, a interroga-la (ainda que sutilmente e em nome da memória histórica, não da segurança nacional) colhendo desabafos e reminiscências.

    Ainda que preferisse vinho, HD bebia tranqüilo a cerveja, e a entrevista teria se prolongado não fosse pelo recital programado para o mezzanino, onde o poeta, e recente romancista, comentaria sua obra, além de ler preciosos trechos da mesma.

    Nélia não perderia por nada. Enquanto isso comentava sua carreira nas artes plásticas (com suas aquarelas) e de repente já estava em Fernando Pessoa (após breve passagem por Van Gogh e pintores holandeses do século 17) sempre perplexa com os heterônimos, que para muita gente (ela inclusive) era ‘lance de mediunidade’. No corredor, alguém deve ter pensado que abordavam um dos romances de José Saramago.

    HD agora ouvia mais atencioso o breve histórico do jovem poeta lusitano, que se entrega ao leitura de seus versos, com líricas fotografias do cotidiano. Está Nélia ao seu lado, apresentando nomes aos personagens, o poeta é o promissor José Luís Peixoto e muito bem fizeram em convidá-lo para uma visitinha a terra tupiniquim.

    Logo um poeta local (não podia deixar de ser outro amigo de WS) empolgou-se numa homenagem aos portugueses, a declamar versos de Fernando Pessoa, o que muito agradou a todos.

    Se queres vinho (e vinho do Porto!) estás servido. Realmente, ao lado, uma mesa repleta de doces típicos e vinho do Porto! Bem-vindo a Lisboa! O poeta propõe um brinde aos laços d amizade luso-brasileira. E não só o fantasma de Fernando Pessoa levanta a taça!

    Percebendo WS ao seu lado, HD não hesitou em falar de negócios, ainda que em extenso prólogo sobre os eventos, etc, ou o sucesso dos eventos, etc, as campanhas de divulgação da nova editora, que muito interessava aos escritores “em busca de um lugar ao sol”, e outros chavões, mas finalmente insinuando uma certa crítica aos valores exorbitantes que poderiam afastar alguns novatos de menor poder aquisitivo, ainda que literatura seja uma arte cara, e com lamentável excesso de pequeno-burgueses e funcionários públicos, como já dizia Carlos Drummond de Andrade.

    Não demora muito e o poeta que propôs o brinde, acompanhado de um romancista, se aproximam e encenam apresentações de praxe. Outro possível cliente para o selo editorial, e assim perdoe-me, caro Hector, mas. No entanto, foi só MC aparecer e WS o romancista esquecer. Impossível a conversa entre cinco pessoas (ainda mais poetas!), é egocentrismo demais por metro quadrado. O romancista, mais prosaico, até que se podia engolir, apesar de seu ecologismo romântico de defesa de nossas populações ornitológicas, e HD preocupado com as nossas populações periféricas.

    Por falar em romance, HD tece longos comentários, ao despedir-se de Nélia, que prontamente apresentou o jovem ao grisalho marido, que ali está para conduzi-la ao lar, sweet home. Ele suporta menos os artistas, com seus ares de agente de seguros, “mas vá lá, ele não morde! Pelo menos sempre vem me buscar.”

    Talvez HD não encontrasse mais aquela exótica Nélia, mas sentia suas ânsias de pesquisador renascidas. Afinal, não é todo dia que se encontra um arquivo vivo.




    No dia seguinte, segunda-feira, manhãzinha normal, HD conseguiu localizar o bardo Hélio Lúcio. Meu Prezado, o interesse de vossa parte em participar de oficinas literárias e etc, Meu caro Hector Dias, o interesse de minha parte é correspondido e muito me orgulha o vosso convite, Prezado, sei que vossa agenda pode não permitir, Caríssimo, HD, pra que todo esse formalismo?

    Enquanto esperava Hélio Lúcio, HD não podia deixar de folhear alguns livros, a constar títulos de Fernando Pessoa, Flaubert, Mann e livretos recentes do (ontem louvado) WS em plena ascensão, não ao Panteão, mas ao mainstream da indústria cultural. Aqui representada pela imprensa carioca.

    Comentando suas leituras recentes, HD recebia em respostas os versos de Hélio Lúcio (que somente declama Hélio Lúcio!) gritados sob o viaduto, enquanto os passos rumam até a Serraria. Onde, aliás, HD não encontra qualquer conhecido, amigo ou literato. Nem no stand dos independentes. Onde os poetas amadores? Onde os editores de fanzines de subúrbio? Onde os divulgadores de panfletos e ataques líricos?

    Nem adiantava procurar. Trataram de ir logo reservar lugares para as oficinas de poesias (que já registrava cinqüenta interessados!) com ênfase em oralidade.

    Trocavam versos digitados (ou xerocados) na praça dos eventos, enquanto os universitários (e futuros vestibulandos) assediavam as prateleiras de livros técnicos e literários para concursos. Poucos visitavam a Exposição portuguesa, por isso para tal porto navegaram. Não só de Fernando Pessoa vivia a literatura lusitana. De narrativas orais, passando por cantigas e baladas, e os famosos fados, até a prosa pós-moderna, o mundo das letras da antiga Metrópole ali se achava representado.

    Sentados no auditório (ainda não apareceram as tais cinqüenta almas!) os amigos comentam alguma questão poesia e performance. Eu que não sou performático penso que é a palavra que deve emocionar, não gritos, gestos, convulsões..., Vai esclarecendo HD, mas eis que o motivo que aqui nos traz (e tal narrativa) se apresenta.

    Lá na primeira fileira, alguém mui falante, muito diplomático, e não se trata do palestrante, ou da palestrante, pois a coordenadora (e professora, pedagoga, educadora infantil) se apresenta e brinda a platéia com um violão eximamente mal tocado. Não, não é ele o motivo dos murmúrios entre HD e HL. O caso é que Hélio Lúcio pensa ter identificado no sociável cidadão em foco o vulto de um antevisto (e raramente encontrado) poeta e editor.

    Editor. Palavrinha mágica neste mundo de autores desamparados, pobres ovelhas desgarradas em busca de um pastor, de um homem que detenha o poder de transmutar odes e contos em papel xerocado naquelas maravilhosas edições ricamente ilustradas e histericamente procuradas.

    Mas não será desta vez que os poetas ali, nossos amigos, terão sorte. Logo a oficina finda, com real ênfase em oralidade, pois a coordenadora, psicopedagoga, educadora, etc, não fez mais do que vestir musicalmente alguns conhecidos poemas de autores nacionais, mostrando que não só Toquinho e Vinícius podem atentar contra os versos escritos. Gente, poesia no papel é poesia morta!


    Não discutimos os méritos e contra-argumentos, mas, como escrevíamos, a oficina logo finda, e o poeta e editor, que muito interrompera o andamento da mesma, é cercado por miríades (mas não temos mais que quarenta pessoas aqui!) de interessados e interlocutores ávidos.


    Se desejavam fazer contato, perderam o bonde. HD não ficaria ali esperando (até que esperaram quinze minutos) e aquela bajulação toda só fazia reabrir sua gastrite. Nervosa? Ó Lúcio, poupe-me, sim? Assim deixam a feira do livro, fartos de livros, fartos de editores, e até fartos de autores!



...

continua...



LdeM

quarta-feira, 2 de março de 2011

cap. 1 da p.3 (final)

[...]



    Quando cheguei à festa, ele já estava sem camisa, junto a piscina, batendo palmas e gritando meio aos outros marmanjos – Tira! Tira! – para as garotas que, meio bêbadas, semi-nuas, insinuavam um strip-tease, rebolando na orla da tal piscina.

    O anfitrião cuidava da churrasqueira, providenciando mais carvão. Quando olhei novamente, ele (o meu irmão) estava prostrado no chão. Perdeu o equilíbrio e caiu sobre os braços. Bêbado ao ponto de não sentir dor. As garotas não represam o riso, e os amigos (assim se dizem) não oferecem mais do que gozações.

    Stevam retorna ao seu trono de misérias, agora acaricia o braço lesado. As garotas continuam com suas provocações e logo ele está a aplaudir as strippers juvenis, que ainda ameaçam tirar o top do biquíni. Noto certa insanidade em seus olhos. Drogas e vodka? Ele normalmente tão reservado! Agora deixa-se ficar aplaudindo as ninfetas como se estivesse numa boate. Uma delas exibe os peitos e pula na piscina entre risinhos. Os rapazes deliram.

    Muito engraçado! Mais jovens chegam e logo uma banda desafina uns acordes, num palco improvisado. Um som punk, dissonante. Os caras se agitam.

    Logo, Stevam se enturma: um grupo a correr em círculos. Mas ele se agita, furioso, golpeia o chão com os punhos, enquanto os rapazes aproveitam para enlaçar as meninas, que correm entre eles, ou começam a jogar uns aos outros na piscina. Aí é que vem o inusitado. Stevam nem espera e vai ele mesmo se atirar às águas! Com roupas, documentos, sapatos. E junto às garotas, que só sabem rir, ele tenta recuperar o fôlego. Vou precisar largar a minha taça de vinho, para ir verificar se ele está bem.

    O filho do anfitrião ajuda-me a pescar o Stevam, e ele se encolhe num canto, junto a bateria. Agora sente frio, a euforia já passou, ouço o entrechocar de seus dentes. Sim, a euforia se foi, ele já pode voltar a olhar par dentro de si mesmo.

    Aceita abrigar-se em meu casaco, e ser levado para o carro. Desisto de despedidas. Julgo ainda ouvir o riso das sereias.

    Ligo o ar quente do carro. E seguimos. Ambos em silêncio.




    Era o Bruxo que estava meio grogue. A garrafa de vinho vulgar quase lhe caía das mãos.

    Estavam sob as copas das árvores na abandonada praça do Eldorado, que muitos chamam de ‘cemitério’, com suas ruínas e ‘piscinas’ ressequidas. Os jovens de semblante pálido e roupas soturnas transitam entre os escombros do cartão-postal, acrescentando sombras às sombras, entre os arbustos sobre a iluminação fraca.

    Diante de um casarão. Um casarão cercado por altas grades e galhos retorcidos, de ares velhacos, em pleno abandono, de tempos imemoriais.

    Um vulto aproxima-se de Erik, que tenta suster o Bruxo, meio corcunda de notre-dame, mas não passa de um cara de vinte e três anos e sem rumos. Erik, com um menear de cabeça indica o grupo sob o poste, na alameda. Stevam percebe o gesto quando identifica o vulto. É o TH. E Aléxis, ao seu lado, também percebeu. E não menos Carol, a ‘ex’ de Oto, que detestava o poeta. Ninguém sabia o motivo (seria a morte da Sônia?), talvez a misoginia...

    - Saudações.

    Sempre muito educado. Somente Carol não responde.

    - Vejo a nova geração. Os da minha geração ou já se converteram ou já morreram.

    Ele adorava se mostrar o mais velho, o mais experiente. Não passara dos vinte e sete! E Sevam não era nenhum pirralho (com seus vinte e dois...)

    Erik sempre dava mais atenção. Era o porta-voz. E como falava! – E você, Mestre, por onde andava?

    TH fingia que não notava o tom irônico. – O de sempre. Noites adentro... A velha e infindável procura...

    E Carol lançava aquele olhar de “ele é sempre assim pedante?”, mas Erik já comentava o atraso do tal show e Stevam observa o figurino dos jovens, naquele desfile.

    - Belos modelitos.

    Agora TH era o irônico. Stevam fechou a jaqueta e se levantou. Sentia-se afogado ali.

    - Apenas uma forma de se vestir. Sim, uma moda. Não sabem do que se trata. E não sabem quantos morreram nas fogueira, ao resguardarem tais símbolos.

    Uma garota passou exibindo um pentagrama, estrela de cinco pontas. Não parecia ter mais de dezesseis primaveras (ou invernos...)

    - Menos que isso. Qualquer suspeita e se acendem os autos-de-fé.

    TH respeitava o interlocutor. Stevam sempre interessado. E TH, em voz solene, falava da História como se vivenciasse cada momento narrado.

    - Eles nem suspeitam que se os eclesiásticos estivessem no poder, nós não estaríamos aqui. Sabem algo de Napoleão e as leis de separação da Igreja e do Estado? Podem sentir o cheiro de carne humana em chamas quando os exércitos de Carlos Magno trazem o peso da Cruz sobre os povos saxões? Os monges que ousam enfrentar o mar do Norte e enfraquecer com o evangelho o coração dos normandos?

Os barcos vikings nos portos não se entregam ao mar antes da primavera e a lua não é propícia. Há um silêncio na praia, quebrado por um lamento ou uma voz a entoar um hino. De início, solitário cântico. Mas dentro da noite, outros se congregam, outras vozes se unem. Os deuses nórdicos da força e da coragem são apaziguados sob a sombra da Cruz.

    - ... o Papa mostra a face piedosa e faz o imperador chegar até ele, descalço, na neve.

    A voz de TH soava dos barcos e da neve e Stevam não poderia distinguir. Perdia trechos assim perdido em imagens...

    - O que eles te ensinaram na escola?

    Aléxis esquecia por um instante os lábios de Carol e voltava-se para Stevam, que respondia, “Como qualquer outra matéria.”

    - Não. Na verdade, eles te ensinaram a odiar História.

    TH seguia o olhar do Aléxis. E Carol ainda mais, pois o silenciava com um beijo. TH não poderia ficar à margem da paixão do casal. E pensava em Oto. E nas brigas até o rompimento de Oto e Carol. Poderia escrever uma crônica! Contudo sobreviviam insinuações e boatos.

    - Ensinam o ódio ao conhecimento. Permanece o ignorante a vangloriar-se de sua ignorância.

    TH deixou a pausa para sentir o peso do que falara. E continuou. – E principalmente História. Pois o passado é esquecido, o presente camuflado e somos todos arrastados para o futuro.

    - Mentira repetida é verdade.

    Aléxis sorria. Carol não poupava carinhos. Via-se que TH estava incomodado diante da paixão alheia. Menos de um ano antes e o amor daquela mulher estava depositado em outro homem.

    - Quem disse isso? – Erik, com certa inveja do Aléxis.

    - O ministro da propaganda.

    Olhares de curiosidade.

    - O do Hitler.

    Stevam lembrou-se de um livro sobre o Papa de Hitler. Erik não entendeu nada. Aléxis se afogava nos beijos da Carol.

Eugênio Pacelli. Pio XII.ali mesmo há uma avenida com o nome dele. Ali na área industrial. Há um colégio. Pio, isto é, “puro”. Santo. Servo de Deus. Contudo, sentado num trono de ouro e marfim. O chamado Papa de Hitler.

    A voz de TH não podia deixar de seduzir. Tentava decifrar o olhar de Aléxis.

O Papa pouco fez pra desacreditar a ditadura nazista, alegando temer ataques aos católicos na Alemanha. Filas de judeus eram conduzidas em Roma, aos portões do Vaticano. Sinagogas em chama, ele tolera, desde que não profanem as catedrais.

    - Hitler, eu digo aos caras, era muito inteligente. Mas eles não acreditam. – Stevam via diante de si uma chance de conseguir em TH um apoio para as suas teorias. – Negociava, enquanto movia os exércitos. Não era o louco que vendem por aí. Perseguia um ideal estético.

    - Arquitetura da Destruição. – dizia Aléxis, entre um beijo e outro.

    - Um louco estrategista, digamos. Se você (e o ‘você’ aqui não era  retórico, sem destinatário) estudar a classificada “Solução Final”, ou Shoal, verá que foi uma ação bem planejada, arquitetada.

    - Aléxis, aos olhares do TH. – Estética, você disse? Hitler, um artista frustrado, um amante da grandiloqüente música de Wagner.

    - Há quem veja na limpeza étnica uma busca pela estética. Abaixo os degenerados! Vida longa aos loiros, altos, arianos. – responde TH, sem piscar.

    - Os próprios generais não entendiam Hitler. Eles esperavam o uso dos judeus como escravos, para as fábricas. Não imaginavam a eliminação ...

    Aléxis agora encarava Stevam, que engasgou no termo “escravos”. – É que Hitler queria ‘limpar área’ para a colonização dos arianos, lembram-se daquele papo de “espaço vital” ?

    - Igual a Stálin, que deslocou populações inteiras...

    Via-se que TH assistia os debatedores, ali sob a luz do poste, naquela noite fria. Mesmo que Aléxis não fosse todo atenção, visto a presença de Carol... Mesmo que Erik vez ou outra acorresse ao outro lado da rua, no pisado gramado da praça, a socorrer o Bruxo caído meio às raízes.


As guerras de extermínio não são coisa nova. Mongóis contra chineses, ou espanhóis e portugueses contra indígenas. Ou germânicos e russos contra polacos. Ou turcos contra armênios. Ou nazistas contra judeus. Não trata-se de um jogo, de manobras no campo de batalha. Trata-se de varrer o outro povo da face da Terra. Populações civis, desarmadas são o alvo. Todos acompanharam a barbárie nos Bálcãs. Ou contemplaram a pilha de ossos armênios. Fora as atrocidades mais próximas. Em chacinas de meninos de rua. Mas trata-se de outra eliminação...

    Contudo, TH sugava as atenções. – Primeiro, os nazistas insistem que os judeus são sub-humanos, seres inferiores, uma raça fraca, indigna de merecer viver. Quer justificar assim a eliminação de tal ‘raça’. Depois os ‘puros’ apontam um grupo de pessoas, que são artistas, médicos, engenheiros, filósofos, comerciantes, etc, e reduz todos ao rótulo, ao termo ‘judeu’ e colam uma estrela amarela! “Vejam ali os judeus!” e assim separam os ‘impuros’. Não são mais iguais, nem mais humanos, nem mais dignos, agora reduzidos à um rótulo e etiqueta, “Ora, é apenas um judeu, pode matar à vontade.”

Se os judeus estão dispersos, mesclados a população, sim, pois estão nos escritórios, nas lojas, no comércio, na venda ambulante, como cambistas ou caixeiros-viajantes, nas redações dos jornais, todas as ocupações desprezadas pelo ariano loiro cristão, que não cobra juros nem escrevinha notícias, mas sobe aos postos militares, torna-se médico ou engenheiro. Se estão dispersos, é preciso encontrá-los. Há então um recenseamento. O que possibilitará discriminação e segregação. Surgem os guettos. Em seguida cartões de racionamento. Cartões para uns, e fuzilamentos para outros. Dividindo as facções, surgem desconfianças. Ortodoxos contra assimilados. Prudentes contra ousados. Bens confiscados, famílias separadas. A Guerra Total. Campos de trabalho. “O Trabalho liberta!” A segregação se sistematiza. Caminhões adaptados, com escapamento voltado para dentro. Morte por sufocação. Mas é ineficiente, dizem os tecnocratas. Constroem os campos de Extermínio. Há toda uma documentação sobre. E os nomes não deixam de causar arrepios. Treblinka, Auschwitz-Birkenau, Ravensbrucke. Tudo muito bem arquitetado. Separados do povo, divididos, conduzidos igual gado de corte. Casa e malas vasculhadas. Propriedades confiscadas e meticulosamente examinadas.

    - Não é como se os nazi procurassem algo, alguém? O quê? Quem? – Stevam se empolgava de curiosidade.

    - Eis uma boa questão. Um segredo, um saber, um sábio. Pois não havia o tais “Protocolos dos Sábios de Sion”? Pode até ser farsa, mas alguém poderia ter acreditado. Talvez procurassem o Golem, ou a Arca da Aliança. Não fizeram até o filme do arqueólogo-aventureiro...

    - Indiana Jones?

    - No filme, abrem a Arca (que ninguém sabe onde foi ocultada. Ou alguém sabe?) e a energia brutal pulveriza os vilões. Radiação? Acumulador elétrico? Que artefato seria? A arma secreta que Hitler tanto prometia?

    Todos atentos. Inclusive Aléxis. TH continua tenso e solene.

    - E Hitler despreza os judeus como inferiores. E ele que perseguia o segredo da energia suprema, a explosão apocalíptica, vê que são justamente cientistas judeus que obtêm sucessos rumo a nova arma. Eisntein, Bohr, Szilar, outros. O fanático expulsou os maiores cérebros da Alemanha! Não eram inferiores? Mas vão conseguir a bomba que ele não conseguirá. Caso contrário, adeus Paris, adeus Londres, adeus Moscou, deus Nova York!

    - Sim, há algo de esotérico, de místico nos nazistas! Uma busca do segredo, da invencibilidade. – os olhos de Stevam brilhavam.

    Aléxis não estava menos interessado. – Hitler não usurpou a suástica do Oriente e a inverteu?

    Alguém talvez respondesse, mas uma conhecida de Carol se aproximou e todos em suspense...! Erik mostrou-se o mais solícito com a recém-chegada. Mas o TH todo cuidadoso com o Stevam.

    - A piedade nos enfraqueceu. Cuidamos de deficientes e retardados e deixamos homens vigorosos morrendo na miséria, ou sujeitos a trabalhos inúteis.

    Stevam até concorda. – Somos fracos. Quem de nós é capaz de levantar uma espada? Só se for no videogame... Metralhadoras e armas guiadas por satélite. Isso é guerra?

Havia toda uma força e coragem que perdemos. Os Cruzados! Seguiam bravamente para libertar a Terra Santa. Com suas ambições, é verdade, mas um sentimento de ‘missão’ que impulsiona os heróis. E não como dizem hoje, que os cruzados foram enganados, eram todos ignorantes, ou gananciosos, ou impiedosos, uma massa de manobra do Papa... Esquecem que os cruzados seguiam lutando, morrendo e matando... Jamais entenderemos a mentalidade daquela época. Cada época que se julgue a si mesma. Hoje, mil anos depois, a gente falar das cruzadas, a julgar aqueles homens, é absurdo! Não ouso nem falar dos bandeirantes...

    - Não há mais guerra de honra, homem a homem. Somos degenerados. Temos um porte decaído. Nossas mães sem leite para nos nutrir. Olhe as tetas das saxãs, das germânicas, das nórdicas!

    - E que tetas! Das suecas, então!

    Parece que a garota não dera muita atenção ao Erik e ele vem acompanhar a conversa.

    - Em todas as grandes matanças, perseguições e massacres, em todas, algo, alguém, algum valor, tradição ou ideologia, foi elevada, considerada acima da dignidade de cada pessoa, do direito de vida. Na Inquisição, o Dogma religioso foi elevado acima da vida e da liberdade. Depois, no Holocausto, a Raça, o aspecto físico, foi colocado acima da vida e da dignidade, sem esquecer as perseguições por causa da Ideologia, o pensamento político, o unipartidarismo, uma minoria, em nome da coletividade, a esmagar os que são rotulados de ‘dissidentes’. Sejam de Direita ou de Esquerda. Veja as deportações e campos de concentração...

    - Em nome da igualdade ou do bem-estar, deportações para a Sibéria ou extermínio em massa!

    - Em tudo isso muda mais que a intolerância ao Diferente, a instrumentalização dos preconceitos, o desprezo pela vida.

    Deixaram Aléxis com as duas garotas, Carol e a amiga, e foram se sentar na praça. Erik ironiza os vampirinhos e a “beleza na morte”.

    - Oh, como eu gostaria de ser um vampiro quando eu crescer!

    Mas TH já se ocupava de Stevam, que lançara um olhar de desacordo ao sarcasmo de Erik, meio despeitado depois da rejeição da coleguinha da Carol. Reação que compreendiam.

    - Mas isso de vida após a morte, não há. Para começar é uma distinção bem materialista. Essa dualidade vida/não-vida.

    - Então, em que acredita?

    - Que sou algo além de aminoácidos e redes neurais. Transcendo tudo isso, e posso sobreviver a tudo isso.

    - Numa vida após a morte?

    - Tudo uma coisa só. Tudo é vida, vida em carne, vida além da carne. Você TEM uma alma, ou É uma alma? Você TEM um corpo ou É um corpo? Você TEM uma identidade ou É a identidade?

    Agora Erik voltava-se com aquele olhar de “vejam-como-eu-sei-mais-do-que-vocês”. – Nada de Além. Somos o corpo e pronto. Aceitar a vida. Curtir a vida. Nada de esperar em Outro Mundo.

    - Obrigado por tua contribuição. – E TH voltava-se novamente para Stevam. – Os nossos eruditos estão em apuros. Os cientistas em plena sala escura. Os acadêmicos desorientados. Estudam linhas de migração, rotas de deslocamento de tribos e povos. Seguem obras e monumentos. Ossos talhados, ferramentas, urnas. Urnas fúnebres. Tribos que enterram os mortos em urnas adornadas. Mas tribos que não usam urnas. Mumificam, ou sepultam. Nenhum dos dois processos? OU digerem os mortos em antropofagia ou deixam aos abutres. Entendem os vários modos de se lidar com a perda. Os nossos eruditos seguem esses processos, os monumentos aos mortos e esbarram num limite de dez mil anos. Antes onde estão os túmulos? Não se enterrava?

    - Queimavam! Pira funerária! Ou comiam, não é? Banquete fúnebre!

    E Erik também quer participar. – Ou deixavam às bestas do campo, aos abutres, como já disse.

    - E de repente os enterros, os adornos, os rituais, as mumificações? Todo esse cuidado! Será respeito? Saudade? Ou haverá sobretudo medo? Imaginem os mortos exigindo dignidade. Desejam habitar as lembranças dos vivos.

    Stevam não ocultava o assombro. – Tétrico, isso! Os mortos voltam e reclamam o corpo lançado aos abutres. De perder o sono!

    TH saboreava o terror de Stevam sem se dar ao trabalho de disfarçar. – Você nunca se conseguiu ser materialista. Não estou certo?

Culpa da mãe com suas magias! Aquele esoterismo de brechó. Só mesmo por contracultura meu pai, um socialista, um marxista! Ter se casado com semelhante neo-hippie!

    - Pode-se abandonar uma religião sem aderir a outra?

    - Precisar de uma religião para sufocar outra?

    - Entenda, meu caro. Não confunda religião e religiosidade. E muito menos ateu e materialista. Se este é ateu, ocorre que nem todo ateu é materialista. Pode-se negar a Deus, mas não o espírito. Mas existir o espírito não prova a existência de Deus.

    - Sou ateu, mas jamais consegui ser materialista.

    - Sim, o que foi cristão dificilmente abraça o materialismo, e quando o faz cai na depressão, no niilismo gótico, remoído por culpa e penitência, ou libertinagem e remorso, e acaba não gozando nem essa vida nem a outra.

    TH parecia estar falando de si mesmo. – E se há um Demônio é de todo inútil recorrer a ele, pois se abandonou o próprio Deus como vai agora entregar-se em confiança a um decaído?

    Erik não perderia a oportunidade. – O cara só se liberta se blasfemar mesmo, se escarrar nas hóstias. Em orgias pagãs sob o luar...

    - O seu dionisíaco é muito demoníaco!

    Assim, TH se despedia. Novamente restou a melancolia.





    Quando foi a última vez: Oto e Carol, juntos? Numa outra festa, claro. No fim do ano, antes da decoração de Natal. Uma festa de certa estimada amiga de Carol. A Carol que, na verdade se diga, poucas amigas conquistava.

    Outro que apareceu foi Erik, o que andava sempre entediado. E também o TH, que encontrou o casal pouco antes, e nada de saudações e nada de curvar-se diante da Carol. E ela nunca perdoaria a frieza do poeta.

    Mas a turma de soturnos, sempre de luto, ficou meio deslocada na festa, com todas aquelas baladas hard rock, trilha sonora dos anos 80, com a velha turma dos saudosistas, e nisso TH conversava com Erik, excepcionalmente solitário, sem nenhuma “batgirl” naquela noite.

    - Como dizia o Pessoa, digo, Fernando Pessoa, “todas as cartas de amor são ridículas”, e, como escreveu Kundera, Milan Kundera, “os amores são risíveis”.

    - Todos os amores são risíveis? E Romeo e Julieta?

    - Risível, daí ser trágico. Trágico, por inconcebível. Principalmente Romeo e Julieta. E também Othelo e Desdêmona.

    - Ora, mas se não fosse o Iago...

    Stevam acompanhava as considerações românico-literárias, mesmo atento aos vultos femininos, nascidos dos delírios dos vapores de vinho. Achava (e ainda acha) vulgar, isso de ficar discutindo Shakespeare em frívolos diálogos de festinhas ou barzinhos...


    Mas ao redor do TH já se formara a rodinha dos macabros. Alguém lia Edgar Allan Poe com painel sonoro de Whitesnake, outro (certamente Erik) em sussurros de doces obscenidades ao ouvido virginal de alguma ninfa.

    TH se incomoda mais quando alguém (o irmão da anfitriã) insere no CD player (talvez por sarcasmo) uma antologia de sonatas de Beethoven. – Olhe todos os ignorantes! Entendem o prazer estético que devem à um surdo, a compor melodias que ele próprio, o criador, jamais poderia ouvir?

    E levanta-se, com modos teatrais, com um olhar a dizer “ Não há lugar para mim neste mundo”, sem se despedir. Stevam, ao seu lado, algo comovido, levanta-se, faz menção de querer ser companhia, e seguir o bardo naquela noite escura e chuvosa.

    Contudo, o fardo da solidão de TH é pesado demais, e Stevam volta à mesa, um tanto cabisbaixo, logo a embebedar-se, enquanto o Erik e outro sombrio são logo expulsos da festa. Nas penumbras, as ásperas discussões. A família da amiga da Carol está escandalizada! “Mas, Carol, que povo é esse?” E é o “diabo no meio do redemoinho”! quando Oto decide entrar no tumulto para defender os amigos (amigos?) e chega até a puxar o seu estimado punhal (aquele com traços árabes) sempre aninhado dentro do coturno.

    Mas a quem o Oto pretendia agredir? Os irmãos da amiga da Carol? A amiga da Carol? A própria Carol? Nem ele sabia! E Carol, meio histérica, aponta o irmão da anfitriã. Logo, o tumulto vaza para ruas e calçadas.

    Nisso, Erik já desapareceu: conseguiu arrastar alguma incauta para as trevas, afinal, a casa fica no fim da alameda que margeia a ferrovia, e prazeres soturnos não faltam. Depois, os sombrios, os outros, se dispersam. Acabou a bebida grátis – kaputt! Já era! Também Carol sumiu na chuva...

    O que sobrou? Oto, perplexo diante da própria impotência, agora enfim percebida, está sentado no meio-fio, cabisbaixo e encolhido, à boca da sarjeta, e os cabelos longos semi-ruivos ocultam a sua face. Chorava.





Folheando revistas pornô, enquanto o Stevam selecionava a soundtrack, naquela nossa sessão psicodélica, com muitas idéias na cabeça porém nenhuma câmera na mão, quando mother anuncia a visita. Logo aparece o vulto noturno, com sua saudação engasgada. Falava com os olhos no Stevam, mas eu e o Boni, jogando RPG, não esquecemos que ele notava tudo! Cada gesto nosso! Seria mais gente boa, se não fosse aquela pose de corvo! Aquele erudito de literatura das tumbas, como todo aquele mofo da celas de mosteiros, da terra santa onde repousam... Bah! Bolas! Silencioso, ele se sentou, todo olhares no Stevam, o nosso Stevam lá nos céus com diamantes... logo, logo, Boni com seu goodbye so long! See you later! au revoir! Vocês entenderam.. Mas antes de andar na noite silente noite ficou a conversar com mother goose lá na cozinha. Gostava de afagar os gatos. O Boni. Aqueles mesmos que a louca da Sônia costumava colocar no colo, acariciando as nucas manhosas. Sônia! E só faltava um quadro dela pendurado aqui no quarto! Desde que ela morreu – então! Um fantasma! O Stevam até tem pesadelos... E Stevam nem se esforçava para falar, olho no olho quando TH vistoria a desordem nas estantes. Ordnung! Falava ele gritar. Ali uns textos em alemão que alguém precisava traduzir. Fragmentos do “Fausto” ou de ópera do Mozart. Lyrics de bandas niilistas. O corvo não demorou a reunir um volume de folhas rabiscadas que, dispostas duas a duas, completavam trechos inteiros da epopéia. Mephisto dançava em seus olhos – ele começou a traduzir. Tudo isso enquanto o Stevam enumerava as estrelas no teto e dedilhava o violão, imerso no som flutuante, em andamentos os mais diversos. Stevam ainda lembrava trechos de poemas do nosso psicopompo, e pinçou da mochila, sob a cama, uns textos próprios, sua lavra da palavra, que não era para os olhos de qualquer um, segundo a monumental modéstia de nosso Stevam. Então mais dedilhados, Klage, Dunkelheit und Tod. Stevam começou a ficar sentimental, em piradas inspirações para versos sombrios, à sombra do TH o mais solene e inalcançável dos poetas malditos, o mais impenetrável e insondável, o simbolista hermético por excelência, obscuro semelhante à própria, por que não dizer?, a própria (ou próprio?) Tod! Tumulto de tumulares versos ressoavam na vitrola (sic), macabras malevolências de grotesca aspereza e vozes veladas veludosas vozes de lamentos funéreos, o rapto da inocência, o espinho na flor da morte, o murchar das flores, as ilusões perdidas... Afetos natimortos, sentimentalismo afetado. O que pode ter afetado meu irmão a ponto de fazer o que ele fez... mas, ainda, aquele noite, a aparição, o advento, da presença rechonchuda e baixinha de nosso Duende, nosso gnomo particular. E até TH sorriu para o nosso gnomo (a gente chamava ele assim mesmo!), pois out of doubt que TH achava o Elias o cara mais patético deste planetaesfera! O nosso Duende a revelar as artimanhas de Sauron que não podia entender que alguém, em sã consciência, pretendesse destruir o tão prodigioso Anel, aquele Anel que movia impérios, exércitos e mundos, em batalhas que só a mente de um Tolkien poderia conceber (e eu que pouco li Tolkien, viajava no lero-lero...) E de elfos a gobbits e sereias a Mulher-Gato! Aqueles heróis de RPG meiohomem-meiolobo, olhos em chamas e caudas agitadas... Pronto: aquele certo olhar do TH: teríamos aula! Já perceberam que os heróis, os super-heróis, são um tanto dúbios? Ele começava. Ora deuses, ora humanos, demasiadamente humanos. A começar pelo panteão dos deuses – o que são os heróis senão deuses? – os deuses híbridos egípcios, meio animais, meio humanos, tipo deus-com-cabeça-de-íbis, de falcão, ou os deuses hindus, aquele com cabeça de elefante, aquela com cabeça felina... Os super-heróis são híbridos de seres não muito amigáveis, o que pouco os diferencia dos super-vilões, vejam só! O homem-morcego, o homem-aranha, o homem-lobo, o homem-tigre. Por que não? Homem-cordeiro? Homem-ovelha? Homem-borboleta? Homem-gato? Os super-heróis são ambíguos. São alguns psicóticos, outros, esquizofrênicos, todos com algum tipo de trauma. E quanto aos vilões? Quem nos protege deles? Inspiram medo ou admiração? É que já perdemos fé em nossos heróis. É a Era Nuclear. Os heróis tornaram-se dignos de suspeita. O Batman, por exemplo. Não passa de um justiceiro paranóico? Uma sombra psíquica com dotada inteligência e à beira da insanidade? Os X-men são mutações, verdadeiros monstros genéticos, aberrações, com olhos de chamas, ou garras metálicas. Pouco amigáveis, não? E o Spiderman com seu humor sombrio? E o Super-Man cabeludo e com pose de fã de hard rock. Nisso resolvemos ir buscar um vinho qualquer. Ficar logo de porre! Liguei pro JP, mas ele não abandonou a cova. Fomos, o duende e eu, beber na pracinha. Quando voltamos, o Stevam lento lia uma letra de composição nova, nova mesmo! Ainda mais depois do fim da banda... desabou com as torres... até aceitava um cigarro do duende, e o vinho vulgar, tudo em confortável entorpecer, em visões da mãe de coração atômico. E o TH sem beber, se fumar. Dele apenas os olhares. Stevam com olhares de quem vai abrir o coração – e abria o lamento: chora o ano perdido. Abria a mochila, escuras nuvens o cobriam!, a despejar seus entulhos escolares sobre a cama, a encontrar o que procura. Estendia uma folha toda amassada. Notamos os C e os D no boletim. Ninguém mais riu.





    Debruçado sobre o livro aberto, HD percebeu a sombra a estender-se sobre a mesa. E a sombra fez uma pergunta, com voz moderada.

    - Desculpe-me, mas você gosta de poesia?

    HD marcou a página e ergueu o olhar. Diante da mesa, o bibliotecário que atendia pela manhã, e que ele surpreendera, certa vez, discutindo Schopenhauer com outro atendente ( o de cadeira de rodas) ou Leonardo Boff com o professor (ex-professor) de literatura latina. Apresentou-se como JB e convidou HD para um sarau de poesias a ser realizado no centro histórico.

    Anotando mentalmente a data e local, HD agradece a gentileza. JB continua à sua frente. Sorri e ajeita os óculos.

    - Você estuda Letras? (nota a negativa de HD) Sei. Literatura enquanto hobby...

    - Eu escrevo. Poemas, contos.

    - Algum autor de preferência? (do tipo “diga-me quem lês e eu te direi quem és”)

    E HD imaginava se JB estaria fazendo menção à autoria tais como Ferreira Gullar e Moacyr Félix, mas ao, visto tratarem-se de consolidadas carreiras. JB referia-se, certamente, aos autores novatos, independentes, como o próprio JB, que estaria concluindo um livro de poemas a ser lançado ainda na próxima primavera. Mas o bibliotecário-poeta não esperou mais, e afastou-se.

    HD voltou então à leitura, mas o outro não havia ido embora. Retornou com um volume fino, de um poeta em plena ascensão, uma amostra de uma poesia que usava imagem gráfica, ao estilo concretista, e abusava de sonoridade, ao estilo simbolista! Elogiando o autor do poema (um livro todo!), que apoiara JB em sua própria carreira, inclusive deixando clara a intenção de apresenta-lo ao jovem escritor. WS, dizia JB, será o marco da nossa geração!

    Considerando-se que JB era o primeiro ali a conceder um minuto (ou cinco) de atenção ao nosso HD, meio a centena de estudantes e aposentados, não é de se espantar se tal encontro vem a constranger o recém-formado professor (ainda que jamais tenha lecionado). O que pretendia o poeta à sua frente? Amizades literárias? Trocar figurinhas sobre poesia? Auto-elogiar-se, ao elogiar os amigos, proclamados como culminâncias da arte lírica?

    Claro que tudo isso só ocupou sua mente bem mais tarde, até porque ele foi aos saraus (nós já sabemos) e conheceu Hélio Lúcio, e viu Aurelius Magnus e depois trocou telefones com Edgar, o músico e poeta. HD saberia que tudo começara ali (tudo se refere, aqui, a sua carreira) visto que, tal uma bola de neve, os acontecimentos se sucederam, um após o outro, empurrando-o, carregando-o . Mas não antecipemos.




    - Boa-noite. É o D. A . de Letras, não? O pessoal da área artística?

    - Glauber, presidente. E você?

    - Hector Dias. Escritor.

    - ...

    - Procuro os responsáveis aqui pelos eventos culturais, os saraus, as palestras...

    Ah, sim, posso chamar a Gabrielle, ou a Simone, ah, também o Beto. Eu mesmo não atuo muito nesta área, só assino, sabe, sou o homem das canetadas... (ligando para um dado ramal) vou apresentar vocês...

    Assim, HD conhece as empreendedoras Gabrielle, com suas mechas rubras no longo cabelo negro, muito dinâmica, sempre querendo ser informada de alguma coisa, e sua sombra, a Simone, também morena, a sorrir, “Meu querido, mas não a ‘de Beauvoir’...”, mais discreta e meditativa, um olhar inteligente numa face mais enfastiada, toda atenção, enquanto Gabrielle falava, corria, ditava ordens, anotava na agenda...

    E marcaram uma reunião.




    HD chega pontualmente, e encontra Gabrielle a rabiscar a agenda (inseparável agenda). À porta, HD nota, às suas costas, as vozes de Simone (“não a de Beauvoir”) e o tal Beto.

    Fascinado pela beleza e pela autoridade de Gabrielle e atraído pela calma e objetividade de Simone, HD concede pouca atenção ao tal Beto, que, ao final das contas, é o artista! Não que escreva, mas fazia renome com suas performances e declamações. Principalmente de Paulo Leminski. Se Mônica interpreta bem o estilo burocrata, organizando, anotando datas, horários, presença, Beto é o tipo anarquista, “Sei lá, entende, não lembro, esqueci esta”, o que irritava a Simone, que poderia ser um meio-termo, ainda que não anotasse... Simone e seus olhares. Ou seria fantasia de HD? Afinal, os poetas fantasiam demais.

    Conversam (por uns vinte minutos) sobre a faculdade, sobre a Biblioteca e os eventos organizados por JB (que realmente aconselhara HD a procurar os estudantes), o pouco incentivo (e apoio) dos professores (exceto alguns, pouquíssimas exceções...) e agendam reuniões futuras.

    Gabrielle, altiva, nas despedidas, “E vê se não falta, hein! Olhe a data!” Ela é daquelas que dão ordens, sorrindo. Quer opressão melhor?

    HD atravessa os corredores, pensativo. Se Gabrielle faz despertar lembranças de Sandra, e Simon certos olhares de Naína – ainda que apenas Simone aparente notá-lo, pois Gabrielle não o considera mais que uma pessoa jurídica. Ele suportaria uma beleza autoritária? Uma nova mulher, neo-pós-moderna, que pinta os cabelos e distribui ordens? De saia e saltos altos?

    Por pouco HD não derruba o rapaz que entra. Reconhece o poeta e músico Edgar, de quem anotara o contato ao fim de um dos saraus de JB. Ambos se reconheceram nas letras poéticas dos compositores do Clube da Esquina e adoravam um indie rock. Mas nunca agendavam nada. Edgar promete convidar HD para uma noite de música e poesia.

    - É esperar. Eu levo o 14-Bis e você, aqueles poetas beatniks.

    HD então lembrou dos comentários ‘on-the-road’ sobre Kerouac e outros beatos, mas era tudo nebuloso. Não entendeu naquele momento que Edgar apresentava-lhe um futuro, que poderia demorar, mas chegaria.

    O convite chegaria um ano depois.




    Marcaram um encontro no barzinho do Castelinho, que era como a gente denomina o Centro de Cultura, outrora Câmara Municipal, outrora Biblioteca, outrora Museu. Bahia com augusto de Lima.

    “Nossa linda juventude, página de um livro bom”, HD cantarolava. Nutria grandes expectativas quanto ao encontro com o poeta e (só agora descobria) editor WS. Que não viera sozinho. Acompanhando-o, outro jovem discípulo, MC. Ambos ícones da nova escrita, exalando influencias de Guimarães Rosa, de simbolistas franceses, de concretistas tupiniquins, e declamando ao estilo dionisíaco, longas odes ao estilo de Whitman, seguia bem a frente dos bardos hodiernos (não confundir com hediondos!).

    - O que me interessam os discursos ressentidos dos críticos?

    O exaltado MC estava polêmico (ou polêmico MC estava exaltado?) e deixou HD pouco à vontade, com seus olhares que dardejavam atravessando as lentes sem aros. WS mais discreto, ouvia paciente, muito paciente, até condescendente. HD deixou um envelope com poemas, que WS (educadamente) prometeu ler mais tarde. A primeira impressão é a que fica, e HD nunca conseguiu sentir-se à vontade diante de WS, nem conservar sua atenção por mais de dez minutos!

    Na mesma noite (pois WS concedera apenas vinte minutos de seu entardecer e de sua atenção) HD foi conhecer outro poeta. Mas este era das antigas! Leitor de Bilac e outros parnasianos. Cultuador de Augusto dos Anjos. Sentado na Cantina do Lucas, em pleno edifício Archângelo Maletta, onde, como tantos outros poetas boêmios, vendia os seus livros.

    Drummond, Bandeira, Melo Neto, Murilo Mendes, Jorge de Lima, todos lidos, relidos e nunca digeridos. Todos estavam nas carteiras escolares. Povoando os estudantes de espectros...

    - E quando seremos reconhecidos, meu jovem?

    E falava assim mesmo, paternal. Também aparentava seus cinqüenta e tantos anos de sofrimento lírico e passional, diante dos olhares alheios (ou até de desprezo) quando de sua presença de poeta divulgador da própria obra, lendo seus versos diante das damas, apregoando suas pérolas dos casais em enlaces românticos.

    - E quando seremos lidos, meu jovem?

    O modernista, ou neo-parnasiano, entenda-se, não hesita em desprezar o autor novo, quando HD apresenta um livro de WS. Assim como o autor novo desprezara, pouco antes, uma obra sua, do poeta neo-parnasiano. As gerações se desencontram, não se entendem, até porque não procuram se entender.
- Meu jovem, se ainda não entenderam o que escrevo, e poucos leitores eu tenho, o que se dirá deste aí?

    HD piscou sem respostas. Vivia sem respostas. Ainda não começara a inventá-las. Ainda a meditar se déia agradar este ou aquele. O novo estilista ou o neo-parnasiano? Estaria colocado entre a cruz dos neo-simbolistas e a espada dos pós-modernistas?

    Ele sabe que a vida não tem ensaio. Precisa sempre experimentar. Mas às vezes fica confuso. Se chega impetuoso, sofre o impacto dos muros. E, ao chegar cordial, é logo desprezado. O que fazer então? O que querem afinal?







(fim do Cap. 1 da Parte 3)




LdeM