quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

... o final do Capítulo 5 da Parte 3

[...]



    Despertou sozinho, jogando os braços ao redor. Mas sentia a presença, o perfume dela em tudo ao redor. Almofada, fronha, lençol, colcha, edredom. Tudo era o corpo desejado! Que só apareceu no quarto depois, calma e linda. "Dormiu bem, querido?", "Tive pesadelos! Do tipo estressante... Sonhei que a gente brigava.", "Ah, é?", algum cinismo naquele sorriso, naquela dúvida?, e ela deitou-se junto a ele, sob o edredom, "Não vai me beijar?", e novo sorriso, "Vem cá.", estala um beijo na amplidão do quarto, "A gente brigou ontem? Não foi tudo um sonho ruim?", mas o abraço, o calor do abraço, o ímpeto do beijos apaga tudo, e nada aconteceu ontem.

    Até porque está agendada a peça de teatro, lá no teatro Marília, aquele junto aos hospitais, porém à tarde, há ainda todo o tempo do mundo, e assim estão juntos, ele a continuar sua releitura de "A Insustentável Leveza do Ser", do Kundera, e ela recostada no ombro esquerdo dele, ouvindo enquanto um som baixo de música instrumental mergulha o quarto em melancolia, daquelas literárias, a destacar sílabas que flutuam dos signos gráficos de um livro muito folheado, todo sublinhado, companheiro de tantas horas de solidão.

    Almoçam, em gracejos sobre poesia, poetas e poetisas, e ela dizendo, "Não é poetisa, é poeta. Poeta, mesmo. Só poeta.", "Então, como distinguir? O poeta, a poeta? Ou poeta-macho e poeta-fêmea?", e assim se entregam a uma hilaridade sadia, muito rara, o casal de poetas e a mãe-sogra a servir um ensopado de frango, com salada, encimada por azeitonas graúdas e convidativas. Deve haver muita coisa a ser discutida, logo a ser cuidadosamente evitada, assim o silêncio, quebrado por tinir de talheres e elogios breves sobre o ponto de cozimento e o sabor dos temperos e são elogios que Dona Efigênia aceita com satisfação, ciente de ser reconhecida, ela, uma exímia cozinheira, com excelentes cursos na área de nutrição. "Que bom que você gostou, Stevam", a mãe-sogra diz, "Agradeça, Stevam. Diga, 'Obrigado!'", e ela, a poeta-fêmea ousa um beliscar sutil no braço dele, que agradece tímido, "Muito obrigado, Efigênia"

    Segue-se um repouso tranquilo e idílico nos braços um do outro, na penumbra do quarto, encoberto por cortinados, e ressonam juntos, e a tarde se ensombrece, algumas gotas lambem as vidraças, enquanto se precipitam no sono e no silêncio. De momentos nos retiremos.


    "Você gosta de mim?", ela pergunta, melancólica, tal o entardecer lá fora, encoberto de gotas, enquanto se acomodam num divã no hall do Teatro Marília, onde, século antes, se estendia os troncos obesos das portentosas árvores do Parque Municipal, então reduzido para ceder espaço à expansão da área hospitalar, inclusive o Hospital Borges da Costa, por algum tempo Moradia, visto sua anterior condição de abrigo para os estudantes, como já vimos.

    "Mas que pergunta! Mas é claro!", e Stevam esforça-se por agradar, ao reafirmar todo o seu afeto e devoção, e se inclina sobre ela, deixando um brilho de lábios úmidos em sua testa de preocupações. Sim, pois Bianca deixava-se silenciosa, desde que embarcaram no coletivo, lá no Calafate, e atravessaram o hipercentro, e a toda a agitação da Capital, e contornaram o Parque, e desceram diante do Hospital Universitário, e só silêncio, não apático, mas de reserva, como a evitar tempestades outras. Sim, como uma calmaria pode antecipar tormentas de verão. Então, eis o silêncio, antes calados do que em discussões.

    Mas seria esse o motivo? Ela se derrete no divã, olhar adiante, mãos de dedos unidos sobre a bolsa com pétalas rubras e roxas, "Acha que pessoas, como nós, podem ficar juntas? Será que vamos dar certo?", ela lenta e pausadamente solta as dúvidas, com uma soberania de si mesma, a qual ele não podia prever. Sim, de súbito, não é uma mocinha de dezoito anos diante dele, mas uma sacerdotisa sábia, a-temporal, com sua voz ancestral, e ele nunca se habituaria a essa mutação, ou transmutação, sabe-se lá.

    "Não vamos entrar na fila?", ele pergunta, no claro intuito de dilacerar o silêncio, somente povoado  por olhares, ou alguns vultos que bailam no corredor, "Vamos ficar aqui. Me abraça.", ela sabe que não precisa nem dizer, pois os braços dele se fecham sobre a aflição dela, enquanto uma fila se forma ao longo do corredor, desde a rampa de acesso, e bilheterias, onde ele colhera um par de convites, afinal não era peça paga, mas cortesia de estudantes de Artes Cênicas que apresentava sua encenação de formatura.

    "Ora vejam, vocês, que são aristocratas, não ficam na fila.", diz um vulto conhecido, a destacar-se na fila, com um sorriso amplo, de franca amizade. É Alfonso Lucena, e parece que está acompanhado, sim, ao seu lado uma mulher alta, cabelo solto, pálida e também sorridente, e ele vem apertar a mão do irmão Stevam, e da melancólica Bianca Maria, e apresentar a acompanhante, "Esta é a Alice. Uma amiga.", e a mulher reintera em sorriso brilhante, que força Alfonso a incluir, "Uma amiga especial.", e entram na sala de espetáculos.

    Stevam Lucena e Bianca Maria são quase os últimos a entrarem, visto a lotação do teatro, normal em última noite de peça de sucesso, ainda mais peça de cortesia, onde familiares, parentes, amigos, afetos não faltam, todos desejosos de acompanhar a apoteose de seus jovens atores. E trata-se de uma encenação de "Pedreira das Almas", de Jorge de Andrade, onde algo de helênico, de tragédia grega espoca em ambiente e circunstâncias de revolução liberal nos interiores de Minas, e amores proibidos, deveres para com a terra e a honra, a tradição que clama, o coração jovem em revolução, morte sem sepultura, mãe agônica reclinada sobre filho morto, e o enredo se descortina diante de uma plateia já sem fôlego, já traumatizada com a cegueira do poder, no dia-a-dia, nem precisa ver tal despotismo em cena, e Stevam Lucena esforça-se por entender, mas a presença pétrea de Bianca Maria, à sua esquerda, semelhante a peças de outrora, aquela do Otelo canastrão, da primeira noite, ou aquela dos andarilhos esperando Godot, quando ela recolheu o óculos escuros dos nervosos dedos dele, e, sim, a mesma postura, olhos mergulhados à distância, dedos hirtos entrelaçados, nariz altivo, brilho esmaecido das lentes, cabelo apaziguado, curto e petrificado, toda ela uma paz infinda, mas só aparência, pois lá dentro espumam enlouquecidas ondas de imagens sobre praias de devaneios.


    "Ah, Stevam, outra peça sobre a morte!", ela assim decepcionada, "já estou cansada disso, desse lance de morte! Se soubesse, nem sairia de casa! estava tão bom sob as cobertas! Vamos andar.", e nem esperam por Alfonso e sua 'amiga especial' Alice. Seguem junto às grades do Parque Municipal, lado a lado com o Palácio das Artes, onde já passaram antes, naquela primeira noite, e ela confessando que não saía há muito tempo, e quando saía, era para andar sozinha, e ele a prometer companhia e toda a atenção do mundo, e agora seguem rumo a Augusto de Lima, onde encontram o convite do universo paralelo do Edificio Archangelo Maletta e talvez haja um lugar para eles, mas não há. Todas as mesas ocupadas, em todos os bares, e nenhuma face conhecida, e certamente Alfonso e Alice não estão por aqui, e depois descobriram que haviam decidido por um passeio na Praça da Liberdade, época de iluminação natalina, que Stevam e Bianca só conhecerão daqui há uma semana, mas por enquanto observam uma vitrine de confeitaria, "Você quer uma torta de chocolate?", ele, com entusiasmo, "Ai, não grite, Stevam.", e ele não percebe debruçado sobre ela, ao sensível ouvido dela, e logo se desculpa, mas ela não quer saber de torta de chocolate, "Ah, não, agora não. Eu agradeço. Vamos pra casa!", e ele apalpa as notas na carteira e sabe que não poderá gastar, e obviamente vai lamentar depois, mas ainda haverão de comer torta de chocolate, na mesma confeitaria, ainda uma noite, futura e memorável, ainda que seja ela quem vai pagar a conta, mas não adiantemos.

    Descem a Espírito Santo, e vultos se destacam das paredes e sombras a pedirem moedinhas, e pode ser assalto, outro vulto desliza, mas Stevam Lucena pinça uma moeda de cinquenta centavos, e trata logo de arrastar Bianca Maria para a outra calçada, "Não se pode confiar em ninguém", ele comenta, e não imagina que desencadeia um fim de silêncio, um precipitar de comoções, e nos fundos da Igreja São José, junto aos muros do convento em estilo românico, com aquelas fachadas de mosteiros em novelas vitorianas, "Sabe, Stevam, não vamos ficar muito tempo juntos. Temos gênios muito fortes. Não aceitamos um ao outro. Queremos é moldar o outro. O tempo todo. E a gente discute, o tempo todo, e por qualquer bobagem", o que era um visível exagero, afinal só haviam discutido na noite anterior, por aquelas mesmas ruas, depois das recriminações dela diante das observações dele, sobre a festinha eufórica e banal dos amigos dela, e ambos se perderam em acusações carregadas de afeto, em discussões passionais possíveis apenas quando a opinião do outro nos importa a ponto de querermos mudá-la. "Mas você deseja a separação?", ele até mais curioso do que desesperado, até porque o tempo de desespero ainda não chegou, "Não, não desejo. Mas ela virá. E precisamos aceitar", ela responde, com toda a altivez, que consegue reunir em si, de moça madura, então mulher senhora de seus sentimentos, a interpretar o papel de injustiçada e conciliadora, a aceitar tudo o que virá, sem entender que o que virá nasce do que vive agora, e não de algumas pré-escritas que se está determinado a encenar.

    Mas não querem discutir, e ele faz bem em recusar acompanhá-la até em casa, ou até dormir ao seu lado, "Sua mãe vai me expulsar à vassouradas", ele graceja, pois chega de folga, e não pode viver à mercê de caprichos, a fazer tudo o que ela deseja, e quando deseja, "Hoje eu vou te levar até a parada de ônibus, e só", e não querem discutir, e o mover-se da avenida é dispersão o suficiente, e se despedem com beijos dúbios, quando ela corre para o coletivo, debaixo atrás de si um par de brilhos como única dúvida e última resposta.





(do diário de HD)

12 dezembro


    Irrecusável o convite de Michael Bishop para um sarau de poesias. Na Livraria, Savassi. Semana em homenagem ao conhecido poeta RS e suas décadas de carreira. Cheguei quando ainda organizam a mesa de cocktail. Vinho, tinto e branco, seco e suave. Bolachas salgadas a serem pinceladas com molhos e maionese e requeijão. O que realmente fiz. Mais tarde, claro, enquanto conversava com o Michael.

    Enquanto espero, folheio volumes sedutores de poesia moderna, dos quais pouco entendo, atento às garçonetes em suas atenções aos clientes, todos recém-chegados, e quando se aproximam, eu apenas solicito água mineral.

    Michael chega acompanhado por sua amada, a loira Carolina, simpática, mas de pouco diálogo. Estas nossas companheiras silenciosas que se agradam de poetas falantes... Distribuímos saudações, principalmente ao RS e sua amada, e também sua secretária, VA, que esperam os poetas.

    Sou apresentado ao PC, não o famoso tesoureiro collorido, mas o poeta, a divulgar lançamento recente e prêmios literários. Quando sou convidado, não posso deixar de lembrar Whitman, além de versos de Alfonso, aquele poema das andanças.

    Depois o PC rabisca o seu endereço virtual. Acompanhado de um cálice de vinho branco suave, vou folhear as pastas com recortes e notícias, onde pululam fotos e garrafais, de RS e outros poetas boêmios. Muito papel amarelado, diga-se.

    E Michael diz algumas palavras ao público, e sou apresentado ao RL, ator e poeta. E aperto a mão de outros, dos quais esqueço os nomes.




    O novo prédio da Biblioteca Pública Estadual é um corpo de vidro suspenso entre a Rua da Bahia e a Praça da Liberdade, com vista para os fundos dos corpulentos prédios das Secretarias de Educação, à direita, e da Fazenda, à esquerda, perspectiva esta de quem está na sala de leitura e pesquisa, junto aos dicionários e enciclopédias, como é o caso de Stevam Lucena, absorto na leitura de conservados relatos de épocas inquisitoriais e de caças-às-bruxas, com ilustrações um tanto inquietantes onde demônios sobem em labaredas e faces sinistras se destacam em vestes de donzelas.

    Tão absorto está o estudioso Stevam Lucena que somente agora percebe a presença silenciosa de Bianca Maria ali diante da mesa, esta mesinha redonda com três cadeiras. E atrás do vulto da mocinha os passantes diante das estátuas dos quatro escritores ao lado da Secretaria de Educação, onde professores transitam em suas peregrinações.

    Tudo isso Stevam percebe enquanto se levanta para abraçar a ainda silente, e até amuada, Bianca. "Fique à vontade, querida. Já termino a leitura.", e ela se sentou e reclinou a cabeça sobre os braços cruzados, em cansaço infindo. "O que há, Bianca? Que desânimo!", e ela nada diz, limitando-se a observar o estudioso de épocas medievais. "você está mesmo parecendo um intelectual.", ela graceja, num quase sorriso. "Estou lendo sobre os inquisitores na Alemanha.", ele esclarece, "Não exatamente gente piedosa", e ela pisca os olhos com pintura egípcia, nas vestes toda negra, em melancólica sedução.

    Mas é visível que preferem passear na Praça, e Stevam Lucena conduz Bianca Maria pelo corredor, assim como vira, tempos atrás, certo rapaz conduzir duas mocinhas, uma até meio doentia, no mesmo corredor. "Quando foi isso?", ele pensa, e já quase se completam dois anos! "vamos ver a decoração natalina", ele promete, e ela se aconchega nos braços dele, enquanto ousam saudações às figuras pétreas dos escritores, serenos e perenes.

    Bela, mas um tanto exagerada, a decoração natalina da Praça, que fora semanas antes palco de gravações para uma nova minissérie televisiva global, e até isolada, cercada de câmeras e povoada de estrelas glamorosas, na pretensão de retratar a vida de famoso político mineiro, que depois descobriremos ser (não podia ser outro!) o ícone JK. Mas isso é passado, ou ainda será futuro, pois a minissérie ainda não foi ao ar, e agora Stevam Lucena e Bianca Maria estão abraçados, de pé, na alameda central, diante do busto de Pedro II e notando o vulto do Palácio, sob um coração em luzir rubro, e miríades de luzinhas que piscam, a se refletirem nas fontes.

    "Um sarau com poetisas. Digo, poetas-fêmeas", ele conclui, em gracejo, um convite que iniciara antes, mas não acompanhamos, em comentários sobre a biografia televisiva de certo político mineiro, e isso é incômodo a narração, quando as personagens passam a nossa frente, e voltemos portanto. Há um sarau, na verdade uma noite de encerramento de uma semana de homenagem a certo poeta famoso. E Stevam recebera um e-mail de HD, além de um aviso verbal de Michael Bishop, ainda que por telefone, sobre o evento, onde apenas mulheres declamam poemas do ilustre vate.

    Bianca Maria não pode deixar de achar o gracejo interessante, e além da curiosidade, o desejo de se afastarem daquelas cascatas de luzes piscantes e corações rubros e palmeiras algemadas em correntes de microlâmpadas, "Transformaram a Praça numa perua enfeitada!", ela comenta, "Não gostei. Depois nós vamos à Boa Viagem?", ela o abraça, sugestiva. Certamente se referindo a Igreja gótica, quadras abaixo, na Alagoas. Mas, primeiramente, o sarau.

    Junto à entrada, estão o sorridente e carismático Michael Bishop em conversa sussurrada com o poeta Hélio Lúcio, quando entram Stevam Lucena e Bianca Maria, calorosamente recebidos. Uma das poetisas se aproxima e, certamente a confundir Stevam Lucena com outro poeta, elogia a produção lírica do rapaz, que só instantes depois pode esclarecer que nada publicara, exceto alguns poemas para amigos.

    "Minha poesia não é muito digestiva", ele diz, modesto, "Não sou seguramente alvo de nenhum destaque", ele completa, mas a poetisa já se desculpa, ele todo compreensivo, e oferece um simbólico presente, um livrinho do TH, que fora editado em dois anos atrás, "Mas fora do tempo, como merece um verdadeiro poeta, como é o caso do meu amigo TH", e a poetisa está muito agradecida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário