terça-feira, 13 de dezembro de 2011

... folheando o quase final do Cap. 5

[...]


    - Que aparição é essa?

    É Alfonso quem grita ao casal que passa. É seu irmão Stevam e sua sombria Bianca. Que percebem o grupo somente agora, diante da intervenção ébria do irmão, a oferecer vinho ao casal, a convidá-los para se unir ao 'fã-clube', e não oculta alguma surpresa.


    Mas parece que a mocinha quer uma Coca-Cola e o casal se encaminha para a padaria, ao lado da praça. E o amigo, o que tem programa na rádio, continua destratando as bandas de rock'n'roll mercenárias, todas vendidas e etcs, e HD deixa de contar quantos bocejos.

Eis o casal novamente, ela com uma latinha de refri, e ele com uma garrafa de água mineral, o que não o impede de aceitar, um momento depois, um gole moderado de vinho.

    E o amigo, o tal locutor, a discutir a pronúncia da banda Placebo, que fizera um cover dos Smiths, "aquela do Bigmouth", e a garota, Bianca, esclarece qual a pronúncia, "que é paroxítona", e o locutor comenta sobre "a Joana Dark que queima na fogueira e seu walkman começa a derreter" e outras futilidades do showbussiness, e Alfonso, todo diplomático, puxa conversa com a mocinha, enquanto Stevam, o Lucena, troca ligeiras impressões com o outro-Stevam, o Valêncio.

    Mas a Coca-Cola acaba e o casal deseja andar um pouco. Stevam, o Lucena, comenta que pretendem seguir para a Praça da Glória, a tal 'praça-cemitério', e os amigos continuam em ponto-morto, não se sustentam mais nas pernas. E Stevam, o Lucena, distribui apertos de mãos, enquanto a mocinha oferece fraternais abraços. O que certamente não agradou ao irmão de Alfonso, mas ele não demonstra.

    - Então, o seu irmão arranjou uma doidinha? Essas vampiras de filme B. mas tem bom gosto. Um tanto magra. E pálida. Mas não se joga fora.

    - Tem um jeitinho de lésbica, não tem? - comenta o Valêncio, e entorna a garrafa. - quando eu fui naquela festa dark só encontrei essas menininhas no escurinho, lambendo e chupando uma a outra, cada beijo de língua, entre elas, cabelos assim curtos, e a gente que é hetero tem até vergonha de entrar.

    - Tem jeito de lésbica. E sem sal. Não aguento mais essas meninas cheias de neuras, todas frias! Angustiantes entre quatro paredes. Tudo ruim de cama!

    E quem disse que o vinho liberta as línguas, ainda mais as viperinas, aqui encontra um exemplo ilustrativo e prático. Pois falaram da namorada do Stevam, o Lucena, até que se animaram a sair andando, pois quem se lembrou de ter uma namorada foi o Alfonso, "Preciso encontrar a minha donzela", e ria, sabendo que imitava o nobre Michael Bishop, e dizia mais, "Sabem, meus camaradas, eu fico aqui namorando vocês, mas tenho uma namorada me esperando", e HD sabe o quanto Alice, a namorada de Alfonso, é exigente, ainda que não a conhecesse, sabendo apenas que era branca, interiorana e estudava Antropologia, ms já tivera o privilégio de acompanhar as conversas, os colóquios e as discussões ao telefone, quando ela não quisera aparecer na casa dele, pois lá estavam os amigos, naquele tom "os amigos ou EU!", e com quem Alfonso ficaria?

    A dizer a verdade, na referida noite, Alfonso preferiu ficar com os amigos, até por que estava bêbado. Mas nesta, um tanto mais bêbado, e talvez devido a isso, ele optou pelo braços envolventes da amada, que talvez agora nem fizesse muitos reparos às brumas ébrias em seus olhos.




    Uma noite de sábado agitada na Estação Eldorado, onde famílias seguem rumo aos seus lares e jovens buscam diversão nos antros de som e luz piscante, e onde novamente encontramos Stevam Lucena e Bianca Maria, agora juntos, a convite dele, para uma nova visita a praça-cemitério, da qual resguardam doces recordações, quando se acomodaram à sombra das árvores, compartilhando bombons e beijos.

    "E eu que vi uma vampira! Acredita?", ele diz, enquanto seguem ao longo do muro da ferrovia, "Ah, é? Onde? Como ela é?", e ela está mesmo curiosa, e se abraça a ele, a sussurrar, "Notou o meu perfume?", e ele, com certeza, já notou, mas seus passos se suspendem e sua face mergulha no pescoço, cabelo, sorrisos dela, "Perfume de rosas! Nem precisava! Você já é uma flor!", e ela sorri, toda agradecida, e espera o caso da vampira, que ele narra ambíguo e insinuante, "Hoje mesmo, diante da PUC. Alta, magra, pálida, cabelos longos, roupa soturna e roxa de forro de caixão, meia-calça preta...", "Ah, Stevam! A garota aí fez prova na minha sala! A duas carteiras de mim! E ela é mesmo lindo! E você já se apaixonou, hein?!", "Ora, Bianca, claro que não! Eu esperava você, mais ninguém! Mas ela é muito, digamos, excêntrica, não?", "É, isso ela é! Entrou na sala como se fosse uma celebridade. Como se saída da "Vamp", sei lá. E quando ela ajeitou a meia-calça, então! Tirou o coturno, por um momento, e puxou a meia, e só o contorno da meia já atraiu os olhares de metade dos caras da sala!", "E o seu também, pelo visto!", "Ah, como você disse, ela chama a atenção", "A Vampiria", ele murmura, "Hã, o que você disse?", "Ah, nada. Pensei numa letra de música. Ah, deixa eu sugar o seu cheiro, deixa!" e mergulha no pescoço, quase sufoca a mocinha, "Ah, Stevam, dá um tempo! Parece criança!", "Ah, sim, somos crianças quando amamos!" e ela debocha, "Desde quando você me ama? Fica aí falando dessas vampiras!", "Ah, não vai ficar com ciúmes, vai? Eu esqueço que você fica com essa insegurança... Acha que eu vou te deixar por causa de uma tipa daquelas?", e ela se deixou sorrir, mas nada respondeu.

    Logo estavam ladeando as grades do Parque Ecológico e notam vultos na pracinha, mas o que Bianca Maria quer é um refrigerante, e Stevam Lucena também tem sede, "Vamos ali à padaria", ele sugere, mas é abordado antes, e por ninguém menos que seu irmão Alfonso Lucena, "Que aparição é esta?!", e ali, ao seu lado, estão Valêncio, o HD e um desconhecido, todos um tanto ébrios, "O que estão bebendo?", Stevam Lucena logo pergunta, e Alfonso exibe uma garrafa de vinho de qualidade suspeita, e Stevam se apressa rumo a padaria, "volto já!" e arrasta Bianca Maria, que logo escolhe uma latinha de Coca-cola, como previsto, e Stevam consegue uma garrafinha de água mineral, também previsível, e estão sentados no banco diante do Parque Ecológico, Bianca à direita de Stevam, à direita de Valêncio, e os dois amigos trocam impressões sobre a noite, "Deixou o Platão de lado? Estava lá na porta da PUC. A Bianca está enfrentando o vestibular...", "Ó, Steve, é mesmo? Barra pesada, hein! Mas deixei o Platão. Agora o lance é o Aristóteles. E ainda vou precisar ler Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. De enlouquecer! Um vinho aí?", "Ah, não, obrigado. Mas então está gostando do curso? É o que queria?", "É, tô gostando. Muita leitura. Mas tô acostumado. Os professores é que são um xarope, às vezes. Mas não importa. Fodam-se os professores!", e solta uma daquelas gargalhadas represadas, "E você, Steve, in love?", e é Bianca, ao lado, quem sorri, dividindo atenção e olhares entre os Stevams e Alfonso, parolando com HD e o rapaz, que se diz locutor, e em dissertações sobre as bandas pop, e o mercado fonográfico, e a mesmice das rádios comerciais, e os músicos vendidos, e a banalidade das músicas alienadas, "próprias para festinhas regadas a uísque e pó", e que a rádio comunitária é a salvação, "a nossa arca-de-noé", e como fala este locutor!, o tal William, mas que atende pelo codinome de "Bizarro", e logo quer saber a pronúncia da banda Placebo, "proparoxítona ou paroxítona", e Bianca Maria, muito prestativa, esclarece que "é paroxítona, sim" e ela é fã da banda, principalmente do vocalista e daquela cover dos Smiths, "Bigmouth strikes again", e o locutor "bizarro" prossegue numa ladainha sobre "Joana Dark queimando na fogueira, enquanto seu walkman começa a derreter", e Alfonso está diante de Bianca, "Branca, não é? Aceita um vinho?", "Bianca", corrige Stevam, "Ah, sim. Bianca! Aceita?", "não, obrigada", e Stevam é quem acaba aceitando um gole, socialmente, e deixa-se a ouvir os comentários sobre o álbum "Kid A" do Radiohead, "O Thom Yorke cantando para si mesmo dentro do banheiro", ironiza o "Bizarro".

    Mas o casal pretende alcançar a Praça ainda esta noite, e Stevam Lucena agita as mãos, a se despedir, "Vamos andar um pouco", e Bianca Maria abraça os amigos, um a um, e todos se incham com semelhante simpatia, mas Stevam mantem-se em discrição e silêncio, afinal, ela tem mesmo essas manias. Sobem a avenida, depois que Bianca lança olhares a imagem da santa e ngaiolada, ali no modesto altar, e se afastam, Stevam observando-a com os olhares dos amigos, principalmente com a malícia de HD, um tanto reticente, com caretas febris, e vê a sua amada, ao seu lado, com o corpete, a saia social, os sapatos de salto-alto, a comentar, "Achei o Alfonso tão simpático!", e ouve a própria voz, "Mas não se engane. Ele é o tipo de cara que nunca se diverte. E jamais será feliz. Pensa demais, é cerebral demais.", e sobem, lentamente, até atingirem o trânsito da avenida boêmia, a contemplarem a fachada luzente do shopping, e, do outro lado, uma churrascaria com música ao vivo, certamente alguma daquelas bandas pop satirizadas pelo locutor.

    "Lembra-se da última vez?", ele volta-se para ela, "Havia um karaokê, e um cara se imaginando o Axel Rose, gemendo um "Sweet Child O'Mine", e medonho! Lembra-se?", "Hilárico, isso sim!", e assim estão de ótimo humor, e ela até gostaria de passear no shopping, mas nada diz, sabe que ele deseja rever o banco da praça, o recanto onde se beijaram, dois meses antes, sim, o mesmo banco, ei-lo ali, e, por todos os lados, os jovens com suas existências vãs a evocarem imagens e personagens mórbidas, com capas de vampiros e poemas tumulares, e Stevam Lucena deixa-se lembrar de suas andanças naquelas alamedas, cabisbaixo, três anos antes, como o tempo passa!, e eis a cruz azul-néon da igreja da Praça, e ele faz menção de afastar-se, para ir ao banheiro público, na quadra de esportes, mas, na verdade, para sondar as sombras e vultos ao redor.

    "Você não sente saudade da solidão?", Bianca Maria pergunta, entre beijos, quando Stevam Lucena retorna, após deixá-la sozinha, por angustiantes momentos, e ele não entende, não quer entender, que estando ao seu lado, ela deseje a solidão, "Ela tem medo de amar? Prefere a solidão?", ele pensa, mas suas palavras são, "Já andei muito solitário por aqui, e foi aqui, junto aquelas árvores, ali onde os casais se insinuam, ali escrevi um de meus primeiros poemas, claro que ainda com influência do TH, mas, enfim, sou solitário, ou estava solitário, mas não dispenso as paixões...", "Mas você não entendeu, Stevam!", ela se volta, impaciente, "Eu digo que a solidão é o prazer de encontrar consigo mesmo", "Pois é isso! O meu poema, escrito aqui, diz justamente isso, 'andando consigo mesmo / nas paisagens interiores', mas não estou com saudades daquele tempo! Prefiro estar agora, ao seu lado, abrigado no seu calor, no seu cheiro, na sua presença, na sua voz...", e estão nos enlaçados e as palavras são desnecessárias.

    Um acariciado desejo de Stevam Lucena é encontrar alguém especial, a quem narrar sua vida, sua história vazia de epopéias, mas que ele tece em imagens líricas, de lembranças arquivadas por época e paixões, por descobertas e mudanças, e crê agora encontrar esta ouvinte fiel na devota Bianca Maria, em seus braços. "quando passamos junto ao Parque, eu disse que é a minha rua, e você conheceu o Alfonso, agora quero te mostrar onde morei antes, e onde estudei... Uma outra praça, um pouco menor, que era tão bonita quanto esta, há uma década atrás, com seus pequenos lagos artificiais e rústicas pontes de madeira, onde os casais se entregam ao luar, tudo muito, digamos, romântico, para mim. Então, vamos lá?", e Bianca concorda, de súbito curiosa, mas sequer imagina até onde seguem tais andanças.

    A avenida é conhecida por "Norte-Sul' e desce do Eldorado para a pracinha da Rio Comprido, diante do galpão do Mercado, naquela rua movimentada a cortar a região do Riacho das Pedras até a área industrial, e Stevam Lucena conduz Bianca Maria às margens da avenida, sob a envolvente sombra das árvores que, com um pouco de imaginação, pode-se sentir-se num bosque, onde ela tropeça nas serpentinas raízes, mas os faróis e as buzinas são aviso constante do cerco da urbanidade.

    "Foi em oitenta e seis, eu tinha cinco anos. Me contaram depois, sabe. Os jovens desciam a avenida, naquela calçada. Vamos lá" e atravessam a avenida, "Um grupo de dez, E foram atingidos por um carro sem controle, um motorista bêbado. Aqui. Olhe esta cruz!", e de fato uma imensa cruz, azul e espectral, se ergue numa minúscula pracinha, "Foi assim. Um deles, o que depois ficou mais chocado, perturbado mesmo, parou para amarrar o cadarço do sapato e um colega conversava com ele, ao seu lado, e os outros, os oito, continuaram descendo, e ele é que foram atropelados, e nenhum sobreviveu. Um deles, o mais velho e o mais popular, morava no meu prédio, no terceiro andar, e ele tinha dezessete anos, imagine! E o irmão dele, mais jovem, antes fora da turma, enclausurado no quarto, sonhando em ser médico, acabou assumindo o lugar dele, tornando-se esportivo, popular, num esforço de ser o falecido, a substituir o irmão, e muitos até confundiam, pois são até parecidos. E este é o monumento que a comunidade ergueu para eles, um marco a lembrar o fim trágico de oito jovens que saíram para se divertir e não mais voltaram para casa. você sente alguma coisa, estando aqui?", e o casal se senta à sombra da imensa cruz, num banco de cimento, e ela certamente a pensar que ele é obcecado por temas mórbidos, principalmente morte de jovens, igual aquela noite no centro histórico, o amigo do JJ que fora atropelado pelo próprio ônibus do qual acabara de descer, nessas lembranças de mortes gratuitas ridículas trágicas, "você sente algo? Algum arrepio?", "Não, só a noite que me arrepia", "Eu, às vezes, passo horas aqui, sentado, pensando, tentando sentir algo. Será que restou algo deles? Uma presença? Será que visitam este marco, aqui dedicado a eles? Ou estou muito supersticioso?", "Está muito supersticioso, meu bem", e ela se reclina ao ombro dele, ambos em silêncio que, um terceiro, por ali chegando, julgaria solene, mas é por falta de palavras mesmo.

    Depois, brisas amenas, desfiles de faróis, olhares cúmplices de casais, continuam descendo a avenida, "Aqui, a bica d'água, onde lavavam roupa, até vasilhas, nos velhos tempos...", e à direita nota-se os vultos de edifícios, que, se fosse dia, se destacariam num amarelo-palha, mas agora são sombras apenas, e Stevam Lucena aponta, "Já morei ali, nos prédios. O Borges, é assim que a gente chama o conjunto residencial. E brincava muito neste campo, mas, como você vê, hoje é um mercado" e agora subiam, ela extasiada com a altura do muro de arrimo, "Morte certa para quem cair daqui, ou se jogar...", e ele percebe não ser o único assombrado por pensamentos e intenções mórbidas, "Certamente não sobrevive", e continuam a escalar a ladeira, "Querido, descemos apenas para melhor subir?", ela desabafa, já cansada, "Oh, me desculpe, Bianca, mas já estamos chegando", e ele não mente, não agora.

    "Estudei aqui", e Stevam aponta o colégio diante da praça, nome em homenagem a famoso maestro brasileiro, "Aqui estudei o ensino médio, o secundário, como dizem...", "Vamos ficar na praça?", ela atirando olhares à padaria, "Estou com fome. Que tal uma torta de chocolate?", e, na confeitaria, não encontram bolo de chocolate, com direito a uma cereja por cima, mas pudins e torta de morango, e na indecisão acabam por pedir uma fatia de cada, para se deliciarem na praça defronte.

    "Ai, que delícia! Chocolate! Que sonho!", e ela oferece um pedaço, quando ele se inclina e abocanha fingindo, ou não, uma flita gula, "Ai, que sexy!", ela, num sorriso de malícia, e ele a deliciar-se com a guloseima e a companhia, mas ainda em devaneios e narrativas, "Lembro de uma excursão, no último ano, coisa da turma, e descemos até São João Del-Rey, e também Tiradentes, num sábado nublado, e ventava até demais, e tiramos fotos sobre o túmulo do Tancredo, o que quase foi presidente, e eu tentava me enturmar, mas não dava certo, eu sempre fui muito na minha, a garota que eu adorava, nem se permitia olhar pra mim, essas coisas, então levei o walkman e passei a excursão toda, ônibus, ida e volta, ou passeando nas calçadas históricas, diante do casario histórico, nas curvas e apitos da maria-fumaça histórica, ouvindo Legião Urbana, Cure, U2, Tears for Fears, Pink Floyd, sabe, aquele som deprê, e fiquei na minha...", e ele, numa pausa, aceita outro pedaço de torta de chocolate, "Ah, meu bem, agora a metade da cereja, conquistada nos lábios dela, "É a vez da torta de morango", "Ah, deixe eu experimentar o pudim! Olhe esse creme!", e parecem duas crianças num piquenique, depois de surrupiar doces na geladeira da titia, e se afastam, em fuga, para o jardim, lá no último banco, para degustarem, cúmplices, mas em paz.

    Mas Bianca Maria se inclina em olhares de gula sobre a torta de morango, e os dois morangos gordinhos que encimam o triângulo do doce e os lábios rubros ainda manchados de chocolate abrem um rombo na perfeita geometria e ela sorri, toda contentamento, em degustação, arregalando os olhos por detrás das lentes, "ai, que sonho! Uma delícia! Vai?", e Stevam Lucena novamente se inclina e aceita a porção que lhe cabe naquele banquete de bolos, tortas, pudins, e sorrisos, e novas lembranças assaltam sua mente, "Eu me lembro, Bianca, quando aqui, nessa praça, eu passava a tarde com o meu pai, e chamavam aqui de "a praça dos ciganos", pois eram comuns aqui, e ainda hoje muitos moram na região, adquiriam casas, verdadeiras mansões, e alugam, para continuarem vivendo em suas tendas de lonas, coisa de Oriente Médio, sabe?", e ela meneia a cabeça, de boca cheia, afirmativa, abrindo os olhos, tal aquelas personagens de animações japonesas, e ele, satisfeito, continua, "Pois é, eu passeava ao lado do meu pai, e havia águas nessa piscinas, não essas verdadeiras 'pistas para skatistas' que você está vendo, mas o chafariz jorrava uma água esverdeada, isto é, verde por causa da luz verde que brotava por baixo, assim, logo ali, na base daquele poste, e nada dessa luz vermelha de vapor de mercúrio, mas uma luminosidade verde-marinho e a água jorrava e atravessávamos a ponte, sobre a água que corria, mas são imagens, apenas imagens da beleza que era", "Mas tudo se acaba, meu bem, e tudo murcha e morre. Quer mais?", mas ele já embrulhava o pudim e a pensar em como eles podiam falar em finitude e morte enquanto lanchavam, juntos, frente a frente, numa praça, numa noite tão agradável, e havia torrente de amor vazando de um olhar ao outro, e ambos a carregarem os fardos de túmulos mentais.

    E então retornam, novamente a entrada do colégio, ele ainda em reminiscências, "E eu que fiquei com uma garota, esperando que ela me apresentasse a amiga, a que eu adorava, mas foi em vão", e ela preocupada com o horário, pois precisa descansar, sabendo-se que esse passeio é apenas uma trégua, e temporária, para mantê-la longe dos cadernos e apostilas, mas amanhã nova batalha se anuncia, e descem, eis a padaria, e eis o mercado, e seu abismo, e eis a pracinha, e o posto de combustível, e eis a avenida, que agora é íngreme ladeira, ainda mais porque ele insiste em seguir 'dentro do bosque' e ela, com os sapatos de salto alto, "Stevam, se eu soubesse, teria vindo de coturno! Você nem me avisou dessas andanças, pensei que seria uma noite no shopping!", ela reclama, mas ele a ampara e incentiva, "Me desculpe, querida, mas confesso que não esperava uma dama tão elegante!", e tropeçam nas velhas raízes, e adentram sombras, e afastam pedras, e eis a Praça, a dita da Glória, onde estavam horas antes, e eis o shopping, no agito da avenida em sua boêmia, e esperam um coletivo enquanto vão cantarolando sucessos dos anos oitenta, "Lembra dessa do New Order, "Maybe I'be forgotten the name and address"?, mas em vão, até que meia-noite ela resolve abordar um táxi, e ele não pode deixar de acompanhar a sua musa.





    Finalmente Alfonso Lucena num momento de paz no aperto de sua agenda de estudante, atento aos tramites e disciplinas da Faculdade, onde ainda discutia com os mestres e se afastava das intrigas dos alunos.

    Daí encontrar HD na Biblioteca da FAFICH. Um HD a carregar uma pilha de livros sobre Atos Institucionais da Ditadura, ou sobre a História dos Jesuítas, ou sobre Existencialismo e Humanismo. Ali mesmerizado entre as estantes, sem saber para onde ir, entre miríades de informações e revelações a caírem dos altos das prateleiras abarrotadas de tomos, sumários, sumas teológicas, enciclopédias, tratados acadêmicos, folhetos de vanguardas, manifestos de esquerdistas, discursos de neoconservadores, textos de literatura comparada, e sem rumos, o pobre literato.

    - Opa! Até que enfim! Perdido aí?

    E Alfonso se aproxima, sem estender a mão. Também é inútil o gesto. HD tem ambas as mãos ocupadas. Equilibra Inácio de Loyola na esquerda e Jean-Paul Sartre na direita, ou vice-versa, que já não me lembro bem. E preocupava em atingir o segundo andar.

    - Muito mais calmo. Como está a sua agenda?

    - Ainda preciso devolver um livro...

    - Então vá em frente. Resolva. Eu vou esperar na última mesinha depois dos periódicos.

    Um quarto de hora depois, Alfonso encontra HD ali debruçado sobre a História dos Jesuítas, em franca alegação de que precisa escrever um comentário sobre o romance "Quarup", de Antônio Callado, onde um personagem fala justamente sobre os jesuítas, enquanto detentores de um poder espiritual e econômico, em termos de organização social, coisas de teocracias, e é preciso esclarecer isso cuidadosamente.

    E prontamente anotava referências bibliográficas, comparava autores e suas respectivas carreiras acadêmicas e possíveis currículos, e tecia comparações entre escolas e perspectivas, separava bodes e ovelhas, isto é, reacionários e vanguardas, anotando febrilmente numa folha de agenda.

    Depois eu leio. Aliás tenho uma lista que já me incomoda. - e anotava outra referência - E a sua agenda?

    - Nada agendado. Podemos dar uma volta. O acervo dos escritores mineiros. Uma visita a equipe da Comunicação...

    - Então podemos almoçar aqui. Estou com saudades do Bandejão. Mas são ainda onze horas. Preciso exumar um Mallarmé lá na FALE. E depois ler meus e-mails.

    - Sem problemas. Na Letras sempre encontramos algumas raridades. E depois vamos ao laboratório de Informática.

    Assim HD acaba de anotar as fichas catalográficas e segue Alfonso pelos corredores, enquanto lança olhares a uma pálida ruiva nas escadas do segundo andar e uma moreninha na lanchonete da Letras.

    - Por que Mallarmé?

    Enquanto se dedicam as estantes com literatura francesa, Alfonso não pode reprimir uma curiosidade.

     - Pela renovação da linguagem. Aliás, pela preocupação com a linguagem. Coisa que também incentivava o Joyce, que precisou transmutar (mais do que atacar) o idioma saxão, senão não poderia escrever. Isto é, o idioma tornara-se um obstáculo para o talento do escritor. Daí as vanguardas precisarem de toda aquela campanha de desatar os nós, os laços com a gramática. Aqui temos um Sousândrade, bem antes, ou um Guimarães Rosa, mais próximo, que ousaram ir além do código lingüístico.


    E nisso seguiam folheando Sartre, ou o Conde de Lautréamont, ou o procurado Mallarmé, com seus longo poema do Fauno, "que foi inspiração para Debussy", segundo lembrou o HD, visivelmente fascinado pelo seleto vocabulário do simbolista francês. Ocuparam-se em fazer empréstimos dos livros, enquanto HD folheia um volume sobre a obra cinematográfica de Stanley Kubrick, com fotos de "Laranja Mecânica" e "De olhos bem fechados".


    - Assim como há escritores que foram além do idioma, há também cineasta que foram além das imagens...

    Avançam pelos corredores, quando não curiosos na banca de livros, onde um HD com ares de bibliófilos encontra uma edição de "Retrato do Artista quando Jovem" datada de 1945! "Nessas bancas a gente sempre acha uma raridade!" e só não adquiriu o volume, com direito a folhas amarelas e mofo, por impedimento financeiro, "afinal, o que eu já gastei comprando livro, dava para comprar um lote na periferia!"

    Rumo ao bandejão, Alfonso vai dar uma espiadinha nos corredores da geopolítica. Obviamente, HD não pode deixar de imaginar que o amigo fareja uma presença feminina.

    - Por que entre tantas mulheres, e veja que este campus está lotado de sereias!, a gente fica pensando apenas em uma?

    Certamente, HD pensava naquela Cibele que ele conhecera no lançamento de livro. Mas Alfonso se ocupava em conquistar uma mocinha que conhecera na saída de uma sessão de cinema. Universitária e estagiária também escravizada por uma agenda um tanto draconiana.

    - Desculpe. Acho que estou afetando o seu romantismo...

    E então Alfonso percebe que HD concluía uma fala um tanto misógina sobre a necessidade da submissão feminina. - Veja hoje, as mulheres estão irônicas, sarcásticas, e os homens tremendo nas bases. Elas prepotentes, livres afinal, e eles atemorizados. Somos a geração dos 'implora-sexo'. Por favor, transem comigo!

    - É tudo o que os nossos pais queriam. - Afonso se arrisca.

    - Não discordo. Mas a coisa fugiu ao controle. Elas é que escolhem, não é? E já te contei o caso do meu amigo que foi, digamos violentado, no banheiro? Soa até estranho, não é? Um cara ser violentado?! Mas eis que o sujeito entra no banheiro masculino, e eis uma morena a esperar sua vítima, isto é, o primeiro cara que entrasse, para cair em cima e sugar o cara. E o meu amigo o que fez? Gritou, chamou os gerdames? Não, ficou duro na hora e mandou ver. Elas mandam, entende? E vai você ou eu fazer isso, de entrar no banheiro feminino e esperar a primeira que entrar...

    Alfonso desce os olhos às próprias unhas, enquanto HD se exalta. - A náusea! A impossibilidade de amor, de conhecer o outro! Por exemplo, nós. Nós, por mais que nos esforcemos, nunca vamos ser amigos. O fato é que admiramos um ao outro. Sim, não é a amizade que nos une, mas a admiração. (pausa) E você está esperando alguém que te valorize? Não espere. Só nós mesmos achamos algo que presta em nós! Para os outros não fazemos falta! Olhe ao redor! Quem nos percebe, quem nos valoriza? Essas mulheres que desejamos, acha que elas merecem no nosso amor? Ou será que não passam de abrigo para a nossa solidão? Frágeis abrigos, inclusive. Mais cedo ou mais tarde, elas vão se afastar de nós ou vamos nos cansar delas. Depende de quem tiver mais paciência e carência... Um dia um dos apaixonados diz, "Não consigo mais ficar à vontade ao seu lado', e é assim mesmo, não agradou, tchau. E desde quando temos a obrigação de agradar a alguém?

    E a prosa até seguiria nesse embalo se não chegassem logo ao Acervo da Biblioteca Central, onde conservavam bens e obras de famosos escritores mineiros. Necessário um agendamento, mas Alfonso, simpático como sempre, não demorou em convencer a atendente, que se tornou a guia naquele labirinto.

   Passaram diante das fotos da Capital de início de século, depois admiraram o farto acervo de literatura inglesa no gabinete de Abgnard Renault, depois os manuscritos ("contos que o escritor vivia reescrevendo") de Murilo Rubião, que enfiava a mão no bolso e tirava um absurdo qualquer para o escândalo dos acomodados, ou encontravam primeiras edições de "O Amanuense Belmiro", no modesto gabinete de Cyro dos Anjos.

    - Veja. Um exemplar da revista em quadrinhos inspirada no romance "Montanha". E que foi polêmico! Mesmo que o autor tenha mudado o nome dos protagonistas. Fala sobre o governo Vargas, e os bastidores... Afinal, o Cyro estava por perto. Ele era funcionário público. Dentro da Máquina... Assim também o Murilo, e o Drummond, que viviam atentos às jogadas políticas...

    Explicações que HD ministrava generosamente, sob a concordância admirada da guia, Ana Lúcia, que apresentava as cartas onde Cyro dos Anjos indicava a possível identidade real dos personagens do citado romance. E quando os olhos de Ana Lúcia piscavam de admiração, Alfonso se adiantava a louvar o amigo.

    - É que o HD aqui, nobre escritor, é um homo literatus. E se há uma coisa que o cidadão aqui entende é de literatura. Não é, HD?


    E visivelmente HD estava em casa! por pouco não sentou-se à mesa de Oswaldo França Júnior, quando comentavam as peripécias do caminhoneiro imortalizado em sua obra, mesmo que HD confesse pouco conhecer (num sentido mais amplo) os demais escritos do autor, que alcançou projeção na mídia com a versão cinematográfica de seu "Jorge, um brasileiro", inclusive, ao longo das paredes do corredor, não faltam belas fotos do referido filme.


    Mas, por fim, o que mais emocionou HD foram os despojos de Henriqueta Lisboa. Uma mesa sóbria, uma estante solene, um ambiente soturno, com centenas de obras líricas expostas nas prateleiras, com pouca presença de prosas, como se a autora se fechasse num mundo lírico e brumoso do qual nem quisesse sair, com aquelas auto-torturas, de versos tristes e pesarosos, sob a influência de um cristo crucificado obscenamente erguido na parede, junto à estante.



    Lembraram de Stevam, o irmão de Alfonso, quando encontravam ali os mesmos livros e autores que ocupavam a atenção e a imaginação do sombrio rapaz. Muitos simbolistas, franceses e nacionais, com destaque para Alphonsus de Guimaraens, ao alcance da mão. "Meu irmão adoraria conhecer esse gabinete...", sussurra Alfonso, a compartilhar alguma emoção. "Afinal, sempre sofremos uma palpitação ao adentrarmos um universo feminino...", ele pensava.

    Hora do almoço e não podiam abusar da gentileza da atendente Ana Lúcia, que de repente era mesmo uma Ariadne naquele labirinto!

    - Esta disposição em labirinto foi de propósito? - HD quer saber.

    - Sim, de propósito. - sorri a Ana Lúcia. - Afinal, a verdadeira literatura não é aquela em que a gente se perde, para depois se encontrar melhor?

    - Também com uma Ariadne dessas...

    Com o comentário final de Alfonso, fecha-se a porta do Acervo. HD só tem a agradecer a dedicação do amigo - Acho que vou te nomear meu agente literário.

    Na praça de alimentação, uma feira. HD precisava mesmo comprar uma blusa para os dias de chuva e frio, e não hesitou em parar na primeira barraca que avistou. Negociações à parte, ele seguiu satisfeito com a compra. Olhava para o mundo ao redor como se mergulhado em lembranças, "Ah, as coisas mudaram para continuar as mesmas!", e seguia um tanto alheio, ao lado de Alfonso, a acender outro cigarro. Mascates e artesãos ali apresentavam seus produtos e trabalhos, expostos aos olhares e a pressa dos que passam, os estudantes com suas vidas agendadas, seus futuros traçados e seu momento febril a exigir satisfação, no agora antes que se acabe.

    Ah, o bandejão! Via-se no olhar de HD um brilho de reconhecimento. Vivera certamente momentos memoráveis ali naquele refeitório. E não ocultava esse passado.

    - Ficava rabiscando os guardanapos. Anotava diálogos inteiros. Observava cada grupo. Ali os estudantes de matemática. Olhares fixos. Ali os de psicologia, em análises coletivas. Ali, os de letras, atentos ao linguajar dos outros. Cada um num universo próprio, sendo formados e formatados. Só se aproximavam nos momentos de paqueras e trocas de olhares. Quando uma mocinha da psicologia se apaixonava por um fulano da filosofia, ou um cara da matemática morria de amores por uma garota das artes plásticas. No mais, cada um na sua (bolha).

    Olhares. As mocinhas entravam. Primeiro uma branca de cabelos longos. Pálida e tímida. Sentou-se na mesa à direita, junto aos estudantes de engenharia, ou seriam da veterinária?, bem, sentou-se e ocupou-se mais com os próprios pensamentos. Em seguida outra, mais amorenada, de cabelos presos e jeans apertado, provovante, sentou-se na mesa defronte mais atenta em olhar para os semblantes e movimentos ao redor. Isso nas observações tecidas por HD, logo a apontar, com o garfo, a terceira, às costas de Alfonso, uma moreninha mesmo, inclinada sobre o prato, não se apercebendo de mais nada.

    E HD quase se esquecia de comer, ali comentando as maneiras e olhares das mocinhas, enquanto Alfonso elogiava o menu, com arroz integral e strogonoff, mesmo que HD afirmasse que "no meu tempo era melhor", como os saudosistas de sempre.

    - Uma está mais dentro de si mesma. Parece tímida e tradicional, com gestos delicados. Talvez da Biológicas. Parece ser de classe média. Um ar interiorano, mas pode bem morar ali no Sion ou no Calafate. Já a outra, mais preocupada com o que se move por aí. Notou o cara de óculos na mesa de
frente e não hesita em admirar o jeito do sujeito. Que é calmo e sóbrio. Estuda alguma Exata. Certo. E aquela, que você não pode ver, está saboreando hipnotizada o strogonoff e a salada. Sem mais nada que lhe interesse. Seu olhar brilha a cada garfada, e sua pele se arrepia a cada folha de agrião, como se seu mundo adquirisse a consistência do caldo e o perfume do azeite ou do molho inglês.

    E se esquecia mesmo de comer, pois nisso Alfonso já esvazia o prato e é só atenção. - Você está fazendo a sociologia do bandejão?!

    - Pois se isto aqui é uma aula de antropologia ao vivo! Um laboratório digno de um Malinovski, de um Levi-Strauss! Veja, a mocinha que olha ao redor, mais morena que a primeira, está interessada nos outros. Quer socializar-se, interagir. Precisa fazer amigos. Está ali há dez minutos e não trocou saudações com ninguém. Tem jeito de caloura, para quem tudo é novidade. Já passei por isso. A moreninha, a que se entrega a um êxtase gastronômico, nem se interessa. Não que pareça mais sociável que a segunda, mas já deve ter um "tempo de casa", tem a desenvoltura de uma veterana, mas que se desloca alheia ao mundo. Veja, é a primeira a terminar. Se levanta atenta à blusa (teme ter sujado a roupa?) e os olhos dentro da bandeja. Agora, a segunda é que se levanta. Apesar de ocupar-se mais com o ambiente do que com a comida, mandou o cardápio numa boa. A primeira está lá até agora. Algum pensamento metafísico (ou pode ser uma preocupação com finanças...) ocupa sua mente. Veja como ela escolheu, como sobremesa, uma laranja, e não um doce, como fizemos. E veja que fleuma, que delicadeza de gestos, quando ela descasca a fruta, gomo a gomo, sem pressa, mas um olhar descansado (ou aprisionado) dentro, sem alterar-se, caída num transe...

    E o olhar de HD era de um apaixonado, mas poderia ser o de um colecionador, atento a um exemplar, belíssima espécime, ou um cientista anotando movimentos da cobaia.

    Logo abandonaram o bandejão, seguindo rumo a Reitoria. Contatos importantes com a Assessoria de Comunicação, sem adiar uma visita a Editora. Para isso atravessaram novamente a feira na praça de alimentação, e novas mercadorias expostas. Túnicas indianas, batas, incensos, camisetas com logo da Disney, camisas com capuz, sapatos em bom estado de conservação, sapatilhas de couro, bonés com logos de times de basquete ianque, blusas com motivos florais, calças jeans previamente rasgadas, livros de capas envelhecidas, apostilas de vestibulares de outrora, botinas de cowboy, braceletes e enfeites para cabelo, entre outras miríades de coisas.

    Bem recepcionados. Adentraram salas de aconchegante ar condicionado, apertaram mãos calorosas e trocaram sorrisos amáveis. E exposeram uma sucinta proposta para a divulgação dos autores da periferia, que rastejam nas sombras, sem os holofotes da mídia.

    - Gênios anônimos percorrem nossas ruas.

    - Talentos se perdem meio às brumas do asfalto.

    E todos ouviam atentamente.


    Depois de cumprida a agenda, Alfonso e HD precisam responder e-mails. Não há melhor lugar do que o laboratório de informática. E seguem ao longo dos corredores da Fafich, com seus estudantes e suas camisas com ícones da esquerda, um Guevara ou um Chávez, com violões cantantes de safras tropicalistas, nas escadarias das ciências sociais, onde jovens de longos cabelos encaracolados seduzem mocinhos de longas saias e sandálias de couro. E tudo ali revestido de lembranças. HD não pode evitar evocações das tardes ali dedicadas a sondar na internet os clássicos da literatura marginal, ao lado de Darío Sabine, agora cidadão europeu.

    - Literatura que você só encontra na internet, meu caro. São os blogueiros, os frequentadores de listas de discussão, ou chatas com centenas de literatos amadores trocando versinhos e obras-primas! Gente desconhecida que talvez jamais publique em papel e tinta.

    E passam a tarde traficando informações de blogs a chats, de homepages a listas de e-mails, até que HD lembra de compras no Maletta (ah, as fantásticas bancas de livros, os exóticos sebos, as raridades ocultas do Maletta!) e sugere que embarquem no primeiro ônibus. Que acabou sendo o segundo, pois o primeiro perderam assim que desciam a rampa da Fafich.


    - Não é a rampa do Planalto, mas aqui também descem sociólogos.




    No ônibus, que volteava e volteava pela cidadezinha que é o campus, povoada por mentes ávidas e mestres sapientes, com as arquiteturas neo-helênicas dos grandes vãos de entrada da própria Fafich, ou formato de colméia, da Biologia, ou rigidez e praticidade, da Exatas, somente faltava ali um guia turístico. "eis o prédio da Pedagogia, ou aquele ali é o prédio da Geografia, etc", mas havia uma morena beleza de calças jeans e tênis adidas, ao lado da qual HD se acomodou.

    Alfonso discutia as referências de uma criação literária, enquanto HD admirava o perfil da vizinha, e o celular ressonante que ela retirava da mochila, a atender com uma voz meio rouca, mas que transbordava decisão. "Alô, pai? Ainda estou no Campus." E nisso viam à distância o prédio da veterinária e o vulto do estádio, o Mineirão. "Quando eu chegar ao shopping, eu ligo, tá bom?" e não importa o que se fala, mas como se fala, e HD viajava, nos seus ouvidos, em certos momentos, digamos, mais íntimos.

    (Não que HD fosse destes por aí, mas ele andava seduzido por uma doce Cibele, que despertava todo tipo de turbilhão passional, e se Alfonso não se engana, da última vez em que viu a tal, ela estava de calça jeans e tênis adidas!)

    Fora a beleza morena, nada mais a relatar. Em breve, estão descendo na Augusto de Lima, e Alfonso estava mais preocupado em comprar um jornal, na banca carregada de poses, boquitas rubras, peitos e bundas, e sentar-se para um cafezinho.

    - E você ainda está lendo "Eros e Civilização"? Já está ultrapassado. Foi escrito nos anos 50, numa época de repressão da sexualidade. Hoje, Alf, vivemos numa época em que tudo é sexualizado. Veja aí os outdoors, as revistas com peitos e bundas, os programas de auditório com garotas semi-nuas, os comerciais com morenas de shortinhos ou loiraças decotadas, com direito à cenas de nudez na novela das oito e nos suplementos culturais...

    Nisso HD vai percorrer outros sebos. "Onde mais eu encontraria primeira edições de Pedro Nava?" Mas Alfonso prefere ir ao centro cultural, justamente na biblioteca batizada como o nome do ilustre memoralista.


De repente se passou uma hora. Centro cultural, folhetos em mãos, cartazes de eventos artísticos, vamos descer para o Palácio. "Agendei com o Vittorio", e Alfonso fuma outro, a pensar no enófilo poeta mencionado. Pois é terça-feira e os jardins internos são inevitavelmente invadidos por poetas e bardos. Mas essa é outra história.





    O Eldorado é conhecido como o pólo comercial da cidade, seu coração de negociações, além do seu coração histórico, tradicional e feudal, e seu coração industrial, metalúrgico, assim os três núcleos palpitantes atravessados, interligados, conectados pela mesma avenida-artéria-cabo-de-guerra, a João César de Oliveira, desde as chaminés da antiga e finada fábrica de cimento até a praça do fórum no centro histórico.

    Na João César, a avenida sempre pulsante, está a Livraria onde Stevam Lucena trabalha, aliás trabalhava, pois acaba de ser demitido, após seis meses de catalogações e fichamentos de miríades de livros, com um cheque nominal no valor de seiscentos e vinte reais e seu salário mensal em dinheiro,
descontado o valor de cento e dez reais, para repor as despesas, e ele, Stevam, se limita a dizer, "O meu trabalho eu fiz. A Livraria está montada. Agora qualquer mocinha pode assumir o balcão. Foi um prazer.", e apertou a mão do patrão, formalmente, pois formal sempre se manteve, sabendo, ainda agora, que seria substituído por uma mocinha de dezoito anos, a receber sessenta por cento do seu salário.

    Ao voltar para casa, após pagar a conta do computador, no carnê de sua mãe Nádia, Stevam Lucena sente o celular vibrar no bolso da calça jeans, que no mês anterior lhe custara a quantia de cinqüenta e cinco reais, e constata ser Bianca Maria, a desejar a confirmação de sua presença na festa de dezoito anos da sua amiga Rosa, sim, aquela festinha anunciada quarenta dias antes, enquanto Stevam mencionou uma possível festa na casa de Stevam Valêncio, logo no início de dezembro, semelhante aquela do ano anterior, quando Alfonso e HD apareceram e ficaram ouvindo Nightwish, para desespero de HD, que desejava Mozart, ou Pink Floyd, porque a banda finlandesa de som pesado e orquestrado chegaria à Capital, na noite seguinte, e ele, Stevam, assim se preparava, mas acabou não entrando na imponente casa de shows, visto o tão abusivo preço dos disputados ingressos, vejam vocês!, e os cambistas cobrando sessenta, setenta reais!, e ele encontrou Alexis, e trocou brevemente algumas idéias com o ilustre Conde, aliás, Marco Aurélio, ocupado em divulgar o próximo LEIS DA NOITE, "Tenho um projeto em mente, um sarau dos mais sombrios. Vai ser o Poesia Sombria!", ressoa a voz cavernosa do Conde, mas, no entanto, agora é a voz suave de Bianca Maria que flutua, "Meu bem, eu vou chegar às sete, que é pra ajudar a Rosa, mas o pessoa chega às oito. Não esqueça que o ônibus passa diante dos Correios, em frente ao Parque. Tá bom? Então, tchau!", e o que Stevam diria?, que perdeu o emprego? Que seu humor hoje foi sepultado? Mas negando-se a ir não estaria quebrando um compromisso firmado um mês antes? Um fato inesperado e desagradável a dinamitar uma noite há muito tempo esperada? O que a magoaria mais?

    E Stevam Lucena resolve aparecer na festinha da Rosa, dezoito anos, fã dos Ramones, amiga da Bianca Maria, que reside no aglomerado, aliás, na comunidade em risco social, espremido entre o São Predo e o Santo Antônio, conhecida como favela da Barragem Santa Lúcia, por situar-se, tal um paredão, às margens do represa de águas nada límpidas, nada representando de um cartão-postal ou semelhantes, num quarto de despejo da metrópole, cercado ali de edifícios e condomínios. Ele segue decidido, mas antes reclina-se em seu leito, cujo colchão de espuma é novo e lhe custou a quantia de cento e trinta reais dois meses antes, e quem pagará a terceira prestação?, após um banho quente, e quem pagará a conta de luz?, em silêncio resignado, pois não pretende afundar-se em comentários, limitando-se a entregar metade de seu dinheiro à sua mãe Nádia, reclinada no sofá, perplexa, além do valor para a última prestação do telefone celular, este mesmo que ele observa, com suas luzes e sonidos, lendo mensagens de Bianca Maria e lentamente a deixar-se adormecer.


    Sabiam que a noite seria de chuva. Bianca Maria mesmo dissera, "Meu bem, prepare-se, pois São Pedro vai despejar água!", e por ironia, o bairro chama-se justamente São Pedro!, e Stevam Lucena espera sua guia, diante da praça, sob a marquise de um boteco, onde um cidadão resmunga diante de uma garrafa de cerveja, olhos febris mergulhados no copo espumante, e um tédio infindo precipita-se com a chuva, enquanto a espera pesa no corpo e são mais de oito horas, de uma noite amortalhada.

    "Desculpe a demora, meu bem! Estávamos dançando "Lovecats" quando você ligou!", diz o vulto soturno e úmidos, não se sabendo se chuva ou suor, pois Bianca chega literalmente correndo, subindo entre becos e ladeiras, que agora descem, ela adiante, tal Beatrice a guiar Dante, por vielas lodosas, becos num labirinto de tijolos expostos em suas fissuras, sob as gotas que resvalam das telhas, ele de guarda-chuva aberto, mas a molhar-se assim mesmo, a tropeçar nos remendos de cimento, a seguir os passos dela tão certos, tão conhecedores das sinuosidades das curvas das esquinas, das sombras dos barracos, "Eu já morei aqui, há um tempo atrás, mas lá embaixo", ela diz, e surge o skyline do bairro luxuoso e suas torres iluminadas e suas miríades de janelas e moradias de sonhos e templos de consumo, e que pode ser alcançado com um disparo, uma bala perdida, e o medo, o medo que borbulha no coração dos que possuem, no bolso dos que mandam, e no peito e nas mãos estendidas dos que obedecem.

    E Stevam Lucena simplesmente jaz imóvel, indiferente a chuva que acaricia, mesmerizado a observar a cena. Os condomínios quase ao alcance das mãos, um contraste perfeito, um oxímoro ideal, ao quadro onde eles pisam, um aglomerado de barracos sem qualquer ordem, simetria ou infra-estrutura, "eu imagino o trabalho dos carteiros! Como se orientam?", e Bianca Maria sorri, "Sempre se dá um jeito, meu bem. Eles se acostumam", "Só espero que não encontrem algum minotauro", e não se sabe se ela entende, mas estático ele permanece, até que uma mão macia, ainda que firme, tome posse de seu punho, e vontade, e o arraste dali.

    "Você está perdendo a festa!", grita a mocinha que vem, sob os chuviscos, abrir a porta, e que Bianca Maria apresenta como uma prima da Rosa, a aniversariante, ali junto a porta, guiando os movimentos pendulares dos jovens convidados a ouvirem alguma banda de punk rock, antes de voltarem ao pós-punk, ou algo mais situado entre o depressivo e o piegas, "Ei, Rosa, consegui achar o Stevam", e Bianca já mergulha nas ondas de gestos e gritos e rodopios, no mar de sons e faces, "Oi, Stevam!", grita a Rosa, toda entusiasmo.

    Morena, da altura de Bianca, sempre sorridente, ainda que certo pesar no fundo do olhar, com camiseta justa, sombria, e saia, idem, e anéis e braceletes e cinturão cheios de brilhos metálicos, e um tênis esdrúxulo a subir perna acima, com um cordão quilométrico, eis a Rosa, a dona da festa, a convidar Stevam a acomodar-se junto a mesa onde um bolo, já retalhado, se exibia, além de doces, rocamboles, salgados e refrigerantes. Ele agradeceu, deixou-se ficar a observar a diversão alheia, bebericando refri, única gentileza que aceitou.

    Aceitar os manjares do outro-mundo era prender-se ali. E Bianca percebe, sim, algo de sombrio no reino do Sr. Lucena, e senta-se ao seu lado, "meu bem, o que aconteceu? Não está se divertindo!", e ele, sem preâmbulos, "Fui demitido. Devia ter avisado, mas não consegui. Não quero incomodar a sua diversão, afinal você esperava tanto, para festejar ao lado da sua amiga!", e ela entende, "Mas nada demais em me avisar. Eu entenderia. De repente, você prefere ficar sozinho...", e ele, num sobressalto, "Não, querida! Eu prefiro é ficar ao seu lado", e reclinou a cabeça no ombro dela, a sentir o perfume, o suor, a pele úmida, um calor insinuante, prazeroso, antes de finalmente se beijarem.

    Amigas e amigos se aproximam, e saudações breves, e "Esta é a minha amiga C, do segundo ano, lá no colégio" e "A B., minha melhor amiga, lá da rua, a gente vivia subindo nos muros para observar as piscinas", e "Este é o D., meu primeiro, digamos, namorado", e Stevam Lucena pôde reconhecer aquele rapaz que se aproximara de Bianca no LEIS DA NOITE, de outubro, quando ela dissera, "Ele quer ficar comigo, mas avisei que estou acompanhada por alguém especial", e sorriu, como se ele, Stevam, devesse ficar muito agradecido por esta prova de fidelidade e consideração, e eis ali o jovem D. diante de seus olhos, forte e saudável, e alheio, e "Esta é a mais linda, a maior fofura do mundo, a G.", e eis uma mocinha, realmente muito agradável aos olhos, de cabelos loiros cacheados, toda timidez, olhares fugidos, a estender uma mão delicada, que Stevam apertou com extremo cuidado, temendo ofender aquela fragilidade, quebrar aquelas falanges de cristal, "Muito prazer" e a mocinha se deixou arrastar para as turbulências da festa.

    De repente, um trem da alegria singrava entre sofás, poltronas, estante, mesas, cadeiras, cabides, a casa toda, pois trata-se de residência modesta, e de súbito irrompe cozinha adentro, onde a mãe de Rosa agora oferece o rocambole, que repousa à esquina da mesa, antes de ser descoberto e devorado pela faminta e suada Bianca, uma das que lidera, a puxar o comboio, enquanto Joe Ramone promete implodir o colégio, ou insiste em veemente protesto quanto a ser sepultado em certo cemitério maldito, e de repente, Stevam percebe uma obsessora e volumosa dor de cabeça, lúgubre enxaqueca, e nem os lábios, com gosto de chocolate e creme, de Bianca conseguem propiciar aquele relaxamento tão ansiado.

    "Vamos embora, querida?", ele sussurra, "Mas, meu bem, são nove e pouco, ainda! Ora, fique à vontade! Não quer rocambole? Está uma delícia!", e a mãe de Rosa, junto a mesa, sorri agradecida, enquanto Bianca devora doces e guloseimas em dobro, para ela mesma e para o namorado, aquele rapaz tão galante, mas tão quieto, e sério, e parece que seu sofrimento não tem fim, e como reclina a cabeça no ombro dela, tão desvalido, "Seu namorado, Bianca, parece aqueles mocinhos tristes de clipes de rock", diz a mãe de Rosa, e a Bianca nem pode sorrir, pois experimenta o bolo com recheio de chocolate e bolacha-maisena, e limita-se a exprimir doce enlevo enquanto mastiga.

    Mas, todavia, distribuíram despedidas antes das dez horas, quando a chuva já cessara e uma brisa morna aparecia levantar brumas de vapores na noite, quando o silêncio das ruas é dilacerado pelo ecoar dos passos. Bianca Maria se apóia no braço esquerdo de Stevam Lucena, ainda que, em alguns momentos, se separem, para saltar as poças de água e lama, nas crateras do asfalto arruinado, "Mas a festa estava tão boa, meu bem! E você me faz ir embora...", ela lamenta, em mágoa não totalmente cênica, e ele diz, cabisbaixo, "Acho que eu não deveria ter vindo. Pensei que a festa me alegraria, e que eu acabaria me divertindo. Não deu certo. Não estou mais acostumado a essas músicas de adolescente", e ela olha, com uma névoa de contrariedade, "Ah, meu bem, não seja tão mau-humorado! Você disse 'adolescente' com um desprezo!", "Não é isso. Só disse que minha época, para festinhas, já passou. E, convenhamos, o que os seus amigos promoveram foi uma bagunça! O som estava um estrondo só!", "Ah, Stevam, você está é de mau-humor, cara! Não tinha bagunça nenhuma. A Rosa, a mãe da Rosa, todos com a maior boa-vontade do mundo! Só se faz dezoito anos uma vez! Tá bom, que o pessoal estava meio empolgado, mas sem exageros, e olhe que nem deixaram entrar álcool, nada de cerveja ou vinho, só refri, que é pra não ter gente grogue enchendo a paciência...", e à medida que ela vai falando vai se acalmando, e até brincam de quem vai alcançar o ônibus primeiro, contornando a pracinha, ela no cateto oposto, ele no cateto adjacente, até o coletivo se aquecendo, piscando os faróis, lá no meio da hipotenusa, "Ah, cheguei primeiro!", ela grita, e ele não duvida.

    Acomodados nas poltronas ao fundo, onde um imenso cartaz, com poema neo-concreto, com influências de Leminski, se descola em abas obscenas, o casal se observa. Stevam Lucena deixa o guarda-chuva suspenso junto a janela e Bianca Maria estica as pernas, com sua meia-calça preta, até os degraus inferiores, e um observa os movimentos e os olhares do outro, a cada vibrar ou estremecer do coletivo, que já alcança a Nossa Senhora do Carmo, a preparar-se para um trânsito lento no anel da Contorno, "Desculpe aí as minhas neuras... Não devia falar dos seus amigos...", ele começa, e ela, esperando ser conciliadora, "Ah, esqueça, meu bem, não faço caso", e outro silêncio, furado por uma buzina, invadindo o ônibus agora estático, e ele observa o sinal vermelho uns quarenta metros distante, e ouve ela dizer, "Ah, meu bem, você nem imagina o presente que vou comprar pra você. Para o Natal.", "É, não imagino mesmo.", "Aquele livro que você apontou no shopping, na livraria do shopping, quando fomos ver o filme da noivinha-cadáver. Do escritor irlandês, James Joyce. Aquele calhamaço. O Ulisses!", "Como é? O Ulisses? Deve ser caro, não? Mas você exagera! Eu disse que poderia ser uma lembracinha, coisa simples...", "Ah, meu bem, se é pra te agradar, eu nem olho o preço! Você elogiou o livro o tempo todo! E mesmo que eu nem tenha ânimo para ler aqule que você me emprestou, o do Artista quando Jovem, percebi porque o cara é cerebral!", "Sei, sei. O livro é excelente, toda vez que eu folheio, eu lembro do HD, o Hector, que estava na pracinha, com o Alfonso, nem sei o porquê, mas não é isso... Deve custar umas cinqüenta pratas!", "E qual o problema, Stevam? Pára de ser sovina, unha-de-fome! Fica pensando em economizar e economizar e esquece de viver!", e o bom humor dela já evaporou, e nisso o coletivo transpassa a Savassi.

    Lá fora a arena dos carros, o massacre das buzinas, na subida para o Palácio e a Praça, e um inferno de motores e pneus, e o olhar de Bianca Maria fuzila por trás do brilho do óculos, e Stevam Lucena perde-se entre aflições externas e internas, sua voz torna-se áspera, mesmo que não queira, "As pessoas estão acostumadas com valores, com presentes caros, com exibições de consumo, e o Natal, as Festas, se tornam um louvável mercado, "vamos consumir até nos consumir!', e o que importa é dar e receber, gastar até o teto do cartão de crédito! Eis o espírito natalino! Enquanto tem gente que não vai receber um cartão, e crianças que nem sabem o que seja presente, e pessoas que trabalham e trabalham, o dia inteiro apertando parafusos e engrenagens", e aqui ele já gesticula, o que faz lembrar conhecida cena de "Tempos Modernos", filme de Charles Chaplin, e ela percebe o acesso dele, os esgares e os tremores, os dedos como a segurarem imensas chaves de apertar parafusos, e ele já golpeia o guarda-chuva como se fosse uma alavanca, o tentáculo metálico de uma máquina, uma maldita máquina, "E o que ganham esses apertadores de parafusos? O que ganham? Uma cesta de Natal!", "Ah, dá um tempo, Stevam!"

    Pronto. Agora seguem os dois, evitando o contato, desviando os olhares. Lado a lado, porém distantes, por causa de quê? Uma discussão sobre consumismos e gastanças natalinas! Descem na Espírito Santo, de onde seguem até a Praça Sete, em silêncio raivoso, e constrangido, com passos pesados de sapatos e coturnos, "Você fala demais, Stevam", ela murmura, quase a estourar, e sobem no coletivo para o Calafate, fartos um do outro e fartos de si mesmos, como se a presença do outro lembrasse, inoportunamente, a presença do próprio eu, aprisionado num labirinto de opiniões arraigadas e gostos discutíveis, e assim seguem, a cada sacudir das molas, a cada tremor das rodas, a cada frenagem e a cada acelerar, e assim descem.

    "Por favor, Bianca, não me entenda mal. Nada contra você, seus amigos, sua família! Minha neura é com essa febre de compras, de trocar presentes e tal. Não estou negando o presente que vou te dar, aquele CD de banda de rock nacional. Prometi, está prometido. Eu sou um cara simples, você, também. Nós comemos pudim sentados em banco de praça. Então para quê ficar ostentando presentes?", "Olhe, Stevam, vou dizer uma coisa: ou você me aceita como eu sou, ou então pode sair da minha vida!", e o tom de voz, que ela usou, ele nunca ouvira saindo daqueles lábios antes, nunca imaginou que pudesse!, quem era aquela que dizia aquela frase "Ou então pode sumir da minha vida!"?

    Entram em casa dela, e Dona Efigênia nada entende, logo externando sua perplexidade ao receber os jovens tão cedo, "vocês só chegam de madrugada!", e Bianca se tranca no banheiro, e Stevam rabisca um soneto amargurado, disposto a esmurrar-se por semelhante cena, "Ela estava tão feliz!", ele fala para si mesmo. E acabou dormindo sozinho. É claro que, por essa, ela jamais se perdoou.





    Resolveram seguir a Afonso Pena até a parada de ônibus diante do estilo francamente francês do Automóvel clube. Ainda carregando o sorriso do ator Alberto Stevam, HD vertia comentários sobre o seu romance de mil páginas, que nada dizia ou pretendia. O pobre do Hélio Lúcio é quem ouvia desta vez. E em possível respeitoso silêncio.

    - Um romance que somente nós, os amigos, vamos entender. A nata da elite. Os eleitos. Senão por que eu me animaria a escrever um livro que ninguém (além de mim) entenderia?

    Ainda que HL seguisse pensando no convite do ator Alberto para um teatro "0800" no parque, na próxima manhã de domingo, esforçava-se por dispensar certa atenção ao verborrágico HD, que quando abordava seus escritos, esquecia o verbete "modéstia".

    - Por que não importa o enredo. Enredo é coisa de romance 'best-seller' ianque. Conspirações, assassinatos, crimes obscuros, adultérios, invasões alienígenas, viagens no tempo e no espeço, coisas assim. Mas, e a técnica?

    - Que técnica?

    - Justamente! Que técnica? Nenhuma. O enredo é tão mirabolante que te segura umas mil páginas. Mas e se não houver o tal enredo? O que prende o leitor?

    - A técnica?

    - Sim, a técnica, o estilo. Se se trata de um leitor exigente, sensível. Pensa bem. Um estilo forte, ou uma alternância de estilos. Primeira pessoa, ou terceira pessoa onisciente, ou se dirigindo ao leitor, coisas assim. Paródias e paráfrases de autores estilosos, tipo um Joyce, um Kafka, um Proust, um Borges...

    E de repente, a imagem. Onde dissera tudo aquilo antes? E conversando com quem exatamente? Onde? Sim, com Aurelius na Biblioteca, quando comentavam o livro de contos lançado pelo Délcio Palma, com revisão do próprio HD, que elogiava a simplicidade e a despretensão do contista, "Ele quer tão-somente contar a história, sem frescuras, sem rocambole, sem artifícios", mas talvez Aurelius pensasse que os artifícios é que "faziam a literatura", sabe-se lá, mas um carro vermelho parou.

    Onde? Não, não foi na Biblioteca! Como já escrito, HD está diante do Palácio das Artes, onde se encontrara com o ator Alberto, e passeia agora em companhia do poeta HL (espero que tudo isso tenha sido realmente escrito), e foi então, antes da parada de coletivos diante da franca fachada do Automóvel Clube, que um carro esporte cor vermelha, placa não-visível-deste-ângulo, parou ali, simplesmente. E uma jovem, com uma orgulhosa mochila de estudante vinha então correndo, o fôlego faltando, o suor óculos ocultando, pulando fremente os buracos do asfalto, pelo menos eu achei, que ela entraria no carro vermelho, e o HD até deu uma olhada, como quem não quer nada, ali a morena de 'garbo e elegância', nada, uma vadia, não menos, uns peitos de responsa, um jeans apertando coxas, e ela passou direto! De boa! O carro parou, e ela passou direto!


    Enquanto HL quebrava a cabeça, HD vê o ônibus que se aproxima, e é para ele que a moça vai na correria só, e os amigos se entreolham. - Mas eu pensei que ela corria para o caro! - HD de olhos saltando. - Mas as aparências enganam. Uma ilusão apenas. E assim, antes que começassem a discutir as "ilusões que de repente se deixam à mostra", os olhos confirmavam a presença irracional do tal carro vermelho! Espera alguém? O pneu furou? A moça se confundiu ou o motorista se confundiu com a moça? E tudo junto? É um carro-bomba?


    É o que incomodava o HD. - E se for mesmo um carro-bomba? E por que parou justamente diante de nós? Imagine as manchetes de amanhã: ESCRITORES MORTOS EM ATENTADO.

    - Que "escritores" o quê? Dois vadios, dois indigentes mortos por explosão violenta no cartão-postal de BH! Que escritores o quê?! Onde você está vendo "escritores"?

    - Que isso, Hélio! Onde a sua consciência de classe?


    Mas o carro ali. Nem dava para se ver o motorista. Vidros escuros. Mistério. Devia é ser proibido! Vai que é um marginal, um narcotraficante, um seqüestrador de transeuntes, daqueles que te levam e depois arranca o seu fígado, o seu pulmão esquerdo, o caralho que for! E eu aqui sem saber, pelo menos que exploda logo, mas.

    - Ei, Hélio, de repente o surreal, hein?

    - Como é que é?

    - De repente a natureza dá um salto, do nada surge algo, do comum nasce o inesperado, e uma flor brota do asfalto, um homem fica transparente até desaparecer... Já leu o Rubião?

    Ah, o Murilo Rubião! HL lera, mas quem era fanático pelo autor era o Aurelius! Como não! Ah, o leitor imagine! Imagine-se adentrando a Biblioteca, aquela com nome de memoralista famoso, sob o reflexo esmaecido dos vitrais, num ambiente um tanto aristocrático, talvez por ser uma miniatura estilizada de castelo, com escadarias bifurcadas de madeira de lei, e floreados arquitetônicos et cetera, e ali na primeira mesa, justamente sob os reflexos dos vitrais et cetera, estão os dois jovens literatos, a discutirem, de início à meia-voz, e depois em exaltação, até que o Bibliotecário intervenha, os limites do fazer literário, s pretensões do estético na escrita, as possibilidades da crítica literária enquanto avaliação e contribuição ao estilo alheio, além de outras tecnicidades não muito claras, que dispensarei, e imagens (por favor!) suas faces de um colorido de aquário, por justamente falarem de aquário (colhemos esta frase a brota dos lábios do mais exaltado, "e ele entrava em seu quarto como se dentro de um aquário", e sua boca parece mais uma boca de peixe num aquário, assim meio aberta, imagine) e que sussurros são estes que se elevam nos frêmitos dessas bocas em semelhantes considerações líricas e prosaicas, enquanto um defende o prosaico, a descrição do real, enquanto o outro prefere o além-do-real, o Imponderável, o realismo-fantástico, "há quem renove a escrita, mas há quem renove com traumas, e como não ficar traumatizado com um Kafka, um Borges?", diz o mais ponderado, com ares mais racionais, algo de acadêmico, e fala pausada, sim, enquanto o outro, aponta frenético ao redor, "a realidade é tão-somente isso, mesas, cadeiras, pessoas entre mesas e cadeiras, livros e dedos que folheiam os livros", e o outro ainda não vencido, "e os seus olhos que bebem a realidade, e os meus olhos que lacrimejam diante da realidade, aliás, que realidade?", e seria uma discussão infida e inenarrável (ainda que se esforce0 se não fosse o caro vermelho. (Que Aurelius diria tratar-se de uma 'alegoria')

    Voltemos ao carro vermelho. Ali na Afonso Pena, às dezoito e dezoito da tarde ("Por que toda vez que eu olho o relógio eu vejo um número duplo?", pergunta HD), aliás, crepúsculo, quando o próximo ônibus é esperado para as dezoito e vinte e cinco, e o que agora passa está tomado pelas multidões ansiosas, aspirando pelo lar e um banho quente (ou frio, depende da preferência) e os amigos pensam no homem que despertou certa manhã metamorfoseado num medonho inseto e o que dizer?

    - E se a gente batesse no vidro? De repente, o cara, ou a madame, sei lá, precisa de uma informação.

    - E se a gente se afastasse?

    - Peraí, 'cê tá com medo, meu caro?

    - Sei lá. Acho que uma espécie de síndrome de Belfast, de Bagdá, sei lá.

     Vermelhamente estacionado o carro continua. Vermelho-cereja, placa de São Paulo (HL ousou dois passos, fingiu que olhava os números de ônibus na placa ao lado, e deu uma espiadinha furtiva, coisa de conspirador), e obscenamente vermelho de desafiar metafísica.

    - O Valêncio é quem anda lendo Aristóteles.

    - Metafísica? Balelas. Wittgenstein já jogou no lixo...

    - Ah, Wittgenstein. Desisti de ler, muito menos de entender. Mas, pois não é que precisamos de um Wittgenstein, de um mecenas? O que seria de um Rilke, de um Trakl, sem a louca generosidade de um Wittgenstein. Já a filosofia dele... Então os problemas filosóficos são problemas de linguagem?

    - Sim, problemas de interpretação. Você vê, ou lê, de um jeito, e eu, de outro.

    - E o que fazer então? E nós que trabalhamos com a linguagem? É possível ser compreendida? Dizer o quê?

    - Quando não se pode falar, é melhor se calar. - e HL subiu no ônibus, menos tumultuado este, e esqueceram o tal carro vermelho. Realmente muito suspeito.


[...]
LdeM



Um comentário:

  1. Só queria dizer que você é incrível. Li seu texto sobre o conto de Clarice Lispector "O Relatório da Coisa."
    Fico feliz que exista pessoas com a sua capacidade de visão para as entrelinhas.

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