quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Final do Capítulo 5

...


(do diário de HD)

12 dezembro


    Irrecusável o convite de Michael Bishop para um sarau de poesias. Na Livraria, Savassi. Semana em homenagem ao conhecido poeta RS e suas décadas de carreira. Cheguei quando ainda organizam a mesa de cocktail. Vinho, tinto e branco, seco e suave. Bolachas salgadas a serem pinceladas com molhos e maionese e requeijão. O que realmente fiz. Mais tarde, claro, enquanto conversava com o Michael.

    Enquanto espero, folheio volumes sedutores de poesia moderna, dos quais pouco entendo, atento às garçonetes em suas atenções aos clientes, todos recém-chegados, e quando se aproximam, eu apenas solicito água mineral.

    Michael chega acompanhado por sua amada, a loira Carolina, simpática, mas de pouco diálogo. Estas nossas companheiras silenciosas que se agradam de poetas falantes... Distribuímos saudações, principalmente ao RS e sua amada, e também sua secretária, VA, que esperam os poetas.

    Sou apresentado ao PC, não o famoso tesoureiro collorido, mas o poeta, a divulgar lançamento recente e prêmios literários. Quando sou convidado, não posso deixar de lembrar Whitman, além de versos de Alfonso, aquele poema das andanças.

    Depois o PC rabisca o seu endereço virtual. Acompanhado de um cálice de vinho branco suave, vou folhear as pastas com recortes e notícias, onde pululam fotos e garrafais, de RS e outros poetas boêmios. Muito papel amarelado, diga-se.

    E Michael diz algumas palavras ao público, e sou apresentado ao RL, ator e poeta. E aperto a mão de outros, dos quais esqueço os nomes.




    O novo prédio da Biblioteca Pública Estadual é um corpo de vidro suspenso entre a Rua da Bahia e a Praça da Liberdade, com vista para os fundos dos corpulentos prédios das Secretarias de Educação, à direita, e da Fazenda, à esquerda, perspectiva esta de quem está na sala de leitura e pesquisa, junto aos dicionários e enciclopédias, como é o caso de Stevam Lucena, absorto na leitura de conservados relatos de épocas inquisitoriais e de caças-às-bruxas, com ilustrações um tanto inquietantes onde demônios sobem em labaredas e faces sinistras se destacam em vestes de donzelas.

    Tão absorto está o estudioso Stevam Lucena que somente agora percebe a presença silenciosa de Bianca Maria ali diante da mesa, esta mesinha redonda com três cadeiras. E atrás do vulto da mocinha os passantes diante das estátuas dos quatro escritores ao lado da Secretaria de Educação, onde professores transitam em suas peregrinações.

    Tudo isso Stevam percebe enquanto se levanta para abraçar a ainda silente, e até amuada, Bianca. "Fique à vontade, querida. Já termino a leitura.", e ela se sentou e reclinou a cabeça sobre os braços cruzados, em cansaço infindo. "O que há, Bianca? Que desânimo!", e ela nada diz, limitando-se a observar o estudioso de épocas medievais. "você está mesmo parecendo um intelectual.", ela graceja, num quase sorriso. "Estou lendo sobre os inquisitores na Alemanha.", ele esclarece, "Não exatamente gente piedosa", e ela pisca os olhos com pintura egípcia, nas vestes toda negra, em melancólica sedução.

    Mas é visível que preferem passear na Praça, e Stevam Lucena conduz Bianca Maria pelo corredor, assim como vira, tempos atrás, certo rapaz conduzir duas mocinhas, uma até meio doentia, no mesmo corredor. "Quando foi isso?", ele pensa, e já quase se completam dois anos! "vamos ver a decoração natalina", ele promete, e ela se aconchega nos braços dele, enquanto ousam saudações às figuras pétreas dos escritores, serenos e perenes.

    Bela, mas um tanto exagerada, a decoração natalina da Praça, que fora semanas antes palco de gravações para uma nova minissérie televisiva global, e até isolada, cercada de câmeras e povoada de estrelas glamorosas, na pretensão de retratar a vida de famoso político mineiro, que depois descobriremos ser (não podia ser outro!) o ícone JK. Mas isso é passado, ou ainda será futuro, pois a minissérie ainda não foi ao ar, e agora Stevam Lucena e Bianca Maria estão abraçados, de pé, na alameda central, diante do busto de Pedro II e notando o vulto do Palácio, sob um coração em luzir rubro, e miríades de luzinhas que piscam, a se refletirem nas fontes.

    "Um sarau com poetisas. Digo, poetas-fêmeas", ele conclui, em gracejo, um convite que iniciara antes, mas não acompanhamos, em comentários sobre a biografia televisiva de certo político mineiro, e isso é incômodo a narração, quando as personagens passam a nossa frente, e voltemos portanto. Há um sarau, na verdade uma noite de encerramento de uma semana de homenagem a certo poeta famoso. E Stevam recebera um e-mail de HD, além de um aviso verbal de Michael Bishop, ainda que por telefone, sobre o evento, onde apenas mulheres declamam poemas do ilustre vate.

    Bianca Maria não pode deixar de achar o gracejo interessante, e além da curiosidade, o desejo de se afastarem daquelas cascatas de luzes piscantes e corações rubros e palmeiras algemadas em correntes de microlâmpadas, "Transformaram a Praça numa perua enfeitada!", ela comenta, "Não gostei. Depois nós vamos à Boa Viagem?", ela o abraça, sugestiva. Certamente se referindo a Igreja gótica, quadras abaixo, na Alagoas. Mas, primeiramente, o sarau.

    Junto à entrada, estão o sorridente e carismático Michael Bishop em conversa sussurrada com o poeta Hélio Lúcio, quando entram Stevam Lucena e Bianca Maria, calorosamente recebidos. Uma das poetisas se aproxima e, certamente a confundir Stevam Lucena com outro poeta, elogia a produção lírica do rapaz, que só instantes depois pode esclarecer que nada publicara, exceto alguns poemas para amigos.

    "Minha poesia não é muito digestiva", ele diz, modesto, "Não sou seguramente alvo de nenhum destaque", ele completa, mas a poetisa já se desculpa, ele todo compreensivo, e oferece um simbólico presente, um livrinho do TH, que fora editado em dois anos atrás, "Mas fora do tempo, como merece um verdadeiro poeta, como é o caso do meu amigo TH", e a poetisa está muito agradecida.

    Reclinada no peito de Stevam, a repousante Bianca, mas toda atenção aos poemas que as vozes femininas presenteiam em fluente lirismo de versos íntimos, de versos eróticos em imagens simbolistas, "Acabo de lembrar-me do Baudelaire", comenta Stevam ao ouvido da moça em devaneios, "Pele lisa dos seios no deslizar de dedos alucinados", a poetisa morena e alta deixa vazar por entre seus lábios rubros e braços trêmulos de braceletes e conchinhas minúsculas, e tem-se uma ideia do que se trata esta poesia intimista.

    Lânguida e relaxada, Bianca deixa-se transportar junto a fluidez dos versos em vozes doces e macias, ofertando aquelas sílabas dançantes de versos sugestivos, e sua melancolia se transmuta em carícias ardentes e seus lábios procuram a orelha de Stevam, que começa a achar algo de vantajoso em semelhante sarau, e um certo brilho no olhar relampeja de desejo.



    A Igreja da Boa Viagem é este vulto gótico que se destaca acima das árvores que esparramam-se de alameda a alameda, sitiada pelo trânsito, mas a destacar-se na penumbra com seus coloridos vitrais com cenas bíblicas um tanto cubistas.

    E o que é este vulto a correr pelos canteiros? Seria motivo de espanto ou desconforto se esclarecêssemos ser a jovem Bianca Maria a perseguir um sombrio gato preto de olhos radiante? Mas trata-se da mesma Bianca Maria que encontramos horas antes, numa sala de leitura da Biblioteca, em prostrado desânimo?

    Mas que forças não dinamizam um amor! Abraços e beijos e versos lascivos fazem arder os corações em labaredas sequer imaginadas. Ali encontra-se Stevam Lucena a observar Bianca Maria em grotesca e jocosa perseguição a um felino vadio.

    E ela retorna, suada, aquecida, derretida, da caçada que se revela inútil, "Ele não quis ser meu amigo", ela lamenta, e assim agora sentada em seu colo, isto é, nas pernas de Stevam, que recebe, o sortudo, os carinhos que o felino não quis. Uma língua sinuosa e insinuante a sondar as voltas de sua orelha, ou a morder a sua língua ávida, e Stevam não se lembra de uma Bianca tão ardente e sugestiva, "Vamos lá pra casa, meu bem.", ela sussurra, e ele sente os seios pequenos e firmes em chamas nas pontas de seus dedos que, indecorosos, já adentraram um soturno corpete.



    Na cama, no escuro, onde Stevam Lucena foi realmente arremessado por uma deusa-musa em vestes sombrias, sem tempo de sequer ir ao toalete, enquanto uma imagem lúbrica, a dela mesma, Bianca Maria, a se deliciar com um pirulito de cereja, em sugadelas e olhares, ainda na parada de ônibus, e em beliscão em sua barriga, acima e abaixo, nos tremores nas crateras do asfalto, e agra ali, ela reclinada sobre ele, acima e dentro de suas calças, a puxar, ma verdade, estas calças, que já caem sob a cama, junto com o lençol, todo desajeitado e fora de lugar, enquanto um corpo comprime o outro e alguém suga e alguém geme e alguém arranha e alguém represa um grito.

    Stevam Lucena nunca esquecerá esta noite. Esperem e vejam os relatos dele. Nunca dantes tivera em seu leito uma beata mais ardente. Nunca dantes pudera imaginar os prazeres que um corpo de mulher é capaz de doar. Nunca sequer em seus devaneios de luxúria e paraíso perdido pudera sondar os profundos daquele prazer. arrastado, arremessado, dominado. Ei-lo ali, a ser sugado! Onde antes aquela Bianca tímida e silente e de fadiga infinita? Onde o olhar melancólico vertido entre enciclopédias e dicionários? Nada mais, exceto um brilho de sedução. "eu te desejo, Stevam. Entra em mim", e em imperiosas ordens a serem prontamente obedecidas! E ele entrou dentro e fundo e todo nela.





    Saindo do hipermercado, aquele com nome francês, na Rua Platina, às dezoito e quinze, de tarde nublada, Stevam Lucena leva uma sacola plástica, contendo um panettone de gotas de chocolate e uma garrafa de coca-cola de dois litros, ainda guardando o troco na carteira, uma azulada nota de dois reais e uma esverdeada de um real. Alheio à semelhantes minúcias, ele segue a mencionada rua em retorno a casa de Bianca Maria, pois, segundo acordo prévio entre ambos, ela agora estaria acessando a rede mundial de computadores, comumente conhecida por 'internet', de grande importância para ambos, nem precisando mencionar que foi através desse espaço virtual que ambos se conheceram.

    Enquanto ele foi comprar o lanche da tarde, ela foi ligar o computador, e estava lendo os e-mails mais recentes, principalmente na Lista do grupo Templo Sombrio, onde o assunto do momento era o famoso Marquês de Sade e sua sexualidade perversa. Lá estava a especialista no Marquês, a consorte do "Conde", a sábia "Rainha", com suas palavras desmitificadoras sobre as reais intenções das chocantes atitudes do Marquês, mais vítima que vilão, segundo ela. E uma das fãs da Lídia, todos sabem, é a soturna "Beata da Noite", aqui debruçada sobre o monitor, quando Stevam reaparece em cena, com o esperado lanche.

    "Novidades, querida?", ele pergunta, e acrescenta, "Encontrei aquele panettone que você adora!", "O de chocolate?", ela se apressa em perguntar, sem desviar os olhares da tela e seus caracteres. Ele confirma e enche dois copos com o multinacional refri e entra no quarto. "Obrigada, querido", ela aceita o copo, "Quer ler os seus e-mails", e ele não recusa, "Mas fico imaginando a surpresa da sua mãe, quando voltar e ainda me encontrar aqui!"

    Já haviam acordado tarde no sábado, e Dona Efigênia já havia saído, e deixando algo preparado para o almoço, que apenas cuidaram em aquecer no microondas, e depois mais sono tarde à dentro. E quando abriram os olhos, eram seis horas, ou cinco, pois eis o horário de verão, e "que tal entrarmos na internet?", ela sugeriu, deitada ao lado dele sob o edredom, "Mas você vai comprar o lanche. Tá legal?", e o resto já sabemos.

    "Este é o poema que eu quero ler lá no Poesia Sombria", e ela folheia uma antologia de poemas de Manuel Bandeira, à procura, e trazendo à mente de Stevam o esperado anúncio do próximo evento do "Conde", quando pretende uma leitura mais autêntica de "O Corvo" de Edgar Allan Poe. Mas quando será? Em meados de janeiro, possivelmente. Mas, por enquanto, Bianca está folheando a antologia, "É este aqui."

                                                "A vista incerta,
                                                    Os ombros langues,
                                                    Pierrot aperta
                                                    As mãos exangues
                                                    De encontro ao peito."

    Sim, o famoso Pierrot! Que fora encontrado no arquivo de fotos virtual de ninguém menos que Amanda Lins, a "Valkyria", e será que Bianca sabe disso? Possivelmente. Stevam mesmo deve ter contado. Mas o que faz o Pierrot?

                                                   "Uma sombria
                                                    Rosa escarlate
                                                    Em agonia
                                                    Faz que lhe bata
                                                    O coração..."

    Face lívida, e uma lágrima negra. Lábios escurecidos, em feiúra melancólica. Eis o Pierrot que baila na mente de Stevam Lucena. Talvez se assemelhe ao que passeia nos olhos de Bianca Maria, talvez não. É mais possível que não. Nada parecidos, muito distintos, os Pierrots! O dela certamente sabe dançar melhor, o dele talvez seja mais senil, mais estático. Mas ambos carregam a mesma aberração: a do palhaço triste.

                                                 "Da veste branca
                                                     À larga túnica
                                                     Por fim arranca
                                                     A rosa púnica
                                                     Em um soluço."

    O Pierrot confunde a rosa agônica com os lábios de sua amada, e o desgosto em grossas lágrimas lava o seu rosto lívido, e ao apossar-se da rosa, arrancando-a de sua haste, sente como se a arrancar o próprio coração! Sensível peça, realmente. Mas a beleza maior está nos lábios de Bianca Maria! Aqueles lábios que deixam fluir os versos do poema, com pesar e langor! Lábios pequenos, modestos e delicados como a rosa que o poeta evoca!

    E a chave treme na porta, enquanto trocam um leve beijo. É a mãe-sogra que aparece e encontra o casal diante do brilho do monitor, quando Stevam lê seus e-mails e envia um conto, não muito atual, para os colegas da Lista, "Queridos, vocês ainda estão aqui dentro? Não vão aproveitar a noite?", Dona Efigênia adentra o quarto, notando o desânimo de ambos, "Ficam aí, o tempo todo diante dessa coisa, esse computador! Eu, quando jovem, adorava sair! Ah, ninguém me encontrava assim o dia inteirinho dentro de casa!", e ficava perplexa com o casal, não que estivesse expulsando-os, ou a ele, especialmente, mas é que julgava encontrar no quarto um casal de recém-casados! Explica-se: um casal de namorados viver assim, entre quatro paredes?

    Não saíram. Stevam Lucena lanchou com a mãe-sogra e trocou alguns olhares com Bianca Maria, atento ao horário do metrô e em promessas de aparecer na noite de Natal, pois mãe e filha não hesitam em convidar, além de anunciar uma torta de frango, e é coisa que não se brinca, já sabemos que Dona Efigênia é exímia cozinheira. Daí, ele cortar o panetone com prazer, bebendo aquele refri que a mocinha adora, a pensar na solidão das duas ali, naquela casa de dois níveis, na companhia insinuante daquela gata branca e gorda e de exótico nome árabe, "Sherazade, nada de entornar o leite!", mas a gata continua ali, deslizando nas pernas nuas de Bianca Maria.

    "Mãe, a gente vai sair para aonde?", a mocinha diz, cabisbaixa, servindo carícias à gata vaidosa.





    Debruçado em sua mesa, diante da máquina de escrever, modelo portátil, não-elétrica, modelo 90, HD está concluindo um conto sobre um intelectual de periferia, um ensaio sobre as paisagens oníricas em Clarice Lispector, um ensaio sobre relacionamentos turbulentos em contos de James Joyce, além de um texto, um tanto didático, sobre mídia e alienação, quando o celular geme sobre a pilha de livros, aliás sobre o dicionário Inglês-Português, e seus dedos estremecem ao contato do aparelho, modelo 2001, sem frescuras de câmera ou rádio, em cujo visor piscam duas palavras esperadas "CIBELE ALVEZ"

    Finalmente, a "la belle Sibila" vem visitar seu querido, e HD levanta-se, pronto para ir encontrá-la dois quarteirões abaixo, na portaria do Hipermercado. Onde acabam comprando um algo mais para o almoço, que ele mesmo haverá de preparar, notada a ausência da mãe e das irmãs, com aquelas batatas de pele lisa e com aquela rubra carne moída.

    - Aceita água? Café? Chá? Leite com chocolate? Licor? Vinho? Limonada? - HD não evita gracejos.

    - Quer me embebedar?

    - Suspeitas? Então vai uma limonada mesmo. Eis o limão.

    Desfila pela cozinha a presença corpórea de Cibele Alvez nas medidas aferidas, com seu cabelo negro, olhos negros, pele branca, com 1,61 m de altura, 49 kg de peso, 82 cm de peitos, 62 cm de cintura, 84 cm de nádegas, pés calcando um tênis No. 36.

    Cibele aceita um copo com água e passeia os olhares pela casa. Ali a geladeira de 330 litros, modelo nacional, coberta de imãs de publicidade de revendedoras de gás natural, farmácias, pizzarias, depósitos de material de construção, operadoras de telefonia móvel, pequenas bíblias com versos do Evangelho, e, quando se abre, surgem, duas gavetas com vasilhas plásticas e leiteiras, e duas gavetas com legumes e verduras, além de um pacote de linguiça, fatias de mortadela, um pedaço triangular de queijo, um bastão de salame, um pacote de bacon, um resto de pizza de mussarela, um pacote de pão de queijo, pote de sorvete de morango, manteiga ao lado do requeijão, um copo quase cheio de iorgute natural sabor uva, uma lata de leite condensado, duas latas de cerveja de 350 ml, 1 litro de suco pronto para beber sabor laranja, e na porta, um litro de refrigerante, um saco de leite aberto, duas garrafas de água.

    Junto a pia, um fogão, 4 bocas, azul, forno auto-limpante, recoberto por uma lâmina de vidro a descansar. Sob a pia, o cesto de lixo. Caso, curiosa, Cibele desejasse saber o conteúdo da cesta de lixo, encontraria, da borda para o fundo, a saber, duas cascas de ovo, restos de pizza, meio tomate podre, cascas de goiaba, bandeja de isopor para carne moída, plásticos de carne de hamburguer, duas cascas de banana, um frasco (para pílulas) vazio, um pote (de maionese) vazio, restos de alface, folhas podres de repolho, latinha (de sardinha) vazia, latinha (de refrigerante) vazia, papel alumínio embolado, uma bucha em pedaços, uma bucha de bombril enferrujada, meia maçã podre. Sobre a mesa, a máquina de escrever, toda sitiada por pilhas de livros, dicionários, enciclopédias, folhas rabiscadas, folhas manchadas, folhas rasgadas, folhas ordenadas, "Hector escreve na cozinha!", ela pensa, e ele entende.

     Perdido na lacuna entre armário e área de serviço, ele a observa. Isto é, entre a tábua de passar roupas, cabides plásticos, lavadora mecânica, com cinco quilos de capacidade, cinco programas de lavagem, e uma mesa com sabão em pó e amaciante para roupas, e entre o as duas portas de acrílico, em brilho envernizado, com jogo de talheres, aparelho de jantar com 32 peças, jogo de panelas, com 7 peças, em inox, além de duas frigideiras, um conjunto de copos de 200 ml cada, e uma garrafa térmica de l litro, e um jogo de facas, em inox, também colheres, vários tamanhos, sopa, café e chá, em inox, e aparelho de jantar de porcelana, porta-velas com cinco unidades, e um rolo de papel-toalha.

    Aquele caderno na gaveta do armário da cozinha, aquela primeira à esquerda, ali anotadas as tantas receitas na caligrafia que deixa trair um esforço por se fazer legível, com cuidadosa precisão de quantidades e modo de preparo e rendimento.

DOCE DE ABÓBORA

Ingredientes

2 xícaras de abóbora cozida
4 1/4 xícara de açúcar
1 xícara de leite de coco

Modo de Preparar

Misture a abóbora amassada e 4 xícaras de açúcar
numa panela e leve ao fogo, mexendo sempre.
Quando a mistura soltar da panela, junte 1/4 xícara
de açúcar e o leite de coco.
Continue cozinhando até o doce alcançar o ponto
de bala mole.

Retire do fogo e mexa bem. Deixe esfriar e
sirva.


Rendimento

8 a 10 porções

e na página ao lado,


BROA DA BOA (CASEIRA)

Ingredientes

2 copos de fubá mimoso
2 copos de farinha de trigo
1 copo de polvilho doce
2 copos de leite
1/2 copo de óleo de soja
1 1/2 copo de açúcar
1 colher (sopa) de fermento
1 colher (sopa) de erva-doce
3 ovos
1 pitada de sal

Modo de Preparo

Misturar a erva-doce com fubá. Acrescentar água, leite,
sal e açúcar. Bater tudo no liquidificador ou batedeira.
Levar ao fogo para cozinhar bem. Deixar esfriar.
Dissolver o fermento em leite morno. Acrescentar os
ovos e a farinha. Amassar bem. Deixar crescer. Colocar
em forma untada, e leve ao forno, para assar em
temperatura média.

Rendimento

A depender do tamanho dos pedaços quando cortados.


    Ela devolve o copo e HD tem um bom motivo para deitar os olhos sobre a figura. Camiseta cinza com semblantes de faces à meia luz, sobre uma camisa negra de mangas longas, e uma calça jeans escurecida, tudo findando num tênis all star modesto e envelhecido. "Obrigada", ela diz, e senta-se na cadeira que ele oferece. "Incomodo o seu trabalho?", ela sorrindo.

    - De forma alguma, minha querida. Finalizo num instante. - e trata de acrescentar um derradeiro parágrafo ao texto. A folha é retirada da máquina e jogada sobre a pilha à direita. A da esquerda, certamente, é a destinada a reescrita. - Vamos para a sala.

    Estante, em três níveis, com TV de 19 polegadas, à cores, marca nipônica, ao lado o aparelho de som, AM/FM, duas caixas, potência de 220 watts, disco para dois CDs e toca-fitas K-7, e tanto em cima, quanto em baixo, compartimentos fechados a conterem documentos, contas pagas, contas a pagar, certidões de nascimento, livros e apostilas, duas réguas e um corretivo, uma Bíblia católica, amarelada, e uma Bíblia protestante, ao lado de livros religiosos, com citações de pregadores famosos e teólogos de mídia, além de enciclopédias desatualizadas, mas "de família", e, à mostra, bibelôs, desde anjinhos infantis até aves cubistas feitas de conchas, certo artesanato de praias turísticas, "Minha irmã Débora foi, com amigos, ao litoral nordestino", ele explica.

    Sob a janela e seu acortinado, rosa-pálido, o sofá, em azul celeste pontilhados de pétalas azuladas, arroxeadas, desbotadas, margaridas repetitivas, e duas enormes almofadas com bicos de tucanos e garras de onças, uma mesinha onde repousa um telefone fixo, cor bege, modelo simples, sem identificador de chamadas, sem agenda, sem viva-voz digital, e um ventilador encostado à parede, à esquerda de quem entra, e Cibele quase se acomoda, esfregante e acariciante, mas deseja, sem mais demora, ver o quarto dele. Ali, o segundo no corredor, depois daquele das irmãs, que dormem lado a lado, e que quarto simples o do Hector: cama de solteiro, colchão de solteiro, travesseiro de fibra de poliéster, edredom de solteiro, lençol sem elástico, mesinha com livros, e pastas com originais, e pastas com cópias, e pasta com rascunhos, e pastas com ideias, e um livro aberto, "Retrato do Artista quando Jovem", e um soberbo Joyce, na capa.

    E HD abre as gavetas, da velha cômoda, ao lado do beliche e Cibele ali está diante de pastas e mais pastas com poemas, de poesia grega a neo-concretista, passando por árcades, românticos e modernistas, de todo o Ocidente, e entulhados mais originais.

    - Toda uma juventude dedicada à literatura. - ela sussurra.

    E não acabou. Ali a figura imponente do guarda-roupa, resguardando em suas entranhas, a saber, cabides de camisas pólo, cores azul, bege, marrom, preta, camisas de manga longa, duas camisas sociais brancas, três jaquetas, duas pretas e outra azul-marinho, além de calças jeans, dobradas, em número de cinco, duas anil, duas pretas, e uma cinza desbotada, além da gaveta com duas toalhas felpudas, ambas na cor azul celeste, e uma gaveta com meias, em sua maioria de cor preta, bege e marrom, além de cuecas de cores variadas. Apontando o maleiro, HD ergue o braço e abre as pequenas portas, onde está o remanescente de sua biblioteca, que foi repartida com Darío Sabine, o amigo agora na Europa e as bibliotecas públicas da região. - O dinheiro que já gastei com livros, na minha febre de comprar o primeiro título que me aparecia, daria hoje para comprar um lote aqui na periferia, e até levantar um murinho...

    E Cibele, quando ergue o olhar, pode notar os títulos de volumes reclinados uns sobre os outros, ou empilhados juntos a uma mala velha, e decifra os títulos e autores, "Memórias do Cárcere", Graciliano Ramos, "Policarpo Quaresma", Lima Barreto, "Memórias Sentimentais de João Miramar", Oswald de Andrade, "O Tempo e o Vento", Érico Veríssimo, "Incidente em Antares", ao lado, e do mesmo autor, além de "Revisão de Sousândrade", dos irmãos Campos, "Catatau", romance de Paulo Leminski, mais conhecido como poeta, e o clássico "Grande Sertão:Veredas", de Guimarães Rosa. E do outro lado, empilhados, "O Sorriso do Lagarto", J. Ubaldo Ribeiro, "Ulisses", James Joyce, tradução do Houaiss, e também o "Finnegans Wake", em tradução comparada, e também "Quarup", Antonio Callado, ao lado de "Arquipélago Gulag", de um russo, o Soljienitsin, o primeiro nome é Alexander, e "Vidas Secas" e "Angústia" do Graciliano Ramos, e encostado, "Fogo Morto", José Lins.

    Além da farta bibliografia de historiadores nacionais, a constar, em destaque Caio Prado Jr. E Sérgio Buarque de Hollanda, e Gilberto Freyre e Boris Fausto ("Revolução de 1930", meio tombado), pode-se encontrar volumes de ensaios de Gianotti, Jurandir C, Sérgio Paulo Rouanet, Rubem Alves, Contardo Calligaris, Gilberto Dimenstein, e outros et cetera.

    - Quer ver os meus primeiros poemas? Sei que são terríveis, mas vale a experiência...

    Diante da concordância de Cibele, HD abre a terceira gaveta da cômoda e despeja uma sacola, daquelas simples de supermercado, sobre a cama, e ela se reclina para embaralhar os papéis, com versos datados de dois mil, e alguns de noventa e sete e até remotos, ao fim, aqueles sonetos caricatos, de noventa e quatro.

    - Rabiscos de estudante matando aula na biblioteca...

    E ao lado as pastas com poemas seletos, de Fernando Pessoa, Mário Quintana, Walt Whitman, Paul Celan, Emily Dickinson, Pablo Neruda, Allen Ginsberg, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Moacyr Félix, Garcia Lorca, Mário de Andrade, ali Cibele se estende lânguida e se espreguiça, fechando os olhos, convidativa.

    - Não dormi a noite toda, só pensando em você, querido.

    E seus olhos tremem, e suas pálpebras em suave encontro, vibram, toda ela vibra, um bocejo. - Tanto trabalho, querido. Você a copiar, arquivar esse tanto de poesia. Tanta dedicação.

    E quando se permitem os dedos deslizam nas folhas, mas os olhos se lacram, e Cibele cochila um instante. Ao seu lado, HD contempla aquele sono de Sibila, num reino onde ele não pode entrar. Os lábios saltitam em momentos, os dedos se contraem, as pernas se juntam. Ela dorme.



    Meia hora depois, enquanto HD recolhe as pastas e guarda tudo com todo o silêncio possível, Cibele estremece e abre os olhos, e sorri em desculpas, se contorcendo.

    - Nem li os seus poemas, não é, querido? Mas me desculpe. Ah, que sono, hein!

    - Então vamos agitar um pouco. Preparar o almoço. Cortar batatas, temperar a carne, preparar a limonada...

    - Essas sãs as suas irmãs, querido? - Cibele aponta duas fotos na estante. Uma menina, ao lado de uma noiva. E outra sozinha, num daqueles quiosques de praia.

    - Sim. Essa é a Luana, ao lado da minha prima que casou. E essa é a Débora, no sul da Bahia.


    De súbito uma canção dos Doors invade a fala, numa solo de piano, quando ele gira o sintonizador do aparelho de som, "Light my fire", e sai cavalgando das duas caixas, na manhã de quarta, uma manhã ainda a firmar-se, um sol cochilante, igual essa ao lado de HD que esfrega o dedo nos dígitos rubros e luminosos que parecem espectros no aparelho.

    - Então, vamos lá? Lembre-se que aqui em casa homem também cozinha. Aliás, já morei sozinho, em pensão, e às vezes eu mesmo precisava cozinhar. Não se pode ficar sempre pagando restaurante...

    E enquanto Morrison cavalga na tempestade, "Riders on the Storm", os espirais da casca de batata cai no bordo da pia, e Cibele lança olhares ao quintal, acomodada em sua cadeira, junto a porta, e HD comenta sobre os tempos de pensão.

    - E quando fazíamos uma vaquinha para fazer uma vaca-atolada? Quem compra a mandioca? Quem compra a carne? Quem vai para o fogão? E meia dúzia se animava, mas quando estava tudo pronto, de repente, um batalhão inteiro aparecia, prato e garfo em mãos!

    - Saudades do tempo em que morou assim, meio sozinho, longe da família?

    - De certa forma. Lá ninguém se mete na sua vida. Você paga em dia e pronto. Depois, aquele ano, no apê do Flávio, é que foi solidão. Eu cozinhava, então só comprava coisa pré-cozida, esse monte de comida quase-pronta, cheia de conservantes-estabilizadores-aromatizantes, e haja estômago para tanta química!

    - E a limonada, querido? Quer que eu faça?

    - Não, nada disso! Hoje você só assiste o mestre-cuca aqui. Sentadinha aí. É hora de cozinhar a batata e colocar água no arroz.

    HD na cozinha realmente deve ser uma diversão e tanto, pois agora Cibele está até mais desperta. E o agito de um "Breakthrough" ou de um "L.A .Woman" serve bem para afastar os bocejos.

    - Agora a cebola para a carne. E, bem, vamos, sim, lavar as mãos, agora espremer um limão, e este para a limonada. Vamos rápido com isso, que é possível que o estrondo do meu estômago assuste alguma mocinha!

    Personagem ou não, HD quer alegrar, que ser hilário, mesmo que não consiga, para disfarçar seu desconforto, em seu desastroso papel de cozinheiro, enquanto seria mais fácil pedir uma pizza.

    - Divirta-se. Hector Dias na cozinha é também diversão!

    E separa cebola, cebolinha, coentro, salsinha, milho em conserva, tempero com pimenta, e acrescenta a carne no caldo da batata, enquanto cuida dos espirros do feijão, e depois vai ajuntando, uma coisa ou outra, depois tudo.

    No entanto, o programa de rock'n'roll findou. Notícias do meio-dia. Dólar, bolsa de Valores, Oriente Médio, Barril do Petróleo, Discurso do Presidente, Compras de Natal, Promoção de Viagem para Búzios, Preço da Cesta Básica.

    - Por falar em Cesta, hoje chega a cesta de Natal!

    E o arroz já está no ponto, e o feijão está domesticado, e a batata saltita no caldo denso denso, e qual será a trilha sonora deste programa de culinária?

    - Que tal um pouco de música clássica? Aqui, na rádio ao lado, vejamos. Mozart!

    Realmente violinos alucinados pedem passagem e emoções sem brida temperam o almoço fumegante, e HD até gesticula, em paródias de maestro tresloucado, enquanto valseia pela cozinha, tudo só para ser recompensado pelos sorrisos de Cibele.

    - Mozart ou Beethoven? Dúvida, às vezes. O Michael prefere o Beethoven, o gênio surdo. Mas Alfonso não abre mão de Mozart, o gênio precoce. Talvez a solução seja o meu xará Villa-Lobos...

    A sinfonia faz lembrar uma certa tarde no parque, um certo poema, mas bomba alguma cairá dos céus, pelo menos não nesta cozinha, onde HD degusta o menu, virando porções na palma da mão, assim como faz sua mãe Hilda, assim como fez sua avó Neide, e assim vai.

    - Agora Haydn. Sim, Haydn, compositor austríaco, morreu em 1809, se livrou do piano e criou a orquestra moderna, e deixou mais de cem sinfonias, e sonatas, e quartetos, e música de câmara... Menos impulsivo, creio. E vamos lá, sirva-se!

    Cibele não hesita e constata que HD, apesar de toda a encenação, até que providenciou um almoço decente.

    - Eu nem acreditei. Mas até que ficou bom, querido. Confesso que duvidei, mas está ótimo. Apesar de temperado demais.

    - Ah, sim, esqueci-me, que você prefere temperar a comida no prato! E a salada também! Azeite demais? E a limonada?

    - Ah, querido. Não se preocupe! Já disse que está tudo ótimo.

    E almoçam ouvindo Haydn. Depois, Cibele se oferece para lavar as vasilhas e HD concordou, afinal não seria ele hoje a quebrar algum copo. E uma certa sonolência retorna, e ela quer dormir.

    - Muito bem. Deixemos tocar um jazz e você deite aí no sofá. Fique à vontade. E enquanto você cuida da sua sesta, eu vou buscar a cesta de Natal lá na creche, no serviço da minha mãe.

    Cibele adormece realmente. Uma hora depois, HD retorna.

    - Ah, querido, que soninho bom!

    E deixa-se a espreguiçar enquanto ele despeja o conteúdo da cesta em cima da mesa. - Ah, que afobação, querido!

    E parece que tem de tudo! Um pacote de uva passa, um pacote de castanha-da-índia, um pacote de nozes, um pacote de castanha-de-caju, uma lata de pêssego em calda, um vidro de azeitona, uma lata de figo em calda, uma garrafa de cidra, uma garrafa de vinho tinto, safra gaúcha, uma caixa de bombons, um pacote de biscoito recheado sabor morango, um pacote de biscoito recheado sabor chocolate branco, um pacote de biscoito de champanha, um pacote de biscoito água-e-sal, um pacote de waffer sabor côco, um pacote de biscoito de maizena, doce de leite, goiabada, figo em calda, doce de amendoim em cubos, doce de banana em formato palito, geléia, duas caixinhas de gelatina, uma sabor limão, outra, abacaxi, pacote de milho para pipoca, farofa pronta de mandioca, um pacote de mistura para bolo sabor laranja, lata de atum sólida, lata de sardinha, lata de milho verde, lata de ervilha,  um saco de balas sortidas, um saco de chicletes dois-sabores, tubo de catchup, tubo de mostarda, vidro de maionese, lata de óleo de oliva, safra portuguesa, e, finalmente!, um panettone com frutas cristalizadas.


    Rapidamente, após apossar-se dos bombons, HD trata de subornar Cibele, para que ela espere até que ele tome um refrigerante e relaxante banho.

    - Fique aqui ouvindo esse "Closer" do Joy Division, que é uma espécie de Doors com depressão, e aqui um de baunilha e um de café, e quietinha aí!

    E assim Ian Curtis lamenta as gerações enquanto Cibele escolhe entre o bombom de baunilha e o de café, e HD vai se ensaboando, quase cego pelo xampu.

    Ela o surpreende, quando ele sai do banheiro, a cobrir os olhos, cheia de pudores. - Ai, um homem nu! - e entrega-se à hilaridade.


    Na varanda, ele estende a toalha, enquanto ela se aproxima, o envolve pela retaguarda, e observa os jovens limoeiros, as tímidas laranjeiras, a cabisbaixa goiabeira, o empolgado mamoeiro, que se destacam na flora do quintal, circundado por um muro nas laterais, e um barranco, ao fundo, ocupado pelos ramos do chuchu altaneiro.

    - Quero o de amendoim. - ele diz.

    E voltam para a caixa de bombons, e para o sofá, onde se deitam, ouvindo alguma banda progressiva, que ela desconhece, visto outras preocupações.

    - Sabia que os seus olhos são lindos? - ela diz reclinada sobre ele. - Têm um brilho!

    Beijos são compressões de lábios e deslizar de línguas, enovelar de mucosas, e turbilhões de salivas, e um pouco de ginástica facial, com movimentação de n músculos, além de uma descarga hormonal significativa e um aumento considerável dos batimentos cardíacos.

    Depois seguem-se outros apertares, outros apalpares, outras sondagens, em expedições outras, dedos sem rumo, roupas incômodas, e HD pensa em literatura nas horas de amor, e uns versos sacanas do poeta de sua devoção, com ligeiras modificações, "era tarde de dezembro e ela me beijava o membro", pois é exatamente isso o que aquela Sibila faz! Contato de mucosas, num calor que transborda, e lábios envolventes, apertado, lambendo, sugando, com um sentimento de orgulho em semelhante escolhida servidão, "pare, senão eu ..."

    E a roda da fortuna giram, quem agora está por cima, depois pode estar por baixo, e é o que ocorre, quando ele inverte o jogo e está em cima. A procurar, sempre afoito, o zíper do jeans que ela ostenta, e zip, eis, uma calcinha negra, e um mover de dedos, não, é preciso mais espaço, então tiremos logo isso, e um par de tênis surrados se alteiam, um jeans apertado desliza, "por que você não tira a camisa", é ele quem pergunta, pois a dele ele já tirou faz tempo!, e pele sedosa à mostra, é tudo o que ele gosta, um odor forte de mulher, um íntimo palpitar, um secreto segregar, que ele suga, que ele acaricia na ponta da língua, "ah, por favor", ela geme, gozo ou constrangimento ?, mas ele descobre o relógio na parede, e é quase dezoito horas, esse horário de verão é foda!

    - Não hoje, querida. A menos que você queira conhecer as minhas irmãs! Deixemos para o fim de semana.

    E Cibele mesma vestiu o jeans apertado.

    - Você quer ver a vista panorâmica dos Barreiros?

    E seguem logo para a parada de ônibus.


 ...


    Cumprindo a promessa, Stevam Lucena chega a casa de Bianca Maria, antes das vinte e uma horas, encontrando ainda a sua querida com as mãos na massa, literalmente, "Ah, querido, é a massa para o empadão de frango", e trocam um beijo tímido, na cena de programa televisivo de culinária.

    Poderia se mencionar os presentes, mas Stevam não traz qualquer presente. Talvez, ou certamente, por descuido do narrador, não foi avisado aos leitores que a troca de presentes já se realizara. Assim que chegaram da Igreja da Boa Viagem, quando Stevam presenteou a Bianca com um CD de rock nacional dos anos 80, e ganhou, em lugar do volumoso Ulisses, de James Joyce, em tradução de Antônio Houaiss, dois pequenos volumes, mas não menos importantes de poemas latinos e o clássico do terror, "Frankenstein", de Mary Shelley, que Bianca não entregou de imediato, mesmo ao assinar a dedicatória, pois pretendia reler o livro antes, "se você permitir, meu bem."

    O presente para Dona Efigênia? Um livro de poesias, e não é de se surpreender se o autor for o finado TH. O presente para Stevam? Uma minúscula agenda de bolso, ideal para números de telefones. E o presente de Bianca para si mesma? Uma coletânea de poemas de Florbela Espanca.

    Reclinado na cama de Bianca, são justamente os poemas da poetisa lusitana que absorvem a atenção de Stevam Lucena, mergulhado nas canções de Madredeus ou Legião Urbana, enquanto as anfitriãs estão ocupadas, mãos na massa, cheias de cuidados, em resmungos sobre molhos, sobre temperos, sobre recheios e coberturas, sobre o cozimento das batatas para a ceia da vovó, sobre a torta de chocolate, e outros tópicos culinários.

    Quase meia-noite, a campainha ressoa. Uma visita inesperada? Talvez. Mas surge o vulto do pai de Bianca, o Sr. Timóteo Messias.

    "Feliz Natal para o senhor!", adianta-se Stevam Lucena, mão estendida, para saudar o pai-sogro. Nem tão sogro, pois o recém-chegado, como já percebido, não mora com a família, aliás, com esta família. E o pai-sogro chega gracejando, ao notar as atarefadas mulheres às voltas com massas e batedeiras e fornos em aquecimento, "Que tal se eu pedisse uma pizza?", mas o gracejo não faz muito efeito.

    Mas Bianca Maria deseja dar mais atenção à Stevam, por isso, mal se livra da massa, atirada nas entranhas do forno, vai para o quarto, reclinar-se ao lado do leitor de tristes sonetos lusitanos, ao som de baladas oitentistas, enquanto pai e mãe, com as cartas na mesa, dispostos a colocarem a conversa em dia. Até porque estão ali cordiais e afetuosos em prol da satisfação de Bianca Maria, que todos sabem, sofrera muito com a separação. E conversas migram de políticas locais para dramas de outros casais, casos de família, e a separação de fulana e beltrano, e a gravidez precoce de siclana, e que um certo João ganhou na loteria, e que uma tal de Elza vai vender a casa, toda endividada, depois de acidente com o filho... E reclinada, ao peito de Stevam, Bianca deixa-se ouvir as vozes que sobem da cozinha, quando as canções já silenciam, e ela tem ânimo para se levantar, culpa do aparelho que somente comporta três CDs por vez, e todos já tocaram, e ela toda satisfação, pois o pais e a mãe estão juntos, e são cordiais, e gentis, em conversas assim.

    Assim, também atento, Stevam se reclina sobre ela, e conspiratório em sussurros, "Já percebeu que evitam qualquer assunto que envolva a ambos? Evitam falar de si mesmos. Falam de política, de falhas do governo, dos prêmios lotéricos, de outros casais, mas nunca falam deles mesmos. O que os uniu afinal?", ele se permite a perplexidade. Mas Bianca não se importa, afinal, os pais estão menos rancorosos, e se não unidos, pelo menos não trocam farpas. Eis o pleno 'espírito natalino'. "E o que nos une, meu bem? E por quanto tempo?". Ela lança um sorriso triste. "Ah, você novamente com essa conversa, só me deixa inseguro", mas não há de ser nada, ela já se levanta e vai trocar os CDs no aparelho de som.



    Manhã de Natal. O despertador ressoa tarde. São dez horas. É preciso preparar tudo para a ceia, aliás, o almoço da vovó Fátima, a qual Stevam Lucena terá em breve o prazer de conhecer. Moradora de um conjunto habitacional na região da Pampulha, a vovó Fátima convidara a família para um almoço de confraternização e espera a presença de sua filha Efigênia e sua neta Bianca, além do famoso namorado desta, o poeta Stevam Lucena, "Que menino simpático, o seu namorado!", ela dirá depois, na reclusão do quarto, ao ouvido de sua adorada neta.

    Um pouco cansada, a Bianca, após uma noite de carícias excessivas por parte de Stevam, ao seu lado na cama, após uma ceia com empadão e vinho, ou refrigerante, para Bianca, no caso. E o pai-sogro em causos pitorescos de sua agência de vigilância, em narrativas sobre golpes de larápios nas madrugadas e roubos de veículos e danos ao patrimônio alheio, um assunto que resvala em violência na periferia, e nada tem a acrescentar ao bom espírito natalino. Mas a ceia é encenada com perícia, e nada de tópicos previamente censurados, ou sutilmente deletados.

    Sim, cansada a mocinha. Um certo mau-humor, logo pela manhã. Afinal, precisar levantar às dez horas? No domingo?, "Mas vovó merece", ela murmura e vai afogar o sono num banho quente, enquanto Stevam, todo prestativo, coopera arrumando a cama, dobrando as cobertas, alisando os lençóis, abrindo de par em par as janelas, para deixar entrar o sol.



    "Muito prazer em conhecê-la, minha senhora!", eis aqui Stevam Lucena, todo jovial, abraçando a vovó Fátima, estendendo uma caixa de bombons sortidos, em natalina embalagem, o seu presente. E, sorridente, recebe um embrulho, onde se lê, "para o namorado da Bia", que assim ela é chamada em família, e não "Bi-an-ca", como faz a mãe-sogra, e o presente o que é? Uma camiseta branca e uma zorba também branca. Daquelas destinada ao fundo da gaveta. Mas ele é todo agradecimentos.

    A família, talvez pouco interessada em confraternizações, não apareceu, e por isso a mesa nunca foi tão farta. A carne grelhada, as batatas cozidas, com uvas passas, a salada que seduz, no ondular verdejante das alfaces e no esmaecido rubor dos tomates, além dos molhos e arroz temperado e feijão com toucinho. E onde a família? E onde o irmão que Dona Efigênia há muito não reencontra? Onde aquele primo cheio de status do qual Bianca resguarda obscuras recordações? Onde este pessoal todo? Onde o Sr. Timóteo Messias? Tão esperado e tão ausente? "Se ele viesse, a minha felicidade seria completa", Bianca sussurra ao ouvido de Stevam, "veria então a minha família reunida. Nem imaginam que alegria seria! Mas...", e ela mastiga em silêncio, somente quebrado por suspiros de culinário deleite.

    E uma sessão de fotos que não pode faltar, enquanto todos, exceto Bianca, servem-se de vinho e esperam a prometida torta de chocolate, antes que a vovó Fátima ligue o televisor e todos se reclinem nos sofás para assistirem um filme daqueles de comédias natalinas com comediantes made in hollywood em ironias de Papai Noel e assemelhados, e logo estejam dormindo e suspirando em lenta e logo saudosa digestão. Mas, por enquanto, estão em poses para as fotos. E a mãe enquandra a avó e a neta ou a filha e o namorado, ou a filha eterniza a mãe e a avó, ou o namorado fotografa a avó, a mãe e a neta, as três gerações, as três Graças, as três faces da Deusa, a vivência dos cinquenta e cinco, a maturidade dos trinta e sete e o frescor dos dezoito.

    E, agora sim, estão reclinados pelas poltronas, atentos as caretas e esgares do comediante, ou ogro, ou duende, sabe-se lá!, e Stevam sonolento no colo de Bianca ressonante.



    Do alto da colina, à sombra dos prédios, uma visão do distante zoológico, e lá um borboletário, a habitar os sonhos de Bianca Maria, quando abraça, em despedida a avó Fátima e esta abraça Stevam Lucena e eis que um ônibus se aproxima. Voltemos para casa.



    A segunda-feira amanheceu nublada, em momentos orvalhada, quase chuvosa, uma antítese do domingo natalino de sol. A umidade evapora no quintal e nas fissuras do muro e no ribeirão do asfalto, numa névoa matinal que entumesce nas ruas. Mas o casal ainda não saiu. Na verdade, Stevam Lucena e Bianca Maria acabam de despertar, um nos braços da outra, meio amassados por outra noite de carícias e ousadias e lentamente se apercebem de seus corpos.

    "Precisamos trocar umas roupas lá no centro, meu bem", é a primeira frase completa que ela ousa. E de fato, novamente, os parentes nunca acertam, ora erram o número, ora, e mais comum, erram o gosto, "eu detesto sai vermelha", ela diz, "daí vamos lá trocar", ela se levanta, a livrar-se da coberta, que oculta a nudez dele, "ai, um homem nu!", e cai na risada, o que é um bom sinal.

    Daí ele ter puxado ela novamente para a cama, e ela quase se precipita sobre a gata enroscada a almofada, a pobre Sherazade sempre cúmplice das ousadias dos humanos, depois gato é que é escandaloso nessas coisas. E ela é despida ali mesmo, em meia dúzia de gestos, e ela toda incrédula, "você está me desnudando?", ou talvez, "impressão minha, ou você está tirando a minha roupa?", não só tirando a roupa como também mordiscando os seios, lambendo o umbigo e afagando o íntimo das coxas, massageando os pezinho de bailarina, indiferentes aos olhares desdenhosos da gata em bocejos, abrigando-se na almofada caída ao chão.

    Depois estão sob o chuveiro, ducha das quentes, e ele insistindo para ensaboá-la, apertá-la, abraçá-la, sob o jorro fumegante, e ela cheia de melindres, "tenha modos, Stevam", e ele, "você é o meu presente de natal. O presente que eu queria de verdade!", e ela, "até parece que eu sou uma coisa que se pode dar de presente!", e ele, "ora, querida, é só uma força de expressão."

    Ela nua, a pentear-se diante do espelho, o cabelo negro curto, bonita mesmo, sem fascinação, mas simpatia, assim, sem os óculos é bonita, e o corpo nu, pequeno, branco leitoso, pele cheirosa e fresca, boa de sugar e morder, e aqueles seios pequenos, firmes, e arrepiados, e busto altivo, alicerçados no quadril exato, de nádegas redondas, e acimentadas nas colunas das pernas torneadas de bailarina com seus pés pequenos de bailarina, com dedinhos excelentes para beijar e morder.

    Bianca escolhe a roupa para sair, e hesita, achando a roupa um tanto 'feia', enquanto Stevam a observa, junto ao guarda-roupa, e ela diz, "Todas feias. É, no meu corpo...", "Ah, impressão sua..." e ela não entende, "Impressão minha sim! Por que? Quer dizer que a impressão que importa é a dos outros? Quer dizer que eu estou delirando?", e ele ameniza, "Não, não é nada disso. Você anda cismada...", mas o bom-tom diz que é melhor encerrar o tópico por aqui mesmo.

    Ela experimenta a blusa, branca e leve, sem mangas, com generoso decote, sem nem antes experimentar a calcinha, o presente da vovó Fátima, e deixa-se diante do espelho, pincelando o lápis escuro nas bordas dos olhos de egípcia, satisfeita em mesmerizar o mocinho ao seu lado, agora contente consigo mesma, aprendendo a seduzir o sedutor. E Stevam esqueceu a fala. tem diante de si a beleza da juventude. Pés desnudos marcando o chão, e pernas firmes altivas e curvas e o obscuro triângulo e a saliência do umbigo. "Não entendo esta sua preocupação com o seu corpo", ele revela, "isto de o corpo deseja e a alma quer repousar", ele desce um olhar pelas sinuosidades da beleza dela, "bem platonismo isso", e ela sorri, não alcança as palavras agora, ser beleza já é o suficiente, mas ele não terminou, "Querida, você não tem um corpo. Você é o corpo. Até um espiritualista diria que você é o corpo enquanto está no corpo!", "Ah, é? E quanto aos idiomas que não fazem distinção entre SER e ESTAR?", ela rebate, com sua autoridade de futura estudante de Letras. "Ora, querida, isso são sutilezas. Aliás, por que toda essa retórica? Quero dizer apenas isso: há alguma beleza maior que a de um corpo de mulher? Essas curvas e vales e colinas? Pele de seda e recantos úmidos? E quentes? Há, por acaso?", mas ela olha para ele, insciente da própria nudez, e da própria exaltação erótica, "safadinho", o olhar dela resume.

    Lojas de departamento são vitrines gigantescas onde as mercadorias piscam para os clientes e faltam saltar para os abraços dos futuros proprietários com seus frêmitos de carência, "Por favor, nos compre! Estamos em liquidação!", e os clientes correm em pavor, pois o teto do cartão de crédito ainda não alcança o firmamento.

    Lojas de departamento talvez não se mostrem um bom cenário para este casal de roupas sombrias, comuns em festinhas depressivas nas noitadas de sábado, mas o que fazer? Estão aqui para trocar uma saia vermelha que nada agradou a bianca Maria, um singelo presente da gerente do restaurante onde Dona Efigênia é chefe de cozinha, e a fila é um caracol, lenta e rastejante.

    E a noite anterior? Fadiga, internet, criação relâmpago de blogs, cópia de poemas virtuais, download de músicas obscuras, enfim nada demais, depois é a cama, e ele estava cansado, mas ela não deu trégua, vingou-se da noite de Natal, quando ela é queria dormir. Mas nada disso importa agora, estamos apenas repassando o argumento, fim de capítulo é dose. Agora estão comentando o conceito moderno de sanidade, depois de Bianca comentar que fazer compras "é coisa pra relaxar, querido!", e isso é digno de nota, pois ao Stevam parece que, agora, bem recentemente, a única atividade capaz de relaxar é uma maratona de sexo noite adentro. "Loucura é querer e não poder", ele diz, e ela, sorrindo, "Quando se tem, se compra; quando, não, vem o estresse. Aí detesto ver as vitrines, e tenho pavor de shopping! Mas nada melhor que sair com o cartão e levar um souvenir de cada loja!", e a fila anda, e rasteja, "Mas ao fim estamos todos ficando meio loucos", ele diz, "consumir como um paliativo ao imperativo de consumir", "Ora, Stevam, não vamos reiniciar aquela discussão de outro dia, vamos?", ela está alerta, e ele passa a lembrar das sessões com o psicanalista, "E o analista tinha um analista! Para aguentar tipos iguais a mim, ele precisava de um analista! Senão eis outro louco na praça!", e ela começa a achar que, se há um louco aqui, não é ela.

    "Mas quem está errado? A sociedade ou a gente? Pois dizem que os loucos somos nós, e que somos curados quando reingressamos ao seio da normalidade, isto é, ao convívio social. Mas alguém questiona a sanidade do meio social? Quem não faz compras bom sujeito não é?", e a fila rasteja, e Bianca em olhares de suspeita, "Ah, você faz me lembrar o meu psicólogo! O Sandro é assim mesmo! Não sei se ele quer me tratar ou me enlouquecer de vez!"

    Depois de livrarem-se da fila, das atendentes, da loja de departamentos, o casal segue até as dependências do arquifamoso Edifício Arcângelo Maletta, para uma sessão de fotos. "Veja se me enquadra, tendo o castelinho ao fundo", ela diz, passando a câmera aos cuidados dele, e referindo-se como "castelinho" ao apontar o centro de cultura, abrigado no estilo neogótico do edifício. E ele já tem modesta experiência. Aliás, antes, estiveram em explícita tietagem, minutos antes, diante das estátuas de Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade, quando um tirou fotos do outro, ladeado pelo autor de preferência, isto é, ela ao lado do Nava, e ele ao lado do Drummond.

    Mas existem mais escritores petrificados por estas ruas belorizontinas, e sobem a rua da Bahia, colhendo instantâneos da igreja de Lourdes, da apenas simbólica fonte a borbulhar, e dos pórticos, onde ela, comovida, se postou com sombrinha aberta, figura vitoriana, além de enquadrarem as faces de ambos, a câmera na extensão dos braços dele acionada pelos dedos dela, e clic, eternizados.

    Os escritores da Praça estão em concentrada prosa, ainda que a chuva volta e meia venha refrescá-los, mas eles não se incomodam mais. E Bianca está sentada entre o Sabino e o Lara Resende, sobre uma sacola plástica, sutilmente oculta, para evitar maiores danos a calça jeans. E a foto de Stevam é aquela que mostra sua camaradagem com Mendes Campos e o Pellegrino. Depois, nos jardins da Praça, um pouco mais de sorte. O sol vem bisbilhotar por um instante e ela solicita a um cidadão que fotografe a ambos, tendo como fundo a fonte jorrante com suas estátuas helênicas. E junto ao coreto, outra alma bondosa, e voluntária, que fotografa o casal, quando um vulto sombrio se aproxima. "Nem que tivemos encontro marcado aqui!", é o "Taz", ou "Gato Félix", ou de batismo Luiz Meira, o amigo de Bianca, que agora também faz parte das fotos.

    "Fica um pouco com a gente, Luiz!", Bianca abraça o amigo, mas ele se explica, "Hoje não é feriado, Bianca.", e desaparece entre os canteiros, depois que finda a sessão de fotos, prolongada, pois Stevam cismou de encontrar um ângulo de profundidade que abrigasse os velhos postes estilizados da fonte, onde repousa o busto de Pedro II, mas o cidadão voluntarista mostra-se bom fotógrafo. Pena que somente uma dessas fotos será encontrada entre os papéis de Stevam, aquela onde lê um poema diante do Drummond, que pelo ângulo, parece olhar por cima de seu ombro, atento a folha lida.

    Realmente, "Taz", o amigo de Bianca, é lembrado na conversa que se segue, mas Stevam está mais atento ao peso do corpo dela sobre as pernas dele, enquanto se sentam diante da fonte, agora desligada, onde esperam a Dona Efigênia, pois desejam ver a imensa árvore de Natal no alto da Afonso Pena, aliás, na Praça do Papa. Se eram duas horas quando saíram, agora já passa das cinco, e nuvens densas de corpulento cinza avançam sobre a cidade. Ela, inclinada sobre ele, comenta a beleza das mocinhas que passeiam pela Praça, e ele comenta os perigos do fascínio feminino, "O que nós não fazemos para agradar uma mulher?", e ela faz carinhos na barba inexistente dele, "É mesmo, vocês, homens, são loucos, louquinhos!", e lembra de casos que mãe Efigênia conta, sobre senhores ricos que se arruinaram com secretárias, ou empregadas, "Veja só! Por causa de um momento de sexo, eles desgraçam uma vida inteira!", e "Essa infidelidades suas! Vocês são reféns do próprio tesão!", e ela está adorando o jogo, agora é a sedutora, agora faz as regras aqui, "e nem vou perguntar se você é fiel, Stevam!!, ela ameaça, e nem haverá tempo, pois Dona Efigênia surge junto ao coreto, onde meninas gritam com um enorme cão peludo, e simultaneamente começa a chover.

    "Vamos ver a Árvore, minha filha?", "Ah, mãe, está chovendo!", "Ah, mas você é mesmo sem graça!", "E eu mandei chover?", "Então, vamos embora. O Stevam, Oi Stevam!, ele vai com a gente?", "Não, mamãe, o Stevam não vai. Ele vai pra casa. Tchau, Stevam!"





    - Ó de casa!

    E a voz de Cibele ecoa pela casa, junto à porta da cozinha, ensombreada pelas jovens árvores do quintal, enquanto Luana se levanta para atender, pois HD está cantarolando sob a ducha quente. E ele ouviu a voz com certo desgosto, não devido a presença tão esperada, mas por ainda não ter se aprontado. Culpa dele, claro. Levanta tarde, se afoga em bocejos, já passa das dez horas, todo amarrotado. Também passou o reveillon em singela ocupação: a preparar um bolo de frutas para a esperada Cibele.

    - Ah, querido, chego e encontro todo mundo de pijama!

    E HD vai se desculpar? Não, melhor beijar aquela boca.

    - Que lindo! Perfumado, cabelo molhado!

    E o que vamos ouvir? Claro que Luana vai emprestar aquele CDs de bandas nacionais, pois de MPB HD pouco entende, ainda mais de comparado a Cibele, que já se enturmou com Luana e trocam figurinhas sobre o último sucesso dos Tribalistas, enquanto comentam a ausência de Débora, que saiu para uma noitada.

    - Minha mãe, Hilda Maria.

    E outras gentilezas, e um buquê de flores que Cibele oferta, quando a mãe de HD volta das compras, com verduras orvalhadas e legumes vistosos, pronta para a tarefa de servir um 'strogonoff' no capricho até a hora do almoço, e Cibele repousa no colo de HD, enquanto ouvem pérolas do rock nacional, daquelas do fundo do baú, das quais somente os saudosistas se lembram, ou por dormirem tarde ou por madrugarem, enquanto dela as pálpebras se fecham ou dele os lábios ousam.

    E conversam sobre culinária, tipo, ela não gosta de comida temperada, já ouvimos isso antes!, ou lembra-se da avó, Dona Maria, e suas pamonhas fabulosas, ou comentam a obsessão de HD pela literatura e seus estudos sobre guerras e que não levam à nada, imaginem!

    - Mas o Hector é muito inteligente! Eu me impressiono mesmo.

    E a voz de Cibele sobe e desce na cozinha, pequena e modesta, enquanto Débora, recém-chegada da noitada, vem almoçar com olheiras de sono recusado, e Luana requisita o som para ouvir certa banda pop latino-americana, e almoçam assim, enquanto HD promete uma surpresa para o lanche da tarde, mas Dona Hilda revela logo ser um bolo de frutas, "que o Hector ficou até de madrugada preparando para você, menina", e ele, nosso HD, vê-se obrigado a confessar essa proeza, que é digna de nota. Os foguetes espocam lá fora, os brindes se sucedem multiplicados em miríades em espelhos de hotéis, bares e botecos, os casais se enlaçam em trocas de votos e promessas, os sorrisos se estendem de salão a salão, as imagens via-satélite povoam as casas de oceanos e continentes distantes, onde multidões gritam sob o Big Ben, ou braços saúdam sob a torre Eiffel, ou vozes ecoam junto ao teatro de conchas, ou jovens se embebedam na Avenida Paulista, ou turistas se confraternizam nos calçadões à beira-mar, tendo ao fundo a silhueta do Pão de Açúcar, e tudo junto e simultâneo, e dessa vez não no alto da pedreira, localizando estrelas, ao lado de Darío, ou lendo José Saramago, trancado no quarto, ou assistindo TV muda, mas com som ligado e ouvindo The Doors, mas inusitada e curiosamente ocupado em preparar um bolo com frutas cristalizadas!

    "Melhor comprar logo um panetone!", todos acharam que assim seria o olhar irônico de Cibele, mas a moça disse, "Ah, o Hector é uma graça! Por que será que eu não caso com ele?"

    E é mesmo? Por que será que esta mulher não junta os panos comigo?, HD vai matutando, mineiramente, em posição muito digna, mas a se oferecer para lavar as louças, como a demonstrar sua atitude de marido moderno, que não hesita em cozinhar, lavar louça, limpar fogão, passar roupas, varrer o piso e espanar o pó. - Lembre-se que eu já morei sozinho. E sem empregada. Daí a minha dieta de enlatados e macarrão pré-cozido...

    E que tal um pouco de Beatles? O aparelho de som, agora novamente requisitado por HD, é deslocado para o quintal, onde ele também instalou um colchão, o próprio colchão!, junto à varanda. E Cibele observa o pé de limão, a goiabeira juvenil, a precoce altivez do mamoeiro, a moita de erva-cidreira, e não gosta nada quando HD arranca folhas do limoeiro apenas para aspirar a fragrância das folhas, tenras e jovens, esmagadas entre os dedos.

    - Não seja tão cruel! Ferindo a árvore assim!

    - Mas é só uma folhinha! E ela sofre? Ah, Cibele, você é outra que se esforça por salvar este pobre planeta! Lamento dizer que é tarde demais.

    E Cibele, com seu ardor de ecologista, algo de neo-pagã modernizada, com estilos neo-hippies, e franca admiração pelo Greenpeace, não disfarça seu desconforto com semelhantes ironias dele, já comuns e previsíveis. Mas a voz de John Lennon pede uma chance para a paz e Dona Hilda aparece com álbuns de fotos, que se espalham sobre o colchão, entre o casal, enquanto HD ocupa-se em massagear, e lamber, e beijar, e morder, os pés de Cibele, maltratado e torturados, dentro daquele all star azul surrado.

    - Ah, que gracinha! Você era lindo, querido!

    - O que quer dizer com 'era' lindo? Não sou mais?

    - Ah, claro que é! Ora! - e estala um beijo - Mas quando criança nós temos toda uma beleza assim 'pura' que vai se perdendo. Olhe aqui, você abraçando o coelhinho de plástico! E essa! Você flagrado mexendo no telefone! Que olhar de esperteza! E o dedo na boca!

    E Dona Hilda toda orgulhosa. - Ele era arteiro que só vendo! Aprontava cada uma. Meu marido já ia castigar o Hector, mas o meu pai o defendia, e até briga dentro de casa...

    E realmente fotos de um casarão se repetiam. E vultos idosos no alpendre, ou sob um pé de pitanga. E HD no colo da jovem madrinha, e HD andando de bicicleta de rodinhas, e HD jogando água na irmãzinha, a ridente Débora, três anos mais nova, e HD abraçando o avô, pai da mãe, e.

    - E o meu álbum de casamento. - e Dona Hilda acrescenta mais passado a pilha de pretéritos e outroras e memórias e tempos perdidos. O que farei com essas fotos?

    E John Lennon canta 'In My Life' enquanto Hilda folheia foto por foto, e aponta as faces, de pai Ênio, de mãe Neide, da irmã Helene, da irmã Hilsa, do irmão Hilton, do irmão Helton, e do tio, da tia, da prima, do.

    - Mas o casamento da senhora foi muito bonito, dona Hilda!

    E a mãe deixa-se inchar de orgulho, e percebe que três é demais, e alguém precisa ver se a gelatina está digna de ser servida, e o casal se enlaça no colchão, e os vizinhos fazem uma festança na casa ao lado, e sobre o muro algumas faces curiosas e afogueadas se mostram, nada discretas, mas o casal pouco se importa, há apenas um muro, um quintal, uma varanda, e outro muro. E uma voz, sim, John Lennon, declarando não acreditar em nada além de si mesmo, "I just believe in me" e uma certa Yoko, e logo no amor, e logo em alguém além de si mesmo, logo acredita no mundo, acalmemo-nos, o cara não é tão solipsista assim, que papo é esse de "the dream is over"?, pois em seguida está cantando "Imagine", onde sabe que não está só, "I'm not the only one".

    - Qual a sua lembrança mais remota? - HD diz, passeando a língua pela orelha de Cibele, cheia de risinhos, enquanto aconchega-se ao corpo macio - Eu me lembro de ver a minha irmã, a Débora, numa banheira, acho que rosa, junto ao jardim, sob o pé de pitanga, diante do alpendre, onde a minha tia-avó costurava um vestido, naquele casarão que você viu nas fotos, lá no Renascença, fica o casarão. Na época eu devia ter uns três anos...

    Uma nova canção desliza sob a varanda, onde Lennon canta para a sua mãe, "Mother you had me, but I never had you", enquanto Cibele se aconchega, moldável, ao corpo de HD, reconhecendo a melodia, mas a mocinha também se esforça por evocar lembranças.

    - Eu também me lembro de meu três anos. Os passeios com minha mãe e meu pai, a festinha de aniversário, a cama cheia de presentes, brinquedos e balinhas de várias cores e sabores, e eu não sabia qual experimentava primeiro, daí, na dúvida, ter misturado todas, e o bolo de chocolate, e claro que passei mal...

    Ela nada diz, se satisfaz em me ouvir? Hoje apenas eu devo confessar...

    - Sim, o casarão da Renascença, eu me lembro. E meu avô perdeu tudo, imagine! O filho de portugueses, mecânico-especialista, o honrado senhor Ênio Guimarães, filho de comerciante, que desposou a senhorita Neide Dias, filha de funcionário público de carreira, e deixou minha mãe Hilda Maria casar-se com um modesto funcionário público (também!) Ramiro de Almeida, e daí gerar-se este cidadão, este que fala, registrado em cartório, Hector Dias Guimarães de Almeida, cidadão belorizontino, logo mineiro, logo brasileiro, logo latino-americano, sem dinheiro no bolso, sem amigos influentes, e que rasteja, ah, deixa pra lá! Mas é que me assusta! Meu avô perdeu tudo! Meu avô é um fracasso, meu pai é um fracasso, então, horror!, será que eu serei um fracasso também?

    Mas Cibele nada diz, mas de súbita atenta a homenagem de Lennon às mulheres, "Woman I can hardly express", e ela se aconchega, HD a entender a linguagem do corpo, o afeto que a canção oferta, "Woman I know you understand The little child inside of the man Please remember my life is in your hands", sim, em suas mãos, e na presença oculta em seu corpo, e na paz prometida em seus braços, eu sempre estarei em débito, o que mais poderia dizer?

    E Cibele parece cochilar, ou não, pois um mover-se muscular propaga-se de um ombro a ombro, como um sutil meneio de cabeça, "Será que ela acha que eu sou um fracasso?", HD é assaltado pelo desgosto de ver-se diminuído, e daí precisar se explicar, diante do mudo julgamento de Cibele, aquela presença macia e inebriante, mas ainda imperiosa.

    E enquanto John Lennon intepreta "Beautiful Boys", HD se rende a depoimentos em prol de sua própria defesa. - Por que estou falido? Sim, pois o meu pai é um falido. Mas eu, por minha vez, sou um falido. Todo o dinheiro que agarrei nos últimos cinco anos e que eu deveria ter guardado, ou investido, ou comprado um lote, ou comprado um carro, eu gastei! Sim, gastei com caprichos, com amigos, em compras, sobretudo livros, muitos dados de presente!, e muita bebida, e muito papel, e algumas roupas, além de gastos com xerox de faculdade, e apostilas, e fita de máquina, e impressão de trabalhos, além de projetos coletivos, como montar uma companhia de teatro, convencendo atores, perseguindo diretores, enquanto apresentava as peças que adaptei, além daquela que comecei a escrever, no carnaval de dois mil e quatro!, gastando dinheiro, sem qualquer retorno! E quem disse que imaginei perder o meu cargo tão cedo? Tá certo que não sou concursado, sei, mas imaginei o posto cômodo por mais dois anos, nessa calmaria política, mas acabei por queimar o meu filme com a diretoria, aquela diretora ridícula, e o resultado? Rua!

    E HD finalmente percebe que Cibele ressona, e agora em silêncio, após um semelhante desabafo, ele que comete o erro de expor suas fraquezas e fragilidades a uma mulher, que sempre idealiza o homem enquanto força e inabalável decisão, e nada entende do menino que ainda se desespera dentro da aparente firmeza e insensibilidade, "All you beautiful boys Creating multiple plays", e ele igualmente adormece. E alguém desliga o som, e a tarde estende suas sombras, e uma brisa passeia pelo quintal, e agita as folhas pendentes na varanda, e uma gargalhada foge da casa vizinha, e uma buzina distante se assemelha a um mugido, e um cheiro de terra anuncia chuva vindoura.

    E Luana aparece na varanda, são cinco da tarde, ou antes, seis, no malfadado horário de verão, e um ângelus se eleva à distância, um fim-de-dia com pleno sol, vá se entender, mas a ave-maria desce sobre o bairro, e não se espera nada além do lanche, o tão prometido.

    - Ah, querido, vamos experimentar o bolo com frutas!

    E todos concordam que não se trata de uma obra-prima da confeitaria moderna, mas é suportável, até agradável e apetitoso, segundo a Cibele, de boca cheia, e quem não quiser se arriscar, há ainda um panetone, com gotas de chocolate. - E se a gente fosse visitar o centro histórico?

    E a proposta brota subitamente da mente inquieta de HD, ainda mastigando o bolo e com a atenção voltada para a gelatina, metade abacaxi, metade morango, com creme e uvas passas, a levitarem no corpo transparente, e Cibele ainda se serve de refri, e pensa consigo mesma, e concorda. Mas, no entanto, não se apressa em sair, temendo a tempestade tropical que, por enquanto, não passa daquela mancha cinza a flutuar no firmamento. E lá de cima podem divisar os limites do polvo urbano em tentáculos até a campina verde, ao pé da serra, e as cercas das fazendas, e as estradinhas de terra, em breve de lama, e os pontos brancos movem-se lentos e pesados, com mugidos que a distância absorve.

    - Vamos lá?

    E foram. Mas até a parada de ônibus. Ao cair da noite, caiu também a chuva, e tão empolgados e infantis como correram colina abaixo, frustrados e pesados voltaram colina acima, ele sem a oportunidade de representar o guia turístico, e ela sem conhecer o poço, a bica, onde a cidade começou. Sim, pesados, sob os exagerados pingos de chuva que desaba enfim sobre colinas e casas e avenidas e trilhas, mas com estresse por que?, pois quando voltam, para recolherem bolsa, sombrinha, guarda-chuva, celular, com mensagem da amiga, "ONDE VOCE ESTÁ, CI?", e para descobrirem que a chuva que tão de súbito surgiu, rugindo e rosnando, igualmente de súbito desapareceu!

    - Mas, olhe, lá ainda chove...

    E é isto, esta vontade de ir, mas ser obrigado a ficar, e adiar. Mas estresse pra quê? É apenas o primeiro dia do ano! Então vamos recolher nossos sonhos, a brigo da chuva, talvez dessas ácidas, e administrar cuidadosa nutrição à base de fosfatos e esperanças, e "esperar pra ver no quê que dá", como HD ouvia seu avô Ênio suspirar, e deixe-se esperar.

    E visitaram o centro histórico, sim, mas dois meses depois!


 ...




    Reclinada em sua almofada, os dedos imersos nas ondas felpudas do dorso de Sherazade, a gata branca adormecida, Bianca Maria observa, com olhos semi-abertos, manchados em lápis negro e lágrimas, e perfil de Stevam Lucena, inclinado diante da estante baixa, entulhada de livros, os dedos dedilhando as lombadas novas, os títulos recém-adquiridos, naquelas bancas do Maletta, a preços populares, aquele 'Frankenstein' que é presente e é empréstimo, e o livro ainda nem aberto de um escrito sulista, Noll, e ao lado dos antigos e tão folheados, Helena, Clara dos Anjos, Senhora, Salomé, a do Wilde, e "O Lustre", da Clarice, e antologias de Manuel Bandeira, Álvares de Azevedo, Florbela Espanca, em volume novo, e romance de Balzac, "Eugenie Grandet", de Ana Miranda, repousados numa brochura de "Admirável Mundo Novo", de Huxley, um futurista dramático e sombrio, imagine um futuro onde todos sejam hipnotizados para serem felizes.

    Dedos melados na maciez felpuda da gata gorducha que geme, enquanto a visão flutua entre os lençóis, e, após o breve silêncio rastejante, uma nova canção gira no aparelho de som, o amor nos manterá distantes, na rotina que mordisca encanto e magia, bate a fantasia na máquina de lavar, com amaciante ácido, deixa cheiro de saudade, deixa resto de delírios, aquela noite toda ouvindo a mesma faixa do CD dos Smiths, a nossa música, ele dissera, onde "há uma luz que nunca se apaga", e vamos para casa, vamos sair por aí, pois não tenho casa, e morrer ao seu lado é o maior dos prazeres e ele sobre mim a noite a madrugada o pálido luzir do dia, eu queria dormir e sonhar mas o corpo nunca satisfeito o corpo nunca domesticado, e meu sono adiado e eu prisioneira de mim mesma, e Bianca se vira na cama, remexendo os lençóis, atirando a gata aos pés de Stevam, folheando o volume de "Helena", de Machado de Assis, que ele lera no colégio, e agora um passado exumado que ela desconhece, com aquele olhar a deixar o moço todo curioso, "o que você está pensando?", e ela sentada na cama, a imagem da alma em desânimo, "Olhe pra mim!"



    Stevam Lucena se volta para a cama e os olhos de Bianca Maria estão pousando uma súplica nos seus, "Venha para junto de mim", dizem os olhos manchados de lápis negro e lágrimas vertidas, e ele não pode resistir ao convite, "O que há, querida?", "Você só tem olhos para os livros!", "Mas é isso? Imaginei que você deitada...", "Mas não tenho sono! É esse desânimo! Veja as gavetas da cômoda: preciso arrumar todas! Mas onde o ânimo?", e Stevam lança o olhar que ela também já decifrou, como a dizer, "O que, nela, eu imaginei ser sossego, é puro torpor", mas ela quer protestar, levantar-se da cama e expulsar a poeira com golpes do pano poído sobre a aridez dos móveis, mas o que pode fazer, o quê?, além de inclinar-se sobre os ombros dele, e pedir, toda tímida, para sentar-se nas pernas dele, tal uma filha obediente, carente de atenção, toda uma atenção que nunca recebeu, de um pai ausente, que uma vez por mês vai depositar três salários mínimos na conta de sua mãe para as despesas com a filha desamparada, aqui, sob os joelhos desse moço, tão fraco quanto eu mesma, trêmulo não sabendo se me abraça, com bondade extrema de pai-irmão-padre-confessor, ou com lascívia de excitação resguardada, a suportar o meu peso, o meu corpo que ele só sabe desejar, "eu preciso de um pai."


    "Não de um homem", ainda um sussurro, mas ele só deseja me desejar e me aninhar em seus braços, e finge que nem ouviu, e seus lábios deslizam no meu pescoço e brincam no furo dos brincos e orelha adentro, "Ah, não! Por favor!", e Bianca Maria está de pé, num salto antes inimaginado, "Stevam Lucena, trate-me como uma criança indefesa em seu colo de pai atencioso! Ou você agora é pedófilo?", e ele sorri, com encenada malícia, "De repente eu sou.", e não me importo, volto a agasalhar-me em seus braços tão trêmulos quanto os meus, e seus dedos se perdem nos fundos de meu umbigo e acham uma trilha na pele derrapante até o elástico da calcinha, e este é mesmo um pai muito abusado, "Papai, sou uma criança indefesa em seus braços!", e ele suspira, "não tão indefesa assim", mas a fantasia dura pouco, mamãe acaba de chegar.

    Mamãe trazendo pão de queijo, sempre muito cautelosa com o Stevam, "Como vai , rapaz? Tudo bem?", e coisa assim, e tudo bem, os pães de queijo são abocanhados pelo forno, e vamos esperar mamãe, e logo o pão de queijo é servido, quando envolto em fumaças aromáticas, mais agradáveis que incenso, e ele novamente silencioso junto aos livros, a folhear "Admirável Mundo Novo", talvez a ansiar por uma grama de Soma, e ter sua parcela de felicidade garantida, nunca aqui ao meu lado, que vivo a lembrar coisas fúnebres, e ele até a evitar a antologia do Álvares, ah, o doce Álvares, de quem sou a legítima viúva em sofrimento, e na Praça, quando nos encontramos após o passeio no cemitério, ele até leu o poema do Bandeira, o que num pudera ler, naquele verdadeiro "saindo com a sogra", como ele vive gracejando, e nem eu pudia prever que mamãe se grudaria em mim, ah, mamãe, apavorada!, e ele junto dela, sugando todas as minhas tragédias dos lábios de mamãe, e eu o perdoei, esquecendo todo o choro, entre os túmulos, porque quando ele me abraçou, ao desperdir-se, eu senti mil borboletas voejando dentro de mim, e temia que ele se afastasse, ah, preciso ouvir Smiths!, "I am Human e I need to be loved", "How soon is now?", "sou humano e preciso ser amada"!, não é?, ah, e qual poema ele leu? Lá na Praça, no nosso banco, quando os cupins volteavam na luz dos postes, "Poema de Finados", "pois nada quero, nada espero. / E em verdade estou morto ali", não é um Bandeira muito fúnebre?, a lembrança de morrer! Ah se eu morresse amanhã! Ah, que drama! Mas eu sou tão dramática às vezes!, assim criar tempestades quando o mar está calmo e quando o sossego é tédio e aí uma boa discussão não é apenas rima para excitação, mas ele na Praça, lendo um poema, versos do Bandeira, deprê mesmo, "O que resta de mim na vida / É a amargura do que sofri.", no início da última estrofe, tão triste!, e por isso eu deixei ele pegar na minha mão, alisar os meus dedos, deitando olhares aos meus anéis e pensei que o beijo explodiria ali, mas não sei onde me baixou a idéia, a perversa, para fazê-lo sofrer, como eu sofri por ele, e mostrei a cicatriz.

    E Bianca abraça a almofada junto ao peito, recém-despertada de ums ono e de uma tarde já perdida, que talvez foi banhada de sol, que talvez foi encoberta por nuvens, ele não saberá, exceto o que a imaginação pincelar na tela, enquanto a canção se encaminha em procissão rumo a apoteose, "take me out tonight", "leve-me para sair esta noite", e aquela ânsia de finitude em morrer jovem, "Jaqueline morreu menina", escreveu o Bandeira, "Jaqueline morta era mais bonita que os anjos", e eu quis morrer e tornar-me anjo e até de pantufas!, que anjos certamente usam pantufas, ah, "ando com uma grande vontade de morrer", ah, eu também, Bandeira, não é?, "é grande malçada morrer, mas morrerei", ah, por que me lembro das pantufas?, por ser patérico? E oclamor da ambulância, por ser trágico?, ah, "a paixão dos suicidas que se matam sem explicação", mas ruas levada sob o gritos das sirenes-sereias, naquela 'noite morta', e por que ainda viva?, para amar este de braços trêmulos e ausências de silêncio, a folhear livros velhos, ah, o amar que só traz desencanto, "Amor-chama, e depois, fumaça...", ali, ao alcance de meus dedos que anda querem alcançar, "O que tu chamas tua paixão, é tão-somente curiosidade."

    Realmente deviam ter ido ao cinema, como ela mesma planejara, e, ao chegar, ele mesmo perguntou, "Vamos ao cinema, querida?", sim, aquele filme sobre a sobrinha do Alferes Tiradentes, "vinho de rosas", e ela se deixara ficar abraçando os joelhos, de camisola, junto a almofada, toda quebrável, toda ferível, pronta a receber os dardos, as alfinetadas nos olhos, as agulhadas nas unhas pintadas, que não pintara para ele, assim a se exibir, e também as unhas do pé, mas para desfilar para si mesma, na vitrine da solidão, e ela desce os olhos as garrafais de A CÉU ABERTO, João Gilberto Noll, e um transatlântico a navegar em algodão ou lençol amarrotado, sabe-se lá, o livro que Stevam ocupa-se em folhear, vidrado e fora-do-tempo, out-of-time, aquele ma-ra-vi-lho-so álbum do R. E. M., onde "eu estou perdendo minha religião", meu rumo na vida com pantufas rumo à morte, mas mantida distante por sirenes uivantes e vultos de vestes brancas com tubos em minha boca assim represada para o vômito de gritos, "apague a luz, meu bem. Deite-se junto de mim."

    A luz é substituída pelas trevas e um brilho de brasa rubra de haste de incenso, à um canto, no vaso de florido de pétalas roxas, onde as fragrâncias se combinam em exótica alquimia no aroma de lírios do campo, "olhai os lírios do campo!", e olhai o corpo e a boca e o abraço junto ao meu e a minha, recebendo o meu, e forte e entregue, "toda sua, meu bem", e ele geme ao meu ouvido, pois arranho suas costas quando arranco sua camisa e que culpa tenho, "você me deixa assim! Eu te desejo!", mas ele não é ele, é um verso-corpo, um delírio de desejo que é agora corpo, como nunca antes calculava, ou imaginava, rabiscando os amores perfeitos num diário, que está ali oculto sobre as pastas com recortes de quadrinhos de vampiros, que sugaram toda a minha cola e minha paciência e meus sonhos serenos, tudo só rabiscos, agora a palavra feita em carne, e arrepios e gemidos, mas preciso de luz de luz para ler um poema!

    E as trevas são exorcizadas pela luz, e Stevam se ergue nos cotovelos, os olhos em piscadelas, "o que houve, querida?", e Bianca inclina-se até os livros e ergue a "Lira dos Vinte Anos" entre melancólica e radiante, "Preciso de luz! De luz! Para ler para você, meu amor! Ah, vou realizar este sonho!", e ela folheia o livro com olhares febris, "Meu óculos! Meu óculos? Onde? Ah, deixe-me! Deixe-me! Ouça! Fique quieto!", "As ondas são anjos que dormem no mar", e Stevam ouve, quieto, e reconhece o poema "Anjos do Mar", onde "São anjos que dormem, a rir e sonhar", e Bianca está em puro enlevo, uma Santa Teresa atingida pelos dardos líricos, "São beijos que queimam... e as noites deliram," e sua voz que de seus lábios goteja não perde o tom, mas acalenta numa cantiga para ninar, num convite ao sono que é só promessa numa noite ardente, "Por que não consentes, num beijo de amor, Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?", e inclina-se, em lírica devoção, pousando um beijo poético e casto nos lábios dele. Comovido, ele certamente, e apossa-se do livro seguro entre os dedos dela, ainda em tremores, "Deixe-me ler também!", ele entende a fantasia dela, e folheia, e logo encontra, "Meu Sonho", na Terceria Parte, para uma leitura, que sob aquela luz, naquela névoa de incenso, encena-se devocional, "Eu- Cavaleiro das armas escuras / onde vais pelas trevas impuras...", e ela tem os olhos semi-fechados, assim devocional, ajoelhada diante do confessório, imersa em espera que das sílabas se destaquem elétricos arrepios como o êxtase de uma unha sobre a pele, "Cavaleiro, quem és?, o remorso?", e a voz dele já ressoa profunda, em tom de missa de réquiem, com uma ópera high-tech de fundo musical, com teclados e bateria eletrônica, uma agonia de jovens vampiros urbanos, afundando e afundando, going under, "Cavaleiro, quem és? - que mistério" e caindo e caindo, não em sonolência, mas na fiel realização de uma fantasia, uma leitura e um vulto de armadura soturna, com rangidos metálicos que atravessam o quarto, e a voz dele em pausa, a precipitar o desfecho, o clímax, aguardemos, fôlego suspenso,

"O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!..."

    Lido, finalmente, a duas vozes, a dele, profunda, de cavernosa ressonância, e a dela, sonhadora, de quem acaba de emergir de um pesadelo.

    "Ouça, ouça!", Bianca assim desperta de súbito, sem saber de onde tantos elétricos tremores, da paixão desdenhada? Agora enfim revelada?, "Ouça!" e arremessa-se até as luzinhas pisca-piscantes do aparelho de som a escolher outro álbum, "Quero que você ouça! Ah, assim realizo uma fantasia! Talvez eis aqui a última romântica, e uma "mensagem de amor", "a vontade de te encontrar / o motivo eu já nem sei, nem que seja só / para estar ao seu lado", ela, cantarolando, a segurar uma capa de CD onde se lê Lucas Santana, "só pra ler no seu rosto / uma mensagem de amor..."

    Depois, nova escuridão, nos braços dele, Bianca já se esquece, por completo, da criança indefesa nos braços do pai, que Stevam interpretava, ou até se esforçou, apenas para sussurrar, depois, "Você quer um pai, não um amante. Um pai não te exige sexo.", e ela, quase inaudível, "Às vezes, sim", e se entregou ainda mais completa, enquanto ele acaricia as curvas do corpo suave, preso em abraços, livrando-se da camisola, e do compromisso de ver-se dessa calcinha roxa que ele cheira, aspira e exige para si, enquanto a nudez dela já acusa o desnudamento dele e a cama torna-se pista de dança, e talvez ocultam-se cacos de vidro meio aos lençóis, pois gritos represados escapam-se dos lábios, e gemidos não se sabe a brotarem da dor ou do prazer, não se exclui que de ambos, quando língua pode ser açoite, num flagelo de longa noite, arrepiando ventre acima, íntimos ardores abaixo, coxa e colinas de carne, num tremor que faz gemer até a cama, e Bianca está abraçada a almofada, os seios prensados contra o edredom, em volteios, e um peso comprime seu ser e estar contra o ser e o estar em si mesma, quando dentro e quando fora, humilhando-a contra si mesma com aquele peso de homem, em suores e luxúrias, dentro e fora, soprando frases soltas que são versos aos seus ouvidos, "bom assim, não?", "estou te sentindo", "mais devagar?", e um peso de homem a crucifica em seu próprio leito, onde sonhou, e sonha, com noites árabes, com túnicas cheias de tâmaras, e abraçada a si-mesma, a desejar o chamado e o olhar e o aperto de um beduíno, um príncipe sob o luar, e um peso rude e amoroso de homem sobre seu corpo e sobre sua lama, de bailarina, dançarina das mil e uma noites, com suas danças cerimoniais e suas danças lascivas nos redemoinhos do umbigo nos torvelinhos do ventre, brilhante de suores e venenos, de doce marroquina sequestrada em marrakesh, mas ruas cheias de mascates de marrakesh, com minhas chinelas e véus e pulseiras, e meus olhos seduzindo mercadores, que atiram suas moedas com brilhos e desejos, manchadas de sangue de batalhas de brigas resolvidas a punhal nos escuros das ruelas, varridas pelo simum, vento da terra, aquele ardente, enquanto correm e correm, apregoando mercadorias no mercado de marrakesh, enquanto berram e berram, elevando pães com frutas ao embalo dos alaúdes, de velhas cançonetas mouriscas, pulando e dançando, e ele, o homem-peso a possuir-me na crucificação da cama de moça, no lençol em nódoas de sangue, que mamãe virá para apontar com olhares diretos e nada oblíquos, com repreensões nada ambíguas, "agora você que traz homem para dentro de casa...", a confundir com canções,  aquelas mouriscas, do mercado noturno em marrakesh, onde é servido aquela bebida destilada de uvas, não o vinho, mas a chamar-se árak, a embebedar os seduzidos mercadores de tapetes voadores e lâmpadas mágicas, servidores de sultões gordolentos e rançogordurosos que proclamam vontades e arrotam obscenidades, enlaçando criadas e dançarinas e suas concubinas, tal esse jovem homem que se faz dono de mim, e me crucifica, "o corpo quer e a alma entende", a vontade de dormir, dar repouso a alma, mas o corpo não se cansa, não se satisfaz.



    Amanhece. É isto um homem? Assim nu, todo desnudo, nu em pêlo, ao meu lado? Abraçando meus braços, sugando meu pescoço, tocando minhas coxas, o dedo em carícias dentro de mim? É isto ter um homem? Este fardo que ora carrego, de joelhos sobrecarregados, dobrados, extenuada? Ajoelhada e sem fôlego, quando amanhece. Com o mesmo desânimo de quando ele chegou. O menino-homem-peso que me acelerou me esquentou me acendeu apenas para o desejo dele que é o desejo meu mas é desassossego dele a ousar aquelas mãos dentro das minhas coxas na seda das minhas pernas a lamber a concha úmida de meu desejo, túmida e úmida, toda vazio em mim, e eu, gemendo de mim mesma, "entra em mim", e não sei se dentro ou se fora, ou junto, e tudo, e um grito arrepiando dentro e um gemido cuspido fora, e ele fez brotar sangue no meu seio, este lado direito, de mordida de mordedora amorosa, mordedora íntima do desejo, dentes sem dono!, e sangue em mim!, não apenas nos lençóis, aqui, assim, vou levantar, vejo a nudez dele, agora em repouso, um trapo murcho a ressonar nos lençóis, não tem volume, assim úmido e pegajoso, é isto ter um homem? Mas, eis, o fôlego quente em minha nuca acusa o fim do seu sono e ele já sentiu os meus dedos no pequeno homem dele mesmo e meus dedos nos futuros homens e mulheres dele mesmos, estas esferas embaladas em bolsa de pele pregueada que aperto só para ele gemer com a boca em minha orelha, e voltar-se na cama e apertar meu grelo e entrar com dedo, um ou dois, e mexer lá dentro, aqui, dentro, ah, sim, é isto ter um homem?

    É isto ter um homem? Assim abotoando a camisa. Homem, aqui diante de mim!, abotoando a camisa! E sorrindo pra mim, encolhida, toda encolhida em arrepios, sob as cobertas, com a mão espalmada diante dos olhos sebosos, em teatral pudor, enquanto ele se apossa das calças e enfia as calças nas pernas de cabelos encaracolados. E como enfia as meias com precisão! Secando a palma dos pés com a palma da mão e soprando entre os dedinhos, como a dona Nádia deve ter ensinado, a esse filho-da-mãe!, que folheia os meus livros, que vai embora, mal amanhece!, após ter se deliciado em mim, brincando comigo, após invadir o meu sossego, e requisitar o meu corpo, sem sequer suspeitar das noites no mercado de marrakesh, ou das cançonetas mouriscas em laudosos alaúdes, que nem ouso cantar pra ele, sem sequer me perceber realmente, afinal era eu o corpo sobre o qual ele pesava em ritmo para conter seu gozo, e que precisão! Os sapatos, um de cada vez, e um laço com perícia. Ajeita o cabelo, um tanto molhado. Lavou a boca e o rosto e o pescoço e o peito todo! Tem compromisso e por isso vai-se embora, e aceita o 'bom dia!' de mamãe, mas recusa os pães de queijo, e ajeita o cabelo, e com o meu pente! É isto ter um homem? Acordar sentindo um resfolegar quente junto a nuca e um volume grosso junto as coxas? E agora ele me beija e se despede, em cena de um homem casado indo para o trabalho e beijando a esposa fiel e delicada! Aceito o beijo, "tudo bem, querido!", jogo a minha boca na dele, e fecho os olhos, aceito assim a minha derrota, a minha dependência, pois ele vai-se embora. É isto ter um homem?




do diário de HD

05 janeiro


Reunião com Michael sobre o Festival Psicodelia.

Encontrei-o na praça próxima a PUC, e seguimos para o Padre Eustáquio. Ao lado de Michael está Nélida, a secretária.

Compondo a mesa redonda, também o Dalton, o Vladimir. E, via celular, o estrategista Ivan, marcando para o anoitecer uma campanha massiva de panfletagem na Galeria do Rock (aquela da praça Sete) e na Praça.

Últimos detalhes. A banda de Michael, Névoa Púrpura, tem ensaio marcado para às 21 horas no barzinho do Floresta. Ensaio aberto, e sou convidado.

Mas prometi de almoçar com Flávio. E além disso preciso negociar um empréstimo. Almoço de amigos, ele um tanto frustrado com o affair que ora agoniza. Mas acertamos algumas aulas de inglês. Imagino que para ele as aulas servem como distração.

Assim quase seis horas, ainda demora a noite, eu encontro o Ivan na Galeria, distribuindo folhetos do Festival diante das lojas de discos, a abordar os jovens com suas camisetas pretas e piercings e tatuagens e elogiando álbuns clássicos dos anos 70.

Depois seguimos para o Ed. Maletta e depois subimos a Rua da Bahia. Na Praça abordamos um grupo de hippies que tocavam um sucesso dos Mutantes, um cara ao violão e uma moça cantando. Nostálgico. E descemos rumo ao Floresta.

Não acompanhei os ensaios de Michael e banda, devido ao cansaço. Dentro do metrô, enviei mensagem para Cibele. Afinal, a presença dela é fundamental.




O 06 de janeiro - dia


Teoria da conspiração: os olhos em brilho de Sherazade, cúmplice de enredos e dramas, são interligados a uma central de informações dos serviços de segurança.


Eros, o gato branco e magro, e Psiquê, a gata de pêlo castanho e arisca, ronronam felizes diante do leite que escorre da tigela. Dona Nádia se diverte alfinetando os dedos nos bigodes eriçados da pequena gata.


HD acordou cedo e já está ouvindo sua coleção de bandas dos anos 60 e 70, a saber, Doors, Beatles, Syd Barrett, Pink Floyd, King Crimson, Emerson, Lake & Palmer, Genesis, Led Zeppelin, The Who, Mutantes, Secos & Molhados, entre outros, a preparar o espírito, como se diz, para o evento de hoje à noite.


Às oito e dezoito, antes que ainda pudesse escovar os dentes, Stevam Lucena atende um gemido de telefone. "Alô.", "Stevam? Olha, Stevam, não vamos sair hoje. Não vamos sair mais. Está tudo terminado entre nós! Tudo de bom. Tchau.", e o silêncio, aliás, o sinalzinho irritante indicando que a ligação foi realmente cortada.


Depois do almoço, HD recebe o telefonema de Michael Bishop confirmando os últimos detalhes para o evento Festival Psicodelia. HD anuncia que conseguiu vender seis ingressos antecipados, inclusive para o Alfonso Lucena e para o poeta Leir Macedo. E, quando Michael Bishop desliga, HD lembra-se da prometida presença de Flávio Toledo, igualmente fã de psicodélicos e progressivos.



Pouco depois das cinco da tarde, Stevam Lucena é incomodado, em seu desespero, pelo clamor do telefone, "Alô.", "Stevam? Oi, Stevam, me desculpe! Precisamos conversar. Nos encontramos lá no Festival?", "É, precisamos conversar. Você conseguiu me assustar."



Trancado no quarto, HD está declamando, para o espelho, sua tradução de "Shine On You Crazy Diamond", "Brilhe louco diamante!"





Tarde de 06 de janeiro de 2006


Olá bianca,

Sinta-se abraçada!


Não sei em que ânimo estarás quando leres esta carta, mas sei que preciso escrevê-la.

Não sei porque não respondeste às minhas cartas desde 18 de novembro, mas sei que ansiosamente aguardei a resposta.

Hoje o teu telefonema, logo que acordei, deixou-me perplexo e assustado. Primeiro, desmarcando um encontro, e segundo, me dando o fora por telefone!

Não desejo listar cobranças, até porque temos um relacionamento bem aberto e conservamos sobre tudo e sobretudo. Quero dizer que podes confiar em mim - pois eu te amo, e não te desprezo por teus problemas.

Amar é não indagar, é não ficar colocando barreiras num campo onde há cratera demais, é ficar livre de ataduras morais e se entregar ao outro e ao prazer do outro.

Será que estás amando? E amando plenamente? Amando com todos os sentidos? - e em todos os sentidos? Estamos vivendo uma relação madura? Estamos nos entregando?

Acho que poderíamos fazer mais coisas, mas ainda nossas neuras nos aprisionam, podam a realização de nossos sonhos. Mas podemos lutar para realizá-los! Podemos conhecer melhor onde moramos, e também viajar, e viver intensamente.

Mas, principalmente, precisas escolher entre viver e morrer, e caso escolhas viver, deves fazer a pergunta: "viverei para agradar aos outros ou para agradar a mim mesma?", pois sem responderes sinceramente esta questão não estarás vivendo autenticamente, mas rastejando sonâmbula meio aos demais servos.

É isso, minha querida.

Abraços,

Stevam





Noite de 06 janeiro - o Festival Psicodelia


Algum desavisado que acaso adentra os recintos do Matriz julgará estar num pub inglês. Julgará ter retornado, por meio não explicados, aos anos 60 ou 70, onde o rock and roll era mais do que uma marca comercial. Imagens alvoroçadas de ícones do "die young", 'morra jovem', além de vozes saudosas de um passado sepulto, tudo ressurgia num espírito de época a deixar o século 21 lá fora, além das portas, sob as goteiras do Terminal Turístico.

As vozes saudosas vazavam de imagens alucinadas dos Beatles, nos televisores, quando Alice sentia-se transportada, sussurrando ao meu ouvido, o inusitado de tudo. No bar, enquanto pedíamos cerveja, notas musicais se desprendem dos dedos e das roupas, dos olhares e dos toques dos músicos nostálgicos, que discutem a arte musical entre os goles de bebida, vinho, cerveja ou água tônica.

Alguém está montando um estande para exposição de vinis raros, e reconheço Dalton, o nosso Vladimir, enquanto surge o Michael, o Bispo, distribuindo, colando, afixando fotos e posters ao longo do corredor, com fotos de artistas da época flower power, ou London summer, em conversas ao pé do ouvido com a bela morena, sua secretária, a Nélida.

Quem estava ali, momentos antes, era o HD. Conversava ao lado de Dalton, ocupado com os vinis, sobre mulheres e o que chama de estresse amoroso, coisa que adapta o "amor é doença" de Délcio Palma, pois HD dizia, segundo o Vladimir, interrogado depois, "a afetividade é estressante", e vê a chegada de Cibele, seu caso atual, toda neo-hippie, envolta em incenso. Mas descubro que HD já se retirou para o camarim, onde Cibele mostrou-se útil em manuseio de gravatas mode, em laço perfeito no pescoço desprotegido de HD, ocupado em escolher camisas de estampadas floridas e calças boca-de-sino, nas cores anil desbotado e cinza esmaecido.

Depois, Cibele deixou-se a vaguear pelos corredores, enquanto eu trocava sábias saudações, e deveras prudentes, com o Michael, o Bispo, ainda colando os posters, ainda em sussurros com Nélida, que já adjetivei bela e morena. Mas Alice certamente não se agrada de minha salivante admiração pela bela e morena, e abraço minha bela, branca e alta, a formanda em Urbanismo, ao meu lado.



Às vezes tomamos decisões que nada de racionais mostram, mas revelam um turbilhão íntimo de emoções que pouco a pouco vazam para a superfície de nosso eu social, este que muitos julgam conhecer, e tudo pode se iniciar com um telefonema na precocidade da manhã quando os olhos ainda estão presos na escuridão, boiando ainda no mar dos sonhos, assim tomamos as decisões. Ainda rever a Bianca depois daquele telefonema surreal, terminando tudo de forma tão ríspida, nem parando para se explicar, sem ouvir minha perplexidade, mas deixando um dia todo escorrer para só então telefonar novamente, "precisamos conversar", ora fácil assim! E porque aceitei?

Somos racionais? Julgo que não. Atitudes brotam, quando mesmo lúcidos nos vangloriamos, em juízo perfeito segundo os manuais, de um poço desconhecido nos subterrâneos da pele, no remordimento do imo-senso, agenbite of inwit, nós, homens do subsolo, acostumados ao inferno interior, habituados ao nosso demônio da perversidade, criando paraísos artificiais, para justificar erros e declarações emotivas, que esfacelam edifícios que julgávamos solidamente erguidos, mas agora em ruínas, pois as palavras não voltam atrás.

Mas Bianca surgiu, com sua face pálida, junto a grade, enquanto eu admiro os posters colados no corredor, com músicos de olhares alucinados e mulheres de perfis desnudos, e closes em guitarras estilizadas, e Bianca encaminhou-se levemente, como se flutuando e abraçou-me, sem ousadias de beijos, afinal o que éramos agora? Um poster descolou da parede e tentei recolocá-lo no mesmo nicho, e ousei perguntar, "O que eu fiz de errado?", e ela, num sorriso entre pesaroso e irônico, disse "O problema não é você. Não se culpe.", e nisso surge o Hector, que trazendo um rolo de fita adesiva, parece já ter notado o problema, "Não aderem á parede", ele explica, com ares de organizador, e adorando esta função.

Convido a Bianca a se sentar nas mesas, junto ao palco, e entrego o envelope branco que já pesa em minha mão, "uma carta para você"



[Bar. Mesas dispostas junto a parede e junto a grade da porta. Entra HD com visual retrô, anos 60, com cabelo solto, eletrizado, em maquilagem, camisa laranja com botões, em pétalas estampadas, gravata amarela, toda retorcida, e abre os braços ao estilo cristo redentor e abre um sorriso. Mesa com quatro cadeiras. Sentados Alfonso, Alice e Stevam Valêncio. HD aproxima-se e troca sorrisos com Alfonso]

ALFONSO: Oh, o grande Hector Dias! Ou melhor, o redivivo Jimi Morrison! Ou, quem mais? Syd Barrett?

HD: Syd Barrett, psicopóspunk, gótico urbanóide, poeta nas horas vagas, alucinado em tempo integral.

STEVAM VALÊNCIO [resguardando um riso]: Filósofo beatnik empalhado exposto à visitação pública.

ALFONSO [abraçando Alice, toda sorrisos, e a oferecer uma bebida]: O que está bebendo? Cerveja? Vinho? Água tônica?

HD [sorrindo]: Não estou bebendo. Estou à serviço.

ALFONSO [cínico, voltando-se para Alice]: Ah, sim. Me esqueci. Perdão. Querida, ele é um dos produtores dessa loucura psicoretroprogressivodélica. E veja! Ele não merece um beijo? [levanta-se] Um beijo para as colunas sociais, HD!

[Cena cômica, de pastelão. ALFONSO aproxima-se de HD, com a intenção de beijá-lo. HD levanta-se, por sua vez, e afasta-se para o lado de STEVAM VALÊNCIO, a passar por detrás da cadeira deste, quando ALFONSO alcança a cadeira vazia de HD, que ultrapassa a cadeira vazia de ALFONSO, agora detrás de STEVAM VALÊNCIO, quando HD passa detrás de ALICE, e ALFONSO volta a sua cadeira e HD senta-se na que ocupava, numa volta completa à mesa, enquanto todos se entregam às risadas]

HD: Você pretende nos comprometer em público? E ainda diante da sua querida Alice? [para Alice] Esse pedaço de quimera não te assusta, não?

ALICE [ sorrindo]: Acho que estou acostumada ao caos.

ALFONSO [tom explicativo, ares didático, petulante]: É que a Alice trabalha no departamento de trânsito. Seção de inflações, multas e outras barbaridades. O mundo está cheio de barbeiros, não é querida?

[ALICE não responde, limita-se a sorrir. HD serve-se da água tônica que STEVAM VALÊNCIO aponta. ALFONSO mergulha o olhar no sorriso de ALICE]

STEVAM VALÊNCIO [para ALFONSO]: Você viu o Steve? Passou no corredor. Carregando um envelope branco.

ALFONSO [ainda a observar ALICE, enquanto ela serve-se de cerveja]: vi, sim. Com uma carta. Um caso aí com a menina. Estão lá no escurinho das mesas junto a pista de dança. [Observa ao redor. Faces nas telas dos televisores.] Quem são estes? [Apontando o televisor, junto aos toaletes]

HD [depois de beber a água tônica]: The Who, ao vivo. "Who Are You?" Com licença, meus caros. [Sai.]

"Who are you? Who? Who? Who? Who?

Well, who are you (who are you? Who?)
'Cause I really wann know..."



Bianca lendo a carta de Stevam.


Tarde de 06 de janeiro de 2006


Olá bianca,

Sinta-se abraçada!


Não sei em que ânimo estarás quando leres esta carta, mas sei que preciso escrevê-la.

Não sei porque não respondeste às minhas cartas desde 18 de novembro, mas sei que ansiosamente aguardei a resposta.

(et cetera)



- Flávio! Muito bom revê-lo! Um momento! Cibele, venha! Flávio, esta é a minha querida Cibele. Outra louca por literatura... e literatos, claro!

- Prazer, Cibele. Flávio Toledo, às ordens.

- Ah, o Hector fala muito de você. Colegas de faculdade, não é? Viviam em debates...

- Taí, não sei o que o Hobsbawm aqui anda falando de mim! Mas a gente vivia discutindo mesmo. E até hoje. (Pausa. Volta-se para HD) Muito simpática, a sua Cibele. Bebem algo?

- Eu prefiro vinho.

- Eu estou à serviço, querida.

- Ah, que nada! Você é muito sovina. Não vai pagar o vinho pra gente? (risada feminina)

- Ao contrário. Sou todo generosidade. Até sou muito dado. Que tal uma visita ao camarim? Sanduíches, bolachas, refri e cerveja.



Cabisbaixo, ao lado de Bianca esperei que ela se animasse a iniciar um diálogo, quando me faltavam forças para tanto, assim como se em plena correnteza eu cruzasse os braços, abandonando-me ao rugir das águas, sem qualquer esforço de salvação, artimanha que o nosso orgulho exige quando nada mais resta do que encenações. No entanto, eu ainda a desviar o olhar, ela se perdia em silêncios, posto que plurais são, o da voz e o dos gestos. Nada nela dizia algo, toda mergulhada em si mesma, como se desejasse mais do que nunca afogar-se, sem reparos, surda-e-muda em mares de recriminações.

"Discussões em casa? quero dizer, você e sua mãe, discutiram?", iniciei com infinda timidez, sem saber por onde devia começar, qual abordagem a emocionalmente mais aceitável, e deixei-me guiar por impulsos instintivos, como dizia a minha mãe, "Somos mais do que tudo instintos", e Bianca olhou-me, vindo à tona, os lábios em trêmulos esboços, secos e distantes, "A gente sempre discute. Ela levantou cedo só para me acusar, me cobrir de acusações", então inclinei-me, junto ao som que vaza daquela voz perdida no balbuciar daqueles lábios, e disse "Por minha causa?", e ela disse, "sim, piorou depois que você apareceu na minha vida. Mas ela nunca me deixa em paz. Eu sou um fardo na vida dela, sabe. Ela faz questão de me lembrar disso todos os dias, todos os instantes", e calou-se, trancou-se, nada mais soltaria, por enquanto. Então, enquanto eu me refazia, ela levantou-se e foi pedir um vinho.


Ainda atento ao lado escuro da lua, o homem de cabelos revoltos e passos hesitantes, com sua gravata-lenço amarrotada, e suas roupas sem cuidados outros, sobe ao palco, dentro das cascatas e de acordes e imagens e numa invocação - "Brilhe, brilhe louco diamante!"

Você foi pego no fogo cruzado entre
a infância e o estrelato,
soprado pela brisa gelada.
VENHA, ALVO DE RISADAS DISTANTES,
VENHA, ESTRANHO, LENDA, MÁRTIR,
E BRILHE!

Deslizando meio aos ávidos por sensações, o vulto, ninguém menos que o performático HD, estende as mãos ansiosas, sob os olhares e fascínio e desprezo, quando lembra que sim, sim, desejam que ali ele estivesse, sim, como EU GOSTARIA QUE VOCÊ ESTIVESSE AQUI!, dos acordes de "Wish You Were Here",


"como eu gostaria, como eu gostaria
que você estivesse aqui."

E ele vê suas imagens, lembrando-se de quando era jovem, em movimentos descompassados aos compassos dos dedilhados de um violão acústico, e das sinfonias progressivas. E ele vê a si mesmo, o delirante, o visionário, "I'm screaming. I met you this way", impecável aparência do homem a consumir-se na própria genialidade, "please, please, Baby Lemonade",

Homem vegetal! Onde você está?
Tenho procurado em todo lugar um lugar pra mim
Mas não há lugar algum
Apenas não há lugar algum.

"Homem vegetal! Onde você está?", o homem invade a expectativa dos presentes, the vegetable man, com seus passos sem rumo, sob a luz do cenário, "eis o que eu visto, eis o que você vê, isto deve ser eu, eis o que eu sou!", com seus passos sem repouso, procurando um lugar, "mas não há lugar algum". Sua busca por si mesmo é a busca de sua imagem nos olhos dos outros, quando ele interpreta o sorriso da amada como uma aceitação,

Ela é esperta, você não sabe?
Que após ver seu sorriso
Eu soube que faríamos estilo.


E seus devaneios acabam por produzir a aparição de duendes, com suas melodias de louca transcendência e iluminada demência, com reconhecidas experimentações lisérgicas de plenos anos 70, quando nossos pais viajavam em psicodélicos e progressivos, aquelas bolachas que meu pai guarda nas estantes da biblioteca, coisas de King Crimson, Triunvirat, Focus, e que o outro-Stevam ouve em seus delírios, degustando expressionismo alemão, o nosso adorado Georg Trakl, que viagem, meus caros, permitam-me a emoção.

Alice, ao meu lado, vendo tudo aquilo, o HD sem reconhecimentos, em transe psicoartístico, e as carrancas do Who nos televisores, "por que vocês todos não somem (falando sobre a minha geração" e "não quero causar mais sensação (falando da minha geração)", enquanto, na mesa do bar, o outro-Stevam arranca, de dentro da mochila poída, um calhamaço de folhas, nada menos que "A Laranja Mecânica", do Burgess, ou "A Clockwork Orange", que até virou filme do Kubrick, de sorte a ser um dos favoritos de Michael, o Bispo.


Alheia a tudo e a todos, Bianca vai sorvendo o vinho, em goles miúdos, a língua acariciando os lábios, deslizando nos dentes, um modo de equilibrar a estática do olhar, enquanto minha visão abarca o palco, e o vulto de Alfonso, ao lado de sua Alice, enquanto o HD desce do palco e caminha, declamando, junto ao público, e de súbito desaparece, e Bianca lança um olhar, do tipo "O que ele está dizendo? Não posso ouvir...", e eu nada esclareço, sei que ela nem mesmo está ali, preferindo o silêncio, quando não insiste em frases plenas de laconismo, como se fossem provérbios árabes, ditos de Omar Khayam, falas de beduínos nas tempestades do deserto.

E na mesa ao lado, HD senta-se, inclinado para beijar sua garota, se não me engano o nome dela é Cibele, diante de um amigo dele, certamente aquele administrador de empresas, cujo pai é dono de restaurantes na baixada do Barroca, certamente é o Flávio Toledo.

Mas minha atenção volta-se para Bianca, "Nunca pude amar a minha mãe do jeito que ela quer, e isso é monstruoso para ela, que diz o tempo todo ter feito tudo para mim, que sou o sol da vida dela. Sabe, Stevam, ela não aceita me compartilhar com você! Ela tem ciúmes! Ela me quer para solteirona!", e não posso me conter, "então o problema não sou eu? Eu, especificamente? Qualquer outro namorado seria hostilizado?", e ela, agora a sustentar meu olhar, "Isso eu não sei. Você é tão na sua, calado, não conversa com ela, fica só agarrado na minha saia. Aí ela endoidou, cara. E nos quer separados, é isso."

E não sei porque olhei para o lado, e senti o olhar de Flávio, também em desvio, enquanto HD e sua Cibele se agarravam, antes que HD precise voltar às luzes do palco, novamente em cena.


E todos sabem (quando a voz ressoa), o "o lunático está na minha cabeça", e ainda tocando acordes diferentes, em "Brain Damage", esperando companhia para uma longa viagem até o lado escuro da lua,

Você tranca a porta
e joga a chave fora
Existe alguém em minha mente
mas não sou eu

E em apoteose, sobe ao palco com acordes de "Breathe", a destilar um som pesado, com sensíveis mudanças e contrapontos, em clima progressivo ainda que distorcido, um blues mais que eletrizado. Para quem ousa degustar rock and roll sem frescuras, blues sem pieguices, neste "asteróide pequeno que todos chamam de Terra", onde todos estamos, num show ou num circus, Rock and Roll Circus, onde John Lennon compartilha uma sopa de lentilhas com Mick Jagger, meio as luzes girantes e cuspidores de fogo, ao lado de um dançarino - bêbado e equilibrista - encenando os clowns de Shakespeare ou os andarilhos de Beckett, e Lennon sorrindo ao Jagger, quem o mais condescendente? Alguma outra "loucura em viver"? Um blues, "Carpir por que?", ou será "Gemer por puro prazer"?, enquanto as cidades do Mississipi, ainda inundadas, e os bairros negros de New Orleans ainda estão submersos, águas salgadas e doces afogando os saxs e os trompetes, em lúgubre realidade de silêncio, e as lágrimas serão sempre fúteis? A nostalgia invade os corações ansiosos, em busca do tempo perdido, ou nos detalhes das ruas líricas do mais poético bairro de Belô, o velho Santê, entre o peso e a melodia, enquanto o show deve continuar, the show must go on...




- Bolachas. Biscoitos recheados. Sanduíches de presunto e mussarela. Cerveja em lata. Estejam servido e à vontade.

- E sua garota? Não vem? - pergunta Stevam Valêncio.

- A Cibele está aí viajando. E a sua não veio ao show, por que?

- A Michele? Ah, não estamos bem. Evito ser pegajoso. Convidei. Não se animou. Não insisto.

- Nem me falem em mulher, compromisso! - diz Flávio, enquanto abre uma latinha de cerveja. - entrei para o clube dos descasados.

Claro que HD se assusta com um Flávio tão irônico de si mesmo, quando antes se mantinha tão evasivo. O que há? Finit est a dor de cotovelo?

- É verdade. E a Ariella, Flávio? Resolveram?

- Só de ouvir o nome, eu me arrepio. The dream is over, como se diz. Estou vacinado.

- Acho que todos estamos, então. - diz Stevam Valêncio, mordiscando um sanduíche de presunto. - Mulher é com certeza dor de cabeça. Compromisso é algema. Nenhum das partes suporta.

- Mas o Flávio será o nosso guru. Imagine: um ano e meio casado! Pós-graduação!

- E eu que parei a minha, por causa do casório! Vou cair agora num mestrado em tecnologia.

- A gente perde um tempo, não é? Eu, por exemplo. Nem fui para a sala de aula, deixando inútil a licenciatura, nem fui para o pós, indeciso entre Era Vargas, movimentos da FEB, e ditadura militar. Fora os esboços da monografia sobre 1968, o ano que ainda não terminou!

- O tempo que a gente perde...



Névoa Púrpura desce das nuvens com músicos em vestes angelicais enquanto a voz monótona, a de HD certamente, recita "a terra em silêncio permanece", the land in silence stands, e eleva-se um solo de guitarra, frenético e entorpecente, e outros vocais, agora lisérgicos, "Que louvado seja o Senhor! Louvado seja o Senhor!", do que se trata?, um culto neo-pentecostal?, não, mas o Névoa que convida todos para uma viagem sem restrições, no mar de lembranças, em alternâncias e contrapontos, voltando ao berço, ou confessando origens numa cidade espacial, em solos expressionistas, e os vocais se entregam a uma desorganização cíclica, em múltiplas repetições, excessivamente excedentes, em cascata, em graduação imagética, aquelas letras simbolistas, em passagens crepusculares que lembram Yes, King Crimson, Emerson, Lake and Palmer, mas sobretudo... Névoa Púrpura.



São dois televisores. Um junto ao palco, na pista de dança. E outro, já mencionado, está junto aos toaletes. Em ambos desfilam clipes musicais, e The Who é atração certamente, com um vocalista alterado e um baterista possesso, cheios de auto-afirmação, quando não bazófias a mil, "Anyway, Anyhow, Anywhere",

Eu sigo para todo lado, do jeito que quiser
Eu posso viver de qualquer jeito, vencer ou perder...

Explico para Alice que é toda uma geração que envelheceu apregoando sonhos que não envelhecem, mas o que sobrou além de registros de uma tentativa? O que eles conseguiram mudar afinal? A livre exibição de nossas taras sexuais?



"Névoa púrpura em minha mente", diz a canção que soa no palco, a "Purple Haze", do Hendrix, que o Valêncio aprecia tanto, "com licença enquanto beijo o céu", alucinados versos, enquanto Bianca está recolhida ao seu mutismo, não entendo realmente porque, ao final de contas, ela resolveu aparecer. A cabeça apoiada na mão esquerda, voltada para o palco, onde Michael está em transe, com sua guitarra escura, com entalhes dourados, e tão ausente, quando ela prometia que finalmente poderíamos conversar, mas dentro de si mesma, com seus monólogos que para mim são obscuros, ela já desistiu, ainda mais que não pressiono nada, sou o mais gentil que consigo, nunca imaginei que conseguisse ser tanto.

Assim, se ela não me percebe, ou disfarça, eu não posso evitar de perceber os outros, por exemplo, os beijos ardentes de HD e Cibele, na mesa ao lado, enquanto Flávio entorna outra latinha de cerveja, talvez um sinal de que o serviço de camarim seja em verdade muito generoso. Não que eu seja de ficar julgando, mas, às vezes, a alegria alheia me incomoda, ainda mais quando se tem um espinho cravado debaixo da unha.

"Por que somos tão complicados, hein, Stevam?", Bianca volta-se para mim, "Por que não deixamos as coisas simplesmente acontecerem? Por que criamos momentos perfeitos?", e não sabe ela que eu mesmo já fiz a mim mesmo estas inquietantes perguntas? "Por que será? Talvez por nunca estarmos satisfeitos?", eu sou incapaz de responder, e devolvo a pergunta. Bianca abaixo o olhar, mira a minha boca, e vem se inclinando, e quase morde meus lábios, numa ânsia e fome de beijos, que não recuso, ainda que não mais esperasse.


De repente sou um fã do The Who, digo para mim mesmo. Alice foi ao toalete e eu encaro os televisores, onde a banda se sacoleja, numa canção, que depois descobri, em minhas pesquisas em lojas de vinis, chamar-se "The Real Me", "Can you see the real me, doctor?", isto é, "pode você ver o meu eu real, doutor?", e depois pergunta o mesmo para a mãe, e para quem ouve, "Can you?", "você pode ver o meu verdadeiro eu?", e quem pode? Mas Alice já voltou e senta-se em meu colo, a beijar-me divinamente.



O homem de passos ansiosos rumo a lugar algum tropeça nos seres de olhares de fogo e corações plenos de anseios, entre as amostras de fotos e raridades, "Por favor, uma foto! Os caras não vão acreditar!", e o homem, saído dos anos 60, posa para uma foto, ao lado do casal emocionado, "o sonho não acabou!", e ele sorri, e ele agradece, esperando o brilhar de seu íntimo diamante, quando a emoção sobe ao palco com clássicas versões de sucessos nostálgicos do fenomenal Pink Floyd, entre gritos de êxtase ou lágrimas de arrebatamento, seja nas pistas ou nas mesas, quando os casais se enlaçam aos acordes de "Confortably Numb", em confortável entorpecer, de beijos e solos de guitarra, na umidade de suores da pista de dança, entre brumas de fumo e tonalidades sonoras, em delírios cubistas, de todos os ângulos, de todos os lados, em todos os andamentos, nos volteios da vida, aprendendo a voar, acima da fuligem cotidiana, derrubando os muros que nos aprisionam, sobrevivendo à punhalada final, num mundo de animais, guiados por cães-pastores psicóticos e sujeitos às leis dos porcos, sim, todos os clássicos, já presentificados, enquanto aprendemos que "o tempo passa, o rio segue", enquanto permanecemos "confortavelmente entorpecidos" quando perdemos um sentido para viver ou quando deixamos ir embora um grande amor.


Os beijos com gosto de lágrimas, pois Bianca chora enquanto me beija, quase a afogar-se, gemendo, "eu te amo, Stevam, eu te amo", e então eu bebo as lágrimas que escorrem, e estes acordes são de uma canção belíssima, a "Shine On You Crazy Diamond", que HD recitou ao início, numa invocação, e estou bebendo as salgadas lágrimas quentes na face de Bianca, a gemer, "Eu te amo! Mas como posso escolher entre você e minha mãe? Estou entre a cruz e a espada! E quem poderei agradar? Não posso servir a dois mestres! Mas como vou viver sem você? Me beije pela última vez!", e quando beijo suas lágrimas, fartas em sua pele brilhante, orvalhada, e o refrão se eleva, "Shine On You Crazy Diamond", e lágrimas se confundem, estou igualmente chorando, já ocultando o meu choro, com a face voltada, encoberta nas mangas da camisa, nas dobras do sobretudo, que agora não passo de um vampiro chorão, conde drácula passional, chorando no pescoço úmido de minha presa apaixonada, e Bianca chora ainda mais perdida, será que pode imaginar que esta é a primeira vez que choro diante de uma mulher?, que mesmo diante do desprezo de Sônia Regina, eu não chorei, e represei as lágrimas quando ela morreu, e que todo o meu pranto é simbólico como os versos de Lord Byron?, mas agora eu choro, e lágrimas se confundem, e nossos beijos são e triste despedida, "Por que você veio? Por que fica aqui, ao meu lado? Aumentando o meu martírio?", eu não consegui conter as palavras, e ela a desejar um passeio derradeiro pela Praça, junto aos canteiros onde nos conhecemos, mas afundo em mágoa profunda, por que ela não vai logo embora? Se quer ir então que vá logo embora!, e vejo que Bianca já levanta-se, secando as lágrimas na manga do vestido, e beijo-a em ambas as mãos, aquele vulto sombrio, em roupas de viúva, afastando-se, "Adeus, Stevam", e estou sentado, e permito que ela vá embora, sozinha na noite.


"Reclinada em tua janela, cabelo dourado", versos de James Joyce, musicados por Syd Barrett, "Lean out your window, golden hair", onde o bardo abandona seus livros, seu quarto, para ouvir o canto da amada, e depois deixa o silêncio, em "Sorrow", "silêncio que fala mais alto que palavras, sobre promessas quebradas."



Quando saí ajudei Alice a vestir o casaco, afinal passava das duas horas da madrugada, e não vejo Stevam, o meu irmão, em parte alguma, apenas o HD, no ápice das escadas, ocupado e vigilante, algo cansado, ali com os instrumentos e caixas de som, junto ao carro de Michael, o Bispo. E penso comigo mesmo, "Não é que tudo isso me parece uma cena de romance?"










(fim do capítulo 5 da Parte 3)

 LdeM