quarta-feira, 30 de novembro de 2011

quase no fim do capítulo 5...

[...]



    Em amoroso abraço, o casal segue a avenida, sentido contrário ao trânsito, rumo ao bar, o conhecido bar, a um quarteirão da universidade católica, e nas esquinas, em curtas pausas, ela se aconchega a ele, cabeça junto ao ombro, e sussurra, "eu sabia que você era um bom amante", e HD imerge dentro dos olhos de Cibele, ainda incrédulo.

    Tudo muito subitamente, antes dos bombons derreterem nas bocas, e ela estava em cima dele, em beijos que deixavam pouco espaço para o fôlego, a sugarem todo o seu respirar num sentido único, em turbilhões vorazes de um desejo sem contenção, enquanto ele a desnudava, primeiro se livrando da camiseta e dois bicos amorenados surgem, altivos, e ele percebe logo uma ascendência afro na mulher de corpo tão branco, sim, todos temos um pé na senzala, ele pensa.

    E logo tudo se inverteu e ele estava por cima, e não haviam mais barreiras entre eles, seja de linho, seda ou algodão, e somente corpos compartilhando suores, ainda mais quando ele sentia o íntimo calor e odor que dela brotava, entre as coxas firmes, lisas, quando a língua dele labutava dedicada e antes que ele, em beijos sem pausa, entrasse na posse da promessa de prazer.

    - Você, com esse olhar, não engana! E eu sabia! - Cibele diz agora, quando atravessam a praça, habitada por risos de estudantes e restos de canções pop.

    Isso ela diz agora, ele pensa, mas, na hora, ela só sabia gemer, ou dizer, "você leu o Kama Sutra?", a todo momento quando ele sugeria, com os dentes nos lóbulos de sua orelha delicada, que mudassem de posição, e ela agora por cima, aprendendo a senti-lo dentro dela, a subir e a descer, ou quando ela se senta nele, diante dele, os seios arfantes, trêmulos, que ele apazigua com a ponta da língua, ou em posição de lótus, a prolongar um corpo no outro, inspirando e expirando, "você já leu o Kama Sutra?", ela repetia, e ele ainda incrédulo.

    Na praça, Cibele encontra um colega dos tempos de colégio e, rapidamente, trocam informações breves sobre as suas existências, e o jovem diz, "Estou estudando música no Conservatório, e...", mas HD não presta atenção, ainda perdido em gemidos, a mente vagueando rumo a hora pregressas, enquanto ali o jovem e Cibele falam da vida acadêmica, da qual ele pouco se lembra, exceto da ardente Naína ou da circunspecta Selma, ou dos diálogos políticos com Alex, Everton, Flávio e Darío, ou daquele professor de sociologia que não dava um tempo, mas sobretudo os lábios úmidos da morena Naína, e, então, como HD poderia prestar atenção?

    E ele seguia, com a língua rodopiando na orelha, que ela se virasse, ajoelhada, agora sobre as mãos, e ela suspirava, talvez a sentir-se dominada, ali de quatro, enquanto ele se encontrava nela e se perdia de si mesmo, estando dentro, mas estando fora, "está bom, querida?", e ela se limitava a gemer, "sim, sim, está bom!", e ele em entusiasmo, "você é demais, querida!", e logo voltam ao tradicional, olhos nos olhos, os seios dela alfinetando o peito dele, a sussurrar, "Você é linda! Sabia? Linda! Linda! La belle Cibele! La belle Sibila!", e ela se limitava a gemer, "Ai, querido! Você é que é demais! Eu te amo, meu Hector!", e ele estando ainda lá, sobre aquela cama, como ele poderia prestar atenção?

    - Vamos, querido! - Cibele puxa o Hector de olhos vidrados, assim que considera finalizado o pequeno colóquio com o velho colega dos tempos de colégio, que sempre fora ligado a música, mas uma música mais refinada, mais clássica, e agora adentram os portais do Conservatório. - Muito talentoso, ele.

    - Ah, é? - HD não se mostra muito curioso.


    Curioso ele estava horas antes ao palmilhar as trilhas do corpo dela, em conhecer a história de cada ponto geográfico em sua dimensão e duração, o arrepiar dos seios, o contrair e o relaxar, o estender das pernas, o contorcer dos pés, ou aqueles lábios que os dentes mordem, e ele a dizer, "vire-se, o rosto contra o travesseiro", aquela almofada que ele afasta das costas dela, e ele contempla as colinas posteriores, a fibra firme e redonda, a extensão das pernas lisas e brancas, e ele se deita sobre ela, o peito suado pressionando as costas que gemem, "ai, querido, meu Hector!", e é o que basta para um delírio, um tremor de corpo inteiro, concentrado naquele ponto em que se unem!

    - Boa noite, Hector! - é o garçom, aliás, também dono do bar, que distribui saudações ao casal - Boa noite, mocinha! Ah, sim, Cibele! Tudo bem, Cibele? Fiquem à vontade.

    Agora, HD prefere uma cerveja e Cibele aceita um refri, com olhos bem atentos a decoração do bar, que muda de semana a semana, e daquela noite, em que estivera diante de seu Hector e o amigo dele, o Michael Bishop, só resta os filtros-do-sonho, que aliás estão ali pendentes, e isso só HD sabe, desde aquela festa do Óbvio, do ano anterior.

    - Cansado, querido? - há malícia na voz de Cibele, e também no olhar.

    Ao contrário, nunca estive tão relaxado. - e continua a folhear um grandioso volume, na verdade um álbum de fotos, com imagens de cartões-postais de todo o mundo, enquanto ela, agradecendo, recebe um calendário de eventos culturais da cidade, que ele oferece, e aguardam as bebidas, enquanto o vento se insinua na varanda e agita as samambaias, fazendo oscilar aquele artesanato indígena que são os filtros-de-sonhos.

    - E pensar que Veneza vai se inundando...

    A voz de HD faz Cibele desviar o olhar da programação cultural, e observar as imagens que estão abertas sobre a mesa, aquelas que ele observa, meio melancólico, talvez apensar que nunca poderá visitar todas aquelas maravilhas do mundo. E ele está ali de pernas esticadas, pousadas sobre a cadeira defronte, e acolhe, com livre-camaradagem o dono-garçom que precipita a cerveja espumante num copo e o refri gasoso em outro, e a afastar-se, conveniente, ao ressoar o tinir de copos erguidos num brinde.

    - Ao nosso bem-querer! - ela diz.

    - Ao nosso encontro! - ele diz.

    E uma foto do Taj Mahal, o palácio indiano, ameaça um salta da página, enquanto os lábios se encontram, e depois a serpente de pedra da Muralha da China e depois um vista do enevoado Monte Fuji japonês, ou então a garganta aberta das Cataratas do Niágara, e outras fotos se sucedem, a catedral de Colônia, por exemplo, Cologne, Köln, e a sua sobrevivência aos bombardeios, o que a irmana com a St. Paul de Londres, London, Londonum, e havia um didatismo na voz de HD.

    - Sabe, querido, às vezes eu entendo a sua inquietação. Você quer abraçar o mundo! Quer ser um globetrotter, mas nem sequer sai de Minas! Por exemplo, por que essa obsessão com a Segunda Guerra Mundial?

    Contemplando a cerveja, antes de apreciá-la, HD ainda pensou uma resposta à altura da pergunta, mas não encontrou. - Olhe , Cibele, é uma obsessão mesmo, mas como é que vou te explicar? É o tipo de assunto que quando mais eu leio, menos eu entendo. Já li as biografias de Lênin, Stalin, Churchill, Mussolini, Hitler, e nunca encontro, digamos, 'pontos pacíficos'. Não quero discutir História, aqui e agora, e nem mesmo falar da minha história. Mas um fato eu preciso te contar. Você notou a cicatriz na minha perna esquerda? Não? Não importa. Eu sofri um acidente, eu e minha irmã Luana, há exatos doze anos e dois meses, quando a minha bicicleta perdeu o freio, numa ladeira, e caímos em pleno calçamento, onde meu joelho foi rasgado e eu vi o meu osso! Então, eu me lembro, enquanto me levantava, a gritar por socorro, sentindo o meu sangue banhar minha perna, encharcar o meu tênis, eu me senti tal um soldado, em pleno campo de batalha, lá no front, com suas feridas, com os seus traumas, a se arrastarem sob tiroteios e bombardeios, puxando suas pernas, ou até as suas vísceras, a clamarem por socorro, a sentirem o sangue que vazava, ou a se banharem no próprio sangue e eu entendi o que é morrer gratuitamente, sem mais nem menos, pois eu achei que a minha hora havia chegado, e eu nem tinha quinze anos! Mas a minha preocupação eram os soldados e suas mortes inúteis, em todo aquele sofrimento grotesco, todos aqueles jovens sem futuro, que jamais se tornariam adultos! E a guerra sempre me inquietou, e principalmente a de 39 a 45, por todas aquelas ideologias, todos aqueles exércitos, e armas medonhas, todo aquele excesso!

    E HD se entrega a um silêncio, não de tristeza ou mágoa, mas de solene respeito, quando sentia-se diante do místico e do absurdo. Enquanto bebia a sua cerveja, Cibele o observa, a ele e a uma imensa foto da Praça Vermelha, com os muros do Kremlin e aquela Basílica com torres em formato de cebola, e ela não sabe o que dizer. No entanto, HD não concluiu ainda.

    - Se sou um obcecado pelo coletivo? Sim, acho que sim. Ainda que intolerante tantas vezes. Mas sempre pensei em criar movimentos, iniciativas coletivas, tipo a biblioteca comunitária, que eu e um amigo, Heleno, tivemos a idéia de criar naquela época, lá no bairro, com doações de amigos, e eu estava justamente indo para a biblioteca, que funcionava na casa de outro amigo, Reinaldo, quando sofri o tal acidente.

    - Então é por isso que você anda estressado, com estes planos de voluntariado, de ação coletiva, e o que mais?, e nadando contra a corrente de todo o egoísmo do mundo!

    - Só falta você dizer que eu sou um sonhador...

    - E não é? Não é um idealista acima de tudo? Fica aí sentindo o peso do mundo...

    E HD folheia o livro de fotos e antiquíssimos santuários asiáticos aparecem, ou templos sagrados, ou montes santificados, ou remotíssimas obras de arquitetura, e a sua vida se apequena, ele se deixa ficar, cabeça inclinada, ao som macio da voz de Cibele, a sentir-se numa cama, mas em repouso absoluto, tal aquela época do acidente, com toda a vizinhança preocupada, ele, o gênio local, e até a Sônia aparecera para uma visita, pois ela ainda não seguira viagem, sim, aquela viagem que durou dois longos anos e ele guardara uma caixa de cartas que jamais enviara, mas ela o visitou, estava ao seu lado e olhava a sua perna imobilizada em sua casca de gesso, branco maculado por marcas de digitais, e ela deixou que ele segurasse a sua mão. Talvez, sim, tenha sido naquele momento que ele se apaixonara mesmo!

    - Parece que vai chover... O ar está mudado...

    E de fato o vento está empolgado, invade a varanda com seus odores de terra e umidade e gotas em volteios, uma e outra, bailam entre as folhas a caírem das telhas. - Acho melhor entrarmos. E HD conduz Cibele para o interior do bar, fechando o livro de fotos e carregando as garrafas, enquanto ela se ocupa dos copos. E vem a chuva.

    - Eu não gostaria de acumular você com meus fardos, ou minhas batalhas íntimas. Eu quero, como nunca antes, um pouco de paz.

    E ele espera que ela entenda.



    No meio da noite, quase madrugada, imergindo de sonhos à espera de Godot, a sentir um corpo quente ao seu lado, sem saber o que seja, ou quem seja, nem quem ele é, igualzinho as personagens que esperam, que "alguma coisa aconteça", e que algo possa salvar todos do absurdo da espera, onde tentam se comunicar, mas é inútil, e até o suicídio é inútil.

    Sim, ali, Stevam Lucena, prostrado na cama, acariciado pelo escuro do quarto, obcecado  pela peça, desde aquela noite no teatro, ao lado de Bianca Maria, justamente aquela adormecida ali na cama. E teme, por instantes, que algo venha incomodar, e pensa, por momentos, escoando lentos, no que faz exatamente, deitado ali, ao lado daquela jovem mulher, a ressonar e estremecer, em sonhos, naqueles delírios nos quais ele não pode entrar, viagens das quais ele não pode participar.

    Os dedos seguem o contorno da face, onde, sob a pele, há músculos e ossos, e Stevam Lucena pode tatear a própria caveira, entorpecido e, ao mesmo tempo, apreensivo, a afastar de si os pensamentos que a escuridão sugere com tentáculos lúgubres, esparramada, sedutora, sob as cobertas, mas é inútil, pois, sob os seus dedos, que ainda tateiam, há, sem dúvida, uma caveira.

    Tudo culpa de Bianca Maria, com aquelas revistas em quadrinhos, cheias de sangue e terrores, onde um cara renasce do Inferno, outro a perseguir demônios, outro a invadir os sonhos adolescentes, e como se pode dormir assim? Aceitou o convite para uma visita, e até se alegrou com a permissão da sogra, Dona Efigênia, que deixou a filha dormir com o namorado, "melhor do que sair nessa noite de crimes", mas então Bianca abriu o baú de ossos e suas revistas, seus filmes B, seus contos soturnos, além da trilha sonora pavorosa, não poderia deixar de ofertar glamorosos e sádicos pesadelos, e ela revelou aquele horror, o que se repetia, ela deitada na ferrovia, e a locomotiva se aproxima e ela se deixa ficar e, pior!, começa a gargalhar, um riso sombrio que rasga a noite, e a locomotiva passa, ela está nos trilhos, e o riso continua, um riso além da morte!, e de fato uma locomotiva apita, escandalosa e zombeteira, uma vez que a ferrovia passa ali aos fundos, e atravessa a noite e penetra até nos sonhos!

    E além de canções sombrias, delirando entre o lírico e o brutal, entre a doçura feminina e a aspereza masculina, eles se deixaram imergir nas sonoridades, enquanto ele traduzia as lyrics que tratam de sadismos, torturas, lascívias, sombrios rituais de acasalamento, anjos cínicos e demônios criativos, cruzes em chamas, pais psicóticos e filhos psicopatas, e tudo com muita luxúria, sim, essas 'belas pessoas' em maquilagens! E é verdade, ele se recorda claramente, se entregaram a carícias ansiosas, antes de dormirem lado a lado, quase surpreendidos pela mãe, enquanto se sugavam e se lambiam, ao som dançante e sedutor, a trilha sonora de noites de angustiado prazer, enquanto ele se aninhava nos braços daquela que se tornava mulher e mãe, e sugava aqueles pequenos seios, não a espera de jorrante alimento, mas de ansiado sossego.

    Agora, ela, Bianca Maria, não desperta, e ele, Stevam Lucena, voltando a reclinar ao lado dela, a admirar seu sono, aquele mundo dele afastado, a ele impenetrável, é agora incomodado pela eminência de seu próprio desejo, a brotar entre suas pernas, inoportuno e sem ser chamado, ao transbordarem as lembranças nada remotas, mas todas acumuladas e amontoadas, sem qualquer ordem, jogadas e arremessadas sobre ele, numa noite de insônia e de ereção, quando ele quase gozava no escurinho da festa deprê-dançante, ela de sedução oriental, odalisca fugida das Mil e Uma Noites, a nunca cansar-se dos beijos, a entregar-se as carícias dele, a sondar paraísos íntimos e então pedir permissão, "preciso ir ao toalete" e era verdade, quando quase.

    Mas, ela, sua Bianca, não entendia, nem entenderia, o quanto aquelas descobertas significavam para ele, com sua mente entulhada de cenas sensuais de revistas vulgares e filmes sem qualquer decência, onde casais se entregam a performances corpóreas de gemidos e gozos, sem qualquer pudor ou dignidade, e ele sempre se negava, sempre carregava um manto digno de "pensar naquela que foi embora para sempre", mas há quanto tempo ele guardava o luto? Uma infinidade de momentos de tortura, uma carga de peso nunca avaliada, um torpor a travar seus movimentos, sim, quando sentira uma vertigem diante de Leila, ou se empolgava com o carinho de Sandra, que se recusava tanto a ele quanto ao irmão, o Alfonso, que nem se deixou abalar e agarrou outra Sandra e ele, Stevam, sempre a assistir a quadrilha, o bailado onde os casais se alternam, "Margarida que amava o Palmeira, que amava a Roseira, que amava o Lírio Silvestre" e ninguém contente, todos amuados em suas solidões cuidadosamente cultivadas, suas dores pacientemente acariciadas, todos orgulhosos, sim, solitários, mas orgulhosos...




    Novo espaço de lazer e cultura, era o que prometia o artista-proprietário, quando convidou, por sugestão de Aurelius Magno, o poeta boêmio, velho conhecido, o nosso Stevam Lucena para cuidar dos volumes e catalogações, bem como a cerimônia de inauguração da sofisticada Livraria.

    Desde sua entrada, com direito a poltrona confortável e mesinha com revista, e um bar à disposição, com cerveja e sucos naturais, poderia o leitor relaxar, sossegado, e dedicar-se às leituras de sua preferência. Depois as estantes, com separação temática. Literatura Brasileira ou Estrangeira. Negócios ou Meditações. Manuais de auto-ajuda ou compêndios de Culinária. No mais, dois computadores à disposição para navegadores da rede mundial.

    Andando por entre caixotes de livros, Stevam Lucena cuidava da classificação e rotulagem dos mesmos. Desde os meados de outubro, ainda às voltas com uma reticente Bianca Maria. Estressado, ainda mais quando o gerente surgia. E ei-lo a dar mais ênfase e destaque aos livros de conteúdo evangélico enquanto o artista-proprietário, praticante de sabedorias orientais, preferia uma luz de holofotes sobre os de Meditações, quando não os de Auto-Ajuda. E nisso ficavam. Stevam Lucena cuidou em dar ênfase aos de Literatura Brasileira e os de Clássicos Estrangeiros, no que recebeu desaprovação geral.

    A importância de se respeitar os que podem mandar. Pois os outros merecem apenas obedecer. E os descompassos então? Stevam Lucena se sentia encher de nojo por toda aquela subliteratura, como discutiria com Túlio, no lançamento do romance vampírico do Rafael Santos, o autor de sucesso entre os vultos noturnos. E ali trabalhava para um místico que era sócio de um neo-cristão, enquanto ele registrava os livros, com promessas celestiais e bençãos apostólicas, mas com ânsias de deitar todos ao fogo!

    Mas o seu trabalho ali está além e acima de quaisquer crenças ou ideologias. Não estamos mais no tempo da inquisição. Não estão exigindo um atestado de orientalismo ou neo-pentecostalismo. O problema é que você fala demais! Igual aquela tarde em que criticou os holofotes sobre os neocristãos. "O que você conhece de livros? O que conhece dos gostos dos nossos clientes?", e ele ficava em silêncio, daí estar condenado.

    Mas passava a tarde organizando a prateleira de best-sellers, e ouvindo um CD da Lorenna McKennit, em baladas célticas onde irmã invejosa lançava a outra nas águas turvas, e noites no mercado persa são ornadas com tochas em procissão, e Stevam Lucena encontra em seus arquivos os poemas copiados de Bianca Maria.

    A procura do amor, a total entrega que finda em sofrimento, o desgosto eterno advindo da Perda, a amargura que todo amor oculta, e ele, Stevam Lucena, entrando nessa rede de aflições, sabendo que ao lado dela jamais será feliz, mas todo amor envolve perdição e ele não precisava ter lido Camilo Castelo Branco para saber disso.

    Então Stevam Lucena socorreu-se ao celular, louco para ouvor a voz dela, daquela que tecia a teia onde ele se enroscava, se debatia e se perdia. E ela toda amável, "Oi, meu bem, o que foi?" e ele, todo em pânico amoroso, "É que senti a sua falta. Apesar de você estar sempre comigo. Estou lendo os seus poemas. Não acredita? E advinhe o que estou ouvindo.", e aproximava o celular do aparelho de som, "Enia? Era? O que você está ouvindo?", "Ora, não reconhece? É a Lorenna. Aquela canção do mercado persa. Mas tem essa, linda, musicando um poema de Yeats.", e a melodia fluía e se derramava nas prateleiras, manchando os livros com uma tinta nevoenta de desespero, de distância, de falta de algo ou alguém. Alguém, ali, com sua voz gotejando ao telefone. "É tão triste. E chove aí?", sim, chovia, gotejava de telha em telha, e o céu desabava e era uma tarde de novembro com chuva quente e úmida, e um musgo crescendo na alma, um terror verde manchando as paredes, as unhas crescendo e os cabelos em arrepios, tudo isso nele, e naquela voz, que deitava carícias à distância, pois nasciam nas frestas das lembranças, um corpo nu a rastejar sobre outro, com línguas e palavras quentes e uma melodia de tochas que incendeia o quarto imerso numa luz rubra e uterina, e todos os gestos são emoldurados pelo desejo e onde tudo se move de acordo com um ritmo que desconhecem, mas que sempre souberam existir.

    "Preciso desligar, querida, preciso trabalhar.", mas quem poderia garantir? Sua mente não estava ali. Estava nas noites da Arábia, nas colinas do Sinai, nas pegadas sobre a areia da Terra Santa, nas fogueiras da Inquisição, nos mercados de Marrakesh, nas trilhas para Santiago de Compostela, nos castelos dos Templários, na tumba do Conde Drácula, nas masmorras da Ditadura, nos conventos onde o desejo explode, nas gotas de sangue sobre as máquinas de tortura.

    E entre as estantes ele vislumbrava os vultos dos poetas, tal na noite de inauguração. Ali o Álvaro com versos de Fernando Pessoa, enquanto serviam um vinho branco, e Aurelius, inclusive com as boas-vindas, e depois o HD com poema de Ronald de Carvalho, "Onde estão os teus poetas, América?", e uma jornalista exaltando os benefícios da leitura, e Aurelius sussurrando em seu ouvido, após a segunda dose (que Stevam não bebia, visto estar no trabalho!), "E poesia serve para o quê mesmo?", e todos contentes a imaginarem que ele finalmente "encontrara um lugar no mundo", nesse mundo de asperidades, ele, o menino incomodado, o pequeno Atlas, ali a rastejar sob o peso do absurdo, o menino que sempre tivera tudo, menos sanidade, entre um pai esquerdista e uma mãe esotérica, entre "a foice e o martelo", e uma pirâmide dourada e um gnomo de gorrinho verde.

    Estavam todos enganados. E o que o segurava ali? Um dinheiro certo para levar a namorada ao cinema e ao possível motel? Uma vitrine para a sua posição social? Um reconhecimento por sua eficiência? Um troféu por seu amor a literatura? Não sabia, pois limitara-se a acomodar-se na mesa de leitura, ao som de cantatas de Johann Sebastian Bach, e folhear best-sellers, por exemplo, aquele sobre o sorriso da Mona Lisa. Leonardo da Vinci um grande Mestre e um enigma a falar de um Graal, mas que não era um cálice, mas um "sangue real", o de Cristo e Maria Madalena!

    Folheia e lê trechos inteiros, entre um cliente e outro. Que muito elogiam o seu bom-gosto, o seu estilo clássico, os seus ares aristocráticos, sob a luz incidente, de jaqueta preta e calças idem, e sapatos clássicos, bem engraxados, de pernas repousadas, em porte ereto, e unhas cuidadosamente aparadas, a folhear com cautela infinita um volume recém-cadastrado, que não fica abaixo de sessenta pratas em valores reais. Aristocrata como pede o figurino, a digerir poemas de Yeats e Eliot, ao som de Bach, quando não um Mozart mais solene.

    Museu do Louvre, um crime, estranhas conspirações, o mocinho: um pesquisador ianque, a mocinha: uma policial francesa, perseguições e charadas intelectuais, além de vultos eruditos que tudo explicam. Ora, isso só pode terminar em filme! Um verdadeiro blockbuster! Enquanto isso a chuva cai, sim, ela sempre cai. E um violino triste acaba de completar a tarde cinzenta com uma trilha sonora envolvente, enquanto os protagonistas percorrem catacumbas em Londres, e prelazias encobrem segredos teologais. Há quanto tempo não experimentava emoções semelhantes? Desde que lia Agatha Christie, contos de Sherlock Holmes, ou calhamaços de Umberto Eco, sobre monges fanáticos e esotéricos sanguinários, ele não se deixava envolver tanto por um livro! E era tudo tão simples! Claro, uma pesquisa histórica acabaria por abrir fissuras e rachaduras e o castelo desabaria, mas nada de academicismos aqui! Imagine você: Cristo tem uma geração que se alastra pelo tempo, com descendentes até hoje! Isso é de matar o Papa, e seus asseclas, de dor de dente! E Maria Madalena a ascender a um posto de fidalga! É de se pensar porque sempre quiseram humilhar a mulher, com um rótulo de 'pecadora'! mas tantas possibilidades! A história é uma Babel de narrativas e é de se perguntar se alguém em algum momento disse a verdade, ou tudo não passará de um fio a mais no novelo?




    Aos sábados, Stevam Lucena é dispensado, de seu serviço e fastio, às quatorze horas, tendo assim diante de si uma tarde com tempo hábil para descansar antes de encontrar-se com Bianca Maria, que desta vez o convidou para um passeio no cemitério-parque, na manhã de domingo.

    Ao mergulhar na atmosfera daquele quarto, Stevam Lucena sentia uma espasmódica volta ao útero, com luz mínima, aconchego total, além de um corpo acolhedor, ali sob as cobertas, enroscado em suas pernas, beijando o seu peito, e ele a sondar desejos e virtudes, "até onde posso ir, querida?", "Ah, Stevam, hoje não, estou, ah, você sabe", e ele não é capaz de conter a frustração, "mas logo hoje, querida, imaginei que, mas por que você não me avisou? Assim, eu apareceria amanhã, e", mas ela agora estremece, "Então você vem aqui pra isso! Eu achei que você gostasse de mim" e ela não pode conter as lágrimas, que ele sente escorrerem por seu braço, que ampara dela a face, agora úmida.

    "Mas não é isso! Eu estou aqui porque eu gosto de você. Mas é que eu fico decepcionado, gosto de você todinha, é isso.", Stevam Lucena ainda sussurra, mas Bianca Maria deixa as lágrimas rolarem, "Todos são assim, só querem ir para cama com a gente, só pensam nisso!", e um distanciar, um abismo racha os lençóis e ameaça separações, mas ele não pode permitir, abraça e acolhe aquela que sofre, e ela se deixa derreter naquele abraço, até disposta a ceder aos desejos dele, mas não, ele sabe respeitar uma mulher e se ela não está disposta, é melhor virar para o lado e dormir.

    Mas, no entanto, só o fato de Bianca Maria dormir ao lado de Stevam Lucena, na cama dela, provoca um terremoto doméstico, e Dona Efigênia considera que o casal está ultrapassando os limites, e ela já conversava seriamente com o Stevam, após aquela noite do pesadelo, e ele esclarecera todo o seu respeito por Bianca, mas que o amor deles permitia uma entrega íntima, e que ambos desejam, "eu não estou seduzindo a sua filha", e a mãe se silencia, ainda mais porque Bianca acaba de sair do banho, única oportunidade dada, à mãe e ao namorado, para que confabulassem.

    Sim, apenas o fato de dormir com o namorado provoca ondas sísmicas que ameaçam todo o edifício familiar, e não afetou qualquer efeito esclarecer que nada houve naquela noite, e Stevam continua dormindo, enquanto mãe e filha discutem, e se a filha crê nada fazer demais, a mãe insiste que "homem não é confiável", sim, a mãe que vive separada do marido, talvez até abandonada pelo homem, com uma filha para criar, mas Stevam, que nem se envolve com a própria família, vai agora intrometer-se em querelas de uma família outra?, não, ele continua a dormir.

    Amanhece. Cordiais 'bom-dia!' de parte a parte. Comentários amenos, mesmo ausentes, pois a noite anterior nem existiu, e Bianca despertou ao lado de Stevam, e ele jamais permitiria que sabotassem o esperado passeio no cemitério-parque.



    Um cemitério, sim, mas também um parque, uma verdejante colina, onde somente as placas gravadas com nomes e datas mesclam o que seria um relvado digno de cartões-postais, e do outro lado, outra colina, uma visão panorâmica e privilegiada da favela local!

    É chamado Parque da Colina, e muito procurado por família de classe média, que sonham em entregar os entes queridos à paz e ao sossego da campina, sem cruzes, ou lápides, ou epitáfios, esses adornos e ostentações que criaram a fama e a decadência do Cemitério do Bonfim, o tradicional e tradicionalista. Mas aqui, na Colina, há apenas a relva rasgada por nomes, limitados entre dois números, o que informa o nascer e o que determina o morrer.

    O Parque da Colina está oculto atrás da colina do Novo Gameleira, e o acesso à sua portaria principal é possível pela rua que contorna o Gameleira, os centros pedagógicos, os ginásios, ao longo da avenida sanitária, que segue para o Salgado Filho e Betânia, mas se desviando, à oeste, para o Vista Alegre, onde a riqueza e a miséria convivem lado a lado.

    E Stevam Lucena segue de braços dados com Bianca Maria quando adentram os portais do cemitério e respondem às boas-vindas dos porteiros, e buscam a paz, possível apenas nos cemitérios, encontrando um banco disponível, numa espécie de coreto, avançando para dentro do lago, aliás, um reservatório de água, artificial, mas lírico, onde gansos e cisnes navegam de margem a margem, a deixarem ondulações circulares onde os bicos buscam comida e onde as asas se estendem, tanto ele quanto ela resguardam um silêncio, nesta manhã dominical, que nem parece manhã de domingo, com este amanhecer todo nublado, tal uma manta cinzenta, mais a assemelhar-se a um Dia de Finados, quando o dia assim amortalhado ou uma triste chuva a prantear a referida data.

    Uma aranha se afasta, a abrigar-se nas frestas no piso, quando o casal se acomoda, a sentir os volteios da água ao redor, antes que os gansos se aproximem ou as aves ousem rasantes sobre a superfície arrepiada, onde pétalas murchas, ou túmidas, deslizam semelhantes aos botes dispersos após um naufrágio. "O dia murchou", ela diz, e observa as nuvens tal um cobertor jogado sobre um corpo sem vida, e ele concorda, inclinado para ela, agora a segurar sua mão, "eu ouvi a conversa, a discussão entre vocês, e sua mãe não confia em mim", ele ainda hesitava, mas é preciso falar, colocar as cartas na mesa, e ela levanta o olhar, que ele não vê, oculto atrás dos óculos escuros, "Minha mãe não confia em homem algum. Não se preocupe, o problema não é com você, Stevam", e aquele tom, aquela segurança, aquela altivez, de onde ela tirou?, ele se permite pensar, esforçando-se para adentrar aquela vida de evasivas e meias-palavras, e de súbito uma mulher solene e altiva diante dele, com aquelas frases concisas, lacônicas, carregadas de todo o peso de uma Verdade, "o problema não é com você", e mais, ela agora diz, "É que minha mãe tem ciúmes, só isso. Vivemos só nós duas, agora qualquer um é estranho, um intruso. Ela não suporta me ver com um namorado, ela logo imagina, sei lá, que é traição", e ele ainda a segurar e acariciar os dedos e anéis, "o problema não é comigo? Quer dizer, qualquer namorado que você escolhesse, ela criaria tempestades?", "ah, sim, ela a-do-ra tempestades", deixa uma pausa e olha para ele, "Então você ouviu nossa discussão! Pensei que você estivesse dormindo!", "Sim, eu dormi, mas não antes de ouvir o que ela disse sobre o seu pai, e ela não gosta nadinha do seu pai, hein?!", "Ah, essa é uma longa história", e deixou o silêncio, e ele desistiu de entender agora, de saber o que o passado abrigava, não ousaria arrancar a fórceps as lembranças dela, nem pretendia arrasar aquele momento, "desencantar a magia", como ela dizia.

    Assim Stevam Lucena admira a calma de Bianca Maria a apreciar o voltear dos cisnes, talvez a lembrar-se de alguma valsa, ela que outrora desejou ser bailarina, e o que, ou quem, ela é hoje?, e os gansos grasnam a chamarem seus companheiros, ou suas mães, quem sabe?, e atravessam o lado inteiro em tsunamis até a palma da mão dela que se estende, e ela imita, com leve sotaque até, as invocações das aves, e ele diz, "Cuidado, você pode estar ofendendo a mãe dele", mas ali não há lugar para qualquer humor, e ele lembra do amor aos animais que ela defende com unhas e garras, quando ele afasta a gata Sherazade, branca e gorducha, que se deita entre eles, sobre o edredom, na cama, e assiste, entediada, as carícias deles, e Bianca até se emociona com a literária morte da cachorra Karenin no livro do Kundera, "A insustentável leveza do ser", que ele lia, ou relia, na manhã de domingo, após uma noite de pesadelos, dignos de quadrinhos de terror e filmes B, a cena da morte, Tomas e Teresa, o casal protagonista, enterram a cachorra que vivera ao lado deles, em cúmplice companhia, e também aquele episódio da gralha enterrada viva pelos garotos cruéis, com seu 'bico acusador', e ela ouvia, reclinada em seu peito, ele sentado na cama, ambos sob o edredom, e a mãe entra no quarto e Bianca diz, num suspiro, "Ah, é tão bom! Eu acho que eu estou apaixonada!", e ele, explodindo de contentamento, mas discreto, continuava a leitura, em voz de locutor, de alguns trechos do romance, as cenas das colinas de Praga, onde os desesperados se deixam alvejar nos bosques, quando a vida deixa de ter sentido, quando os tanques invasores já não afastam mais o tédio, e então vamos passear na colina, vamos passear nos cemitérios, que para a meditativa Sabrina, podem ser mais do que depósitos de ossos e pedras.

    Após um sessão de silêncio os olhares giram ao redor, ela a dizer que tem sede e sugerir uma 'missão de reabastecimento' nos bebedouros, disponíveis nas proximidades das salas de velórios. Onde familiares transitam, compartilhando, naquele momento, três velórios, em salas distintas, mas trocando impressões, lembranças e lágrimas na curvatura dos corredores, rumo aos bebedouros e lojas de conveniência, onde até serviam sanduíches. Alguns se deixavam ficar à vontade, às mesas, tomando um café, para espantar o sono, após uma noite de vigília, enquanto outros, solitários, ou em pequenos grupos, passeavam junto as coroas de flores, ali mesmo confeccionadas por mãos hábeis.

    Stevam Lucena compra garrafas de água mineral para ambos, enquanto Bianca Maria observa faces e palavras, encolhida diante dos grupos que passam, pequenina com suas vestes lutuosas, uma jovem viúva, nos corredores dos velórios, para depois comentar, enquanto se afastam, "você não faz idéia de quanto custa um túmulo! Então pense duas vezes antes de morrer!", e não havia qualquer traço de humor negro na face ou nas palavras, e eles se encaminham para a colina, pisando entre os túmulos e suas placas gravadas, nomes e datas, o que sobrou de uma existência, X da Silva, 11-03-1976 - 12-01-1995, ou E de Castro, 20-07-1933 - 18-08-1984, ou tantas marcadas, morreram jovens, golpeados por punhais, ou doenças, ou balas perdidas, ou morreram adultos, de câncer, ou álcool, ou acidente, ou morreram idosos de reumatismo, degenerescências e mágoas, e agora caminhamos sobre os seus restos mortais, "olhe este aqui, R da Silveira, não viveu nem a juventude, 1979-1990, uma década de preparativos, de estudos, projetos e sonhos e findou como?", e ela observa a placa para a qual ele aponta, e ela lembra-se do túmulo de um jovem, lá no Bonfim, que morreu na década de 30, e ela saía do colégio, e descia ao Bonfim, com uma garrafinha cheia de vinho oculta na mochila, e se entregava a uma conversa, que obviamente não passa de um monólogo, "coisa de Hamlet diante da caveira", com o jovem morto há sete décadas, "e eu imaginava que ele era um poeta, e eu era sua jovem viúva, a prantear sua morte ao longo das épocas, imortal eu seria, apenas para lamentar o suficiente", e no alto da colina, sobre um túmulo recém-aberto e recém-fechado, onde bolotas de terra ainda afloram ao redor, uma imensa coroa de flores, além de ramos de pétalas artificiais, e ela colhe uma das rosas, passando a exibi-la no cabelo, "Você está linda", ele diz. E continuam o passeio sobre os túmulos.





Data: Thu, 1 Dec 2005 - 23:55
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: abrindo o coração
Para: Valkyria [amanda.dark@XXX.com.br]

Olá Amanda,

Aceite minhas saudações.

Então realmente não queres ser minha amiga?

Achas realmente que eu posso esquecer oito meses de afeto
com uma pessoa especial?

Nunca foi meu propósito magoar-te. Sou áspero - e sardônico,
às vezes - mas sempre contei com a tua atenção, sempre
confiei em ti (até abusando da tua confiança em mim!) e
pensando em como continuar um affair à distância.

Eu te admiro e espero que ainda possa me admirar (sem idealizações)

Estou entrando num relacionamento delicado com a Bianca,
pois tanto ela quanto eu temos traumas de casos passados,
e não tenho com quem desabafar.

Assim, tenho aprendido com meus erros, e tentando superá-los.

Minha amizade pode ser valiosa. Lembre-se de mim.


Stevam




    Desta vez um tanto atrasado, HD adentra o parque ecológico, a lembrar-se daquele sábado, duas semanas antes, em que, em plena arena, enquanto o vento derrubava as folhas secas em cascata, ele se entregava a leitura possessa de "América", de Allen Ginsberg, da tradução de Claudio Willer, daquele livrinho que era do Alfonso, que agora está nas mãos de Leir Macedo.

    Mas aquela tarde, a tarde de outrora, sob as folhas caindo em rodopios, ele gritava.

                             "América eu te dei tudo e agora não sou nada
                              América não aguento mais minha própria mente.
                              América quando acabaremos com a guerra humana?
                             Vá se foder com sua bomba atômica."

    E ele via os soldados com suas miras laser e ouvindo marchas militares e trilhas sonoras de videogame dentro de seus capacetes interligados via satélite, e ele via os helicópteros em bombardeio sobre uma aldeia cercada pelo deserto amarelo, e ele via uma família se refugiando em escombros, em desespero com dialetos árabes, e ele via generais marcando alvos num imenso mapa cheio de pontos, nomes e distâncias, e ele via os congressistas em mãos levantadas votando em novos orçamentos para os gastos militares enquanto discursos cruzam o continente, e os continentes, em nome da democracia e da civilização, enquanto chovem bombas e pacotes com alimentos.

                                 "América tudo isso é muito sério.
                                  América essa é a impressão que tenho quando
                                  assisto à televisão.
                                  América será que isso está certo?"

    Mas agora, neste exato momento, no recluso recanto dos literatos, Leir Macedo ocupa-se da leitura dos versos de Alfonso sobre suas andanças, isso antes de HD acomodar-se, pois não demora muito, Leir descobre aquele livrinho de "Uivo e outros poemas" e nova invocação - "ó grande Ginsberg!"

                          "Por que o mundo está à beira do abismo e ninguém sabe
                              o que virá depois
                          Ó Fantasma que minha mente persegue de ano para ano
                            desce do céu para esta carne trêmula"


    E ainda ali sentado, HD pode ver pessoas se atirando num abismo de quinhentos metros entre escombros e fumaça, e pode ver um imenso boeing, cada vez mais boeing e cada vez mais imenso penetrando na delicada pele da segunda torre gêmea, e ele pode ver mais corpos em queda livre, enquanto helicópteros giram em vão, e ele pode ver as silhuetas de concreto da ilhota, o centro, o centro financeiro, o porto, a estátua a prometer liberdade para todos, e ele pode ver os cidadãos cobertos de poeira, sem rumos, a correrem pelas ruas sob uma chuva de detritos e papéis e fragmentos de membros humanos, e ele pode ver, em mil imagens, repetidas à exaustão, a irreversível queda, implosão, desintegração, eliminação, das torres gêmeas tão arrogantes.

                   "Vulcões de carne sobre Londres, em Paris um chuva
                             de olhos - caminhões carregados de corações de
                         anjos para lambuzar as paredes do Kremlin - a
                                              caveira de luz para Nova York - "

    E, sem mover um músculo, sem deslizar as pupilas, sem precisar desfazer a máscara simpática da face, HD, ainda ali sentado pode se lembrar de metrôs voando em cacos nos subterrâneos de Madrid, e pode lembrar de corpos metálicos se encolhendo e se estendendo com corpos humanos em pedaços nos buracos de London, e lembrar de vultos carregados de bombas se atirando contra comboios militares nos arredores de Bagdah, e lembrar de jovens com versos do texto sagrado em bocas abertas gritando a favor do divino e contra os usurpadores, e lembrar de ambulâncias loucas nas pistas escurecidas de uma tarde à sombra das pirâmides quando turistas são atacados no Cairo, e lembrar de e lembrar de e lembrar de lembrar.

    E Leir Macedo já finaliza a leitura, sim, daquelas viagens proféticas de Allen alargando sua consciência com poções espirituais, em suas visões de drogas místicas e sonhos de união com o Grande Ser.

    - Mas e Whitman, meus bons, quando o leremos? - é o que HD logo quer saber, passeando o olhar aflito.



    E quem ali se encontra? Alfonso, junto a porta, e, diante de HD, o outro-Stevam, isto é, o Valêncio, e também o já mencionado Leir, e ao seu lado o estudante Soares, e ao lado deste o escritor M. Todos os nossos velhos conhecidos, afinal. Mas HD não pode reprimir uma loucura interior esta tarde, ainda nas chams do orgasmo sensual, ainda nas alturas do êxtase erótico, somente a sentir o corpo elétrico, onde "o odor dessas axilas é mais puro que as preces", como não lembrar de Walt Whitman?

    - O problema é que muita gente acha que Whitman, muito citado por esses beatniks, hipsters, hippies, neo-hippies, que Whitman era um 'porra-louca', um velho libertino, e confundem livre sexualidade com libertinagem, e não entendem nada da libertação dos sentidos...

    - Coisa que Blake já dizia... - completa Leir.

    - Sim, claro. Blake. "Se as portas da percepção se abrissem...", sim, grande influência para o The Doors...

    - Mas isso tem uma referência ao Huxley, não? Experiências com alucinógenos... - intervem o, até então, silente Alfonso.

    - Sim, claro, tudo junto. Tudo referências, entende? Tudo uma coisa só, um desejo único, de parar com essa hipocrisia de diminuir o corpo, declarando-o menor que uma tal de alma, e isso é platonismo, meus caros, e eu...

    - Platão realmente insiste que a alma está presa no cativeiro do corpo, enquanto... - inicia, com certa calma, o outro-Stevam, mas quem pode ouvir?

    - "As portas da percepção". E o que Jimi Morrisson, o poeta do rock, lia, hein? Blake, Rimbaud! Daí as imagens de devaneio, que só significam uma coisa: a busca por liberdade, livre expressão da mente! O quanto utilizamos de nossas mentes? Nem dez por cento! E você lendo as letras do Doors e ouvindo, com a mente aberta, vai perceber a sugestão dessas imagens, e é Rimbaud puro, cavalgando a melodia, e é Blake puro, no barco de cristal cheio de visões!

    - E Ginsberg tem um poema sobre o Whitman... - Leir aponta o livrinho, já nas mãos de HD.

    - Sim, Ginsberg não oculta sua devoção ao mestre, ainda que não tenha alcançado a libertação que Whitman alcançou.

    - Realmente fazem uma leitura inconsistente de Whitman, e ressaltam sempre essa temática de sexualidade, sem entenderem a transcendência que ele buscava, e não se confunde com religiões ou esoterismos... - Alfonso, em acadêmica exposição.

    - Concordo, concordo. Mas há um atraso de meio século entre Whitman e os beatniks, e muita coisa mudou, com certa liberação das mulheres, com duas guerras sangrentas em grande escala, fora outras mais localizadas, fora as campanhas de extermínio, fora os campos de concentração, e então, toda essa poesia, se é que é possível escrever poesia a pós Auschwitz, como dizia Adorno, toda esta poesia está impregnada de amargura, ressentimento, gritos agônicos e restos de baixa-estima, que não há em Whitman, que esperava se libertar de tudo isso, e de todas as categorias e rótulos, pois tudo hoje são rótulos, vejam aí, as tribos urbanas, um é punk, o outro é roqueiro, e outro é gótico, e sei mais lá o quê, tudo rótulos, entendem?

    - Então leia aí algum poema...

    - Ok. Alguns poemas do Allen e alguns do Whitman, com certeza, meus caros, mas vou lembrar que eu mesmo me sinto muito pequeno diante do Whitman, pois sou um ressentido, Allen era um ressentido, e o próprio Nietzsche sabia ser um ressentido, e Fernando Pessoa, enquanto Álvaro de Campos, sabia-se ressentido também, mas, contudo, Whitman, não!, ele queria abraçar a todos, os de seu tempo, e as gerações futuras, e ele considerava que cada pessoa merece um poema, ou seja, todos somos únicos, especiais, e insubstituíveis.

    E HD então, finalmente, lê o poema "Um supermercado na Califórnia", e ressalta. - Olhem, percebam, "Aonde vamos, Walt Whitman? As portas se fecharão em uma hora. Que caminhos tua barba esta noite?", o sem rumo de Allen e a espera que o mestre seja o guia, e notem "Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando para o nosso silencioso chalé?", entendem? Sem comentar o sensual e místico "Poema do amor sobre um tema de Whitman", e se vocês já leram "The Sleepers", e creio que já li um trecho em tempos passados, em saraus de outrora, entenderão o recado, pois não se trata de libertinagem, nem pornochanchada, mas de sacralização do corpo. Deixe-me achar aqui o "Song of Myself"...

    E HD agora volta-se, em corpo e atenção, para a sua inseparável pasta, cheia de papéis, rascunhos e poemas e encontra o pequeno volume de traduções de "Canto de Mim Mesmo", por Alita Sodré, um valioso, e valorizado, presente de Alfonso, com votos de sincera amizade.

    - E vejam, meus bons, "Sou o poeta do corpo e o poeta da alma", e também "Creio na carne e nos desejos, / Ver, ouvir, sentir são milagres e cada parte ou apêndice do meu corpo é um milagre." e também, "Costumo dizer que a alma não vale mais do que o corpo, / E que o corpo não vale mais que a alma,", entendem? E ouçam esse poema sobre os animais - e HD começa a ler o trecho 32 do longo poema, já tendo eletrizado toda a sua platéia, a ressaltar alguns trechos - Ouviram? Eis "Eles não sofrem nem se queixam de sua condição" e também, "Nenhum está descontente nem obcecado pela mania de possuir as coisas" e ainda, "Nenhum é honrado ou infeliz sobre toda a face da terra", entendem? A total igualdade, sem perder a singularidade? A aceitação do outro, do ser e do corpo do outro? Quem, de nós, é c paz de tal proeza?

    Não é necessário registrar que um silêncio desceu sobre o recanto dos literatos, que após uma troca de olhares, se deixaram a contemplar a paisagem de um quadro, ou a morder os lábios inferiores, ou a ajeitar as meias nos sapatos, ou a murmurar litanias consigo mesmo, ou a observar cabisbaixo a disposição dos móveis, e HD não parou por aí, reconquistando o livrinho e respondendo ao poema lido por Leir, momentos antes.

Então, se ouvimos "O Salmo Mágico", é necessário que ouçamos então a resposta a ele, "A Resposta", e vejam o que a ânsia de integração com o Todo pode levar à dissolução no Nada.

"Deus responde com minha condenação!
Esta poesia apagada do lenho ardente
Minhas mentiras respondidas pelo verme no meu ouvido..."


E segue-se a leitura, entre exaltada e melancólica, onde se precipitam imagens de morte e descrença,

"mãos puxadas para a escuridão por uma horrenda mão
  - cego contorcer-se do verme, cortado - o arado é o
próprio Deus"


e soam trombetas de juízos finais e decomposição, e o outro-Stevam já murmura, "Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa", e Alfonso encontra um "Spleen" de Charles Baudelaire, e Leir se prostra na cadeira, e o escritor M., idem, e o estudante Soares sustenta um sorriso de conveniência, e todos estão plenamente e intimamente desconfortáveis, e a leitura pretende submergir a todos num poço de podridão, e o outro-Stevam novamente murmura, "Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa".

    - É isso o irracionalismo? É isso a busca de Deus a temer-se a aniquilação do Ser na morte? Que conforto buscamos? Que seita passaremos a freqüentar? Que deus evocaremos? Que banda de rock poderá nos salvar...

    - "Nunca entregue sua vida a uma banda de rock" - cita, em ironia, o atencioso Alfonso.

    - Que sacrifícios precisaremos inventar? Que...

    - Impressão minha, ou eu ouço um eco de Nietzsche? - comenta o outro-Stevam, sem atrair a atenção de HD, muito mais ocupado com seus monólogos.

    - Que pastores escolheremos? Que autor de best-sellers será o nosso guru? Quantas palestras de oradores sensacionais e especialistas em marketing precisaremos freqüentar? Quantos seminários e quantos congressos precisaremos anexar aos nossos currículos de bons mocinhos? E o que nos protegerá da morte? Quem aqui já está quitando, em suaves prestações, sua propriedade no Reino dos Céus? E quantos de nós seremos Alguém um dia?





    A Universidade Católica está no alto de uma colina, com seus prédios de fachadas brancas e floreados arquitetônicos neo-clássicos com colunatas gregas ou pilares retorcidos ao estilo barroco e abriga as faculdades de Direito e Filosofia, em torno das quais novos prédios, mais modernos, se esrgueram, semelhante a expansão de uma cidade a partir de uma aldeia.

    E Bianca Maria está ocupada, debruada diante de uma prova de Português, enquanto Stevam Lucena está diante dos portões, ansioso, atento aos algarismos da hora no visor do celular, e futuros universitários saem, ao lado de futuros excluídos, pois dezenas de miríades disputam vagas que não chegam a um décimo do número de candidatos, no vestibular mais neurótico, aquele da Universidade Federal.

    Por morar no Calafate, Bianca foi listada para fazer as provas na PUC, ali no Coração Eucarístico, e Stevam não hesitou em comprometer-se a esperá-la, para um passeio pelas praças, em noite agradável, para evitar, ou ao menos aliviar, o estresse dos exames, que ambos julgam ridículos, ambicionando por provas ao longo do ensino médio, o que evitaria a neura destas provas totais, inchadas, obsoletas, mas que dão vultuoso e volumoso lucro aos tantos cursinhos que crescem iguais a ervas daninhas no canteiro das florescentes mentes estudantis.

    É o que escorre pela mente ansiosa de Stevam Lucena, enquanto espera, a enumerar candidatos e candidatas a descerem, em grupos, ou sozinhos, e se afundam na massa de pais, irmãos, colegas, amigos, namorados ou namoradas, maridos ou esposas, a esperarem, todos em úmida ansiedade, ainda mais naquela tarde quente de início de dezembro, as considerações e os tantos comentários sobre as provas, as questões, as dificuldades, as possibilidades de aprovação, enquanto mascates oferecem água, balas, chicletes, doces, ao lado de policiais que apitam, frenéticos, diante das colunas de carros que atravessam diante dos portais, e celulares tocam meio ao tumulto e "onde você está?", é o que perguntam os pais, irmãos, colegas, amigos, namorados ou namoradas, maridos ou esposas, em aflitiva espera!

   E Stevam Lucena compartilha a tarde e o momento com todos os que atendem celulares, e daqui a pouco o dele também vai se unir ao coro vespertino, mas o que atrai sua atenção agora, não é a multidão, ou os apitos frenéticos, ou os vendedores ambulantes com suas águas, balas, doces, nem a angústia da espera, da voz de Bianca Maria a dizer que a prova foi fácil, que depende das provas de amanhã para ela colocar os pés na Federal, mas o que atai agora é um vulto que se destaca da multidão diante da portaria, é um vulto feminino, de roupas soturnas, com meia-calça preta e coturnos, com um sobretudo escarlate e longos cabelos soltos e esvoaçantes, uma jovem vampira, antecipando-se ao crepúsculo.

     Quem será?, ele pensa, e quando ela, a jovem vampira, passa, ele julga já ter conhecido aquela presença antes, não o olhar, pois os óculos soturnos não permitem, e ele julga conhecer aquele vulto, sim, de agora, de antes, de outrora, de vidas passadas!, mas, no entanto, ela passa junto a ele, sem ao menos notá-lo, como se ele fosse invisível, e nem reduz os passos, nem se volta para encará-lo, nem nada, e aquela que passou, ele segue sua sombra com os olhos e uma vontade imensa se apodera de seus membros, tal um desejo desesperado de aceitar o convite que a beleza e a força, "aquela princesa-vampira de altivez!", exibe sem ao menos saber, ou se sabendo, que perversa ela não será!, a arrastar os homens em vertigens, numa beleza e numa força que ele não encontra numa Amanda, numa Bianca, e não encontrou numa Sônia, numa Leila, todas elas dignas, mas descrentes de seus potenciais, todas com olhares ensimesmados, voltados para dentro, incapazes de uma sedução com aquela pose de desafio e arrogância, e Stevam percebe estremecer diante daquela jovem vampira, ainda mais quando ela passa, com promessas de prazer e dominação, um teste a fidelidade dele, que ali se encontroa, naquela esquina, sob aquelas árvores, à espera de Bianca, futura estudante de Letras, sua atual namorada, que o conquistou com seus poemas de lirismo desesperado de amores sofridos, então porque ficar perdendo-se em desejos pela primeira Vampiria que passa, e é essa a imagem que ele evoca, a da Vampiria, daquela canção do Moonspell, e que ele esperava ter encontrado em Amanda, a "Valkyria", mas não, nenhuma delas era a mulher de seus sonhos, e sim esta jovem vampira que acaba de passar, com seu desafio silencioso de "siga-me, se fores capaz!" e ele deixou que ela se distanciasse, na sombra dos muros e das grades, descendo rumo à praça e seus estudantes e seus risos e suas diversões, e ela atravessaria tudo com aquela altivez e indiferença de Vampiria.

    Assim, Stevam Lucena trocou a mulher de seus sonhos pela mulher que está em suas mãos e esta quem chama, quando ressoa o celular, "Onde você está, meu bem?", e, antes que ele responda, um apito fura a tarde e o tumulto, e ela percebe "Ah, você está junto ao portão, não é? Estou descendo", e, de fato, Bianca desce rumo a saída, e é aquele vulto de menina, "Meu deus, só dezoito anos!", cabisbaixo, encolhido, sem qualquer altivez, pressionada pela multidão, enquanto a jovem vampira passara abrindo o mar de faces tal Moisés ao atravessar o mar vermelho, sem se voltar, sem qualquer hesitar, passo atrás de passo, na arrogância dos coturnos, "saíam da minha frente!", as passadas dela assim diziam! Mas, agora, eis ali, Bianca Maria, e a procurar por ele, junto a multidão de pais, irmãos, colegas, amigos, namorados e namoradas, maridos e esposas, e ele ali ainda evocando imagens de outra!

    "Como estavam as provas, minha querida?", ele diz e sorri, antes que se abracem, e ela não muito animada, "sem comentários, Stevam, sem comentários! Só sei que estou morrendo de dor de cabeça", e ele não ocultou um olhar de decepção que vazou além das sombras do óculos, mas ela completou, "Mas não se preocupe, a gente vai sair, meu bem, eu prometi", e descem rumo à praça, entre fragmentos de conversas e considerações sobre questões, tropeçando em folhetos de cursinhos e escolas de idiomas e agências de viagens, atentos aos coletivos que atravessa, o tumultuado trânsito do fim de tarde, neura de vestibular...




    Na praça, os literatos ainda estão "confortavelmente entorpecidos". Depois dos monólogos de HD, poucos sobraram. A constar, o próprio, o outro-Stevam, Alfonso, e um amigo deste último que apareceu no fim do sarau, início da noite. Uma noite leve esta que vem caindo, junto com as folhas secas.

    Bebem vinho barato e discutem, mais informalmente, toda aquela neura que HD antes vomitou.

    Cansados do Ocidente, voltamos os olhares para o Oriente, e o que trouxemos, e o que consumimos? Tapetes persas? Incensos indianos? Mantras e sutras? Mandalas multicores? Vestidos longos e sandálias e barbas de profetas? Nosso sonho agora é sermos asiáticos? Alfonso e sua mania de incenso. Cibele, também. Nem comentar do Valêncio aqui, com seus discos de world music! E que o Oriente nos salve, então!

    E HD senta-se no banco da praça em posição de flor-de-lótus e encena um monge em meditação profunda.

    - O HD está pirando! O Dias tá pirando, Valêncio. - e Alfonso se apossa da garrafa. - E eu também, pois concordo com o cara. E digo mais: estou mais é com vontade de subir para um tapete mágico e viajar mil e uma noites, com aquelas odaliscas, hein, já imaginou? Mil e uma noite num harém? Pô! É o irracionalismo, não é? Estou cansado dos livros de sociologia! É isso aí! - e outro gole.

    - Os Beatles não tinham um guru? - o outro-Stevam se espreguiça.

    - Essa mania de achar que o do outro é melhor. Que a verdade está atrás dos véus. E eu gosto de incenso, acho relaxante, e gosto de meninas com saias do tipo indiano, moda diferente, e o HD também gosta, que eu sei. E fica aí, nessa neura! Mas ele tem razão.

    - Eu estou é cansado. Trocaria toda a minha erudição por um boquete. Sério! No kidding, friends! A mulher não tem idéia do favor que faz a humanidade, quando cai de boca num suculento cacete!

    - Ó Alf, eu só espero que você não queira fazer sua tour pelas arábias logo agora. A coisa anda explosiva por lá! Homens-bomba, testes nucleares, líderes insanos, trabalho escravo, atentados, tá um horror... - diz Valêncio, aceitando a garrafa.

    E o amigo de Alfonso faz um comentário qualquer sobre os Beatles, do tipo "mantras e hare khrishna na música dos caras", nada muito original, mas é o estopim para uma longa discussão sobre mídia e rock'n'roll, tribos urbanas e rebeldia enlatada, que devido ao teor alcóolico reinante pouco foi aproveitado em termos conceituais e paradidáticos.

    Mas quando o amigo, que trabalha numa rádio comunitária, menciona algum 'furo' da nova cena brit-pop, dois vultos conhecidos surgem sob a luz pálida do poste.

    - Que aparição é essa?