sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

mais trechos do cap.1

...

(trechos do diário de Sônia Regina Dalmas
encontrado entre os pertences de TH
por Stevam Lucena em início de 2003)



    “Aqui vou escrever um pouco do que estou sentindo nesses dias que passam lentos e pesados, e de algum medo também.”

    “Eu estou aqui, vim falar de mim, preciso refazer a minha vida.”

    “Quando aqui cheguei fiquei até feliz pois ainda estivesse em casa eu tria morrido, e também não teria a oportunidade de ter conhecido tantos outros, assim, sem rumo, meus irmãos.”

    “Deus, por que que tudo no começo é um mar de flores, com o passar do tempo começam a s pétalas a deixarem apenas os espinhos?”

    “Sabe, Deus, o porquê digo isso, porque quando conheci o Oto ele me tratou muito bem, pois conhecei o cara num barzinho ele me olhando – queria ficar comigo? – mas como sempre sou um pouco desligada e nunca gostei de me aproximar de alguém que as pessoas falam. Olha, menina, ele tem uma grana, hein!, se eu fosse você ficava com ele! Eu odeio isso! Então o tempo passou, aí chegou enfim o dia em que eu precisava do Oto, e fui revê-lo. Logo no show ele agarrando a Carol.”

    “Agora não sei o que Oto está me julgando. Uma oferecida, uma pessoa mais que falsa, sem moral, até prensando mesmo que posso querer conquistá-lo ou o Stevam. Achando ele que sou a pior pessoa do mundo. Mas ele no fundo, no fundo ele sabe que eu seria incapaz disso, mesmo porque eu estou precisando muito dele, e até mesmo se não estivesse.”


(páginas em branco)(uma folha rasgada)


    “Olha, meu Deus, eu estou novamente te implorando para que me dê uma luz do que devo fazer nessa hora de medo, que me envie um emprego, e que me dê um lugar para morar, é tudo o que desejo neste momento. E no meio não deixe que Oto e mande embora agora porque não tenho para onde ir, e o meu maior medo assim sem rumo na vida, pois não tenho quem ligue pra mim, ninguém por mim.”




    - Carne moída ou bife?

    A mãe, dona Hilda, se encontra indecisa diante do balcão de frios. Ao seu lado, HD segura uma embalagem de pizza pré-preparada, pronta para ir ao forno.

    - Na dúvida, leve uma bandeja de cada.

    E empurrou o carrinho para mais perto. Não sem antes pedir licença a um outro cliente, um senhor alto e grisalho que fazia compras com a esposa atenta a uma calculadora. O supermercado de repente está cheio, naquela tarde de sábado. Mas logo lembrou que estavam ali a quase duas horas!

    - Ah! mãe, vê se anda logo! A senhora com esse talento para ‘fiscal do Sarney’!

    E desnecessário. Agora temos um presidente proletário no poder. Foi difícil mas o sindicalista chegou lá. Ainda que não mudasse nada, ao menos havia uma preocupação social. Foi o que ressaltou em seu discurso de posse. A família toda ali reunida, acompanhando a ascensão de um Silva ao cargo maioral. Havia um tanto de messianismo nisso, era inegável. Mas o povão é assim mesmo.

    - Eu preferia um frango. Para fazer um strogonoff, sabe...

    A mãe ainda não se decide. Era assim mesmo. Passariam ainda mais um hora dentro do ambiente de ar condicionado.

    - Por mim, pode levar o frango também. Mas vamos logo!

    - E a massa para lasanha?

    Rumo a seção de Macarrão. E o desfile de preços e promoções. O preço do tomate, o preço do feijão, a inflação sutil, o dólar vai se equilibrar, cuidemos do nosso comércio exterior, só os intelectuais no poder é que.

    - Desde que você voltou, Hector, eu tenho que colocar, no mínimo, uns cinco pacotes de macarrão a mais. Até parece que tem sangue italiano... E o feijão, então? Preciso pesquisar os preços, filho.

    E deixa no olhar o mesmo sendo de dever, o mesmo que ele percebera na tarde em que encontraram o candidato a prefeito, apertando mãos e beijando criancinhas. Acabou eleito. O povo sabe reconhecer um corpo-a-corpo! Mas a dona Hilda se perfilara, pois finalmente apertava a mão de uma autoridade, ainda que possível autoridade! Mas a pesquisa de boca-de-urna era cifra inatacável!

    Ou então aquela vez em que encontraram um grupo de jovens desordeiros na avenida central. Dia da Independência, 7 de setembro. E ela toda perplexa. “Quem são estes baderneiros? Um perigo!”, e HD se voltou para os jovens punks, e sussurrou, “Que nada! São estes aí os mais inofensivos!”, mas ela toda séria, o senso de ordem e disciplina, durante toda a data cívica. Talvez por ter se casado com um funcionário público...

    - Arroz integral. Farina de mandioca torrada. Está conferindo? Já chegou a quanto?

    - Passou de cem.

    - Ainda falta as gelatinas e a massa de bolo. Também o tempero. Agora lembrei.

    E continuam a peregrinação por entre preços e promoções, produtos e promessas, guloseimas e crianças manhosas, “mamãe eu quero!”, e quem não chora, não ganha, e “está bem filhinho, mas uma só, hein!”, e depois eis o garotinho novamente, “Quero um doce de leite!”, “Mas querido, minha vida, eu não comprei o de chocolate?”, e por aí a pantomima.

    - A Biblioteca não fica longe?

    - Na área central. Ônibus na porta.

    - Mas é longe. De repente, você numa...

    - Pois é, mãe. É temporário. No apartamento eu não poderia ficar. Eu não te disse que o Flávio é noivo?

    - Ah, meu filho, isso eu sei! Ms do Barreiro pro Centro, todo dia? Está bem que melhoraram as linhas de coletivos, mas...

    - Não que eu goste. Morar no centro é melhor, claro. Mas sem um tostão? Volto apenas para me reorganizar. Até conseguir aulas, ou sei lá, outros cargos. Peso em política. Novos candidatos brotam por aí. Talvez precisem de assessores...

    - Você quer geléia? Tem também goiabada. Ah, uma delícia com queijo! Daquele que o seu pai trouxe da roça...

    - É. Bom. - e jogava os produtos no carrinho, não sem se esquecer de somar os preços nos valores da calculadora. – Chega a cento e trinta. Mais alguma coisa?

     - Na lista já risquei. Acho que ou levar uma vassoura.

    - Tá bom, mãe, tá bom. Então vamos. Mais de duas horas que estamos aqui!

    - Ah, vê se pára de me apressar! Você quis me ajudar, agora tenha paciência!  Não me apavora não!

    - Agora entendo porque as mulheres é que vão às compras.

    - Mas é mesmo. Se os homens fossem ao mercado, quebrariam o orçamento da casa! Passavam com pressa e tudo e compravam o mais caro! É preciso comparar os preços, as marcas...

    - Sei, sei. Vamos lá, mãe. Não temos o dia todo.

    - O que você vai fazer? Sair? Namorada?

    - Não, não. Ainda bem. Nenhuma para me encher... Preciso é terminar um conto. E depois digitar. É mesmo. Depois eu nem vou ter tempo.

    - Eu nem sei pra que você escreve tanto. Para os jornais? Quanto eles te pagam? Ah, se você fosse hoje um advogado como eu sempre sonhei! Mas fica aí: escreve e escreve. E nada!

    E a mãe se afastava, rumo a seção de limpezas, onde pretendia encontrar uma vassoura. Precisaria limpar a casa, o quartinho, agora que HD retornava para o lar, doce lar. (Doce lar?)

    “E tenha paciência, Hector”, ele se dizia, “é por pouco tempo”, e que a sorte e a providência o atendam.





    - Preocupado? Por que não aceitar a trilha que vai do berço à cova?

    Quando Stevam ouvia TH, com sua voz monótona, não conseguia entender por que havia procurado o amigo de Sônia. Nunca tivera muito contato com ele, um ser muito reservado, que surgia vez ou outra nos ensaios da banda, sempre à noite, nunca confiando muito.

     - O que quer dizer com isso?

     A língua passeava nos lábios, antes de despejar palavras.

    - Ela não tinha mais nada. E agora não precisa de sua piedade.

    - O que não entendo é sua hostilidade.

    Os dedos se uniam num aperto. – Por que se interessa tanto? Ela que se arrastou até a morte pedido apenas compreensão. Você nada compreenderá agora.

    Pausa.

    - Quem a conheceu? – TH olhava acima dos olhos de Stevam, encarando o círculo lunar que se elevava. – Será que era louca? Era uma menina sem rumo? Talvez igual a todo mundo hoje em dia.

    Stevam se humilhava diante da altivez. – nem insinuei isso. Talvez tenham dito. Não eu.

    - Uma questão de respeitar a memória dos mortos? Uma pobre coitada? Um ato de desespero? Coragem ou covardia? Sangrar até o fim.

    Pausa.

    O luar se infiltrava, Stevam seguia o contorno das unhas. O bar era agora uma tenda no deserto. A clientela se dispersa, poucos ainda em monólogos com seus copos.

    A voz de TH ainda existia. – Realmente se importa tanto? Quer entender o ser humano? O sofrimento no qual é capaz de mergulhar, se afogando?

    - É um sofrimento familiar...

    Nem parece que TH tenha ouvido. – queria que ela vivesse, que ela continuasse, por medo da morte?

    - Somos os covardes, então? O primeiro homem consciente deveria ter se matado?

    - Não, nem heroína, nem covarde. Uma pessoa consigo mesma.

    Outra pausa. (Ambos constrangidos)

    Para que se lembrar dela? O que lembrar dela? Só a prejudicamos, prendendo-a em nossas mentes!

    - Quer que a esqueçamos? – se surpreendeu. – Mas por que? Se ela foi tão estimada? Imagino que ainda é...

    - Você não entende. Esta lembrança a qual você insiste em se agarrar é uma caricatura. Um fragmento dela. E tudo vai se esvaecer igual a fumaça. Esqueçamos os mortos.

    - Quer dizer que incomodamos aos mortos com as nossas lembranças?

    - O que mantemos é apenas uma imagem mutilada, um momento petrificado, uma fotografia borrada. Nós os aprisionamos, fazendo-os viver em nossa mente. O que julgamos que eles foram. Eles desejam é desaparecer livremente.

    De súbito, se levantando, TH se recusa a ficar assim, falando de Sônia, numa conversa de boteco.

    - Não sou um revoltado, mas sim um suicida ainda vivo. Essas músicas, esses gritos, falam de morte, luto, visões agônicas. Assim preferimos falar do que fazer, estetizar para não praticar.

    Mas já ao havia mais diálogo. Um em monólogo, o outro sofria.





(do diário de Sônia Regina)


    “Agora vou contar um pouco da minha vida desde criança.”

    “Lá com meus três anos já me lembro de algumas coisas, os gritos, as ameaças, mamãe descontando em mim todas as suas brigas com meu pai, mas o tempo passou e fui para a escola, onde adorava ir para ficar longe dela só assim a gente não brigava. Então todas as vezes que ela ia me ensinar os deveres de casa ela puxava meu cabelo, enchia meus braços de beliscões, só para que eu aprendesse a fazer o dever direitinho.”

    “Vivi a minha vida quase toda no meio de gritos e brigas, meu pai batendo em minha mãe porque ela respondia, mas não tinha ninguém para bater nele... sempre quando batia nela eu entrava no meio e apanhava também.”

    “Eu agradeço a eles por ser essa pessoa que sou hoje, rebelde, encolhida, e antipática, pois a vida inteira vim esperando dela ou dele um diálogo, um carinho, e nunca tive isso.”

    “Ai meu Deus será que não chegou o fim do mísero sofrimento não?”



(anotação de TH) (encontrada por Stevam Lucena)


    Meu pai é meu melhor amigo – oposição é verdadeira amizade, diz Blake – ele nunca esteve perto de mim quando eu precisei, mas nem assim parei de pensar nele.

    Penso que se ele morresse hoje a única coisa que eu desejaria era morrer junto – o que faria sem ele? Preferiria morrer antes dele porque sua morte me seria atordoante.

    Por isso eu peço aos Deuses que o abençoem e que nada de mal lhe aconteça.




    Após uma noite de sonhos inquietos, aliás comentados com a irmã, HD mastiga uma torrada, sempre anotando frenético, atento aos dígitos cambiantes no celular.

    Lá fora chove com timidez, ele segue, pensativo, rememorando sonhos que nunca antes tivera, evitando as poças de lama, e, como ainda chuvisca, acena ao primeiro táxi. É daqueles que aceitam mais um passageiro por vez. Lá está uma loira, no banco de trás do motorista.

    Prontamente, HD indica seu destino e, discretamente, dedica-se a observar sua companheira naquela manhã úmida até nos pensamentos. Ela é loira, mas de um loiro meio enferrujado, de feições pouco germânicas, algo mais para traçados célticos. Dedos delgados, bem tratados, mas sem jóias. Uma aparência modesta – uma secretária de consultório dentário, possivelmente. Uma vendedora de lojas de moda, talvez. Uma beleza singular.

    Nem um minuto e um terceiro passageiro – um homem de meia idade, a carregar uma pasta um tanto obesa, entra, em comentários com o motorista, aqueles de sempre, que a chuva veio refrescar um pouco aquela semana de calor – “Mas é tão-somente uma pausa, camarada!”

    HD não dispensa muita atenção com o recém-chegado – imaginando, em conjecturas, no caso de tratar-se de um vendedor de seguros, suponhamos – sem desviar a avidez dos olhares deitados sobre a silenciosa jovem ao seu lado, muito tímida aliás, que nem ousa olhar meio de lado. HD já nem disfarça, devora aquela beleza com os olhos, a pele leitosa, s pernas em sensual escultura, a sandália abrigando pés divinais. Uma gaulesa? Jeune fille em fleur? Sim, não mais que vinte anos. E mais: sua fisionomia não lhe é estranha! Onde já vislumbrara aquela beleza antes? E vai pensando em aborda-la. “Olá, bom dia! Desculpe-me, mas a senhora – ora! Ela não usa aliança! – a senhora mora em tal e tal?”. Não, não, como se percebia um pleno idiota. Mas ela ali, ao alcance da mão – e tão distante! Por que era tão difícil de alcançar? “Desculpe-me, mas eu já vi belezas as mais líricas, mas a tua é singular!” Ridículo, homem, ridículo, isso lá é coisa que se diga?! “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam ridículas se não fossem cartas de amor”, já lembrava Pessoa. Impossível alcança-la! E ela arruma o cabelo, e fios caem ao longo das têmporas, encobrem as orelhas que merecem uma mordida! As unhas sem tinta, os dedos dignos de uma pianista! A saia lembra a simplicidade estética dos ambientes refinados! “Eu, pobre poeta, diante de tua beleza...” A beleza e a distância. “É como se eu não estivesse aqui. Ela me anula mentalmente. Nada significo. Nenhuma atração. Ou ela disfarça também? Sou um incomodo? Um olhar vampiro? A lembrar-lhe sua condição de mulher? Sempre desejada? Sorvedouro de olhares? Fonte de galanteios? Rangendo os dentes a cada cantada? Será pudor – ela nem move a cabeça – diante de mim?”

    O cidadão, ao lado do taxista, comenta algo mais – O quê? – trechos de manchete de jornal local, editoriais de folhas nacionais, o novo governo enfrentando as bases políticas, sei lá, HD dá a mínima. “Troco o conteúdo da Brittannica pela mais singela informação: qual é mesmo o teu nome?” Ignora o (possível) vendedor de seguros, tanto quanto a jovem o ignora. Na mesma proporção. Na plena acepção dos geômetras. Por que as pessoas se ignoram? HD não! Ele gostaria de ter “um milhão de amigos”, como diz a canção. O que não suporta é que os outros vejam através dele, como se não passasse de uma lâmina de vidro! Ou um espectro!

    E então ele se lembra! Aquela face, aquela beleza loira: sim, do sonho! A atendente da Biblioteca que lamenta não poder aceitá-lo, enquanto usuário, devido a seus ‘antecedentes’! e ele vai abordar a moça: “Sonhei contigo esta noite!”? Coincidências? “Existem? Eu sonho com a moça e ei-la aqui, ao meu lado! Devo revelar tudo? Não, ainda não sou assim tão louco! Mas acontece que poderei nunca mais ver sai face de promessas! Sim, nunca mais!”

    Bem, HD vai assim a ruminar renúncias e meditações outras, quando a moça acena ao taxista. “Ela vai descer!” grita o seu mudo desespero! Ela ajeita a bolsa, alisa a saia, se prepara. Ela desce, a face se destaca contra o vidro golpeado pelas gotas débeis, na manhã de chuva tímida – e ele ainda a observa. Ela se distancia desfocada pelas gotas.

    O táxi avança. HD pergunta ao motorista:

    - O que funciona aí no prédio?

    - O Arquivo.

    HD observa o prédio se distanciar na chuva.




(do diário de Stevam) (fragmentos)


(outono de 2000)


    Às vezes observo o meu pai, este revolucionário de classe média, que anda pela casa, a procurar problema apenas para se dedicar a soluções. Se descobre uma janela fechada, ele abre, se aberta, ele fecha. Se o saleiro está no fogão, ele coloca sobre a mesa, se está na mesa, ele desloca para o armário. Igualzinho aquelas dons-de-casa. Não pode mudar os sinais de transito da rua, ao pode alterar o próprio transito, não pode deslegitimar uma eleição para o conselho de saúde ou para a associação de moradores, não pode mudar o país, muito menos o mundo, mas pode mudar a posição de do vaso de flores sobre a mesinha da sala-de-estar.


(duas páginas adiante)


    Quando folheamos livros sempre encontramos pérolas. Na biblioteca do meu pai não faltam ostras cobertas de pó. Não gosto de entrar ali, até porque me lembro de Sônia e certas frustrações. Mas vou à estante, encontro um nome na vertical, Jean-Paul Sartre. Abro o livro, passo as páginas, uma linha se destaca, algo como só se é homem quando se encontra algo em nome do qual se prontifica a morrer, algo assim, não copiei o treco e duvido que possa encontrá-lo novamente.

    Fiquei o dia inteiro pensando no trecho. Algo precisa dignificar a vida a ponto de entrega-la.

    Eis aí algo que não faz sentido para Oto, que sente a vida valer pela vida – e nada mais!

    Mas Alfonso, meu irmão, agora todo contente com seu título de eleitor, a discutir política, pronto a raptar os volumes marxistas da biblioteca. Quer a todo custo encontrar algo que seja digno de luta, algo que justifique um engajamento.

    Seria interessante um debate (claro que impossível!) entre o Alf e o Oto. Pois ao Oto basta gozar a vida, nada de justificá-la, e não importa se é apenas um fenômeno fisiológico ou encarnação punitiva, a vida é vida e pronto, vamos aproveitá-la.




    Flávio escolhera uma peça mais literária. As cartas de Van Gogh. Tratava-se de um monólogo, e muito elogiado.

    HD percebeu o sufoco do amigo ao manobrar o carro sobre a calçada. Na pressa, seria um sufoco procurar uma vaga. Sábado à noite então!

    Apagados os faróis, o impacto seco da porta. Acompanhava-o a bela e jovial Stella, atenta ao cabelo e pinçando os bilhetes dobrados de dentro da bolsa.

    Uma noite de sábado calma ali na Getúlio Vargas. Junto a porta envidraçada, uma jovem joga ao longe o cigarro, entediada, antes de entrar. HD observa a lista das peças em cartaz, os casais que se aproximam, o abraço protetor dos rapazes, o jeito irônico das mocinhas. Ou uma janela que se apaga no edifício defronte. Uma brisa, e gotas deslizam no rosto, ao erguer a manga longa da jaqueta, no gesto de enxugar-se, deixa entrever um brilho no olhar.

    - Só esperando a minha chegada?

    Flávio estende a mão, em sorriso infindo.

    - Há tempo. Eis que as luzes se apagam.

    - Andando na chuva?

    - É, as gotas ainda caem. – e derrama o olhar sobre Stella, aconchegada a Flávio – Espero que seja uma boa peça.

    - Espero que sim. Ator muito elogiado.

    Stella sorridente. HD tenta sorrir. Nem que para agradá-la. Toda essa cautela com as mulheres. Mas nada de bajulações, elogios daqueles vazios.

    Adentram a salinha, e Stella pressiona o braço de Flávio, num sinal de que ela reconhecera alguém. Sim, nas cadeiras da frente estavam um colega de Flávio e uma mocinha de vestido neo-hippie.

    - Fugindo das comédias?

    O colega sorriu e concordou que realmente só divulgavam comédias, que tinha até comédias demais, apesar de que o pão e circo é sempre um remédio aplicável em tempo de crises e eleições. E nem citemos a Copa do Mundo.

    HD gostou do bom senso do colega. Flávio conduziu as apresentações. Hector Dias. Lino Matias. Até rimou! A menina se chama Cíntia.

    - Pesada. Oprime mesmo. Essa música clássica.

     A voz de Cíntia era até morna quando respondia ao comentário de Stella sobre o clima (não, ela dissera atmosfera) opressivo (ou opressiva) do ambiente. Penumbra. Sinfonia. Onde estava o ator?

    - Quase velório.

    Era que Flávio detestava coisas mórbidas.

    - Mas imagino que não foi só idéia sua, essa de vir...

    A insinuação de HD fez Flávio se voltar. – Foi elogiada. Coisa fina. Não é aquele pintor que cortou a própria orelha?

    E tentava se desculpar. Que não lera a biografia do artista. Apesar de saber que ele sofrera um destino trágico. Flávio e a sua mania de ficar se desculpando por não sentir-se bem informado. Mas quem hoje em dia está bem informado? E sobre o quê?

    - Ei, Tiago, tem lugar aqui.

    A voz de mocinha mimada arranhou as suas costas. Duas amigas se acomodavam e guardavam lugar para um jovem de penteado arrepiado. Nem no teatro se tem sossego. Aquela agitação da platéia destruía a atmosfera solene. Ou pesada, como dizia a Cíntia, que estava ótima naquele vestido ao estilo anos 70, só faltava uma flor no cabelo e um disco do Caetano.

    No palco, um círculo de doze velas. Aqueles círios de velório. Todas apagadas. No centro um litro de cachaça? Alguém sugeriu uma macumba. Vozes dispersas. Talvez umas cinqüenta pessoas ali, naquela claustrofobia barroca.

    Nada a temer nessas trevas. O ator move-se ao redor. Onde estará? Ressoam passos trôpegos quando eleva-se um hino religioso de um barroco alemão no romantismo triste de piano e violino. Passos à sua direita. Surge uma chama. A voz na solenidade de um texto bíblico, talvez o livro de Jó, ou os Salmos. Os olhos brilhantes refletem a chama dançante. Eu sou nada, tu és tudo, Senhor.

    Um reverendo em gestos mínimos? Voz cativante e passos incertos, o ator em serviço de culto. Vela a vela acesas, num carinho para acender cada pavio. Parece um centro espírita, ironiza alguém.

    Uma carta para o irmão. Quer mostrar-se útil, orgulhoso em agradecer uma ajuda. “O pão que comi veio de uma alma caridosa que me despreza.” HD notava o vulto de Flávio a sua esquerda. O irmão que o acolhera. Não sou um vagabundo, sou um pássaro engaiolado. Como livrar-se da gaiola burguesa? E do livre mercado?

    Flávio comovido com o drama do pintor, que sofria por amor, golpeado por um “jamais”. Ah, sim, o momento do amor, unindo as cabeças dos casais, a jovem sonhadora reclinada sobre o peito do amado. E HD de braços cruzados, incomodado por essa onda de romantismo. Talvez a pobreza nada significasse para um estudante, um poeta panfletário. Mas o pintor soubera o que é pobreza. Hoje seus quadros vales milhões, mas enquanto vivo cursara a universidade da miséria: só vendera um quadro, e ao irmão. Uns setecentos. Girassóis e catedrais retorcidas. Catedral distorcida (que o colega Lino comentaria depois) assemelhar-se mais a um bolo de núpcias, ‘derretendo, claro, em plena festa”. Claro, claro. O irmão subiu na vida e eu fiquei aqui, serei o pobre pintor a morrer na penúria. O ícone do artista reconhecido apenas depois de morto. “Artista bom é artista morto”. Depois de morto ganha busto e estátua em praça pública!

    O ator bebendo no bico da garrafa, lendo um soneto de Shakespeare, “como é belo!”, encontrando papéis todos amarrotados nos bolsos. A caricatura do alcoólatra ou a personalização da miséria? O que se pretende? Representar o desassossego de um pintor que decepou a própria orelha. Certo, mas, convenhamos que o tipo parece mais um perturbado, senão uma caricatura mesmo. Cuspindo assim a bebida, aproximando-se da platéia, encontrando assento ao lado da garota tímida, ou beijando a mão de uma oferecida. O que temos aqui? Um pobre bêbado, um tipo que encontramos pelas ruas. Todo gênio é ridículo assim? Empunhando uma garrafa, humilhando-se pelas ruas. Um flâneur. Baudelaire será sua companhia? Rimbaud, Edgar Allan Poe? Poetas bêbados! Joyce pelas sarjetas!

    Na vida encontramos os vendedores e os perdedores. Os caluniados e os que caluniam. Este vulto bêbado pede compaixão? Querem que eu sinta piedade do infeliz artista? Falta de grana: só isso. Dêem um dinheiro e pronto: um novo cidadão. Se comprassem os seus quadros, posso imaginá-lo a desfilar acompanhado por donzelas nos salões de Paris ao lado das personagens de Marcel Proust.

    Mais papéis exumados de seus bolsos revirados. Aspira o perfume da amada nas cartas que ostenta seus “jamais”. Outro coração transtornado de paixão e não correspondido. O vulto do jovem Werther. Se a garota topasse a transa ele não ficaria nessa. E essa Cíntia até que tem belas mãos, alisando assim o cabelo ali do colega. E Stella tem lábios de desejos ainda que apertados de tensão.

    Que Flávio tem bom gosto, todos sabem. Stella é juventude. Alguma emoção sensual. Duvido que ela reconheça um quadro de Van Gogh! Nem pensar! Ah! Flávio é meu melhor amigo. Meu irmão mais velho, aquele que sempre fez falta.

    O pintor espera que o irmão escreva. Apesar de estranhos um ao outro. Eu sou um inútil diz ele espera assim que a Fortuna então. E entorna a bebida sobre a cabeça. Mantém o um olhar febril sobre a platéia. Platéia parva inculta incapaz de sofrer decentemente. Deviam ter comprado os quadros do homem, enriquecê-lo. Assim não seria outro gênio vitimado pelas próprias mãos. As mesmas mãos que domavam a febre despejando sobre as telas as cores alucinadas e esboços deformados em perspectivas de delírios.

    Aquele brilho? Lágrimas? Stella emocionada, agarra-se ao braço de Flávio. O texto é forte, sim senhor. A mocinha é sensível. Precisamos aplaudir de pé ! Imagine o desgaste psíquico do ator! À vontade platéia aplausos ele agradece do fundo do drama monólogo sombrios interpretação agônica aplausos!

    HD ficou à espera de Flávio no vestíbulo. A platéia que saía parecia menor do que a que entrara. Poucos têm sensibilidade para a (como é que Flávio disse?) “interpretação agônica”. O ator certamente não entrou nessa por grana. Talvez por sentir gosto no mórbido, na loucura, nas ânsias auto-destrutivas. Pregará a redenção religiosa?

    O colega de Flávio chegou junto ao cartaz da peça. – E aqueles autores que ele citou? E ficou observando HD, atento o cartaz.

    Todos acabam rodeando HD, tenso, lendo (pela milésima vez!) o tal cartaz, no que era imitado pelos outros.

    - Sei que leu sonetos de Shakespeare.

    Era Cíntia quem se exibia. Flávio agradecia com o olhar, mas a informação nada lhe dizia. O colega (como é mesmo o nome? Matias?) lembrava de pintores holandeses, mas do século dezessete. Rembrandt. – Muita penumbra.

    - Forte aquilo de jogar bebida (era bebida mesmo?) sobre a cabeça. Um louco. – Cíntia continuava empolgada, enquanto o ar frio da noite esfriava os demais.

    - O ganho dele é a arte – “l’art pour l’art” – explicava o Matias ao Flávio agora a procura das chaves do carro.

    - E inútil?

    Matias respondeu logo: - E utilidade é o que? Se ele crê servir a sua arte! Ser útil em que? Em que poderei ser útil?

    - Ora, não é o que ele repetia o tempo todo? Não é, Hector?

    Flávio não podia ver HD à parte que logo o envolvia. Fazer o que? Vamos responder.

    - Ele precisava se justificar. Apenas não era útil ao que a família julgava utilidade. E aquela repetição é apenas fraqueza.

    Matias, entre as mulheres. – Velas de velório, não? Você bocejando, hein, Stella?

    - Ah, era o escuro. Não a peça!

    Flávio girava as chaves. – Quando entrei pensei que fosse macumba. De repente abaixava uns espíritos...

    De certa forma sim. – HD voltava-se, professoril. – A arte ali é fazer o texto viver, através daquela boca, através dos gestos. O ator é portanto um médium, pois encarnou o texto, o (digamos) espírito textual.

    Cíntia, toda atenção. – Legal essa de “espírito textual”.

    Matias (percebendo o perigo?), evasivo. – Bem, precisamos ir. Não jantamos ainda.

    Flávio apressa-se em abrir o carro, enquanto o casal flutua sob o brilho dos anúncios de néon.

    - Mas vejo que você não gostou da peça, Hector. Nem cumprimentou o ator.

    - E você fez questão de ir lá? Aliás você puxou os aplausos.

    - Ora, a interpretação é, como eu disse, agônica. Profunda.

    - Aplaudiu o ator ou a dor de Van Gogh?

    Era a vez de Flávio com o seu olhar de ‘eu não te entendo’. Mas HD continuou: - Aplaudiu o texto? Um lamento nascido do desconforto e da rejeição? Então acaba de aplaudir o sofrimento humano.

    Flávio se ocupava em tirar as folhas secas caídas sobre o pára-brisa. Esforçava-se para conter a irritação. Mas seu desejo de conversar era maior. Daí não pensaria duas vezes em oferecer carona ao amigo.

    - Entenda, Hector, eu aplaudi a arte, a interpretação. O texto nada é sem o ator, sem a vivência estética dele. Texto e atuação: um jogo só.

    - Seu senso estético é apurado, eu reconheço. Mas o que fizera ali é a estilização dramática das cartas de um miserável.

    Encostado no carro, Flávio até desistira de entrar. Parecia até gostar de encarar o amigo que falava e falava.

    - É difícil ser diferente. Sei que poderia ter escrito carta igual para o meu pai. Ele sempre me considerou um inútil, um vagabundo. Eu poderia ser um funcionário de carreira, um militar à serviço da pátria. Mas um filho poeta ninguém merece! Um filho estudante de Humanidades! É uma pena mas não me enquadrei no conceito que ele faz de utilidade.

    Então Flávio ofereceu a carona, HD preocupado em tornar-se inconveniente pensou em recusar, mas o diálogo não terminara.

    - Recuso a estetização do que quer que seja. Importa a expressão, a denúncia.

    - O problema é a estética...

    - Ir ao teatro, contemplar o sofrimento humano, chorar com Hamlet, depois degustar um farto jantar, e uma noitada num motel. Não muda nada.

    - E, para você, Hamlet é broxante? É de perder o apetite? Agora entendo porque as comédias enchem...

    O olhar de Flávio no espelho interno denunciava que ele meditava sobre a ‘arte engajada’. Stella sorria, “Isso está ficando complicado”.

    - Não nego a beleza. – HD agora queria se justificar. – Mas não a beleza em nome da beleza. Mas na expressão de uma revolta. A arte enquanto mudança...

    - De paradigma? – Flávio interrompia. “Paradigma” é um de seus termos prediletos.

    - Mudança de atitude. Para de achar tudo ‘normal’.

    - Está vendo, Stella? O Hector aí pensando que toda estética é uma espécie de ocultamento!

    Flávio, inclinado sobre os cabelos da garota, diante do sinal no vermelho. Arriscava uma língua na orelha. Ela abafava um riso, ou um protesto.

    - A Beleza disfarça o horror do mundo. A Beleza é a flor no esterco. Não passa de uma necessidade de alívio.

    - Não há beleza em seus versos? Se entendi...

    - Não pretendo esconder a desgraça em versos rimados e alexandrino. Não quero aplausos para os meus versos. Se o mundo fosse outro, estas denúncias nem existiriam! O contexto é mais importante que o texto.

    - O problema do Hector, sabe qual é, Stella? – Flávio falava como se HD estivesse ausente. – É esse excesso de panfleto, de palavras de ordem, de slogan, de aforismas.

    HD oculta sob o sorriso o seu menosprezo.

    - Escrevo sobre o mundo que me agride. Não glorifico o sofrimento, apesar de saber que faz parte, a obra requer o sofrer, mas importa a construção além daquilo que faz sofrer. Sem a superação, a arte (o que chamam de arte) é inútil. É mero entretenimento.

    - Apenas o engajamento liberta?

    - Ora, libertar de que? Estamos em gaiolas acolchoadas. Celas aconchegantes, com ar condicionado. Engajamento político? Outra ‘panelinha’, outro ‘inner circle’, no jogo? E muitos estão à espera da cela que merecem.

    - Às vezes você me preocupa, Hector. – Flávio se voltava, quando parava ao sinal fechado.

    - Flávio, as peças são para quem paga. Quem pode se divertir, e depois um bom vinho e noite ‘caliente’ sob os edredons. Peças engajadas não pagam nem o figurino dos atores!

    - O seu radicalismo é que me preocupa.

    - Qualquer um que ‘fala demais’ é radical.

    Aí Stella fazia aquela cara de “pensar demais leva à forca” atenta ao diálogo sinuoso dos rapazes. Ela que era o silêncio em pessoa. Somente entraria na conversa se dessem choques! Sua timidez não nascia d ignorância, sendo disciplinada e informada, mas do medo do excesso. E a fala é um excesso.

    Flávio percebia o olhar da companheira e esboçava outro indicando que não pressionaria mais o amigo. Mas era HD quem insistia!

    - O que eu vejo é muita estética sem conteúdo. Roteiros imensos sobre o nada. E sem um terço do talento de um Beckett, diga-se...

    - A estética à serviço de...

    - À serviço de quem? Ora, você sabe muito bem, Flávio! De quem deseja passar uma camada de verniz sobre a lata oxidada!

    - Até poético!

    - Não brinca! Se eu mostrar o mundo tal como eu o vejo, aquela plateia realmente ficaria vazia!

    - Ficaria apenas a sua revolta!

    - Ser revoltado é não pensar como espera que você pense. E não seguir o ‘script’. É ser espontâneo no meio do espetáculo. É tirar a máscara e rasgar o véu.

    - Um deslocado diante das exigências? Lembro que você já disse uma vez que somente nos percebemos em atrito com as exigências.

    - Somos um eu-diante-dos-outros.

    - Vamos devagar, Hector. Pensa que o ator ali deu seus passos trôpegos em vão? Simulou loucura para a diversão mórbida de alguns? Diremos burgueses, como você diria, sem esperar reação algum? Ou você queria que ele fosse hostilizado, ou mesmo – apedrejado?

    Agora Flávio até esquecia os olhares de Stella, não só meio ao falatório, em angústias, mas com o pé um tanto pesado de Flávio sobre o acelerador.

    Se ele agrada é porque não surgiu o efeito esperado? Aplaudir, cumprimentar, como eu fiz, foi a coisa mais ‘acomodada’ a se fazer? Tomar atitude para sair da gaiola acolchoada (que muitos invejam) é mais estressante que um aplauso catártico? Ver a interpretação como uma atuação artística e não como um conhecimento a aplicar na minha vida absurda, eis aí a defesa que assegurar a minha acomodação?

    Era HD quem estava desconfortável. Não pretendia irritar o amigo, mas não sabia medir as palavras. Stella se agitava.

    - Mas isso vai só complicando!

    O carro saiu da avenida e entrou no bairro. Dois quarteirões se seguiram em silencio. Flávio estacionou com perícia. Não pretendia nem arranhar a lataria! E o seguro vencendo em 2002... Preocupações outras. O rapaz desceu e foi logo abrir a porta para a sua Stella. A moça que observava o nosso HD como um derrotado na arena. É que HD gaguejava...

    - Sabe, Flávio? Não quero ser o chato. Mas você tem uma segurança que eu não tenho. Material e espiritual. Bens terrenos e sua fé. Eu nada tenho e em nada crio. Falta-me apenas aceitar a cicuta co todo o peso do mundo e honrá-la como fez aquele Sócrates.

    Mas Flávio não estava para erudições clássicas e tragédias gregas. A garagem se abriu e ele manobrou o quatro-portas. De volta, abraçou Stella. Não convidou HD para entrar. Apenas esperava que o quinto ato terminasse.

    - Sabe, Flávio? Sabe o que encontramos ali? Ladainha religiosa, solenidade barroca, a Bíblia aberta iluminada como se fosse a luz no fim do túnel. A volta triunfal da religião. Se é que algum dia foi embora... Preciso ir. Espero não ter estragado a noite...

    Flávio não fez esforços. Estava até aliviado. Stella piscou. Cúmplice, o casal deixou que HD se afastasse.


 continua...


LdeM

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

continua o Cap. 1 de Flores no Asfalto

 Cap.1 (cont)



(do diário de Stevam Lucena)


(fim de 1999)



    Um mês se passou. E a imagem dela vai se apagando. Perco os contornos, lembro de sorriso e gestos descontínuos.

    Por que nós que sabemos como a vida é, sob que condições rastejamos, por que nós que sabemos que existimos, devemos morrer?

    Por que morrem antes os conscientes? Veja aí, o mundo entupido de adormecidos imbecis, seres vegetativos, cumpridores de deveres, estes continuam e se reproduzem!

    Os de pensamento morrem jovens! Não suportam! Restam os sonâmbulos.

    Ainda bem que eu amo muito a mim mesmo, me amo até demais, senão eu já teria ido embora.

    Por que eu, que sei que existo, devo morrer? Ou o saber não altera nada? Só aumenta o sofrimento?





(início de 2000)


    Minha mãe com seus enlevos místicos diz que o que faltou a Sônia foi a fé, “tenha fé e siga”. Mas não vê que fé é para deslizes e fraquezas. O desejável não é a fé, e sim que não houvesse necessidade de ter fé, com condições melhores para viver, e não uma selva onde ficamos indagando o tempo todo se a vida é digna de ser vivida, quero dizer, o problema não é a vida, mas condições sob as quais se é obrigado a viver.

    Uma constante luta mesquinha, não aquela glória que Oto almeja, luta onde não somos mais que mercenários! Viver assim é insustentável.

    Ela, a insone Sônia, recusou-se a ser cúmplice do patético espetáculo.





    Caro Hélio Lúcio,


    Sem cerimônias. Tenho lido os teus versos, e “tenho febre e escrevo”. Rabiscando mágoas na folha em branco, “confissões difíceis pedem folha branca”, escreveu Carlos Drummond de Andrade (que sempre está a acompanhar-me pelos caminhos repletos de pedras – e muitas afiadas)

    Escrevo sobre os teus versos, e aprendo a lê-los, a recitá-los, a reviver a emoção que os gerou. Sem tal ‘ressurreição’ toda leitura (e crítica) é vazia. Para ler Pessoa, tenho que me imaginar Pessoa, em Lisboa pós-Primeira Guerra, e aquilo tudo. E ler Cesário Verde. Tenho que ser muitos como ele foi.

    Escrevendo sem outro remédio, e sem qualquer lucro. Escrevendo como terapia, tal dizia Hemingway (e que, semelhante a Pedro Nava, não conseguiu ‘curar-se’ com a escrita)

    Assim escrevemos por maldição ou benção? Inspirados em quê? Sobre o quê? Gotejar, suar versos sem saber! Encher páginas sem um porquê!

    E tal febre pode ser apaziguada? Nunca? E se não tiver algo a dizer? Só ardor, ardência, carência?

    Por favor! Escrever é transbordar – e rumo ao Outro! Queremos é gritar, queremos ser lidos, mas por ânsia, ansiedade, caridade?

    Sempre escrever, pois o mundo não basta. Desconforto vertido em rimas, na métrica do coração. Contra o tédio, o horror, o fosso.

    Passeando rimas, como desejava Rimbaud, nós colorimos a feiúra ao redor, o lixo, as pontas de cigarros, os guardanapos amarrotados, as latinhas de cerveja, o sorriso creme-dental do outdoor. E as rimas são nossas, pois são nossos os poemas.


    Não importa se formos incompreendidos. Nem todos ousam relancear os olhos pelos abismos da alma.

    Muitos vivem na superfície, jogando grãos aos pombos ou ruminando jingles televisivos. Não levam suas vidas à sério (se é que se trata de ‘suas’ vidas) Tudo é ridicularizado – ou idolatrado. Não há consciência crítica. Todo interesse resvala em consumo, todo erotismo em pornografia, toda ânsia em vício.

    Não podemos – em nossa busca pelo Outro – tornamo-nos reféns desse olhar alheio. É preciso autenticidade (tal dizia Sartre) para sermos alguém (na criação de nossa própria identidade) a partir do que fizeram de nós (nossa família, nossos professores, nossos sacerdotes, nossa classe...) e entoarmos um hino – ainda que aloucado, para alguns – que seja inteiramente nosso.

    E depois podemos até divulgar, a propagar as chamas entre outros ‘ansiosos’, ‘excêntricos’, como rotulam aos que transbordam.

    Gritaremos ao mundo, sem sarcasmos (pois quem leva à sério quem ri de si mesmo?) mas com punhais de lúcido êxtase e odes de vorazes verdades! Desmascarando o lugar-comum e denunciando a triste condição humana (que a TV falsifica) ao propormos novas perspectivas, ainda que em equilíbrios instáveis.

    A “procura da poesia” é a busca do leitor, daquele que nos entenda, nos receba igual a um irmão. Pensamos nele quando esboçamos cada sílaba – tal penso em ti enquanto escrevo – pois desejamos tirar nossa velha pele, nossa máscara suja.

    Escrever tal um desabafo, mas num desafio.

    Tudo isso eu demorei aprender, e agora te presenteio.

    Espero novidades (aqui nenhuma realmente ‘nova’) e mais versos.


    Cordialmente,


                        Hector Dias





    TH, um dos convidados da festa?, a leve surpresa, quando Stevam o encontrou em soturno colóquio com o casal Oto e Carol, na porta do casarão. JP desceu (com umas sandálias meio hippie) para tecer cumprimentos aos convivas. Oto curioso quanto a generosidade do anfitrião quanto ao quesito ‘bebidas’.

    - É só o Ariel dar uma voltinha para criar confusão...

    TH ouvia os comentários dos vultos junto a varanda. Universitários, presumia ele. Stevam degustava uma caipirinha, só observando. Oto, de olhos nos movimentos da Carol, a lembrar que o Premiê foi passear logo na região das mesquitas. Alguém lembrou das cenas das pedras contra os blindados. Temporada de diálogos sobre o Oriente Médio. Um aluno de Ciências Sociais inclina-se para melhor apurar as terminologias.

    - O problema é a terra. Guerra por território.

    É o acadêmico que iniciou o assunto. Dois calouros abrem uma cerveja, oferecendo um gole ao músico que chega. Também estudante, traz um violão nas costas. Agradece e vai para o seu canto.

    Faltava agora TH falar em ódio ancestral, ou algo assim. Oto podia destilar seu darwinismo social com lindas fraseologias sobre o mais forte e o mais apto, lembrando sua única citação de Machado, “ao vencedor as batatas.”

    Os colegas de JP pouco se importavam. Aliás, duas garotas diante da televisão – no intercine – era mais interessante. Um dos mestrandos – pois JP, óculos fundo de garrafa, era também mestrando – chegou na varanda justamente quando Oto soltava uma de suas tiradas toscas, “Pó, cara, eu ia tomando até cair. Chapado mesmo. Todo grogue. Acordava então caído pelas ruas, o cabelo todo sujo de vômito...”, e nem voltou mais. Nem apareceu mais ninguém.

    Todo ansioso, Stevam pediu outra dose. Ouvi com satisfação o papo senso-comum dos sem-diplomas. Bem mais interessante que aquele monte de acadêmicos com cara de professores de ginásio de interior. (O problema de Stevam é ser preconceituoso. Mas quem não é?) alguém até animou (a mulher de JP?) a chamar os vultos da varanda, Tem salgadinhos na copa, mas ninguém deu a mínima. Ficavam lá. De olho nas estrelas.

    - Quem tem o monopólio da violência? Os cristãos nas Cruzadas, na Inquisição. Perseguem tanto quanto foram perseguidos pelos romanos. Os alemães massacraram judeus, os turcos matam armênios, os judeus atacam campos palestinos, os iraquianos jogam gases nos curdos. Os desbravadores massacram índios. Ocupação romana, agora ocupação israelense. Vejam que um pedacinho de terra. Oásis e deserto. O perseguido ontem, o perseguidor hoje. “A História s repete como farsa.”

    O estudante (quem seria?) estava verborrágico. Oto, girando a cabeça, sondando a localização de Carol. Alguém se aproxima da garota, o suficiente para Oto esquecer a conversa.

    - Criado na religião, o mundo (como dizem) é a tentação. Ou o ‘mundo’ é hostil, irracional, fútil, e vou buscar refúgio na igreja. Tanto igreja como mundo são manifestações da única e mesma ignorância.

    O estudante empolgado, Stevam nota o ódio nascendo nos olhares do amigo Oto, e TH em mesmerizada atenção.

    - Consolar-se na igreja, e o mundo continua lá fora, além das paredes. Não é aceitar o mundo nem se esconder na igreja. A solução é MUDAR o mundo.

    - Um só desejo. Ampliar a Igreja até os limites do mundo, ao evangelizar e converter o mundo. Uma só comunidade, domesticada na liturgia.

    As frases de TH são breves e enfáticas. Oto já nem percebe. A silhueta de Carol, na escadaria da garagem, dando atenção a um ‘maurício’, consegue nublar todo o seu semblante.

    - Sei, sei . – continua a estudante, como se TH o estivesse interrompendo. Imaginaria estar numa palestra? – Fé e poder. Justificação da força. Para separar o joio do trigo, não é? Pois não existem os maus e os justos, os condenados e os eleitos? Ou os justos suportam a opressão dos ímpios, aguardam a recompensa nos Céus, ou os justos tomam o poder e eliminam os maus aqui na Terra mesmo.

    - É devorar antes que te devorem.

    Por um momento, para a perplexidade de Stevam, Oto volta à conversa. Mas Carol já sumiu de novo! Pressente-se um escândalo. “Aquela puta!”, Oto passa lá embaixo, furioso! JP não quer incidentes. Um grupinho se possa do som e monopoliza.

    Na hora de irem embora, todos os olhares à procura de TH. Ele também sumiu.





    Aconteceu na manhã seguinte ao inominável atentado contra os nova-iorquinos. Sim, ele, o nosso HD, caminhava pelas ruas atormentadas do hipercentrodowntown de Belo Horizonte, capital dos mineiros, quando ali, em plena Praça Sete de setembro, na esquina com Carijós, no exponencial calor da manhã, e nem eram ainda dez horas, e um cidadão quase a atirar-se diante dos carros, que deslizavam como sempre desde a Rodoviária, e ele, o pregador, em suas proclamações do apocalipse, sim, a derrocada total e final, se prorrogações!

    - E uma bola de fogo consumiu os infiéis, quando Gog encontrou Magog no campo de morte e os que não temiam ao Senhor dos Exércitos se viram cercados pelas hostes angélicas que cuspiram fogo sobre os que não reverenciaram o Sangue do Cordeiro que...

    E nisso o sinal ficou realmente vermelho-sangue (para a sorte do pregador, pois caso contrário...) e os veículos ficaram ali amansados não pela Palavra, mas pelas leis de trânsito, e o Profeta (muito bem trajado, aliás) continuou sua litania:

    - ... mas os que aceitaram foram acolhidos na Paz do Senhor que os abençoou com a Vida Eterna na Luz do Seu Trono de Luz que abriga os Mártires que entregaram suas vidas ao...

    Mas HD estava com mais fome física do que espiritual e foi se abrigar ali no Café Nice, onde apontou dois pães de queijo e um suco de caju, enquanto dois senhores, com seus respeitosos cabelos brancos, comentavam as “invasões bárbaras” e muito solenemente compartilhavam jornais com manchetes sobre os atentados às imponentes torres do complexo do World Trade Center, na Ilha de Manhattan, na manhã do dia onze de setembro, isto é, na manhã anterior.

    - Colheram o que semearam.

    - Mas aquilo foi um exagero! Coisa para a mídia! Covardia!

    - Morreu muita gente! que nada entendia de política externa...

    - Pelo menos Pearl Harbour havia gente dos militares mesmo. Aqui atacaram civis, funcionários, gente que ia trabalhar...

    E HD ouvia, ocupado em mastigar o fantástico pão de queijo, aquelas cabeças subitamente sábias pela idade e pelo acontecimento (“Quem diria! Parece coisa de cinema!”, Flávio comentou, diante da TV)

    - Os States não levantam um dedo para garantir a paz. Não entram em negociações para conter a poluição. Não são nada gentis em seus acordos comerciais. Não dão muita idéia para o que os outros estão pensando...

    - Isso se chama prepotência.

    - Não, se chama superpotência. Cada época tem o Império que merece. Seja Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma...

    E de súbito, as palavras se perdiam, pois HD se via povoado de imagens! Daquelas exaustivamente veiculadas na TV, nas capas dos jornais, onde uma bola de fogo beijava uma coluna ereta e faces em espanto se erguiam para os céus agora cobertos por um manto de fumaça, negra em novelos. Então novamente (por outro ângulo!) um imenso abutre (não! É um Boeing!) vem pousar na torre e vozes se erguem nas calçadas. E depois helicópteros em enxames e corpos sem faces que se precipitam (“Inferno na torre”? ou assemelhados?), com um diferencial: é tudo REAL! Não é trailer de filme enlatado ianque, não é ensaio para um filme de um milhão de dólares! As torres desabaram MESMO! de verdade! E aquelas pessoas correndo, se abrigando em lojas e subterrâneos, com suas gravatas e valises e notebooks, não estão num filme sobre os bombardeios de Londres, nem num documentário sobre a fúria de Hitler, nem num filme histórico sobre os ataques da OTAN sobre Belgrado, não! NÃO! Aqui tudo é a mais real e física e horrenda realidade! Uma realidade feitas realmente de fogo, destroços, sangue, suor, fumaça e horror!

    - O que sobrou do sonho americano?


    HD não sabia, por enquanto tentando deglutir um horror entalado na garganta.




(do diário de Stevam)

  abril 2000


    Preciso encontrar o substrato ao qual me prender, pois os sentir-se distanciado, despregado do tecido da realidade, traz o sentimento de vazio, vácuo, como se a imensidão cósmica aumentasse, a atingir níveis que não se tem consciência, não se pode exprimir em termos, pois a comunicação é falha, nem a linguagem nos deu formas de expressar. A linguagem já não pode mais pavimentar o caminho.

    A linguagem delimita o que pensamos em relação ao que sentimos, e a sociedade entrega a moral a seguir, o valor tradicional, o não ter dúvidas (pois tudo sempre foi assim mesmo...), tudo dado de antemão, para que não possa haver questionamento.

    Assim não tenho termos para expressar o que eu sinto. Serei artista – inventarei os meus termos. Mas ainda é necessário encontrar o substrato. Criar, pois ainda não foi criado.


    Por que a risada diante de um fato da vida? A vida é engraçada – ou melhor, é tão deslocada em relação a mim?

    Rir ironicamente das próprias risadas? Mas se eu me desloco com relação à vida a ponto de rir! Seja agora ou do passado (ou no passado não era Eu?) – o que me dá o direito de rir hoje do que fiz ontem? A vida na qual sou contínuo, na qual sinto minha continuidade?

    Não vejo problema em compartilhar minhas vivências com um grupo, se todos se propõem a tal, ms como, se não consigo apreender o sentido dos risos, do humor nisso – como entender a que nível o que sou transmitido aos outros?

    Não entendo se tais risadas são defesas mentais ao que foram – do tipo “fui brinquedo dos meus irmãos” – ou se acham tudo tão deslocado e irônico com referencia ao que são hoje – o que provoca o humor?

    Mas alguns nada humorados, e se estão rindo é para agradar ao coordenador que tenta – pois é preciso uma coesão no grupo – enxertar algo humorístico na atividade. Várias referências se repetem, poucas variações são notadas.

    Não vejo problema em contar minha história. Mas aí o que fui, o grau de existência que ali se armazena – a partir do qual eu sou HOJE – será motivo de risadas?

    Mas, por que as pessoas riem? Ouvem um CD de um sujeito contando seus problemas, num tom melancólico de voz, e continuam rindo.


    Percebo a fragmentação nas encenações dos papéis. Estudar Teologia e não crer em Deus, ouvir rock’n’roll e seguir para a missa de domingo, ser médico, receitar vida saudável e depois ser flagrado fumando no banheiro.

    Há alguma Coerência? Pois o cidadão não se apercebe de seu Ser, pois sua vivência é socialmente dada, assim cada idéia e ação, e o Ser não se destaca com o propósito de entendê-la, questioná-la.

    Identificando-se com o papel social (a máscara tornando-se a própria face!), aceitando-o, o Ser vive sua inautenticidade.

    O caminho asfaltado pela sociedade é alegremente trilhado pelos atores sociais, integrados.





    Onde encontramos HD ao longo do conflituoso segundo ano do século vinte um após o atentado midiático às torres nova-iorquinas?

    Preso à sua classe e a algumas disciplinas dependentes na imensa e obsoleta grade curricular, HD encontra-se às olas com aulas excessivas e professores cínicos. Não encontrou emprego e vive da mesada gentilmente e responsavelmente enviada por seus progenitores.


    Qual a importância de HD pra a economia ao longo do referido ano?

    Nenhuma, visto sua baixa taxa de consumo, limitando-se a duas refeições diárias de baixo teor calórico, o que levou o estudante a manter-se em seus conhecidos e bem dosados sessenta e sete quilos. Não comprou o aparelho de som que desejava e nem começou a pagar as prestações da casa própria. Muito menos investiu qualquer quantia em jogos, jogadas e jogatinas. Não arriscou na mega-sena, nem bolão de Copa do mundo, e desprezou terno, quina e jogo do bicho.


    Visto o baixo poder aquisitivo do mencionado estudante, onde terá encontrado abrigo para os seus momentos de estudo e repouso?

    Incapaz de pagar a pensão por mais um trimestre, o nosso HD foi socorrido pela Providência, não a Divina, mas de seu amigo Flávio Toledo, que mobilizou um apartamento de dois quartos com varanda, no Gutierrez, no propósito de se casar com a noiva Stella Lauria, vinte e dois anos, secretária, ainda no ano de dois mil e dois, mas transferido para dois mil e três, devido a imprevistos financeiros. HD foi convidado a ocupar o imóvel e conserva-lo limpo e arejado.


    Que preocupações ocupam a mente e o tempo do jovem estudante em decorrência de mudanças quanto ao local de moradia?

    Além de manter o apartamento limpo e arejado, o de não ser flagrado levando mulher ao mesmo.


    E quanto à vida acadêmica do jovem estudante pode-se evocar novidades?

    Após as férias compulsórias devido à longa greve dos servidores e professores, os semestres foram compactados, o calendário acadêmico transtornado, os prazos mais limitados e os estudantes mais estressados. Mas devido a intervenções conselheiras de seus colegas, o nosso HD não desistiu. Muito grato ele eternamente será a Selma Faria, que se diplomou, não no segundo semestre de dois mil e um (posto que inexistente), mas no primeiro de dois mil e dois, e antes de partir presenteou o rapaz com importantes dados bibliográficos e anotações.


    É possível a enumeração das dificuldades enfrentadas pelo estudante em sua vida acadêmica quanto a disciplina e professores?

    Tirando as disciplinas trancadas (Metodologia e Civilização Ibérica) e as reprovadas (Estatística A e Estatística B), e as que mereceram C (Monografia e Português Instrumental) e as que levaram B (Geopolítica e Filosofia B), e as que todas as demais se destacaram por excelente aproveitamento em classe e avaliações, em se considerando que nenhum professor (exceto o de Sociologia) jamais se incomodou com o aluno em sala. Não que o de Sociologia o perseguisse, pelo contrário, era o único que percebera a existência do aluno.


    Alguma informação quanto à vida amorosa do estudante é digna de nossa atenção?

    Lembrando-se de Naína (juridicamente, Janaína Fontes) com nostalgia, HD pouco se relacionou afetivamente, deixando-se à deriva, a experimentar bocas e orgasmos sem qualquer compromisso. Lamenta, no entanto, não ter seduzido a loirinha da floricultura. Tendo percebido que mocinha fora demitida do estabelecimento, não mais a encontrou.


    Alguma outra ausência se insinua na vida afetiva ou social de nosso estudante?

    Os bons amigos estão dispersos pelo mundo. Literalmente. Alex (Alexandre Alves) continua no sul de Minas, as cartas são raras, já não se entendem quanto a revolução e a Teologia da Libertação. Darío Sabine encontra-se na Europa, atualmente em Barcelona, aperfeiçoando-se em espanhol e catalão, e enviando cartas lingüístico-filosóficas. Everton Reis entregou-se de vez ao movimento sindicalista e sua agenda não deixava lacunas, visto seus apoios de classe a candidatos do partido trabalhista. Flávio Toledo era o mais próximo, mas envolvido com religião e mulher, suas duas paixões, a espiritual e a carnal, não separava muito tempo para HD, em raras partidas de xadrez nas tardes de sábado. Quanto à família, a mãe Hilda, o pai Ramiro, e as irmãs Débora e Luana, residentes na periferia, a saber, na região do Barreiro, à vinte minutos do hiper-centro, HD se dispunha a visitá-los nos fins de semana, pelo menos duas vezes por mês. Mas evitava conversar com a mãe sobre religião e com o pai sobre política.


    Sabendo de antemão ser o estudante cidadão bem informado e de alta formação intelectual, quais as manchetes, datas e fatos que tiraram o sono de HD enquanto bebe café sem cafeína?

    Entra em vigor o Euro. Máfia dos combustíveis envolvida na morte de promotor na zona sul de BH, 25jan. Ações militares na fronteira Afeganistão-Paquistão. Fórum Econômico Mundial com pauta social, Nova York, 31jan. Fórum Social Mundial em Porto Alegre, até 05fev. A morte do filósofo francês Pierre Bourdieu. Manifestações em Nova York. Em Porto Alegre, Fórum reúne babel de insatisfeitos. Redução de juros ajuda na recuperação da economia norte-americana. Fim do racionamento no dia 19fev. Reunião do BID em Fortaleza. Multinacionais crescem na década liberal. Negociações sobre a cota de aço com os EUA. Show de Roger Waters no Pacaembu em 14mar. Presidente Bush só apresenta retórica aos pobres. Líderes mundiais se reúnem em Conferência em Monterrey, México. Coligações políticas entre PMDB e PSDB. Ofensivas israelenses. Argentina em recessão e o ministro Cavallo continua preso. Campanha presidencial francesa um tanto tediosa. Pressão para a aprovação do “fast track” no Senado dos EUA. Chirac e Jospin? Não! Chirac e Le Pen! A Direita no segundo turno! Multinacionais rivais se unem para vender lado a lado. Cofres públicos reembolsa empresas por prejuízos devido a crise energética. Sem-teto fazem mega-invasão em áreas de São Paulo. Presidenciáveis desfilam nos bastidores. Dívida pública monstro! Ânimo belicista dos EUA e a ameaça nuclear. Anos FHC rendem um bilhão de dólares em juros ao FMI. Brasil é espinho para congressistas ianques. Crise derruba o otimismo da América Latina. Morte de jornalista em favela carioca. Prisão de procurado narcotraficante. Copa do Mundo 2002 na Coréia do Sul e Japão. Escândalos financeiros, queda das ações, estagnação japonesa. Crise nas Bolsas de Valores gera estresse. O “fast track” e as negociações bilaterais. Economia ameaça republicanos em eleições legislativas norte-americanas. Hollywood pretende passar boa imagem dos agentes da CIA. Eleição presidencial mantém instabilidade na Bolsa. Trabalhistas assumirão o poder? Montadoras de veículos enfrentam quedas nas vendas. EUA e o desemprego estrutural. Programa petista deve flexibilizar metas de inflação. Saúde frágil do Papa João Paulo II. Argentina em busca de um candidato. Anti-americanismo pelo mundo. Depoimentos de sobreviventes do atentado às torres gêmeas. “Brasil em Guerra Social”, diz a ONU. 11 de Setembro: um ano depois. Retorno de importante banda de pop rock brasileira. Eleição dos trabalhistas. Ex-metalúrgico no poder. Estudante de Direito mata os pais em bairro de classe média em São Paulo. Centenário de Carlos Drummond de Andrade. Centenário de “Os Sertões”. Plataforma petrolífera afunda. Candidato eleito visita Washington (é elogiado pelo Fundo monetário). Facções criminosas em ação.


    Curiosos, percorrendo com os olhos os títulos na estante de nosso prezado estudante, que volumes encontrados reforçam as impressões quanto as suas preocupações com temas de cunho humanístico?

    De cima para baixo, da esquerda para a direita, catalogamos um volume excessivamente manuseado de “O Cânone Ocidental”, de Harold Bloom, outro não menos manuseado de “Antologia Poética”, de Carlos Drummond de Andrade, além de contos de Saul Bellow, “Mosby’s Memoires”, no original; além de romances de Jean-Paul Sartre com destaque para “Sursis”, ao lado de “Os Versos Satânicos” de Salman Rushdie, e de “O Nome da Rosa” de Umberto Eco, apoiados em uma antologia de pomas de Maiakovski, por sua vez reclinada em um folheado “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, que mantém em equilíbrio estático um volume de “Quarup” de Antonio Callado, excessivamente sublinhado. Embaixo temos títulos de Marx, ao lado de um volume de “A Lista de Schindler”, de Thomas Keneally, por sua vez ao lado de “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawn, carregado de anotações, prensando um fino volume, a saber, “O Horror Econômico”, de Viviane Forrester, acompanhado por “In the tracks of Historical Materialism”, de Perry Anderson, edição dos anos 80, e “A História Nova”, de Jacque Le Goff. Segue-se um volume de “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, os dois volumes de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, ns prisões do regime varguista, caídos sobre um livreto “Cândido”, de Voltaire, que se encosta tímido em “O Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, que é ninguém menos que Fernando Pessoa!, em notas rascunhadas desde 1929, mas publicado somente em 1982, volume que espreme “On The Road”, Jack Kerouac, no original. Na próxima prateleira, percebe-se traduções de poemas de Walt Whitman e Rilke, além de “Aleph” de Jorge Luis Borges, ao lado de um volume de “O Mal-Estar na Civilização”, de Freud, ao lado da peça de Dias Gomes, “O Pagador de Promessas”, junto a peça “Calabar” de Chico Buarque e Ruy Guerra, apoiados em “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, além de antologias de poesia brasileira, como uma dedicada a Ferreira Gullar, ao lado de “Era inevitável a Revolução Russa?”, de Roy Medvedev, edição de 1976, apoiado em “1984” (no original) de George Orwell, lado a lado com “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto.


    Quanto à produção acadêmica e literária algum trabalho a ser mencionado?

    Após considerar a leitura de quinze livros técnicos e trinta e dois títulos literários, HD distribuiu a papelada das gavetas em pastas e descobriu que produzira três ensaios, a saber, sobre Malthus, sobre a Era Vargas e sobre Maio de 68. escrevera nove contos, sendo quatro longos. Esboçara sua monografia sobre a Ditadura Militar. Datilografara vinte e cinco poemas, que sobreviveram a auto-crítica. Refizera duas crônicas, ironizando a histeria coletiva. Iniciara um conto sobre um crime no anexo da Biblioteca de Letras. Ajudara Selma a terminar a monografia sobre o renascimento na França. Vendera um prólogo sobre a Guerra do Paraguai por cinqüenta reais.


    Quais recordações guarda HD dos longos dias e longas caminhadas ao longo do conflituoso segundo ano do século vinte e um?

    Um beijo roubado no barzinho da Biológicas. Uma noite no teatro com Flávio e Stella, onde encontra um casal de colegas. A visita de despedida de Darío Sabine quando prometera se auxiliar mutuamente no sentido de se tornarem famosos escritores latino-americano. As tardes de sábado jogando xadrez com Flávio (apesar de ter ganho apenas uma vez, numa tarde em que Flávio reclamava da gastrite). Lendo poemas de Carlos Drummond de Andrade na sombra da praça e rascunhando carta para Darío Sabine. A rádio rock noite adentro tocando blues e clássicos dos anos 70.




continua ...



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