sábado, 21 de maio de 2011

mais Capítulo 3 ...

...






    Stevam Valêncio encontrou Stevam Lucena no terraço. Concentrado na leitura da peça “Macário”, de Álvares de Azevedo, confundindo-se com as sombras do crepúsculo, em suas vestes soturnas, Stevam lentamente notou a presença de Fabrício, ali ao seu lado. E prometendo a presença de um sonetista amigo seu, “O cara é doente igual ao Augusto dos Anjos”, dizia, interrompendo inoportuno, às leituras misantrópicas de Stevam, pouco interessado.

    Havia um excesso de amargura, um ressentimento compartilhado em coletivo, a “a . r. a .”, “associação dos ressentidos anônimos”, a provocar náuseas e ânsias fremente de vômito. O que poderiam fazer, aqueles jovens de poses bárbaras, ofendidos e humilhados, pelo império romano do capital? Claro, eles ironizam a civilização. Apoderam-se de músicas clássicas, eruditas, populares, e injetam distorção, em paródias, em citações desconexas, em colagens cubistas ou dadaístas, onde misturam Debussy e Elvis Presley, Beatles e música dodecafônica, baladas e ruidosas guitarras, substituindo, nos refrões, “amor” por “ódio”. Pensam detonar a mediocridade e seu ‘espírito de conformidade pequeno-burguês’, ao distorcerem as belas canções da moda, e seu ‘bom-gosto’ estilizado, ao pisotearem o ‘glamour’ dos bailes burgueses e dos salões elitistas ridicularizam a civilização e seus, ditos, ‘inautênticos cidadãos’, todos alienados e acomodados. É de se pensar: os punks anseiam o retorno a horda primitiva?

    Fabrício, ao seu lado, jovem neófito, não entendia aquele ar pensativo, e fazia mil interrupções, “Onde será o sarau dos poetas?”, “você já vendeu muitos livros?”, “Ah, os livros não são seus? Pensei que fossem...”, e Stevam acompanha os jovens e seus gestos, suas inquietações e mochilas pesadas, e até reconhece uma distinta no mar de faces, é aquele Lino, que reevocava um brilhante passado urbanóide, punk-pós-punk decadente, dos tempos de Germano e seu misticismo neo-pagão-medievalista-crepuscular, quando andavam nos bosques, em rituais à lua cheia, sob o feitiço da lua, e agora Lino assim ressurgia e nada havia a dizer um ao outro, e ambos solenemente se ignoram.

    Mas quando desceu para comprar uma garrafa de água, Stevam notou um outro vulto conhecido, e dessa vez é o outro-Stevam, a esperar junto à portaria.

    - Chegou agora, Valêncio? O sarau começa assim que anoitecer...

    - Ó, Steve, ainda bem que você apareceu. Precisaria de um mapa para andar aqui dentro.




    A lavanderia é um espaço até amplo, mas lembra mais uma cozinha de senzala, naquelas descrições do Bernardo Guimarães, sujas e sombrias, ou os cortiços descritos por Aluízio de Azevedo, onde se amontoam caixas de sabão e baldes co roupas, distendidos varais que se entrecruzam, tanques imensos com recheios de espumas, um ar úmido e pesado.

    Depois de se perderem no almofarixado e perderem-se no contínuo sobe-e-desce dos topetes e moicanos, roupas pretas e piercings, a procura dos organizadores do evento, meio ao bate-boca sobre feminismo radical, que HD entendia lesbianismo conjuntural, ou então o turismo libertário em Cuba (“Abaixo os castristas-stalinistas! Abaixo as ditaduras de direita, de esquerda, de cima pra para baixo, de baixo para cima!”), os amigos conseguiram se animar na rádio pirata (jolly roger-comunitária-autogerida) e reunir oito náufragos agarrados às tábuas do lirismo-denúncia.




    HD declama Brecht, “Não vos deixem ser conduzidos para o jugo e a opressão”, e HL empolga-se com seu “Existências vãs!”, e Stevam Lucena declama Augusto dos Anjos, “Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera!”, e acendia o cigarro de Stevam Valêncio, aos versos “Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja.”, e em seguida, Valêncio declama poema próprio denunciando “o asfalto até nas almas”, e Fabrício declama poema de Edgar Allan Poe, no original, “To Helen”, e apresenta o amigo LL, sonetista apurado e clássico, que apresenta versos próprios, um soneto a acusar “um sentido que perverte o não-sentido”.




E Robert Punk, um dos organizadores, somente observa, preocupado com o horário da janta, e ao seu lado a garota que elogiou o poema de HD, naquela reunião lá no Maletta, e balançando numa rede, que algum anônimo ali deixara, outra garota, com sotaque carioca, lembrando versos de Eduardo Alves, com seu “No caminho com Maikóvski”, onde pouco a pouco somos envolvidos pelas forças da repressão, e HD voltou com Moacyr Félix, “O verbo ter é o verme do mundo”, ou “O verbo ter é a prisão do homem”, e HL lembra o poeta boêmio Vinicius de Mores, “Porque hoje é sábado” e também textos próprios, pois principalmente, HL declama HL!”, e o amigo de Fabrício, o sonetista LL declama “O poeta do Hediondo”, outra pérola de Augusto, que assim se inicia “Sofro aceleradíssimas pancadas No coração. Ataca-me a existência...”, e Stevam Lucena, emocionado, entrega-se ao soneto “Vida Obscura” de Cruz e Sousa, “Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, Ó ser humilde entre os humildes seres,...” e Stevam Valêncio lembra outro, do autor, “Cárcere das Almas”, “Ah toda a alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades...” e HD fecha com um texto do Subcomandante Marcos, “No Morirá la flor de la palabra”, que finda assim, “Aquí estamos. Somos la dignidad rebelde. El corazón olvidado de la patria.”

    E desceram até a cozinha, para um jantar natureba, onde HL testa os conhecimentos de Stevam Valêncio sobre a “República” de Platão, e HD observa os alternativos que se distribuem mesa a mesa, com mochilas com “A”s anarquistas, com skates de rodinhas gastas, com botinas igualmente gastas, com mechas coloridas nos cabelos, com brilhantes piercings na língua ou no umbigo,com subversivos volumes sob os braços, com subjetivos planos de revolução. A garota carioca elogia o macarrão, por gentileza, e quer saber onde estão os outros. Isso porque Stevam Lucena e Fabrício já sumiram (e antes ainda o sonetista LL), mas é que não se animaram ao techno-elethro-noise-anti-mesmice, que recebe a presença de DJ de nome astronômico, numa ‘rave’ mais estética do que discursiva, afinal diversão faz parte da revolução.

    Assim, HD se levanta, acompanhado por HL e outro-Stevam, muito indignados com aquelas garotas antenadas e plugadas e ensimesmadas, com aqueles jovens de punhos levantados, blasfemando contra algo ou alguém, atendendo os telefones celulares com trilhas sonoras de pub inglês!, com aqueles moderninhos exaltados pregando contracultura (contra qual cultura?), com suas vozes estridentes ao longo dos corredores, ou flutuando nas escadas junto a uma fumaça suspeita, colando cartazes e poemas nas paredes. Muito indignados, uma vez deslocados, frustrados com um sarau de qualidade, mas sem quantidade, enquanto as turmas, as quais desconhecem, se formam na escuridão riscada de luzes piscantes, numa boate libertária?, não, em busca de diversão e erotismo sem compromisso. Qual revolução é a sua, meu brother?

    O sono pesou, HL se despediu, dizendo voltar no dia seguinte, e o outro-Stevam, idem, idem, e se bateu o sono, eis o saco de dormir. E assim HD se acomoda. Enquanto isso, a desobediência civil continua noite adentro, sim, os ‘enclaves’ nas ruas, e tinta nas faces e nas cortinas de concreto, e grafites nas logomarcas corporativas, e uma menina abraça um amado míssel num stencil sombrio do inglês Bansky, e pichações nos anúncios-ladainha-lavagem cerebral, e corte na comum-náusea da mesmice, no outdoor da indústria cultural, em colagens nos bigodes fascistas, “Mas o que é isso? Uma garota abraçando uma bomba?”


    já amanheceu? E olhares abertos línguas soltas avançam nos banheiros ocupados, aos hóspedes o lanche é servido, um cara me empresta o creme dental, depois abri os olhos e estava cercado por carrancas de papelão, e alguém tropeçou em mim durante a noite, e um casal transava na rede, a oscilar e oscilar, sem qualquer pudor, mas deixa pra lá, depois que vi a garota com a camisa do Dead Kennedys, lendo um fanzine junto ao filtro da sala de café, mas ela nem me viu, ou fingiu que não viu, bebi um café, acordei então



    Em pleno hotel, HD deparou-se diante de uma horta em plena lavanderia, e encontrou os lutadores de capoeira angola, gingando enquanto o sol aquecia, “Esqueça o Bruce Lee, cara, lute capoeira angola”, mas ele, no momento, só precisa terminar sua adaptação modernizada de “Macário”, e a mesinha, ao lado da sala de café, é ideal, mas não deixa de ouvir atento a uma palestra sobre anarquismo e budismo, a lembrar-se de Kerouac, numa ‘química’ que se julga possível, anti-castas, anti-dogmas, anti-messianismo, enquanto os aromas de incenso flutuam lado a lado com os pensamentos, e quando HD senta-se, para escrever, já é hora do almoço, e sua presença chama a atenção, mesmo tão discreto (ou por isso mesmo!), e até um rapaz, com a namorada, em fala carioca, indaga se o ‘brother’ está estudando, “Ei meu velho, treta uma facul?”

    Não demora muito, da fila se destaca o Robert Punk, com pose de zapatista, mas sorriso diplomático, constatando que é um dos organizadores, elogiando o sarau da noite anterior, “Mas uma pena eu precisei ajudar na cozinha...”, e sua amiga, a mesma do sarau, cabelos curtos e mascando chiclete, reintera as desculpas, não sem uma crítica sutil, “Podiam ter feito o sarau na cozinha, pô!”, e Robert até chega a confessar, confidencialmente, “Um cara igual a você faz falta na Óbvio”. Não se entende. “Não seria NO óbvio?”, HD pergunta, não que isso venha a esclarecer as coisas. “Não, é NA Óbvio mesmo, uma rede de intervenção cultural...”, e afasta-se sem maiores detalhes, afinal HD ainda não é um ‘iniciado’.

    HD aprecia muito o arroz integral e as saladas, o que o aproxima de Darío Sabine, vegetariano convicto (agora europeu naturalizado), e o afasta totalmente do Sr. Leopold Bloom, que adora comer as vísceras dos pobres animais, com preferências para rins à manteiga. Na mesa, à sua frente, estão dois jovens, possivelmente do sul de Minas, ou interior paulista, ‘traficando informações’ sobre a Guerra Civil Espanhola, que volta e meia surge e ressurge para o desassossego dos ‘esquerdistas’, mais divididos que o ferro e o barro da imensa estátua do sonho do rei babilônico narrado ao profeta Daniel! Mas por que lembrar isso agora, ao modo proustiano? Simples. O jovem diante de HD é chamado justamente de Daniel, por seu amigo que apresenta um filme baseado no romance de Hemingway, “For Whom the Bells tolls”, “Por quem os sinos dobram?”, além de documentários independentes com anarquistas, sempre ressentidos com os comunistas (os “estalinistas”, dizem entredentes), que a “quinta coluna” na verdade era a desunião dos republicanos anti-fascistas, dos socialistas, dos comunistas e dos próprios anarquistas, perdidos entre ‘utopias’ díspares, enquanto a conversa segue sobre a produção e os levantes festivos (“Noite adentro, cara!”), contra todos os ISMOS, sejam de ‘esquerda’ ou de ‘direita’, ou de moderados, enquanto, na mesa ao fundo, um literato faz o lançamento (literal!) de um livro de poemas!


    Agora, já em andanças, HD encontra o bardo HL, que conversa com interlocutores vários, ali preocupados com o espaço urbano, a diminuição do espaço público (“Estão privatizando os bebedouros!”), e os peripatéticos jovens das metrópoles explorando os seus limites, mas agora todos descem para a sala do café, onde palestras, com os temas citados, aglomera os contestadores.




    Sob uma das poças árvores do terraço, Stevam Lucena ocupa-se da poética de TH, o inesquecível Thales Henrique, seu finado amigo, enquanto na rádio comunitária, ao lado, entrevistados esclarecem os mitos sobre os hackers, os crackers e outros invasores virtuais, ironizando as caricaturas e os manuais, com suas receitas de bolo, onde de seu PC, trancado no quarto, um jovem nerd pode ativar o “holocausto nuclear”, a guerra total e final, o almejado fim apocalíptico, tudo assim muito didático, para quem, igual a ele, Stevam, não trilharam o espaço nômade e o espaço errático, o outro-lado-da-banalidade, e não discutiram o espaço público das metrópoles, bebericando um cafezinho...


                                                 visões entorpecidas que
                                                 bloqueiam vozes fugidias

                                                 quando guio meus passos
                                                 através das névoas dos dias

                                                 ansiando por libertação
                                                 do fastio que angustia

                                                 onde a carne lacerada
                                                 os meus gritos silencia.


    Então espasmos (anti)sonoros de brutalíssimos acordes devastam a tenda do terraço e violentam os tímpanos incautos. Stevam, de sua sombra, observa os agitos dos adeptos da (anti)música, um “grindcore” que apresenta a brutalidade de um massacre, sendo esta mesma a intenção! Stevam oculta um bocejar, pouco se importando, pois, lixo por lixo, ficaria com uma banda pop qualquer, afinal ali ninguém sabe (e nem quer saber!) o que o vocalista está cantando, ou melhor, urrando!

    Ao descer, observa um jovem gótico pregar poemas nas paredes das escadarias e por todo o hotel, e ele reconhece o sonetista LL, o amigo do Fabrício, mas não trocam saudações. Uma garota de óculos sobe as escadas, ao lado de um punk, rumo ao som pesado. Outras garotas se acomodam nas poltronas. Stevam ainda não sabe, mas haverá de saber, que por ali mesmo estava uma certa Bianca Maria, como ela mesma revelaria, tempo depois. Mas não adiantemos.


    Na mesinha ao lado da sala de café, HD e HL, os bardos, se ocupam, ao folhearem antologias de poetas da década de 60 e 70, o protesto lírico e marginal contra a ditadura militar. O tema obsessivo (a falta de liberdade) e as mesmas perspectivas (a revolução do pensamento, a arte libertária). E declamam mais Vinícius de Moraes (no caso, HL) ou Moacyr Félix (no caso, HD). E podem discutir Pablo Neruda, o golpe de Pinochet, a queda de Allende, a “Casa dos Espíritos”, os pensamentos políticos de García Lorca, os versos futuristas de Maiakovski, a obsessão dos irmãos Campos, e podem reler (e citar) George Orwell, enquanto os refugiados africanos compartilham vivências e resistências.

    Vez ou outra, um ou outro levantava os olhos do volume de “O Homem que virou Quinta-Feira”, de Chesterton, onde o poeta da subversão se defronta com o poeta da ordem, nos porões de um encontro anarquista, a nutrir pensamentos, que poderiam vazar em resmungos, “Ainda bem que os anarquistas de hoje em dia não jogam bombas, mais preocupados que estão em pichar paredes e quebrar orelhões e semear panfletos...”


    Outra banda pesada e grotesca vem abalar o hotel, assustando os hóspedes mais tradicionais, que passam a manhã ouvindo Cazuza ou os Mutantes, ou Nelson Gonçalves ou Os Novos Baianos, e HD e HL, os bardos, não podem deixar de ironizar, “Brutal igual ao cara valentão dos filmes de faroeste...”, no caso de HD, e “Será que pagode ou reggae é pior? Afinal, o que é que não seria ‘lixo sonoro’?”, no caso de HL, e “Eu ficaria com o Mozart... Pô, esses caras exageram!”, novamente se expressa HD.



    Por fim, os bardos cedem o espaço para a oficina de SILK SCREEN, e voltam às andanças. Logo, HD e HL encontram o outro-Stevam tranqüilamente acomodado nas poltronas da sala de estar do segundo andar, calmamente a fumar, os dedos desfilando nos folhetos. Lá também estão o sonetista LL e seus amigos e fãs, enquanto elogiam sua iniciativa de dispersar poemas hotel adentro escadas afora, e os poetas se acomodam em semelhante círculo lítero-devocional. Antes que perguntem, o outro-Stevam informa que o Steve, o Lucena, ali estava para conferir, curiosíssimo, a amostra de curtas, aquela a qual o Robert Punk esboçou especial ênfase. Bela lembrança! Ambos (os nossos bardos) já se esqueciam! E descem rumo a sala escura, onde o Lucena já se acomodou, diante dos filmes metalinguísticos, curtas em sarcasmo aberto contra os enlatados made in Hollywood, em crítica mordaz contra o consumo obsessivo, em desacato feroz contra a produção midiática para entretenimento, enquanto os ‘alternativos’ discutem os protestos anti-globalização, os novos livros de Tony Negri, a entrevista com a autora de NO LOGO, Naomi Klein, os pastiches com efeitos visuais literalmente de ‘fundo de quinta’, onde o que parece ser um helicóptero, não passa de um farolete agitado entre os galhos, e balas deslizam lentas, numa espécie de “Matrix” de baixo orçamento! Todos boquiabertos! HD ao lado de HL, e Lucena ao lado de Valêncio, ao lado de Bianca Maria, ainda que nenhum deles ainda a conheçam. Ainda não.

    É quando começa a chover. Um dilúvio seria hipérbole destas de literatos, mas exagerada o suficiente para inundar todo o terraço e desalojar o pessoal sob o telhado da rádio, sim, justamente o grupo advindo da Baixada Fluminense, entre eles aquela estudante que declamou “No Caminho com Maiakovski”. E HD, com seu brilhante altruísmo, apesar de toda a ironia a de HL e Valêncio, consegue uma vassoura e limpa e cobre o chão com tábuas, antes de descer à procura dos organizadores e sondar providências, ainda que tudo ali pareça por demais descentralizado e horizontal...



    Entediado na rave do DJ africano, com todos os seus scratches e free-styles afro, Stevam Lucena subiu ao terraço para encontrar a chuva, a cair igualzinha àquelas cenas do Highlander II, assim densa e constante, ou no clássico Blade Runner, ou num medonho Jurassic Park, ou num virtual Matrix, aquelas cenas de chuvas, todas antológicas e ontológicas, angustiosas, e ele ama a chuva, e Bianca Maria, igualmente, mas eles ainda não se conhecem, e ele ainda não odeia a chuva, ao odiar a chuva que ousa destruir seus romances idealmente arquitetados, em romanescos momentos, de cenas antológicas, made in Hollywood, enquanto ela adora andar na chuva, quase dançando e cantando na chuva, “singing in the rain...”, falta somente um guarda-chuva e um poste à gás, ela que avança contra as gotas, ainda que não goste de se molhar...



    Logo logo desabou o segundo round da chuva, temporal ou tormenta, e Valêncio, o outro-Stevam fumava ali na escadaria externa, e HD viu, terraço adentro, todo o seu trabalho literalmente por água à baixo, inundando a lavanderia, onde dormira na noite anterior, enquanto a batida digital demolia o que resta na noite de chuva, tudo agora alagado, “Só falta o jacaré!”, ironiza o outro-Stevam. “Onde estão os responsáveis?”, ali HD procurando alguém a quem culpar, mas os cariocas já se abrigaram na parte seca, literalmente amontoados, e aceitam os pastéis e outros salgados que o generoso HL oferece aos ‘flagelados’ pela chuva, tormenta ou temporal, enquanto todos lançam olhares aos grotescos bonecões gigantões boiando sob as goteiras...

    E enquanto discutem teologias e consolo religioso para o pobre proletariado, que aceita os dogmatismo de terras e coroas nos Céus enquanto ambos já têm donos aqui na Terra, ou qualquer outro ISMO à disposição, ainda na rodada dos pastéis, ainda uma cerveja em lata, fumando um papelote, agora oferta do Valêncio, enquanto HD está de volta e procura alguém responsável, “Onde conseguir jornais, lonas, tábuas secas? Não adianta! Falta um chefe, um Duce por aqui...!”.

E realmente a organização ali é ‘horizontal’ demais, e que em certos momentos (crises e cataclismos) é mesmo necessária a figura de um Duce ou um Fuehrer, senão... Mas HD não expressaria jamais tais absurdos numa rodinha de anarquistas, convenhamos... Ninguém quer saber do terraço, assim como ignoram a periferia, os desclassificados, ou estes cariocas, que não podem pagar a estadia no hotel...


    onde estou? Sei que adormeci sob as tábuas da arca de noé, mastigando uns pastéis, um carioca me ofereceu um kit de camisetas e fanzines, e até um CD, aquela grota a procura de um abrigo, dormimos na rádio, ouvindo o heavy metal mais brutal do mundo, narrando as atrocidades de Auschwitz, sei que açodei quando o sol ainda ressonava, o pessoal voltava do tal levante festivo nos altos da savassi, e lugares foram cedidos, e lugares foram requisitados, e na lavanderia os acessos bloqueados por corpos adormecidos, atravessamos a cozinha entre um copo de leite e uma maçã, escalamos as escadarias externas e conseguimos finalmente dormir, desabando sobre as tábuas, que os outros desprezaram, e nem sei se o Hélio ronca ou não... agora já deve passar do meio-dia, não há shows no terraço, precisamos de uma canoa para transitar aqui, acho que vou relaxar sob uma boa ducha quente


    Apesar de todo o porre anárquico, HD desce até a mesinha, já de estimação, ali ao lado do salão de café, não alonguemos mais a descrição que ao próprio narrador já aborrece, é que HD está um tanto abatido, não eram essas as férias que ele sonhava, não conheceu ninguém, não agarrou ninguém, além de ficar meia hora na fila do banheiro, apenas para contemplar, perplexo, o casalzinho que de lá saiu, com os ares mais inocentes, mas deixando a pia toda entupida de esperma! “É o cúmulo! É anarquia mesmo!”, e ele nada podia fazer, estava entre anarquistas, não? Daí que ele almoçou de péssimo humor, e H nem apareceu, mas sozinho se perdeu numa discussão sobre espaços libertários e autônomos, onde uma mocinha de Curitiba tece infindas reclamações sobre a escassez de verbas até para pagar a conta de luz, quanto mais para manter uma sede aberta, e um rapaz carioca (ele estava na rodinha de ontem? Entre os flagelados?) confessa suas desilusões quanto às iniciativas coletivas, pois o individualismo, a busca do lucro ‘rola solto’, e poucos se preocupam com o coletivo, ainda que se julguem ‘anarquistas’ e ‘comunitaristas’, “A casa da ponte ‘foi’, eu quis dizer”, diz a mocinha de Curitiba, ressaltando o caráter pretérito da entidade, “Pois não conseguimos cobrir os gastos e fechamos o centro cultural...”

    E o pessoal da GATO NEGRO, os belorizontinos, concordam que a luta é árdua, que fazem o que podem, no mesmo esquema espaço contra-cultural, ponto de encontro, com uma modesta biblioteca, lanche vegetariano, stand com vídeos, zines e folhetos à disposição, local para oficinas e palestras, mas os jovens vivem apáticos, olham o próprio umbigo, não pensam no coletivo. E o carioca volta aos temas autogestão, coletivo de bairro, democracia direta, horizontalidade, ali a distribuir seus impressos, manifestos, informativos, panfletos, folders, mensagens, sempre ressaltando a inserção social, a ação direta, a liberdade coletiva, o federalismo...

    - A quem interessa a pavimentação da rua? Aos moradores, certo? Mas o político se diz representante, e adia sempre as providências. Logo, os moradores é que precisam se organizar...

    E tudo é de súbito abalado pela avalanche sonora a la Napalm Death que vem sacudir a pobre estrutura do hotel, como bombas napalm caindo no Vietnã, a confrontar um mundo vendido (“Isto está no folder, cara!”) e são agora obrigados a uma retirada estratégica, todos refugiados no hall, até ocuparem o cantinho do cafezinho e compartilharem fanzines e novas idéias, antes do RAP cabeça e bandido (sic!) abrir os crânios e explodir o que resta dos tímpanos!

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    No corredor os jovens circulam em volta de um charge do periódico “A Lanterna”, datado de 1916, onde podemos ver um rei enforcado ns tripas de um padre gorducho, e os dizeres QUE URGE FAZER Enforcar o último rei com as tripas do último frade, ao estilo anarquista italiano, de ironia amarga, e os jovens liam o artigo, riam-se da charge sem entenderem o libelo anti-monarquista e anti-clerical, sem poderem imaginar o que acontecera vinte anos depois nos turbilhões da Guerra Civil Espanhola, manchando o solo hispânico de sangue e vergonha, com anarquistas entrincheirados entre falangistas (os fascistas) e os católicos e os socialistas (e também os comunistas, seguindo a cartilha de Moscou), e num caos de carnificina, que a Europa e o mundo assistiu atônito,para dizer o mínimo. No mais, alguém se lembra das dificuldades dos anarquistas italianos no solo americano, seja no norte ou no sul? Não os mártires acusados de terroristas (em acusações falsas), mas os anônimos que se espalhavam pelas rãs escuras, com panfletos e audácia, deixando manchas de ressentimento iconoclasta nas imaculadas paredes, ou enviando cartas indigestas para os figurões, cartolas e também para os pelegos, os vultos sem faces e sem futuro, sem saberem se estariam vivos ainda no dia seguinte, para a ação seguinte, “anarquistas graças a deus”, firmes na fé, na utopia, preocupados com a roda da História, enquanto hoje esses meninos pouco compreendem as histórias de suas próprias vidas...

    De volta a lavanderia, ou o que restou dela, HD recolhe pertences e fecha a mochila, e enrola o saco de dormir, e não encontra ninguém de quem se despedir, e ao som de um rock confuso ele vai descendo as escadas lendo os poemas estrategicamente dispersos por obra do sonetista e seus fãs em incansável intervenção poética e observa ainda a garota em sombrias vestes fumando a vida pelos corredores e um conhecido acena, talvez um dos cariocas, a sair para o bloco de carnaval na rua, com os bonecos gigantões que sobreviveram, e a água acabou enquanto o hall ainda fervilha em debates, e o banheiro com aquela fila a convidar à nova desistência e assim ele ergue silenciosas despedidas aos recintos do hotel onde perambulou por três dias e duas noites, e assim se despede ainda levando o som dos subúrbios e o som do protesto, o batucar da terça de carnaval dos que esperam ainda alguma revolução.




[Sábado à noite. Bar cultural. Três ambientes. Meia-luz. EDGAR no palco instalando microfones. Um garçom limpa as mesas, sem pressa. Chega HD e acena para EDGAR, que ergue o braço. HD senta-se e organiza as folhas sobre a mesa. EDGAR desliza no palco e vem ao encontro de HD.]

EDGAR: Boa noite, poeta, meu velho! Espero que essa noite seja tão louca quando à outra!

HD: [levantando-se] Será? A última foi bem louca!

[O garçom derrama saudações sobre alguém que chega. HD e EDGAR se voltam. É AURELIUS que entra. O poeta faz uma pausa no segundo ambiente e aprecia a trilha sonora de jazz. Vem gingando e sorrindo até HD e EDGAR.]

AURELIUS: Senhores! Novamente estamos juntos!

EDGAR: Sozinho, Aurelius Magnus? And your partner?

AURELIUS: Oh, I’m sorry! She’s a little sick.

[Novo movimento à entrada. Entra GUILHERME. Saudações.]

EDGAR: pronto. O time está completo. Entremos em campo. Vamos começar com Neruda, esta noite? [EDGAR atento a cada gesto de AURELIUS, a esperar uma resposta.]

AURELIUS: Usted é quem manda! Temos cem sonetos de amor à nossa disposição!

[EDGAR vai ao bar do primeiro ambiente e o som é desligado. Volta em seguida ao palco. O garçom surge com as cervejas. AURELIUS senta-se à mesa de HD, e abre sua maleta com volumes e antologias, que atraem logo a atenção de HD. EDGAR experimenta os primeiros acordes. Um casal entra no segundo ambiente. AURELIUS se levanta, e abre o volume de Pablo Neruda.]

AURELIUS: [recitando] “Ay de mí, ay de nosotros, bienamada, sólo quisimos sólo amor, amarnos, ...”

[Clientes chegam. Um jovem bem trajado entra e sorri para EDGAR, que não oculta a satisfação.]

EDGAR: [ao microfone, após o soneto do Neruda] Boa noite e bem vindos a mais uma noite de música e poesia! Esta noite aqui prestigiados com a presença do estilista, e também músico, Helton Diniz. Sejam bem vindos! [cantando] “Eu quero a sorte de um amor tranqüilo Com sabor de fruta mordida...” [da canção “Todo o Amor que houver nessa vida”, do Cazuza]

AURELIUS: [ao sentar-se] Grande Cazuza! E que olhar é este, Hector?

HD: [disfarçando] Não, nada. Certas canções lembram embaraçosas situações...

[Solo de guitarra mostra a maestria de GUILHERME. Em sua mesa, HELTON aplaude e pede bis.]

EDGAR: [cantando] “Transformar o tédio em melodia...”

HD: [erguendo-se] E também vou ler um soneto do Neruda. [passos adiante] “Antes de amarte, amor, nada era mío: vacilé por las calles y las cosas:...”

[Movimento à entrada. Entram ALFONSO LUCENA e seu primo LÚCIO. Atravessam o segundo ambiente em saudações aos garçons e LÚCIO não hesita em pedir uma cerveja. HD percebe a entrada de ALFONSO e LÚCIO e levanta-se para recebê-los.]

HD: [Diante de AURELIUS, e em saudações aos recém-chegados] Não acredito! Aurelius, eis o Alfonso! Promotor cultural. Um mecenas renascentista! E o primo Lúcio, mestre do violão!

[Seguem-se saudações. Sentam-se.]

HD: Mas quais são as novidades, Alfonso? Vejo que está radiante!

ALFONSO: [sem elevar a voz, num sorriso irônico] Estou é indignado! Estes atentados terroristas em Madrid e o governo acusando o ETA, o bode expiatório de sempre. [em voz alta] Viva o ETA! Viva o Exército Republicano Irlandês! Viva a liberdade! [volta a voz inicial] Me passa a cerveja, aí, Primo! [e bebe a cerveja ali no bico da garrafa] Desculpem-m, mas essas coisas me tiram do sério!




[HD e AURELIUS se entreolham, ocultando qualquer ironia. ALFONSO se levanta, vai exigir cigarros. LÚCIO faz o mesmo. Ficam diante do bar no primeiro ambiente. HD levanta-se também e passa um pedaço de papel a EDGAR, onde rabisca nomes de bandas e músicas.]

EDGAR: [ao microfone] Em homenagem aos amigos do nosso poeta Hector Dias, que aqui chegaram, um pouco de pop inglês. Radiohead, com “High and dry”, “Two jumps in a week I bet you think that’s pretty clever don’t you boy?” [EDGAR sorri aos aplausos que se elevam do primeiro ambiente.]

[ALFONSO e LÚCIO ficam em pé diante do bar e flertam com olhares as mocinhas na mesa mais próxima. HD volta para junto de AURELIUS e comentam autores, enquanto escolhem poemas.]

EDGAR: [cantando] “Don’t leave me high, don’t leave me dry...”

[Aplausos se elevam do primeiro ambiente, seguidos de urros e assobios. As mocinhas também entra no embalo. LÚCIO já se aproxima de uma delas. ALFONSO pisca para uma branquela de tranças negras com camiseta de rock.]

HD: [declamando a tradução da canção “High and dry”]

                                  “Eles são aqueles que vão te odiar
                                   Quando você pensar que tem o mundo todo
                                   Eles são aqueles que vão cuspir em você,
                                   Você será aquele ainda gritando...”

[Aplausos e assobios tumultuam o bar num clima festivo, de pub inglês. ALFONSO e LUCIO erguem suas garrafas. As mocinhas se entregam ao riso fácil.]

EDGAR: [ao microfone] Obrigado, obrigado. E ainda num clima britânico, uma balada do Oásis, “Don’t Go Away”, Não vá embora, baby! [Aplausos continuam no primeiro ambiente]

[Enquanto a música rola, HD pensa em Sônia Regina, quando dançavam na sala de estar de heleno, ou revive seu sentimento por Elen Lauria quando a visitava ao entardecer e liam trechos da sua adaptação de “Othelo” de William Shakespeare. GUILHERME entrega-se ao solo de guitarra e EDGR vai repetindo o refrão. HD levanta-se, achega-se ao microfone e recita a tradução.]

HD: [recitando]       “Então não vá, diga o que você disser
                             Mas diga que você ficará
                             Para sempre e um dia... em minha vida
                             Pois preciso de tempo, mais tempo
                             Para fazer as coisas certas...”

EDGAR: [cantando] “Don’t Go Away, Don’t Go Away...”

[Os três ambientes se arrebentam em aplausos e assobios. EDGAR agradece e sorri, e anuncia a participação de HELTON DINIZ que se levanta e encaminha-se para o palco. Uma fumaça transmigra do segundo ambiente para o terceiro, e uma atmosfera ébria é agora contagiante.]

HELTON: [ao microfone] Agradeço, ao velho Edgar... velho nada! Ele é mais novo do que eu! Seis meses, não é, Edgar? Mas vamos lá, um sucesso do grupo America, em estilo unplugged, acústico, como queiram, e vocês conhecem, “A Horse with no Name”, “On the first part of the journey I was looking at all the life...

[Novos aplausos e HD levanta-se para conversar com ALFONSO e LÚCIO junto ao bar.]

HD: Vejo que estão se divertindo! Mas eu sei que você é irônico, Alfonso. Espero que não esteja reparando no inglês do vocalista. [Pausa. Ouve atento a versão de HELTON para a canção do América] Parece que este aí é melhor. E você, Lúcio, ainda vivo?

LÚCIO: [Olhando para ALFONSO, que resguarda o silêncio] É, estamos aí.

HD: Fala sério! Você está achando tudo aqui ridículo, não é? Este olhar de quem matou todas as ilusões...

LÚCIO: [para Alfonso] Ele é bem observador, hein, Alf! [volta-se para HD] E você, HD, é mais sério? Já chegou aos trinta?

HD: Não, estou nos vinte e seis. Você, eu imagino, passou dos trinta.

LÚCIO: [para Alfonso] Ele acertou, não é, Alf? O cara é dos nossos. [volta-se para HD] Beba aí com a gente, hombre!

[EDGAR reassume o microfone e anuncia um intervalo. HELTON entrega o violão e abraça EDGAR, e depois abraça GUILHERME. O som de jazz derrama-se no ambiente.]

ALFONSO: [com entonação oratória] A ironia é faca de dois gumes. Quando você destrói com ironia, eles vão rir, mas quando você propor construir, aí ninguém mais vai te levar a sério.

LÚCIO: [alheio, em voz alta] Coca-cola is liberty?

[Mocinha passa com uma latinha do citado refrigerante inventado em Atlantic City e não gosta do comentário de LÚCIO. Não que tenha entendido a ironia.]

ALFONSO: [voz alta] Vamos fazer um manifesto pró-Cuba!

AURELIUS: [chegando junto a HD] Só espero que vocês não leiam os discursos de dez horas do Fidel! Por favor, please, meus camaradas!

[Todos em boas risadas. HD pede uma licença, e vai ao toalete. Casais nas mesas do corredor. A mocinha, que ALFONSO comia com os olhos, está diante do lavabo, mas não aparenta sinal de saber onde está.]

ALFONSO: [Conversando com um administrador, junto ao bar] O Sr. Compreende a necessidade imperiosa de total cautela diante dos fatos... seria imprudente...

LÚCIO: [Acompanha o diálogo] Imperiosa e de fino bom-senso.

ALFONSO: [voltando-se para LÚCIO] Cara, p.q.p.! Eu não o esmurrei por pouco! [Termo impublicável], mas era coisa de zoação mesmo, tramóia do mane, coisa de gritar: Grandíssimo F. da grandíssima p.! [segue-se termos impublicáveis], mas eu disse Vá a m.! Mas , você, camaradinha, que é sociólogo, me entende!

HD: [retornando] Um momento, amigos. Preciso prosear ali com o nosso anfitrião... [aproxima-se de EDGAR] O que temos para o próximo round ?

EDGAR: [voltando-se, ainda com um sorriso] Ah, Hector, você perdeu uma boa aqui do Helton! Aquela do cara que ia todo dia esperar a filha do prefeito, mas o prefeito só tinha filhos! A moça era a filha da governanta, etc! mas deixa eu te apresentar aqui o Helton, estilista e tal, figurinista etc, animador de festinhas nas horas vagas, se quisesse ainda seria professor de música...

HD: [para Helton] Já vi que ele é teu fã! Sua versão do América ficou... imbatível. Quase o sotaque dos caras...

HELTON: [amigável] A gente se esforça. Mas prefiro vestir bem as figuras eminentes. Você mesmo, se cuidasse mais da aparência...

HD: [amigável] Ok, eu confesso. Sou mesmo relaxado, realmente. O que sugere? Terno e gravata?

HELTON: Não é exatamente isso, nem é preciso. Veja o Aurelius, veja como ele se veste bem. Sem formalismos...

AURELIUS: [aproxima-se] Agradeço. Preciso reconhecer que tenho bom gosto.

EDGAR: [sorrindo] E modéstia. [os outros trocam sorrisos] Meus queridos, é hora de continuar o show, “The show must go on...”

[EDGAR sobe ao palco. HD folheia a “Antologia Poética” de Carlos Drummond de Andrade. ALFONSO e LÚCIO adiantam-se ao terceiro ambiente. HD adiante para o microfone, enquanto DGAR regula os instrumentos, seguindo as afinações de GUILHERME, à sua direita.]

HD: [ao microfone] Lembrando os tristes episódios do metrô de Madrid, com despertam nossa indignação, vamos recitar um poema do Drummond que, espero, traduza os nossos sentimentos. “Congresso Internacional do Medo.”

                                    “Provisoriamente não cantaremos o amor,
                                que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
                                Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, ...”


[Após a declamação, EDGAR e GUILHERME tocam um instrumental flamenco, enquanto ressoam palmas. HD senta-se e recebe um sorriso de ALFONSO, de pé ao lado de LÚCIO.]

EDGAR: [cantando] “Imagine there’s o heaven It’s easy if you try...” [todos identificam os acordes de “Imagine” de John Lennon, e cantam juntos “Imagine there no countries...”

[ALFONSO aproxima-se da mocinha branca e cabelos negros, e sussurra ao ouvido dela. A moça sorri. Junto a outra moça, achega-se LÚCIO com um olhar sarcástico. Trocam palavras. HD apenas observa.]

EDGAR: [cantando]: “Imagine all the people Sharing all the world.”

HD: [em voz alta para si mesmo] Nós não somos os únicos sonhadores...

EDGAR: [cantando] “You may say I’m a dreamer But I’m not the only one...”

[Risinhos no primeiro ambiente. ALFONSO ousa agarrar a mocinha, mas ela se afasta. Gritos cômicos. ALFONSO e LÚCIO trocam olhares e risadas. Não parecem se divertir. É mais como se estivesse atuando.]

EDGAR: [sorrindo aos aplausos] Obrigado, obrigado. É isso, vamos pensar coletivo e bola pra frente! [pausa] Uma agora do Caetano, “Um índio”. Quero convidar o Helton para fazer o backing vocal...

[Aplausos. Helton sobe ao palco, à esquerda de EDGAR. Faz ok! com os dedos e a melodia nasce e cresce em cós no ambiente.]

EDGAR: [cantando] “Um índio descerá De uma estrela colorida brilhante...”

[As mocinhas fazem silêncio. AURELIUS lamenta a ausência de versos de Gonçalves Dias, do tipo “Meu canto de morte Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci...”, e HD guarda seus pensamentos, ainda a observar os gestos de ALFONSO e LÚCIO.]

EDGAR: [com segunda voz de HELTON]: “Virá Impávido que nem muhammed ali Virá que eu vi...

AURELIUS: [ao ouvido de HD] Se não temos Gonçalves Dias, temos ao menos Hector Dias! Por que não declama um poema seu? Eu, na próxima, leio um do Carlos Nejar.

EDGAR: [com segunda voz de HELTON] “Virá (Virá!) e aquilo que nesse momento se revelará aos povos /surpreenderá a todos não por ser exótico...”

AURELIUS: [ao ouvido de HD]: Leio um de protesto ou um de amor?

EDGAR: [ao microfone] “Virá!” [últimos acordes] Obrigado, meus bons! Poetas, donde están?

HD: [levanta-se][ao microfone] Um diálogo com os poemas de Carlos Drummond de Andrade gerou um soneto... Vamos lá... [pausa] [GUILHERME mantém um ‘fundo musical’]

                                         Por que andas assim cabisbaixo
                                         A perguntar-se ‘onde me encaixo?’
                                        Por que estafar-se na árdua lida
                                        A procurar um recanto na vida?

[ALFONSO e LÚCIO aproximam-se. AURELIUS folheia o volume de poemas d Carlos Nejar. As mocinhas trocam sorrisos. EDGAR, que acaba de trocar uma corda do violão, bebe um gole de cerveja, erguendo, em seguida, o copo diante de HELTON, que, em resposta, ergue o seu.]

HD: [recitando]         “Se agora tão atento a própria sombra
                              Não é a Grande Máquina que te assombra?
 Obrigado.

[Aplausos. Assobios de ALFONSO e LÚCIO. EDGAR afina o violão, trocando acordes com GUILHERME.]

EDGAR: [ao microfone] Grande Hector! Agradeço ao poeta. Vamos lá! Uma do Lulu Santos. [acordes] “Não existiria som se não Houvesse o silêncio...”

[HD acomoda-se, pede uma xícara de conhaque com chocolate, “pra esquentar a garganta” e observa ora ALFONSO e LÚCIO, juntos no segundo ambiente, ora AURELIUS, à sua frente, folheando livros.]

EDGAR: [cantando] “Eu te amo calado Como quem ouve uma sinfonia...”

[Solo de GUILHERME. Casal adentra o segundo ambiente. ALFONSO e LÚCIO voltam para junto das mocinhas. Novos gritinhos quando ALFONSO enlaça a preferida. AURELIUS levanta-se e espera, diante do microfone, o fim da canção.]

AURELIUS: [ao microfone] Aos apreciadores da poesia, eis uma do Carlos Nejar, “Peregrinação” [recitando] “Que importa, se a memória Subtrai suas áreas devolutas...”

ALFONSO: [aproxima-se de HD] Muito bom, aí, o poeta.

AURELIUS: [recitando] “Que importa, rebelde do impossível, Que importa?...”

ALFONSO: [ao lado de HD] Viu ali as meninas? Tudo fã!

AURELIUS: [ao microfone] Obrigado. Agradeço a todos.

ALFONSO: [Junto a HD] Foi mal...! Nem ouvimos o poema... Eu aqui te azucrinando... [Volta para junto das mocinhas]

AURELIUS: [sentando-se à mesa] Gostou? [Diante da negativa de HD] Não ouviu o poema?

HD: [tom de desculpa] Fiquei distraído ali com o Alfonso...

EDGAR: [ao microfone] Saúde aos poetas! [ergue o copo em brinde] Agora, para os fãs do Clube da Esquina [troca sorrisos com HD] “Paisagem na Janela”. [acordes]

AURELIUS: De onde o conhece? Digo, o Alfonso? [bebendo vinho]

HD: Fizemos um curso junto. Sobre Produção Cultural. E o irmão dele, o Stevam, foi grande amigo de um poeta, que morreu jovem, sem publicar sua obra. E resolveu assumir a missão de divulga-la. Fizeram um lançamento e eu cuidei da produção.

EDGAR: [cantando] “Da janela lateral Do quarto de dormir...”

AURELIUS: Bom, o poeta? Digo, o que morreu? [bebendo vinho]

HD: Clássico. Ao estilo Bilac, Augusto dos Anjos. Clássico e Mórbido.

AURELIUS: Temos céticos demais.

EDGAR: [cantando] “Mensageiro natural De coisas naturais...”

HD: “Apesar de todo ceticismo...” Sabe, precisamos de um novo Mário de Andrade. Um luminar. Um guia literário. Estamos fragmentados em ‘escolinhas’.

EDGAR: [cantando] “Cavaleiro matinal Banhado em ribeirão... Você não quis acreditar Mas isso é tão normal...”

EDGAR: [quando findam os acordes] Obrigado, obrigado. Agradeço a todos que prestigiam esta noite de música e poesia! Os poetas querem se manifestar? [HD e AURELIUS acenam] Não? Agradecemos. Vamos encerrar com uma sessão instrumental do nosso mestre Guilherme. Obrigado.

[EDGAR afasta o microfone e desliga o seu violão. GUILHERME se destaca no palco. EDGAR junta-se aos poetas.]

EDGAR: Valeu, meu velho! [abraça HD] Grande Aurelius, valeu! [abraça AURELIUS] Só tenho a agradecer, meus velhos! Vou pedir ali uma macarronada e também porções de fritas... com queijo derretido... Estão convidados.

[A mesa maior é ocupada por HELTON e uma mocinha, e, em seguida, por EDGAR, que graceja, acenando ao garçom. HD levanta-se, enquanto AURELIUS organiza a maleta com livros, e aproxima-se de ALFONSO e LÚCIO, ao lado das mocinhas.]

ALFONSO: Olha, que horror, HD! Elas estão querendo ir embora! Você não vai deixar, vai?

LÚCIO: Claro que não! Ele é o anfitrião!

ALFONSO: Ainda mais esta princesinha aqui, a Lorena! Ela disse que é modelo de desfile de modas! E eu não acredito?

[EDGAR acena e convida os poetas para a mesa maior, onde o garçom serve outra cerveja. ALFONSO e LÚCIO convidam as mocinhas, mas em vão, elas estão decididas. Despedidas. AURELIUS, ao lado de HD, no segundo ambiente, estende a mão.]

HD: [surpreso] Indo embora? O que é isso? Não vai esperar a macarronada?

AURELIUS: [decidido] Não, agradeço. Deixa pra próxima. Seeyoulater.

[AURELIUS se despede de EDGAR. O garçom serve outra cerveja e prepara a mesa. ALFONSO e LÚCIO se acomodam.]

ALFONSO: Que tal a poesia espontânea, hein, HD? O nosso joguinho?

[HD sorri, entendendo. Lembra-se da recepção na casa de ALFONSO, com sua louca poesia surrealista, o primo LÚCIO afundando no vidro da mesinha... E ali ALFONSO puxa uma folha do caderno de HD e começa a rabiscar um tanto frenético. Ao lado de HD está EDGAR e, diante deste, HELTON e sua acompanhante. GUILHERME encerra sua apresentação, agradece os aplausos, e junta-se aos outros, à esquerda de EDGAR.]

LÚCIO: [Quando ALFONSO passa a folha adiante até HELTON] Você acredita mesmo que ela seja modelo de desfiles?

ALFONSO: Sei lá. Elas mentem, você sabe. Como se ser modelo fosse uma vantagem. Mas até que é! Muita grana, você sabe. Bem-vindos ao capitalismo. “Capeta-lismo”. Uma ganha milhões rebolando e tirando a roupa, outra apresentando um programa de TV, e outros trabalham o dia inteiro, sob o sol, sob a chuva, num canavial, num sinal de trânsito, e não ganham um dólar por dia! Aí elas pensam: Ora, por que não vou aproveitar também? Se querem ver a minha b..., tudo bem! Que paguem! Ou pensam que eu vou virar um bóia-fria? Quero ser a garota sorridente da TV! A Miss!

[O garçom serve o primeiro prato de macarronada. HELTON rabisca o papel, lentamente. EDGAR serve a cerveja, espumando nos copos, sorrindo à indignação retórica de ALFONSO]

LÚCIO: O que o Alf diz é verdade! Puríssima! Esta mídia toda anda nivelando os comportamentos, e essas meninas acreditando em fábulas televisivas, rebolando e até dando a [termo impublicável] em troca de dinheiro! A mídia se ocupa de lixos, a cultura de fino trato não chega ao povo, e a do povo inculto engloba tudo!

HELTON: Estamos bem servidos! Dois sociólogos aqui à nossa mesa! Nem na Sorbonne! [e sorri para EDGAR]

EDGAR: [recebendo a folha] Um poema coletivo? [lendo] “... emoções que uma noite brumosa oferta ao coração embriagado..”. Meu velho, como diria o Roberto, “Muitas emoções” [e sorri para HD] Deixe-me ver... [e começa a rabiscar] Não pode pensar, não é? Não é isso? É o que vier à mente, certo? [continua a rabiscar]

ALFONSO: Discussão inútil para artistas...

HELTON: Mas por que? Artistas não discutem política?

LÚCIO: [não ouvindo] Os poderosos são fortes? Ou são ‘fortes por serem poderosos’?

ALFONSO: [em tom de citação] “O papel do mais forte é o de dominar e não o de fundir-se com o mais fraco, sacrificando-se assim a sua própria grandeza. Só o fraco de nascimento pode achar cruel esta lei, mas é por ser apenas um homem fraco e limitado.” Quem disse? Adolf Hitler. Heil! [e ALFONSO faz a saudação nazista, com o braço direito erguido]

LÚCIO: [Ignorando ALFONSO e sua encenação, e notando a atenção de HD] A ‘socialização primária’ já é capitalista, ou seja, o indivíduo formado não é livre para optar ou não pelo sistema, mas é formado como capitalista, e precisa se adaptar, ser flexível, eis o termo da moda, “adaptação”, ou “flexibilização”, a pensar que o mercado é algo natural e necessário tal a própria vida social, assim sem um olhar crítico sobre o sistema em que vive.

HD: Concordo. Já li algo assim em Robert Kurz, pensador alemã, e o Moacyr Félix também já leu. Moacyr é aquele poeta de esquerda, que eu comentei [volta-se para ALFONSO] Assim, ao contrário de ‘autonomizarem’ o ser humano, ‘autonomizaram’ o mercado, a tecnologia, as ciências. E nossa existência segue sendo regida pela busca do lucro, da eficiência, do poder, nunca valorizando a beleza, a ética, o convívio, o aprendizado...

HELTON: Vejo que o poeta é bem utópico. Digo, no sentido de esperar uma realidade outra, que não há...

ALFONSO: [rindo] O outro poeta estava morrendo de medo de que lêssemos um discurso do Fidel...

EDGAR: [sorrindo] Mas era bem capaz dele mesmo ler...

HD: [Servindo-se das batatas fritas que o garçom acaba de servir. Goteja molho e espeta uma a uma com um palito.] Sei que ironizam. Ninguém aqui leva o Fidel a sério. Ele é o maior queima-filme das esquerdas! Aquilo é ‘esquerda’?, pensam os ingênuos, Ora fiquemos aqui com o nosso sistema, ao menos há liberdade! E deve ser o que os reprimidos individualistas lá pensam, lá em Cuba, lá na China. Não sabem eles que tal individualismo é somente para o consumo. Não há liberdade no mundo do mercado livre. Consuma, compre, conquiste – ou morra! Não há liberdade, seja no capitalismo ou no chamado ‘comunismo real’, pois o primeiro é totalitarismo de Mercado e o segundo, um totalitarismo de Estado. O que se convém ponderar é o fato da ‘socialização dos meios de produção’ silenciar os conflitos entre proprietários e não-proprietários, que é o que move a História...

ALFONSO: No comunismo pára o conflito, pára a História.

HELTON: [servindo-se de macarronada, despejando molho] Aí vem a monotonia. O tempo parou em Cuba...?

HD: Anula-se a propriedade privada. Quanto à liberdade, trata-se de metafísica burguesa. Aceito uma ditadura desde que seja abolida a desigualdade social, mas não a priori. Obviamente o ideal é um socialismo democrático, mas precisa-se de um Estado forte...

HELTON: Mas como garantir que algum grupo de ambiciosos não venha a possuir mais do que outros e passe a exigir privilégios?

ALFONSO: [Sem esperar a resposta de HD] Há o dogmatismo, um câncer. O que sufocou a socialização na Europa Oriental, com as tropas russas, igual o cristianismo romano sufocou o cristianismo irlandês...

HD: [Palitando os dentes] Alfonso, a sua obsessão pela Irlanda me impressiona!

ALFONSO: [exaltado] Viva o Exército Republicano Irlandês!

HD: [sem concessões] A Reação sempre se insinua, há sempre uma ‘linha-dura’ para dogmatizar e engessar uma idéia, uma revolução, sempre surge um ‘Porco Napoleão’... Espero que já tenham lido “Animal Farm”, ou “Revolução dos Bichos” do Orwell...

HELTON: [degustando a cerveja] Sempre percebemos que as revoluções, ao fim, levam a regimes piores do que os derrubados.

HD: Lembro que em “Revolução dos Bichos”, os porcos derrubam os homens, em nome, e com a ajuda, de todos os animais, e depois passam a exigir privilégios, e pouco a pouco reocupam o lugar dos carrascos de outrora...

HELTON: mas artistas discutindo política é mesmo uma comédia!

EDGAR: Afinal não rimos de tudo?

[GUILHERME recebe a folha com os rabiscos do poema coletivo, enquanto experimenta a macarronada.]

HD: Como eu dizia, uma ‘linha-dura’ dogmatiza a revolução até torna-la rígida, um formalismo, um ritualismo...

ALFONSO: Culto ao Ser Supremo! A Razão Iluminista! Ave, Robespierre! Ave, Lúcifer! Ave, Grande Camarada Stálin, Pai e Guia dos Povos!

HD: Um ritualismo, ao contrário de uma conscientização das massas, pois a ‘linha-dura’ prefere escravizar as consciências, com ideologias, em total domesticação...

HELTON: Derruba um sistema e impõe outro.

ALFONSO: Um Estado forte. Pensemos. [Observa a cerveja derramando-se no copo. Agradece ao garçom. Todos represam um riso.] Um Estado forte precisa de funcionários, honestos se possível. Todo um serviço burocrático para fazer a máquina andar. Mas vejo todo um funcionalismo público que é um cabide de empregos, de nepotismo e corporativismo. Uma imponente classe burocrática fazendo mover a classe proletária! E viva o proletário-padrão!

[HD recebe a folha com o poema coletivo. Não se dispõe a escrever, e repassa a LÚCIO, que lê as linhas anteriores. HELTON se manifesta.]

HELTON: Eu não confio nu possível comunismo. Somos vaidosos demais, egoístas demais. Só mesmo a iniciativa particular é que estimula o Mercado...

GUILHERME: [atento à macarronada] Somos todos egoístas.

HELTON: Somos seres medonhos.

[ALFONSO se levanta, ameaça retirar-se da mesa em protesto, e é claro que ninguém leva o gesto a sério.]

ALFONSO: [irritado] Algum modelo realizável e incorruptível, em mente?

HELTON: [calmo] Nada a propor. Quem quer mudar o mundo é você. Quem critica deve apresentar algo melhor. [E aceita a folha que LÚCIO estende.] Ei, mas eu já escrevi. Ah, um momento. [Rabisca e lê em voz alta] “Amanhã, nenhum de nós sequer vai lembrar desta discussão.” [E entrega a folha para HD]

HD: [escrevendo] “Estamos todos mergulhados num torpor ébrio sem certezas sem utopias enquanto o tempo passa pisando a minha juventude e as hienas contando os seus lucros trás de seus altos muros e realmente amanhã ninguém se lembrará dessa discussão” [HD estende a folha a ALFONSO que corre o olhar e faz menção de ler em voz alta, mas desiste, afinal ninguém se importa.]

ALFONSO: Que permaneço o vazio! [e acendi um isqueiro sob a folha, que se enrola em chamas, à vista de todos. Cinzas se espalham sobre a mesa, sobre os restos do jantar.] “Neutro é quem já se decidiu pelo mais forte.”, já disse o Max Weber. Quem não é de esquerda, é de direita.

LÚCIO: [tom de citação] “Tolerância é a virtude dos que não crêem”, e não sei quem disse!

[HELTON ajeita seus trajes, enquanto afasta a cadeira para que sua silenciosa companhia se levante. EDGAR oferece carona, mas HELTON agradece. GUILHERME vai ao palco guardar os instrumentos. ALFONSO, LÚCIO e HD se entreolham, deslocados. Sentem que falaram demais.]

EDGAR: Só tenho a agradecer, meu caro. Há espaço no carro.

HD: Eu é quem agradeço. [pausa] Os meninos aqui querem cair na noite.

[Seguem por ruas adormecidas, os três vultos. ALFONSO e LÚCIO a gritarem impropérios e palavras de ordem, em volteios ébrios, mariposam em torno das cascatas néons e das luzes rubras dos postes, em ironias sobre o simpático e mui cordial EDGAR, assim seguem, andam e andam, à procura de algum outro bar.]



 [...]



LdeM