quinta-feira, 29 de setembro de 2011

continua o Capítulo 5 da Parte 3...

[...]



Data: Thu, 22 Sep 2005 - 02:55
De: Bianca Maria  [abeatadanoite@XX.com.br]
Assunto: a solidão
Para: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]


Eu imaginei você recitando seus poemas num bar, um pouco apertado,
de teto baixo e um garçom pensando que horas chegaria em casa.
De repente te surpreenderia, chegando ao bar, interrompendo seu
soneto (bem na parte que promete amor eterno) jogando-lhe um
pequeno botão de rosa. Sorri-te timidamente olhando para mim,
e percebendo o quanto gosto de você.

É pensa que não pude concluir isto... é mais um sonho quebrado.
Sei que é torturante conviver com a solidão. Sentir seu coração
sedento por amor, único, complacente e mais que tudo generoso.
Sentir o vento frio tocar sua pele e você implorar para que
fosse uma mão suave, um corpo quente.

Esperar que alguém apareça pela manhã no seu quarto, beijando-
lhe a boca com sabor de fruta e creme dental. Ou que te ligue
de madrugada, só para lhe dizer que te ama, num longo sussurro.
Estás cansado da solidão, não é, Stevam?

Estás cansado deste vazio que te irrita, deste desconsolo.
Da imensidão do mundo e ninguém para te dedicar um minuto
ao menos, um miserável minuto de afeto, paciência, amor.
Saber além de tudo que este Amor que você procura, não vem,
não lhe acha. No meio de tantas mulheres, por isto se pergunta,
cobra uma resposta. Por quê?

Uma agonia vai brotando no peito. Se cansa da procura no
escuro. Mas do escuro não consegue sair. Não há portas ou
janelas neste procurar. Nem se quer uma chama para acender
a esperança. E você precisa urgentemente de um salva-vidas.
Alguém aparece e desperta seu desejo, seu interesse. Porém
contraria seus objetivos, os sonhos.

Isto é inaceitável. Você tinha feito tantos planos, achava
que agora as coisas mudariam. Que talvez pudesse dormir
sossegado no peito da amada.

Mas ela te contraria... prefere a solidão.
Como? Não posso aceitar. Ela está só como eu, sente falta de
ser amada, pois revela isto nos seus poemas. Como pode querer
ficar só?

É inaceitável. Como pode recusar o meu amor? O Amor que
Guardei para uma pessoa tão especial.

Então você se enfurece porque seu amor não é recíproco. Tudo
o que você quer é que esse amor dedicado seja devolvido em
quantidade igual ou maior, muito maior.

Porém, ela te disse: 'Não posso amar'

E você não ouviu.


Ps. Seu amor é sentimento único que jamais será correspondido
à altura que você deseja, querido Stevam. Ele é exclusivamente
seu e o de qualquer pessoa não será à altura
Pois para você ele é indispensável.


Um abraço apertado.

Beijo.

          




Data: Fri, 23 Sep 2005 - 20:33
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: RE: [Templosombrio] Poema


Querida Bianca,

muitos abraços!!

este poema pode ser entendido como uma mensagem para
mim?

espero que sim, mas fico triste, será que o meu amor
pode mesmo te envenenar ???

eu gosto de ti desde os e-mails, eu sou teu fã também.

precisas confiar em mim. Senão como poderemos
curar nossas feridas juntos?

adorei os dois poemas!!! maravilhosos!!

espere os meus comments mais analíticos (pois a
emoção agora é grande, entendes? )

estou num lan house ao lado do shopping cidade,
daqui a pouco espero te ver.

do poeta
Stevam




Data: Fri, 23 Sep 2005 - 20:40
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: primeiramente desculpas
Para: Templo Sombrio [templosombrio@Xxgrupos.com.br]



Desculpas aos colisteiros!!!

Acabei de postar uma resposta íntima em rede!!

Mas esqueci de mudar o destinatário!!!

Mas é que os poemas da Bianca me deixaram muito
louco!!


Deixa pra lá.

(e eu nem fumei um hoje...)

(e desculpem este email meio louco...)





Sábado, 21 setembro 2005


   Querida Bianca,

     estou muito triste, frustrado mesmo.

    Ontem fui a Belô, passei num lan house, li os teus poemas, fiquei emocionado e acabei respondendo no grupo! Nem lembrei de alterar o destinatário! Teus poemas me deixaram abalado mesmo.

    Depois eu li a carta (toda cheia de labirintos e penumbras ) onde não decides nada - afinal desejas amar-me, aceitar o meu amor, ou recusas os meus sentimentos?

    Queria ver-te, tocar-te, então fui ao cursinho, e esperei uma hora (de seis a sete) e nada. Escrevi um soneto quando esperava! Fiquei profundamente frustrado, com o envelope na mão (que deveria ter sido entregue há uma semana!)

    Não quero imaginar que me ignoras, que, tendo recebido minhas cartas e poemas, tenhas engavetado tudo e seguido tua vida, como se eu nada fosse. Isso é que dói mais! Que nem a gentileza de responder a minha carta tiveste!

    Se desejas ouvir-me recitando os sonetos ao teu ouvido, se desejas meu contato, minha atenção, precisas entender meu desassossego íntimo, assim como meu transbordamento lírico - eu vivo meio aos versos, aos desafios, aos artistas, sempre um andarilho.

    Mas eu preciso de teu sossego, Bianca! Da tua calma, da tua voz, do teu sorriso, da tua vida de desistências, da tua busca por futuro, da tua paixão literária, de teus conselhos de irmã, do teu corpo deslizante, da tua presença discreta, do teu olhar de observadora - ah, Bianca, eu preciso de ti!


                         Stevam Lucena





Cibele Alvez. Com 'z' mesmo, ela ressalta. A mocinha que elogiou o poema. E para quem HD enviou o tal poema, no amanhecer de domingo, antes de passar no shopping, onde providenciou compras para a sua mãe.

"Eis o poeta", ele escreveu, "e eis o poema", além de "espero mais considerações sobre o que você pensa sobre a escrita e o que julga de 'sombrio' em nossa geração", e claro, finalizando, "espero resposta, e grato pela atenção".

Ela respondeu no meio da semana, e decidiram sair no sábado à noite. Um bar de rock, pros lados do centro histórico, indicação de outro-Stevam e JJ, que o freqüentes do local, e onde HD já estivera sondando o local para shows da banda de rock progressivo de Michael Bishop, que voltava à ativa em grande estilo.

    E justamente encontram o outro-Stevam, sozinho, e o convidam para uma mesa. Junto a entrada, acompanham a movimentação, e parece que a noitada não será de rock, mas de música popular brasileira.

    - É isso mesmo, não é rock. - explica o outro-Stevam. - O pessoal aí toca muito Cazuza, Cássia Eller, Nando Reis...




    Mas parece que Cibele não está contrariada. Com um vestido neo-hippie, e agora, flores no cabelo, além de anéis pouco discretos, ela olha ao redor, sentindo-se em casa. está feliz, mal pode ocultar o sorriso.

    O garçom se aproxima e reconhece HD, assim é mais solícito e as bebidas logo aparecem. O outro-Stevam ("Pode me chamar de Valêncio", ele diz) pede algo mais forte, um uísque, enquanto HD aponta um suco em lata, sabor pêssego, e Cibele escolhe um refrigerante. Todos muito à vontade. E Valêncio é excelente companhia, por falar pouco, e o necessário, e só quando diretamente interrogado.

    - Então você gosta de MPB, Cibele?

    - Eu adoro. Por que não gostaria? - ela diz, toda sorrisos.

    - Sei lá. Pensei que você só ouvisse Hendrix, Doors, Beatles, sei lá, coisa dos anos 60, igual ao Valêncio aqui.

    O outro sorriu, envolto pela fumaça. Nada disse. Cibele ajeitou a flor no cabelo, e disse:

    - Mas eu ouço! Adoro Hendrix! Mas conheço pouca coisa, sabe? Gosto das letras. John Lennon, por exemplo, tudo de bom!

    - E você gosta de rock progressivo? É dos anos 70. Tipo Pink Floyd, Yes, Emerson, Lake and Palmer, King Crimson, Genesis... O Valêncio aqui é outro fanático.

    Novamente o amigo limitou-se a sorrir.

    E Cibele respondeu: - Mas eu conheço pouco. O Floyd é o mais conhecido destes aí, que você mencionou. Mas não há como desprezar o som nacional. Os Mutantes, o Ney Matogrosso, o Seco e Molhados, a Rita Lee, o Sagrado Coração, o Violeta de Outono, o Legião... A fala brasileira é tão bonita, gente!

    E então eis HD diante de uma nacionalista. E por isso ele não esperava. Ainda mais com essa juventude que só idolatra ídolo pop de fala estrangeira, made in USA, ou dos súditos de Sua Majestade, com tanto pop britânico, from London, que mesmo um cara como o Alfonso, todo brizolista, não pode evitar um Oasis, ou um Radiohead.


    - E Cazuza, então, é o máximo. Eu já li a biografia dele e nunca perco uma entrevista com a mãe dele... Um poeta, o cara! E aquele filme, então, que polêmica, hein?

    E nisso a banda em sonoro "Boa noite!" e "Boas-vindas a todos!" e os primeiros acordes de "O Nosso Amor a Gente Inventa" e o sonoro "Uhu Urra!", de Cibele, não se contendo de euforia.

"O teu amor é uma mentira que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego, você não pode ver"

Uhu! Urra! (e aplausos, muitos aplausos!)



E HD olhou profundamente surpreso para o calmo Valêncio. E a mocinha não sossega, até vai para junto do palco, agitar-se enquanto o vocalista, moço até competente, canta empolgado,

                                 "O nosso amor a gente inventa, pra se distrair
                                 e quando acaba a gente pensa, que ele nunca existiu"

     E Cibele ainda diante do palco, "Uhu! Urra!" e agora até Valêncio olha impressionado, e sussurra:

    - Que doidinha é essa que você arrumou?

    - Eufórica, não? E eu achei que ela fosse mais calma. É inteligente...

    E ela voltou para o lugar à mesa, justo quando o garçom providencia a porção de fritas com bacon e lingüiça, além de maionese e catchup. E HD olhava o prato diante de si, ora olhava o agito no palco, ora afundava no olhar de Cibele, ora meditava encarando o céu noturno sobre o centro histórico. Quem poderia prover que ele estaria vivendo aquele momento?

    Mas foi só a nova canção começar, para ela se empolgar.

                                                 "Todo dia a insônia
                                                me convence que o céu
                                                faz tudo ficar infinito"

    - Uhu! Urra! É isso aí!

    - Pelo visto, você gosta mesmo do Cazuza!

    - Ah, gente, eu adoro!

    E pode-se até dizer que HD ficou com ciúmes, mas não iríamos tão longe, pois HD está apenas desconcertado. Visto que o encontro tem o objetivo de íntimas conversas, e ali o som é exaustivo, e há um terceiro à mesa, devido a nossa patente gentileza e cordialidade.

                                             "Todo dia tem hora
                                              da sessão coruja,
                                             só entende quem namora"

    - Uhu! Viva!

    - Mais bebida? - HD inclina-se até Valêncio.

    - Cerveja e dois copos. - e deixa-se envolver pela fumaça.

                                              "Pro dia nascer feliz!
                                             O mundo inteiro acordar
                                             e a gente dormir, dormir."

    - Uhu!


    - Outro refri, Cibele?

    - Ah? Ah, sim, pode pedir! - e toda atenção voltada para o palco, enquanto tudo explode em aplausos e assobios estridentes.

    - Nossa! Agora é "O Tempo não pára". Esses caras tocam bem, hein? E você, Hector, está gostando?

Claro, claro. Eles tocam bem. Boas letras. - HD é dos tipos mais diplomáticos. Não vai revelar que o que ele queria ouvir agora é o último álbum do Rage Against the Machine!

"Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
procurando uma agulha no palheiro"

    - É ou não é um poeta? Um grande poeta?

    - Sim. O maior deles.

    E ela lança aquele olhar de "você está brincando comigo?", mas logo volta a atenção para a melodia. E HD está atento a cada gesto, cada palpitar daquela que grita e levanta os braços, "O tempo não pára, não pára, não!"

    E toda aquela conversa que ele esperava? Essas mulheres! Nunca prestam suficiente atenção. E Valêncio imerso em todo este meditar, nunca silencioso para si mesmo. Nem imagino o que deve agitar por dentro desta mente, por trás desta máscara de fleuma.

    - Sabe, gente, estudar é coisa muito estressante! Tanto texto chato! Mas uma letra dessas vale por uma semana de aulas!

                                "Pra que mentir / fingir que perdoou
                                tentar ficar amigos / sem rancor
                                a emoção acabou / que coincidência é o amor
                                a nossa música nunca mais tocou"

    - E é muito triste, não?

    Valêncio rumo ao toalete e deixa o casal à sós. HD aproveitou: - E seu coração hoje palpita por quem?

    Ela olhou com esforçada atenção, temendo alguma armadilha. - Ora, por mim mesma. Eu me amo. E você?

    - Se eu te amo? - ele todo confuso.

    - Não, não. - e enfática demais. - Se você ama a si mesmo?

    - Sim, eu me amo. Por que não?

    E as vozes se silenciaram, enquanto a melodia escorria, gotejante na noite do centro histórico.


    Logo, lentamente, Stevam Valêncio retorna e senta-se, a sentir um solo de guitarra que fenecia em estridências. Restava poucas fritas no prato e HD eliminou uma por uma. E o resto do suco de pêssego. Não ficariam até o final do show, devido às distâncias.

    - Vou para o Barreiro. Você fica na Cidade Industrial, não é?

    Ela concordou e pediram a conta (que foi cuidadosamente dividida em três) quando o celular tocou, novamente. Era a amiga (pois ela morava com uma amiga, dividiam um apartamento) e Cibele avisou que sim, dormiria lá, e desligou.

    - Ela é pior do que a minha mãe.

    E saíram, e ela ofereceu a mão ao aperto da mão de HD, que sentiu merecer essa honra, e Valêncio queimou o último cigarro, comentando o 'espírito da noite' ou 'as asas da noite', ou algo parecido, enquanto retornavam para a avenida central e localizam uma parada de ônibus. Despedidas. E HD e Cibele seguem de mãos dadas.




(enviada em 21 setembro 2005)


Belo Horizonte, 14 de setembro de 2005


  Querido Stevam, desejo que esteja tudo bem com você.

    Saiba que adoro suas cartas recheadas de encanto. Gosto da sua preocupação comigo e ainda mais quando nos encontramos, pois você me ensina muitas coisas. Mas desta vez sua carta tocou em uma chaga aberta. Tenho que concordar que nesta vida parece que temos mais tristezas e sofrimentos que marcam nossas almas profundamente. Sua carta questiona sentimentos que costumo enterrar, porém me fez refletir e novamente enxergar o que escondo de mim e dos outros. Talvez eu tenha mesmo medo do amor e suas consequências. Ou nem acredite mais nele.

    De tudo o que mais me dói é a possibilidade de machucar alguém (sendo que isto na maioria das vezes é impossível). "Nunca pensei um dia chegar e lhe ouvir dizer: Hoje vou te fazer chorar" mas infelizmente vou 'te fazer chorar', porque não posso lhe retribuir o amor que sente por mim.

    Me desculpe se vou te magoar, mas não posso te amar.

    Sei que você idealizou momentos maravilhosos e inesquecíveis que poderíamos viver juntos. Peço que não se martirize pois o amor nos causa esperanças tolas e quando elas não se concretizam, morremos frustrados.

    É melhor que sejamos somente amigos e nada mais. Tenho certeza que te dedicarei um pouquinho de mim, te ouvindo, quando saímos, dando-lhe um abraço e oferecendo a minha eterna amizade.

    Gosto muito de ti, Stevam! Não imagina o quanto gosto de ti.


    Gosto do teu sorriso que ilumina sua face. Gosto ainda mais da sua doçura tímida e de seus conflitos humanos.

    Não acredito que o Poeta seja fingidor, mas tem um grande poder de comover o mundo. (mas adoro aquele poema do Bandeira)

    Eu te adoro tanto!

    Milhões de beijos e um abração bem apertado.


                                                                                 B. M.



(carta enviada em 27 setembro)


domingo, 25 setembro de 2005


  Querida Bianca,

    Acabei de ler as tuas palavras de 14 de setembro (por que enviaste a carta uma semana depois? É para me torturar? Ou estavas indecisas? Uma semana, Bianca!) e estou arrasado!

    Maldita greve dos correios! Só agora de manhã recebi a tua carta. Imagine: quatro dias depois!

    Dez dias, Bianca! E nada mudou??

    Quero que desconsidere a parte (na carta que escrevi ontem) onde insinuo tua falta de gentileza em não responder minha carta, mas que eu fiquei aflito, e irritado, isso eu fiquei.

    Bianca, é realmente uma pena! Não ficaremos juntos? Tantos projetos!

    Bianca, o problema é contigo? Espero que quem te fez sofrer (a ponto de duvidares do amor) queime nas profundezas do Aqueronte!

    Sabes que - por insensatez minha - uma carta (e-mail) vazou para o XXgrupos. Todo mundo sabe de meus sentimentos agora.

    Olha, Bianca, eu te amo como pessoa e como mulher, como companheira e cúmplice, pois cometemos versos, ensanguentamos os dedos com sentimentos, e depois exibimos tudo nas livrarias e Listas do XXgrupos.

    Não sei se conseguirei ser seu amigo, não era isso que eu queria, não é isso que idealizei a partir dos teus poemas. Nos teus poemas, eu vislumbrei uma mulher desejando ser amada - e eu eu sou um homem desejando amar e ser amado.



    Não sei como vou reagir ao ver-te, mas quero rever-te sem demora. Não pretendo desferir tiros no peito (eu já havia lido este poema do Drummond), mas vou sofrer - outra vez.

    (não sei como encerrar esta carta)

                                                                  Stevam Lucena





    Uma surpresa para Stevam Lucena, a presença de Bianca Maria no sarau de terça, ali no Palácio das Artes, e ao lado de Stevam Valêncio, acompanhado de um amigo da Filosofia, o sério Saul, de olhares perfurantes. - Stevam Lucena. Prazer.

    Também Bianca estava acompanhada, e por seus colegas de cursinho, que ela convencera a aparecer, ao contrário de ficarem perambulando pelos corredores da Galeria do Rock. Assim trocaram a música pela poesia. E ali estavam Luiz Meira, o 'Taz' e outros vultos.

    Mas, uma surpresa, realmente. "Você não ligou mais...", ela disse. "É, não gosto de ficar pressionando.", "Ah, é mesmo. Pressão, não!" E pouca atenção poderia dispensar a sua querida, pois Michael Bishop acenou, pronto para entrar em cena. E também Ivan. Prontos para uma performance que se fazia conhecida, aquela mesma que Hector e Alfonso já haviam presenciado, em momentos distintos.

    E Hector ali estava, lá do outro lado, acompanhado por Hélio Lúcio, e ambos acenam, e lançam olhares interrogativos, do tipo "quem é essa garota ao seu lado, hein, meu caro?"

    - E se a gente fosse ao teatro, no sábado? - ele diz.

    - No sábado? Não sei. Depois a gente combina.

    Mas quando o ator entrou no jardim, acompanhado por seu fiel escudeiro, tal um Dom Quixote com ares de caixeiro-viajante, seguido por um Sancho Pança com ares de mordomo submisso e cúmplice, todos os olhares se voltaram em silêncio.

    Na 'Metamorfose para as moças de família', a oferecer seus exemplares, nos mais reduzidos tamanhos, de mesma autoria surreal, o ator fazia o comércio da imortalidade literária, a explorar, literalmente, em suas transações, os espólios de Franz Kafka!

    E Stevam Lucena a sussurrar para Bianca Maria, se ela se sentia ofendida, ela, "moça de família", e ela se mostra indiferente, e ele completa, "Afinal, o que agride hoje em dia?", e o Imperador precisa de um fiel escudeiro, assim como o sádico precisa de um sempre pronto e bem disposto masoquista. E o poeta precisa de seus leitores, e o vaidoso precisa de um zeloso adulador, e o declamador precisa de ouvidos atentos e sofredores, e o fingidor precisa de ávidos consumidores de dor fingida, ainda que deveras sentida.

    E como sempre os olhares de Stevam Lucena estão sobre o perfil solidamente daquela Bianca Maria, e em sua discreta roupa de colegial, que agora ele pode distinguir melhor, pois o 'Taz' se acomodou ali num canto, com uma outra colega, e jeans e blusão de colégio onde estuda, e aquela mochila exagerada, não é atoa que está ficando corcunda daquele jeito.

    E por quem os sinos dobram?, por ti e por mim? Não chores por mim? Os sinos em sombrios dobres, pobre poeta, pobre poeta, ali caído na sarjeta, "Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus!"

    E aplausos precipitam-se sobre os atores, e Stevam Valêncio anuncia iminente partida, ainda espera alcançar a próxima aula, que viera mesmo a convite de Bishop, e seu colega Saul, deveras sério, todo monossílabos, esses filósofos vivem para dentro!, e também Bianca Maria precisa ir embora, por semelhante motivo, ainda tem uma aula de inglês e outra de geografia. E assim não ficaram para uma anunciada homenagem ao poeta Alphonsus de Guimaraens, mas não perderam nada, segundo Stevam Lucena, que não considerou a homenagem digna do grande simbolista mineiro.

                                             "Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus."





De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: por que tanto ódio??
Para: Valkyria [amanda.dark@XXX.com.br]
Data: Wed, 28 Sep 2005 - 18:05


por que todo esse ódio?

realmente bizarra esta sua mania de odiar, eu te odeio, eu odeio
a mim mesmo, eu odeio isso, eu odeio aquilo!

tira esse ódio do coração, menina!

Esse ódio está amargando a tua vida, aliás, a tua vidinha. porque
não estás vivendo, estás encenando para ti mesma.

Quantos comments eu deixei no teu flogao com idéias e questões,
e jamais quiseste comentar comigo? A quanto tempo não trocamos
idéias num papo-cabeça? estamos muito enredados no
sentimentalismo, eu já disse antes: és muito emotiva.

eu não escondi nada de ti. Ao contrário, toda vez que me interesso
por alguma menina daqui, eu revelo. Eu sempre comento, tu é que
corta o assunto, diz que eu não devo comentar, etc.

pois vivemos uma relação muito complicada. Somos namorados?
amigos? Que compromisso ?

Eu venderia a alma para voar até Brasília, e mas e daí? Eu poderia
me arriscar a que me desprezasse? Se me amas é de forma idealizada.
Além disso sou apenas uma imagem numa foto, e nunca me viste,
nem me tocaste.


Eu tirei todo o erotismo do nosso afeto, e não vou me afastar de
mulheres aqui ao meu lado, por causa de uma intocável a mil km...

E quando abordo o assunto de vivermos no Rio, sempre surgem
evasivas.







    O cemitério logo envolvido pelo entardecer cinzento de sábado, enquanto Stevam Lucena sobe a colina mortuária, a partir da Rua Jaguarí, ao desviar-se dos transeuntes na Pedro II, tumultuada via de comércio e negociantes, e vapores de diesel e vozes aflitas de ambulantes, a cada passo, com o coração pesado, incomodado por tudo e por todos, e o pensamento vagueando, mas ao redor de um ponto fixo, a Capela.

    Convencido por Bianca Maria, em exaustivo telefonema, quando ele insistia na peça teatral, que ela desconsiderou, a sugerir um passeio nas alamedas do cemitério, pois queria usar o seu "chapéu de viúva" e não mais sugeria após alguns minutos, mas simplesmente "assim deseja", e Stevam Lucena em concordância, todo passional, todo gentilezas, longe do sossego que esperava, pois haviam aqueles túmulos, e um, em especial, o incomodava.

    Subia a colina e túmulos à esquerda e outros à direita e jazigos com suas inscrições solenes e mausoléus com seus anjos manchados de lágrimas e seus cristos carregando cruzes atrozes e o Cristo maior, sublime, ainda que humilhado, e sua inseparável cruz, e Stevam Lucena seguiu à direita, a lembrar quando ali trilhou, dois anos antes, rumo ao túmulo de Sônia Regina Dalmas, agora uma doce lembrança, depois das palavras de doloroso refrigério enviadas por Amanda Lins, a "Valkyria", para que ele enfim "enterrasse o passado junto com a jovem morta", e aconselhando "uma nova oportunidade para si mesmo rumo a um novo amor", e que, ironicamente, não seria aquela Amanda Lins, tão distante, mas esta Bianca Maria, tão atormentada.

    E eis a Capela, ali erigida no alto da colina, entre palmeiras, um jardim meio às lápides, aquele outeiro visto à distância lá nas ruas da Capital, no agito dos vivos, nos gritos dos aflitos, e, duas quadras abaixo, está o repouso de Sônia, vítima do próprio desassossego, a lembrar, em constante pesar, o seu, o dele, notório fracasso em consolar.

    Não deseja mais pensar naquele amor que se foi, devorado pelo tempo, mas espera a chegada de Bianca Maria, quando o sol humilde se retira, e escorre além das dezesseis e trinta, e Stevam apalpa a carteira, onde o dinheiro disponível transmite um novo ânimo para renovar o convite ao teatro. Em busca de uma sombra aprazível, ele acomoda-se nos degraus, diante da grade da Capela, a imaginar que ali, num outrora de seis anos e uma semana, Sônia Regina se entregara a leitura de "O Caminho de Swann", do famoso Marcel Proust, em seu último passeio pelo cemitério do Bonfim.

    E é, ainda sem saber, uma nova Sônia Regina quem Stevam Lucena aguarda, folheando uma antologia poética de Cruz e Sousa, a mesma que abrigara na Praça, na noite do primeiro encontro e antevira o vulto de Bianca Maria no "rio de aço do tráfego", imagem que colhera em Carlos Drummond, naquele volume que se destaca na biblioteca, lido por seu pai e relido por seu irmão, e "uma flor nasceu na rua", e Stevam faz mover as páginas, os sonetos, os sinais gráficos, títulos e epígrafes e sua atenção

bate longas asas sobre a colina, junto aos túmulos e cruzes, pousadas como aves tristes sobre lápides e epitáfios, em imagens que não pode controlar. Ajeita o blaser sobre a grade e levanta-se, para elevar a vista, distinguindo ao longe o brilho nos edifícios, o movimentar constante nos viadutos, o buzinar distante dos veículos ansiosos.

    É quando aproxima-se, à sua esquerda, o vulto de Bianca Maria, uma viúva sombria, com pesado luto, o seu chapéu estilo início do século, mas que Stevam Lucena já vira em fotos dos funerais do presidente John Kennedy, em 63, aquelas damas vestidas com solenidade, com olhares pesarosos, que a dignidade do adeus, o reconhecimento do fim, deixa tal uma cicatriz.

    "Olá, Bianca!", e Stevam Lucena beija a mão oferecida, "Sente-se! Fique à vontade.", e Bianca Maria estende um envelope branco, com uma carta, e ela hesita, pois não está sozinha. Uma mulher, ainda jovem, com sua maturidade de quarenta anos, aproxima-se em passos lentos, junto aos túmulos, e está atenta aos gestos de Bianca, que faz as apresentações, "Stevam, esta é a minha mãe, Efigênia. Mãe, este é o poeta!", e Stevam sorriu e ofertou "uma boa tarde" e "prazer em conhecê-la!" a dona Efigênia, que afastou-se enquanto Bianca acomodou-se a seu lado, e Stevam a pensar, em orgulho quase a transbordar, que era assim que, junto a família, e aos amigos, Bianca se referia a sua pessoa, "o Poeta".

    "Chegou há muito tempo?", ela perguntou, com uma voz baixa, contida, sem qualquer sorriso, com um olhar igualmente baixo, uma tristeza que a envolve tal um perfume suave, e Stevam Lucena observa a jovem, ali tão frágil, afundada em si mesma, com o lutuoso vestido em mangas longas, soturnas, que destacam suas delicadas mãos pálidas, com anéis de pedras escuras, e uma fita negra, cheia de detalhes, ao redor do pescoço, e sandálias igualmente negras, fortemente apertadas.

    "O que está lendo?", a voz se destaca daqueles lábios de palidez e Stevam Lucena percebe seus dedos folheando um livro, "Oh, sim, poemas do Cruz e Souza", e Bianca Maria se esforça por sorrir, mas não consegue, e Stevam procura ser agradável, "Posso ler um soneto? Chama-se "Madona da Tristeza", lembrei-me deste soneto ao te ver", e ela espera enquanto percorre folhas até reencontrar o poema, que lê em voz cava, mas sem afetação, "Quando te escuto e te olho reverente / E sinto a tua graça triste e bela / De ave medrosa, tímida, singela, (...)"

    E enquanto a leitura derrama-se, a sugerir imagens e soluços, ela, Bianca Maria, tem os olhos dedicados aos lábios que destacam as sílabas, e gotejam métricas e rimas, e Stevam Lucena nota esse olhar e deseja prolongar esse fascínio, e quando o soneto finda, apressa-se em folhear a antologia, "Posso ler um outro?", e ela consente, a piscar os olhos, num leve e sutil inclinar da cabeça, a causar um frêmito nas rugas do chapéu, que visto daquele ângulo, parece mais um corvo pronto a pousar em seus ombros, mas Stevam se entrega à leitura de outro soneto, "Esse é intitulado "Cárcere das Almas", e atente para as imagens que sugere, "Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, / Soluçando nas trevas, entre as grades / Do calabouço olhando imensidades, (...)"

    E o soneto oferta um peso em acréscimo sobre aquelas pálpebras, não de sonolência, mas de íntimo terror, quando nos apresentam, em símbolo e alegoria, a realidade que todos vivemos, "É triste", ela diz, ao fim dos versos, e o olhar se distrai nas distâncias, onde asas atrevidas fazem a ronda aos túmulos, maculando as suas cruzes.

    Ressoa uma sirene, em alarido lúgubre, e um cortejo fúnebre se destaca nas ruas, no cinzento do asfalto, no cinzento dia a entardecer, e um caixão, recoberto por uma generosa coroa de flores, é conduzido sobre rodas, por dois homens maduros, e uma senhora idosa, amparada por uma mulher de óculos escuros, e muitas faces se voltam para o casal nos degraus da Capela, Stevam Lucena de elegante presença, camisa formal em azul-anil, lendo um poema, e Bianca Maria, emvestes de pesaroso luto, tal uma viúva, sim, uma jovem viúva...

    Sentindo os olhares, Stevam interrompe a leitura, e olha constrangido para Bianca, que igualmente volta a atenção para o lento cortejo, e ele diz, "De repente, ficou tumultuado", e ela responde, "É, quanta gente!", "Deve ser um figurão, um cara famoso", "Estão me olhando", "Espero que não pensem ser A outra que veio chorar a morte...", "Talvez. Eu seria a amante que veio se despedir, mas não pode apresentar condolências à viúva...", e ela parece, por momentos, prolongar a encenação, o mal-entendido, mas é só para ocultar a tristeza, e diz, ao levantar-se, "Vamos dar uma volta."

    Dona Efigênia está à sombra da Capela, voltada para os reflexos do hipercentro, e é toda gentileza e compreensão, vê-se que está incomodada, mas não se permite transmitir tal desconforto. "Então, Bianca? Estava ouvindo o poeta... Ele lê muito bem.", "Obrigado. Por que a senhora não ficou ao nosso lado?", "Ah, Sr. poeta, prefiro deixá-los à sós.", e Stevam Lucena aproxima-se de Bianca Maria e desliza o olhar em sua pele, e nota que a fita ao pescoço deixa marcas, e denuncia tal sutileza a jovem, que apressa-se em afrouxar o aperto da fita, "Obrigada."

    E seguem, com passos arrastados, à margem das quadras de túmulos, em comentários soltos, a ressaltarem detalhes das estatuetas, dos anjos em prantos, dos cristos sob o fardo das cruzes, das ninfas em profundo desespero, dos querubins de asas abertas, das jovens em estilo grego, das madonas amparando cristos agônicos, e um túmulo desperta especial atenção devido a simplicidade, assim a destoar dos demais, aqueles onde a ostentação da morte é tão patente e patética. As estatuetas de duas crianças de mãos dadas, unidas, sob um arco parabólico, "Acho que é o túmulo de um ateu", Stevam Lucena deixa escoar o comentário, e seguem adiante. [Descobre, depois, tratar-se de antigo presidente da Sociedade Mineira de Pediatria, SMP, doutor pediatra João da Costa Chiabi (1908-1958.) Homenageado e reconhecido]

    Eis uma escadaria e lá embaixo outro nível de túmulos, junto a parede com as gavetas os ossuários, e Dona Efigênia lança um olhar ao jovem, que ajeita a camisa, junto ao corrimão, enquanto a filha continua a descer, com lentidão, os degraus, sem dispensar atenção, e a mãe diz, "Você também gosta destes lugares?", há um desdém na voz, e Stevam bem o percebe, mas é cordial, por excelência, "É sossegado. Visto o tumulto da cidade, onde nem nas bibliotecas há silêncio. Aqui é a paz, só ofertada pelos mortos. Quando posso, venho ler e meditar.", "Mas existem os parques, outros locais. Precisam buscar sossego neste lugar tão triste?", e ela, a mãe, observa a filha se afastar, junto aos túmulos, lá embaixo, e Stevam responde, "É triste, realmente. Não digo que goste de cemitérios. Tem gente que adora. Mas aprecio a paz dos cemitérios, ainda que, vez ou outra, ressoem as sirenes.", e Dona Efigênia, em sua simplicidade, parece aceitar, e seus olhos buscam o vulto da filha, não mais visível, e Stevam se incomoda com tal apreensão, "O que há? Está preocupada? A Bianca está doente, não está?", e a mãe volta o olhar vibrante para o jovem, "Olhe, ela sempre foi melancólica, mas agora, de uns tempos pra cá, está pior. Chora muito, fica sem comer, trancada no quarto, e eu preciso insistir para ela tomar os remédios, e fica dizendo que quer morrer, é difícil, sabe."

    E Stevam Lucena percebe-se afligir a cada pausa daquela fala de mãe, como se um desespero se transmitisse de um corpo ao outro, drenando suas forças, e ele se apóia na parede, não tem palavras, ainda que tenha vivido caso semelhante, ele, que ficava dias sem comer, e também Sônia Regina, a se trancar no quarto, não atendendo o telefone, e ele a imaginar se tudo precisa se repetir, e se está pronto para tentar novamente e, quem sabe, possa evitar os erros do passado...

    E, quando ele ousa falar, as palavras fogem, antes do pensamento, "E ela já tentou algo perigoso, digo, alguma violência contra si mesma?", e Dona Efigênia entende, e desce o olhar até o nível inferior de túmulos, como a temer o gesto repreensivo da filha, ao notar certas inconfidências, e diz "Olhe, ela não quer que eu me refira a isso, mas eu me preocupo, e vejo que o senhor também, mas ela tentou se

matar, com excesso de remédio, e ontem se cortou no braço, aqui...", e a mãe indicou no próprio braço a posição da ferida, e continuou, "É por isso que eu me preocupo, e por isso eu estou acompanhando a Bianca, eu não posso me descuidar, sabe... onde será que ela foi?", e lançou olhares cheios de apreensão, a procura da silhueta da filha, e realmente o que há é um silêncio profundo junto aos túmulos.

    Então Stevam Lucena é o voluntário para a missão de localizar Bianca Maria, e segue de quadra em quadra, em sentido anti-horário, no crepúsculo de folhas e pétalas, rubro e fuliginoso, sem saber que Bianca Maria ainda está lá embaixo, atrás de um túmulo, onde ouvia as vozes da mãe e do poeta, sim, ela a deixar-se chorar sem consolo, incapaz de permanecer ao lado de ambos, ela que planejou aquele passeio, que desejava ouvir mais e mais versos, mas sentia um corpo pesado, um vazio no peito, e ouvia Stevam dizer que "eu sobrevivi, pois inventei, por mim mesmo, um sentido para a minha vida" e o choro brotava, pois não conseguia ver sentido algum em estar viva!

    E Stevam Lucena a cada passo mais ligeiro e apreensivo, circulava de quadra em quadra, seguindo vultos juntos aos túmulos, um casal que reclinava flores num vaso, enquanto a mulher, com a ponta dos dedos, limpava as inscrições na lápide, e um zelador que removia lixo, aquelas sacolas plásticas e embalagens de velas, de um túmulo a outro, algo cabisbaixo, e uma mocinha que abaixava o olhar em timidez, e dois homens que subiam a colina, e voltou ao ponto de partida, ao lado de Dona Efigênia, sem cumprir a árdua missão, sem ter resposta, quando ela perguntasse, "Onde está a minha filha?", mas quando ele chegou, a mãe já sabia e, ao contrário do que esperava, é que Bianca agora circulava em busca do poeta!

    "Ela já está voltando", e, de fato, a mocinha surge no alto da ladeira, enquanto a mãe e o jovem estão diante da praça, onde o cristo ampara sua cruz, e Bianca chega sem o seu chapéu de dama lutuosa, e seu cabelo, ou antes, a ausência dos fios, é um assombro ao rapaz sem fôlego, e ela quer ir embora, não há mais palavras entre eles, e trocam um abraço, um abraço que, se para ela é início de um afeto, para ele sugere uma despedida, e Stevam ousa um "Muito prazer em conhecê-la", reclinado levemente diante da mãe, que agora oferece o braço a filha, e elas descem a colina e ele abandona o cemitério, pela portaria principal, e segue, cabisbaixo, a rua do Bonfim.




Belo Horizonte, 01 de outubro de 2005


Stevam, você estava certo, eu engavetei todas as suas
cartas, na esperança de engavetar um sentimento
que clama por mim.

Me desculpe.

Querido poeta, te esperei durante muito tempo,
sonhei que viveríamos nosso sentimento como
nos contos (com um toma mais trágico).

Mas infelizmente não ouço o amor. Nem mesmo
seus gritos. Meu coração agora está calejado,
amargurado pela dor que as pessoas me causaram.


Até meu amor próprio está sendo mendigado.

Querido Poeta, como pode me fazer esperar...
Sei que a culpa não é sua, mas do destino
que me castiga impiedosamente.

Adoro você, Stevam, muito. O suficiente
para não magoá-lo.

É pena que meu 'amor' seja surdo, e
não responda a teus gritos.

Beijos...

                                    Bianca Maria Messias





    Atento aos insetos alados ao redor da luz e a assistir a lenta precipitação das pétalas roxas ou amarelas dos ipês da Praça, Stevam Lucena, com sua inseparável antologia poética de Cruz e Sousa, espera a chegada de Bianca Maria, ali no mesmo banco, diante do vulgo Rainha da Sucata.

    Sobre os seus ombros todo o peso da dúvida, sabendo adentrar a tormentosa vida de uma outra Sônia Regina, uma outra Amanda Lins, enquanto acalentava o sonho de um amor tranqüilo e muito sossego, nada mais que sossego, Stevam Lucena tem diante de si dilemas e apreensões pelas quais não esperava, e agora tornam-se barreiras diante do brilho de uma almejada felicidade.

    Mas eis que ela chega, com o brilho do olhar detrás do luzir das lentes, o cabelo curto lançando lampejos, as vestes sombrias e solenes, e a bolsa de pano escuro com flores rubras. E Stevam Lucena se levanta, até com indisfarçada ânsia, para sentir a presença de Bianca Maria entre os seus braços. O abraço é breve, mas o suficiente para descontrair os jovens, que se perdem nos olhares, enquanto ela oferece um envelope, e ele diz que vai ler depois, e aceitem um silêncio, até que ele ousa dizer algo, "O que aconteceu no sábado, Bianca? Parece-me que você planejou de um jeito e tudo deu errado. Nós nem conservamos...", e ela lança um olhar de quem está afundando, "É, deu tudo errado, eu também fiquei frustrada, a gente nem se falou direito, mas é que minha mãe nem queria que eu fosse, sabe, e ela acabou indo junto, e a gente tinha discutido, e não foi legal...", e ele evitando perguntar, mas não pode mais adiar, fingir que não sabe, "E sua mãe estava preocupada com o quê, e por que? Ela não se tornou sua sombra sem um motivo, e sério. Ela me disse, e você ocultou isso de mim !, que você já tentou se matar, e.", e as palavras morreram, pois ela abaixou a cabeça, ao sentir o peso de um olhar, "Não era para ser assim, mas aconteceu", ela diz, ainda encolhida, "Eu queria ir para o Céu como um anjo e enchi um copinho de remédios e aí quase morri mesmo, e lembro da ambulância, aquela sirene horrível, ah, até hoje tenho pesadelos, e detesto estas sirenes, parece mais um grito agônico!"

     E Stevam Lucena imaginou o grito do quadro de Munch ecoando por todo o mundo, e ela ainda dizia, "Não é que eu quisesse esconder isso, mas eu não gosto de ficar falando sobre a minha vida, é isso, eu não gosto, não quero deixar os outros preocupados, a dizerem, 'coitadinha da Bianca, ela quis se matar ! ', isso é horrível, e é que as suas cartas chegaram todas na sexta, e eu li e chorei muito, e achei uma faca e ia cortar os pulsos, mas no nervosismo ela passou direto e fincou mais acima, aqui", e ela mostrou a cicatriz, e justamente no ponto revelado por Dona Efigênia, à sombra do ossuário, lá no cemitério, e Stevam sentiu o que tantas vezes havia lido como o famoso "nó na garganta" e as palavras não saíam, e ele descobria a ferida e todo o seu desejo murchava, eis ali a Sônia Regina exumada, a Amanda Lins que se corta e envia cartas cheias de manchas de sangue, e outra sofredora que cruza o seu caminho, a sua via crucis de pobres garotas autodestrutivas, "E eu nem notei!", foi só o que conseguiu dizer, e ela, lentamente, "Por isso eu estava com o vestido de manga longa".

    Guardaram um silêncio cheio de arestas, e ela viu um inseto pousar junto ao banco e dispôs-se a perseguí-lo, mas era inútil, as asas o levavam sempre mais longe, e ela voltou e acomodou-se, com um sorriso leve, como a pedir desculpas, "Mas é que eu adoro esses bichinhos!", e Stevam Lucena não sabia o que dizer, então lembrou-se de sua própria tentativa, e de como foi salvo pelo poema de Fernando Pessoa, naquele quarto escuro, então, ele diz, "Eu estava na faculdade de psicologia, não estava suportando o curso, não me adaptei, sabe, e eu gostei de alguém, mas ela nem me notava, e outra garota gostava de mim, mas eu não, é sempre assim, e as notas eram péssimas, e meu amigo, o TH, com aqueles papos de 'encarar a mortalidade', e ele acabou morrendo mesmo, mas foi depois, na noite de Ano Novo, umas duas semanas depois, quando soube, mas eu não morri, pois vomitei, e foi porque lembrei que só eu mesmo poso dar snetido a minha vida, só eu dou valor a mim mesmo, não posso esperar pela atenção dos outros, eu mesmo devo me justificar, e foi porque li aquele poema do Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, "É importante para ti, porque é a ti que te sentes.", e então joguei a navalha fora, e eu vomitei, e sei que deu o maior trauma lá em casa...", e ele se calou de súbito, como um mecanismo quebrado, uma engrenagem emperrada, ciente que já falara demais, e ela sussurrou, "Você também".

    Talvez, para ela, ele fosse um ídolo, "o poeta Stevam Lucena", sempre acima dos outros, e por isso ela concedera um momento de atenção, visto ser ela tão reservada, encolhida e sempre sozinha, com seus poucos amigos, que talvez nem amigos fossem, e isso ele descobriria, e por isso ela sussurrou assim, "Você também", mas a esquecer que os ídolos também se matam, e que "Meus heróis morreram de overdose", mas ela estava surpreendida também, e deixou que ele abrigasse as suas mãos, e ele todo inebriado de atenção.

    Brinca e acaricia, dedo por dedo, anel por anel, e nele ressuscitam forças para declarar-se, "Bianca, não sei o que você pensa ou sente, sobre mim, talvez a pensar, consigo, 'o que é que esse cara pretende, pegando na minha mão, acariciando os meus dedos assim, o que ele quer?', mas é que eu quero uma amiga, uma mulher, uma companheira, uma cúmplice, e sei que sou exigente, por isso estou sozinho, tenho vinte e cinco e estou sozinho, e com essa idade meu pai já era casado, e para ele eu sou um fracasso", e novamente as palavras morreram no tremor da língua e ficou por isso mesmo.

    Não havia qualquer clima erótico, mesmo ela dizendo, toda brilho no olhar, "Você pode ter a amiga, você pode ter a mulher", mas há também uma cicatriz entre ambos, e rubra e feia, e toda vez que ele olhar para aquela ferida, ele se lembrará da sua culpa, a de ter sangrado aquela pele, a de ter aberto velhos cortes profundos naquele coração jovem.

    E sem beijos ou carícias, mas um convite, "o Valêncio foi convidado para um banquete, ali na Savassi, acho que um convite do Michael, aquele músico, Michael Bishop, e que tal...?, e Bianca Maria pensou só um instante, "Está bem, vamos. Mas não posso me demorar, hein", e seguiram a lateral do Palácio da Liberdade, e ela muito reconhecida por ele abrir o coração e revelar tudo aquilo sobre o suicídio, que agora eles eram confidentes, que estavam unidos por segredos, e que não comentassem nada com ninguém, ela telefonou para a mãe, avisando que chegaria depois das dez horas.


    À luz dos candelabros, no segundo andar da Livraria T. reúnem-se, em volta de uma respeitosa mesa, os bardos e menestréis, para uma noite de discussões e degustação de idéias, e ali estão Michael Bishop, que muitos pronunciam à inglesa, mas ele corrige sempre, "A pronúncia é à francesa, à alemã, tipo o piloto campeão, não o famoso cantor black-or-white", e também o Stevam Valêncio, que todos chamam de 'o outro Stevam', e o performático Hélio Lúcio, também a ocupar-se de leituras de Cruz e Sousa, além de outros que Stevam Lucena não conhece ainda, e ele perguntava a Bianca Maria, antes de subirem, "Como querer que eu te apresente?", e ela, ainda pensando na mãe, "Sabe que mamãe disse? 'Eu sabia, minha filha, que ele ia te convencer!', olha só!", e ela fingia irritação, não queria se mostrar submissa, e depois disse, "Apenas diga o meu nome", como a dizer, "Não diga que escrevo, nem que sou sua amiga, ou alguém mais", e ele insistia, "Mas você escreve tão bem, ou até melhor, do que muitos que estão ali, a dizerem-se poetas e tal."

    A temática da noite? Por enquanto esperam uma pizza e uma rodada de vinho, apesar de Bianca Maria pedir uma água mineral, "Pois não bebo, querido, e sabe muito bem que os remédios me dão sede". Uma temática? Seria "As Paixões". Solene, Stevam Lucena lê um trecho de Benito Spinoza, onde "só uma paixão pode mudar outra paixão" e HD comenta o trecho, o falante HD que acaba de chegar, pois demorou-se no toalete, e Michael Bishop, especialista no referido filósofo, não hesita em comentários catedráticos, e Bianca Maria atenta aos dígitos das horas no visor do celular, e reprimindo bocejos, e de paixão o assunto chega a amor, e "a diferença é a intensidade", diz alguém, mas Stevam Lucena admite que "Amor é muito complexo e merece um banquete a parte, afinal nunca sabemos quando amamos ou estamos apaixonados", e lançou um terno olhar a Bianca Matia que notou um certo brilho e sorriu.

    Prometeu levar a jovem a parada de ônibus antes das dez horas, isto é, vinte e duas, e foi cumprir a sua palavra. A parada estava à porta, vinte passos abaixo da praça, e o Roberto Drummond, ou antes, a estátua do escritor, continua a ser o alvo das atenções, e enquanto esperavam o ônibus que seguiria para o Calafate, olhavam-se indecisos entre o amor e a paixão, mas foi um abraço de amiga que ela ofertou, antes de embarcar, um abraço forte de entregue confiança, depois de puxá-lo pelo braço, até a porta do coletivo, e sussurrar, "obrigada por tudo".

    E Stevam Lucena retornou ao banquete, o que muito alegrou aos convivas comensais, que esperavam suas declamações de Cruz e Sousa, a oferecerem êxtase e melancolia àquela noite de encontros e confidências.




Belo Horizonte, 05 de outubro de 2005


    Querido Stevam,

    Obrigada pelos seus poemas, principalmente o soneto, pois
ele reflete muito bem os dias que passei.

    Agradeço também por ter ido ao encontro no sábado. Pensa
que saiu do meu controle e isso me deixou desnorteada e ainda
mais triste. Me desculpe se pareci distante e sofrega. Não era
isso que eu quero te passar.


    Lendo o "Soneto Para a Alma Inquieta", fiquei me perguntando,
por que aparenta que sua alma é inquieta? Pareceu-me que
você fez do seu destino uma profetização. Ou será que estou
errada? Me diga por que tem a alma inquieta? O que houve
para que ela ficasse assim?

    Divida comigo os seus temores, seus martírios e suplícios.
Suas angústias e desilusões, e tudo o mais que te aflige e
te enobresse.

    Mil beijos...

                                     Bianca Maria





 [continua]


LdeM