sábado, 19 de fevereiro de 2011

mais trecho do Capítulo 1...

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    Outro evenement no bar do Santa Efigênia. Quem estava à mesa? TH, com elegância, e também Victor, com uma amiga, e Erik e Stevam. Somente TH não bebia – nem água mineral.

    Surge uma amiguinha do Erik (uma que todo mundo conhece...) e joga um olhar de perdição pra cima do TH, que continua num “papo-cabeça” sobre máscaras sociais, representações de gestos e falas, enquanto “expresso de egos enlatados” e “massificação das emoções inferiorizando a primazia da consciência, ou a doença da consciência, como podemos ler num Dostoievski” e outras neuras. E a amiga do Erik toda acesa pra cima do erudito vulto noturno. E ela vai insinuando um lado pessoal, quais os autores que ele aprecia e tal. E aos poucos a mesa se esvazia. Cada um inventa uma desculpa. Erik vai buscar mais cerveja. Victor vai ao banheiro. Pretendem deixar o casal à sós? Ms TH não muda o tom. O que ela gosta em literatura. Se já leu Sartre. O que pensa dos “sistemas desumanizadores alienantes”. Ela vai deixando o cara cair num monólogo, coisa fácil para o nosso TH-Hamlet! Vai se fascinando pelo desconhecido!

    Por fim, até o Stevam se levanta. Observa, junto ao Erik que serve a cerveja. Estranho casal, estranho jogo: nada de erotismo, apenas aquele monólogo – “words, words, words”.

    Por fim, a mocinha até desiste. TH se aproxima do grupinho, no limiar da calçada. Ali um Victor com olhar sorridente para o Erik, que sorri para o Stevam, que olha o vulto adiposo do Elias, que acaba de chegar. E TH no velho estilo “estou alheio a tudo isso”. “Então, TH, não convenceu a fulana?”, a ironia do Victor. Já o Erik revela que com lê foi diferente: não deixa passar as fulanas. Que aquela mesma... TH não se interessa, enquanto os demais observam as curvas femininas que se afastam sob a luz do poste.

    Não demorou alguém insinuar sintomas agudos de “boiolice” na frieza do poeta. Algum colega do Victor, na certa. Os representantes-mor do “lixo mental” da metrópole. E TH não silenciou. “Mas, diga-me, qual o problema com os, como você diz, ‘boiolas’?” Assim mesmo: todo gentil, politicamente correto. Aristocrata. O “lixo mental”, o colega do Victor, soltou um “O quê?”, olhando os demais. O Victor foi mais direto: “Ele quer saber por que os gays te incomodam tanto.”, e o rapazote: “Ah, cara! De gay eu quero distância!” E o TH, no mesmo tom gentil: “Digamos que o problema é se o ‘gay’ te paquerar.”, “Dá nojo! Meu tesão é por mulher, cara!” E o TH ainda mais gentil: “Ah, claro. E quem for diferente é nojento?”, e o outro se engasgou! TH agora num tom professoral: “É assim mesmo. Desde criança todo mundo incentivando. A namoradinha! Vai brincar com a filha do vizinho, meu filho! Você tem que ser o ‘pegador’ das garotinhas! Você tem que ‘comer’ suas priminhas!” E o colega do Victor ali só de espreita. E TH agora gentilíssimo: “E assim deve ser: todo homem com sua mulher.”

    O colega do Victor vertia todo o ódio no olhar, e soltava: “Eu sou homem! E homem gosta é de mulher!” E TH sutilíssimo: “Por que? Por prazer? Para reproduzir a espécie? Você dá livre vazão ao desejo? O que te impede de ter prazer com um homem?” E o rapazote era um ódio só! E o TH, sem pausas, “Você nem experimentou. Fica antes pregando conclusões. O prazer é o toque do outro, o corpo do outro...” Nisso Victor tece sussurros, junto a Erik e Stevam, “Só espero que ele não entre naquela viagem de alma feminina em corpo de homem! Senão sou obrigado a dizer que a minha alma feminina é lésbica!” Os outros riram, Stevam não.


    A polêmica poderia continuar se o colega do Victor não perdesse a paciência com a atitude deveras professoral do TH, que rebaixava o rapazote a ‘aluno’ e ‘neófito’. Assim um padre condescendente com um pupilo confuso. O rapaz explodiu, por fim, que o TH é um louco, um boiola louco, algo assim.

    E TH perdeu a fleuma? Nem um pouco. “Dizer que o louco sou eu, sem nem mesmo me conhecer, é uma forma de proteger a sua auto-estima, para considerar que nada altera na minha existência. Nós que achamos que modificamos a vida dos outros, e somos por todos reconhecidos, etc. para mim você nada significa. Um momento! Você vai dizer que é importante para si mesmo. Você e todo o seu vazio, cuidadosamente ocultado de você mesmo. Ou vai dizer que é estudante, ou pai de família, ou profissional corretíssimo, mas eu direi que está tão-somente cumprindo o seu papel no roteiro. Seus deveres sociais, seus instintos camuflados. Arrumar mulher, procriar, cuidar da prole, tirar um diploma, ascender na carreira, construir um casa para a família, e outras providencia. Nada significa para mim. Mas eu sei o que você quer – que eu te reconheça, em sua virilidade, como o mais realizado dos homens, o mais completo pai de família – daqueles que ficam a brincar com os filhos na praça, ou a passear no zoológico, aos fins-de-semana. Nada mais comum. Não exige explicação. Ou a nossa psicologia explica. Eu detesto este acúmulo de explicações que engolimos e nunca digerimos. Explicações. Aliás, não sei, realmente não sei, por que estou aqui te explicando tudo isso...”

    E, depois dessa, o colega do Victor até se afastou.





    Stevam voltou pra junto de TH, e no fundo, bem no fundo, dos olhos do poeta, havia uma sombra.

    Quando saíram do bar – onde Erik insistiu em ficar – Stevam e TH seguiram a Contorno e atravessaram sobre a ferrovia. Plena madrugada – tudo vazio no silêncio.

    Na ladeira, no escuro de um poste apagado, descem dois jovens, meio alcoolizados, e olhares inquisidores. Passam. Olham-se. Stevam pensativo, face impassível, e TH deslizando as unhas nos cabelos longos. TH com soturna roupa justa, apertada, denim & leather, jqueta luzindo.

    Um comentário a meia-voz: - Ei, mano. Casal estranho, aí! Era mesmo uma garota? Estranha, paca!

    E Stevam tenta entender, até rir-se do estupor e duvida dos rapazes diante da presença andrógina de TH, que Ada comentou.

    Noites depois, TH, todo afeto, perguntou a Stevam se ele já lera o romance “Retrato de Dorian Gray”, e emprestou um volume febrilmente sublinhado, anotado. Gesto que Stevam só entenderia tempos mais tarde. A Beleza sombria. O amor que não ousa dizer seu nome.





    O vulto já descia a avenida, quando Oto enfim o reconheceu. O Oto um tanto ocupado – acariciava as pernas de Carol, sentada em seu colo. Carol com as lindas pernas nuas aflorando de uma sainha preta justíssima! Apesar de ser uma noite até fria... Sim, TH descia a avenida – quase passou direto – atento em justar as luvas e abotoar o sobretudo. É que seguia concentrado...

    Percebeu os jovens, olhou a todos com atenção, reconheceu as fisionomias e particularidades, assim como se retornasse de futuro remoto ou, antes, um passado onírico, onde navegava na noite sem contato com a realidade presente, assim TH se dispôs, ainda com as luvas, a apertar a mão de todos, cordialmente.

    - Por que apertamos as mãos – foi o que disse, assim que se acomodou ao lado do Stevam e diante do Erik, ambos agasalhados e compartilhando um vinho – daqueles baratos, como sempre.


    Os dois jovens nada respondem. TH não se importa. Fala consigo mesmo, em voz alta. – Desde as guerras medievais, passando pelos duelos do romantismo, é costume, no ocidente cristão, apertar-se as mãos, principalmente os inimigos nas momentâneas tréguas entre as batalhas. É um sinal de honra, demonstrando não haver propósito de “ataque à traição” – e ele pronunciava com requinte – Exibiam as mãos tal uma prova de “não estamos armados”, prontos a negociar. Imaginem quando se reuniam os conselhos de guerra para as graves questões dos armistícios e alianças.

    E quedou-se pensativo. Agora mergulhava no passado. Certamente. De repente, se fazia ausente. Olhar longe longe. Exilava-se do presente. Diziam que era loucura em gestação. Por isso o rapaz abandonara a carreira de advogado – carreira que muito agradaria, enchendo de orgulho, o seu muito respeitado pai. Mas TH pouco se importava...

    Alguém comentava a divulgada profecia do fim do mundo, aquela conjunção de planetas, uma imensa cruz no céu, prometida para o sinistro mês de agosto.

    No bar, ainda pouco ocupado, ressoava uma canção ora pesada, ora clássica, com passagens cravísticas à la Johann Sebastian Bach, sem dúvida, de uma banda alemã. Certamente da coleção do Erik. O inusitado ali é que ninguém compreendia o idioma tedesco.

    - Tem que ser fiel, pô! Vocês ficam aí, com essa conversa de fidelidade ao movimento, e logo depois entram pra uma igreja qualquer, se convertem, arrumam uma mulher, casam sob as bênçãos do padre, ou pastor, sei lá, e montam uma banda de rock pesado evangélica!

    Era o esbravejar do Oto que tomava conta do barzinho. Certamente recriminava um pupilo indeciso na “fé”. Aléxis, o sombrio, estava à um canto, com um sorriso irônico. Saberia ele que, em tempos futuros, coisas de poucos meses, a Carol, que lascivamente ali estava, seria vista a procura de cultos evangélicos, tentando aliciar a desesperançada Sônia? Não saberia... Outros vultos de roupas funestas se insinuavam pelas mesas, ou desciam ao andar inferior, onde haviam mesas de sinuca

    TH foi o único a se perturbar com o discurso de Oto, que capturava uma garrafa de vinho e bebia furioso. Erik e Aléxis olhavam com indiferença. Stevam observava o sujeito que recebia a dádiva da ira de Aquiles.

    - Vejam isso. Não parece uma pregação de púlpito? – começou TH diante do Oto – Ele até usou o termo “fiel”. É assim que os grupinhos se formam e se protegem. O mais fanático insistindo que o melhor e o mais sensato é cada um permanecer ali no grupo. Infelizes os apóstatas!


    Os grupos ressaltam suas virtudes e desprezam os desviantes!, anotou Stevam, mentalmente.

    - As pessoas seguem pelas ruas e avenidas. Praças e becos escuros. – Em solidão. Uma multidão de solitários. – TH se empolga, e, numa pausa, até aceita o vinho, ainda que em copo descartável – O que busca? E tão aflitos? Um estilo, um modo de viver, um Sentido para viver – uma justificativa! Vestir assim e tal. Ouvir um som assim e assim. Crendo em suas ignorâncias, julgam pertencer a algo maior, um grupo. Que confere identidade, um pertencimento. – nova pausa, para o vinho.

    - Nascemos numa condição dada, não houve tempo para ensaios, já nascemos em pleno palco. Não há tempo para pensar, por si mesmo!, a maneira como vi viver, uma ética que vai nos guiar.

    Haverá Ética pessoal? Possível? Diante de uma Moral coletiva... Stevam anotava, mentalmente.

    - O script, o roteiro, o enredo, é dado pela sociedade onde nascemos, com suas tradições  normas, suas convenções e construtos lingüísticos. Alguns até se isolam, no seio da sociedade, para pensarem a vida e seus processos. Estudam as tradições e vivências, e esboçam éticas ideais. Tornam-se guias espirituais, líderes carismáticos, filósofos, mestres, e deixam de viver para pensarem, e permitem que muitos outros vivam – sem precisarem pensar.

    O tom didático não passava de tédio para os demais, contudo Stevam se sentia tocado. E TH não se importava minimamente com a desatenção da platéia! Monologava, um Hamlet ns brumas do asfalto.

    - Nem todos são fortes a ponto de serem originais. E o suficiente para doarem um Sentido próprio à existência.

    Stevam sentia-se angustiado, com a voz modulada de TH, como a subir de uma gruta. Ousou falar: - SE eu dependesse de terem me dado um “Sentido” para a vida, eu já estaria morto. Mas veja você, TH, que dá sentido a sua vida, proclamando, os quatros ventos, que a vida NÃO tem sentido!

    - E repito. Não há Sentido. Nós devemos criar ALGUM Sentido. E assim assumirmos a existência e continuarmos em frente. Vez ou outra aparece por aí um Sentido que pretende ser Universal: ora é a religião, ora é a ideologia, ora é a arte, ora é a Ciência. Aí retorna a religião, etc. Nós mesmos precisamos encontrar o Sentido para vivermos – dar Sentido a vida pela busca do Sentido. – E percebendo a atenção de Aléxis, a quem respeitava. – É o que penso. Se não fosse assim... Nada há mais que faça sentido para mim.

    - A vida é absurda, a morte é real.

    A voz profunda, no tom baixo, mas enfático, não deixava dúvidas.  Até Oto fora atingido pela gravidade das palavras do TH, que nada figurava de trágico, ali a compartilhar um vinho dos mais vulgares.

    Caiu aquele silêncio. Logo, angustiado, alguém deixara a trilha sonora rolando... uma banda áspera, mas generosa em melodias, onde guitarras rudes e sarcásticas duelam com solos de piano tristes e solenes. Canções em fuga de um castelo sombrio. Certamente outra preciosidade saída diretamente da mochila do Erik...

    Talvez, por carregar outros fardos, TH preferisse o silêncio, pois se levantou, em desculpas, com toda a polidez, ajeitando as luas, no mesmo gesto que fizera ao chegar. Stevam não hesitou em levantar-se. Também queria silêncio, queria paz. E quem não queria? Talvez, apenas o Oto, o que desejava o fragor da batalha, mas não naquele momento, a receber os beijos de Carol. (Ah, o descanso do guerreiro...)

    Assim, somente o Stevam acompanhou o poeta. Andavam em silêncio, os sapatos em ritmados ecos na solidão das ruas. Subiram a avenida até as sombras da praça. Outros vultos noturnos, de faces sombrias, perambulavam meio aos bancos, iluminados por faróis indiscretos, ainda que raros nestas horas mortas.

    - E essas crianças? – dizia TH, num gesto de profeta. – São a prova do instinto de auto-destruição . em beijos e abraços, com suas camisetas cadavéricas... não se assuste. Trata-se apenas do enlace de Eros e Thânatos, o Amor e a Morte. É que os gregos adoravam personalizar... De luto, elas seguem. Em vestes vitorianas, num passado adornado com um nada sutil cheiro de mofo. Rondam os cemitérios, as praças abandonadas. Roubam crucifixos para enfeitarem as suas tumbas, digo, os seus quartos confortáveis. Onde, sob os castiçais estilizados, lêem poesias tumulares. Isso quando não acessam internet e discutem a melhor forma de cometer suicídio. O que fazem? Revertem o sadismo para o próprio eu – por culpa, infligem sofrimento a si mesmos...

    Um jovem de skate passava numa nuvem de poeira, a cortar o discurso. Assim, o TH desfez o gesto. – auto-destruição. E logo seus grupos se desagregam. Nada há que seja real união. Vivem dispersos, cada um a carregar um cemitério na cabeça.

    - Nada mais autoritário que um adolescente. – Stevam se desviava de um grupo de cabelos longos, que certamente não daria passagem. – Ainda mais em grupo. É de discriminar mesmo: só é da minha turma se for assim! Não aceitam dissidências, mesmo porque se consideram uma dissidência – do mundo.

    - Deve ser o retorno, do qual disse Nietzsche. Sentir-se assim no século treze, ou quatorze, meio aquele pulular de seitas e heresias. Eram os cátaros, os anacoretas, os valdenses, os franciscanos, os dominicanos, os fraticelli, e outros tantos! Hoje temos multidões, pluralidades de diversidades, modas e estilos, consumindo um estilo de consumir! Desajustados ao modelito da griffe da contestação, seja um clubber, seja um punk, um neo-hippie, um fã de rock pesado, um adorador de Bob Marley. Um saudosista da era psicodélica – e de fato ...

    E, de fato, passava um senhor de certa idade, longos cabelos brancos, com uma camiseta, onde figurava um prisma fragmentado um raio de luz num arco-íris, e nas costas, em garrafais, PINK FLOYD.

    E TH continuava, os olhos agora faiscantes. – Olhe todos. Olhe bem. Podemos criticar? Olhe para eles. Olhe para nós mesmos. Semelhantes, sim. Estamos igualmente de luto. Assim seguimos: tão importantes! A julgar a humanidade. Enfrentamos o mar de faces. A multidão são os outros, pois eu, EU, sou o centro do universo. O Ômphalus. Sempre o protagonista, nunca um figurante qualquer. Pontos de vista, perspectivas. Não podemos criticar. Seria uma crítica contra nós mesmos. Seria esbravejar contra uma imagem no espelho. Se os desprezamos, ao contrário de afirmarmos nossa imagem, a fragmentamos ainda mais. Somos diminuídos na mesma proporção. “Não fazer ao outro o que não queres que ele te faça” é uma bela fórmula, não? Mas somos egoístas demais. Então, viva o amor-próprio! Eu vivo na minha colina e você, na sua colina. Entre nós – o abismo! Nada de estender pontes. O vácuo não pode ser transposto.

    De súbito, da penumbra, um vulto: um jovem e sua mochila. Um passo adiante, a solicitar um cigarro. TH não concedia atenção. – O tempo que eu perco com semelhantes figuras!

    É que TH já vivia sua fase amargurada. Antes se esforçou por ser sincero, generoso, e sofrendo com a incompreensão do mundo. Temia, em íntimo tormento, ser absorvido no mar de faces. Então tornou-se, com o tempo, um ser ensimesmado, a confiar em poucos, concedendo atenção a alguns privilegiados – Stevam era um destes “Eleitos” – o que era um traço de aristocracia, com cinismo sutil, acariciando uma perversidade que outrora ele temia. Não sofria com o Mal ao redor, mas sentia-se mais cruel que o Mal do mundo.

    - Ei, Stevam, é o seguinte! Temos medo de morrer. Se eu tivesse aqui, armado, e, empunhando a arma, a apontasse par o brilho dos seus olhos, você ajoelharia, implorando por piedade!

    Estranho, realmente estranho! Um perverso TH capaz de crimes pavorosos! Sem calor humano, sem fleuma, sem nada. Um amontoado de frustrações e amarguras! Stevam lembra-se do momento. Passados quatro outonos. Engolia em seco. Naquele silêncio, na solidão das ruas.

    - Mas o mundo é anti-estético. Deve ser destruído. E sou parte deste mundo, e, portanto, devo ser destruído.

E afastou-se na avenida, sob as árvores, sem mais despedidas ou acenos. Os passos, e seu som marcado, foram engolidos pelo silêncio noturno.





    Não sei se a iluminação do lugar estava em pane, mas as ruas estavam sinistramente escuras. Naquele quarteirão apenas um poste aceso, lá no outro extremo.

    Pois foi justamente decido a escuridão que encontrei a boate, um calabouço.

    Era mesmo um calabouço – literalmente. Tratava-se de um porão. Ao nível da calçada apenas era notada a saída do ar condicionado e, por uma vidraça, os relâmpagos dos globos de luz. Globos em giros de multicores.

    Um grupo de jovens com roupas escuras compartilhavam bebidas junto a escadaria. Não era noite fria, e, como eu andasse, logo me sentiria sufocado ao entrar. Dobrei o blusão e perguntei, na portaria, se ali poderia deixar o agasalho, pois temia perdê-lo meio ao agito alucinado. A minha mostra de precaução e bom-senso causou surpresa. A moça junto a roleta (tipo aquelas de lotação) exibia pesada maquilagem, sorrindo ao dizer que era problema meu, pois ali não era guarda-volumes.

    O segurança (não mais gentil) grunhiu que só impediam a entrada de garrafas de bebida e obviamente armas, sejam quais forem.

    Não discuti, jamais discuto. Ainda mais em tais situações. Se o meu irmão estava ali precisava encontra-lo.

    Uma garota (uma noturna até linda) se aproxima, logo agarrando o meu braço e tecendo gracejos obscenos. Dois rapazes trocam sorrisos. Intuí ser uma garota de programa, vendo em mim um potencial cliente. Mas não a afastei (ah, o seu corpo quente!), isto que me envaidecia. Estranho isso. Disse que ela era bonita (apesar de um tanto vulgar) e ela sorriu, não sei se irônica ou agradecida.

    Sussurrava coisas, acariciando minhas coxas. Assim tão gratuitamente. E às vezes engolia pílulas, ou pastilhas, brancas, que não eram exatamente balas de menta... Ela bebia muita vodka, muita mistura de campari – coisas fortes.

    Daquele barzinho, logo a entrada, adentramos a pista de dança, ainda que o estilo de som ali não fosse exatamente para danças, mesmo sob as hipnóticas trilhas techno, entrecortadas por guitarras desafinadas e gementes, tornando o ambiente opressivo. Denso e agressivo. Uma voz urrada, gutural, imperiosa. Ou uma voz masculina lúgubre chorando a opressão. Ou uma voz feminina meiga e desamparada.

    Meio a trilha sonora do fim do mundo, meio as garotas que desmaiavam devido ao ar abafado e a falta de água, e aos rapazes que as beijavam à força, alisando-as freneticamente, sim meio a tudo isso eu olhava à procura do meu irmão.

    Mas estava abafado. Se era para aquele inferno que ele perambulava, ainda não tinha chegado.


    Na calçada, mais grupos de jovens se aglomeram. A bela noturna, que estivera ao meu lado, deixou-se escorregar até o meio-fio, e vomitava no bueiro. Bebeu demais, imaginava. Mas, logo me afastei dela. Na esquina, junto a outros sujeitos, estava o Víctor.

    - Ei, Victor, esbarrou no meu irmão por aí?

    - E aí, chegado! Pois ele não vem pra cá?

    E prosseguem elogiando a noite detonada, o som esquartejante. E preparam-se para entrar. Insistem para que eu os acompanhe, mas lembro que espero mu irmão. Resisto e encontro-me sob as estrelas. E os fios de alta tensão.

    Uma voz comentava que ali estava mais interessante que lá dentro. Senti um estalo na mente: TH ali conversava com um cara da idade do meu irmão, e igualmente chamado Stevam. Conversavam sentados ao meio-fio, indiferentes ao drama da garota, prostrada, a respirar as podridões da sarjeta.

                     “Mais comme un viux paillard d’une vieille maitresse,
                      Je voulais m’enivrer de l’énorme catin
                      Dont le charme infernal me rejeunit sans cesse”

    TH recitava Baudelaire e esperava que entendêssemos. Expliquei que a garota bebera demais. Eu mesmo até dei um tempo, pois o gole era forte. Então a turma do Victor voltou e eles tinham vinho, coisa barata, marca vulgar, no entanto, era doce e aceitei.

    - Quem pode amar uma criatura daquelas? – TH perguntava, com algo de dor no tom irônico.

    - Ela deve ter amado muito. Se entregou muito.

    - Hoje quem deseja esse corpo em trapos?

    - Não exagere. – eu intervi – Fala como se ela fosse uma velha!

    - Meu caro, nesse corpo de vinte anos há mil anos de sofrimentos!

    O outro-Stevam, ali ao lado, observa tudo com olhos ébrios de insana inteligência, não entende como duas almas se afinavam, perguntou de quanto tempo nos conhecíamos.

    - E alguém conhece alguém? Nem que cem anos convivesse contigo, eu te conheceria. Você se conhece? Pensa que eu te conheceria se te filmasse a vida toda, vinte e quatro horas por dia?

    - Então, o que liga vocês? Amizade?

    - Não creio! Existirá? Ou trata-se de interesse? Uma companhia, uma posição social, uma opinião que reforça a nossa. – TH agora m lança um olhar irônico – É o abismo que nos une.

    Olhava os outros, a mão pálida baila no ar, apresentando-os:

    - Veja-os! O que une estas crianças? Um símbolo comum? Uma ideologia? O culto ao prazer?

    - Um estilo de som. Um visual. – arriscava-se o outro-Stevam.

    - Sim, e nada mais do que o desespero.

    - A única coisa que compartilham? – eu perguntei.

    - O que mais poderiam compartilhar?

    - Estão afogados em narcisismos. – pensava alto, o outro-Stevam.

    - Sim, narcisos sem qualquer criação. Imagens espelhadas distorcidas... um vazio interior, depois de dinamitar todas as pontes até o outro.

    - Estão aí andando em grupinhos. Uniformizados...

    - Um rebanho de solitários. Eis o que temos.

    Sabendo que TH nada prega que seja semelhante a laços comunitários, ou coletivos, como antídoto ao solipisismo, pude entendê-lo. Que agora a solidão é praticada em grupos! Que verdadeiros solitários estetizam suas solidões encerrados em si mesmos. Não se vangloriam de distanciar do outro. Usavam o abismo pra se conhecerem e se esquecerem.

    - Grupinhos de não-adaptados assolam a cidade. – ironiza o outro-Stevam.

    - Mas são adaptados. À inadaptação deles.

    - É contra, então, que estetizam algo assim?

    - Ora, não sou contra nada. Estetizem o que quiserem: até essa farsa.

    - Ele está com ciúme do modelito. – ria-se o outro-Stevam.

    - É, você anda sombrio, TH !

    - E não uniformizado. – e se levantava – E no mais, eu estou de luto. Por toda a humanidade.

    E tendo TH se afastado (nada mais disse) convidei o outro-Stevam para esperar o meu irmão, ali junto à entrada. Perguntei ao Victor se o encontrou lá dentro (não que confiasse no Victor, já meio ébrio, ms não me animava a voltar ao tal inferno)

    O caso é que Victor enrolava um assunto com aqueles músicos, agora que Erik aparecera, e todos esperavam o Oto (e ele nem apareceu)

    - O Alfonso está meio incomodado aqui.

    - Não imagino o porquê.

    - Que isso, cara! Esse jeito de “tô fora, mano!”

    Erik sorriu. – Ele está apreciando o espetáculo.

    - Sim, mui instrutivo e vistoso. – respondi, sem sorrisos.

    - Ele ‘tá tirando a gente, não vê? – um dos músicos voltou-se para o Victor.

    - Ele está ironizando. Relaxa.

    (E o sujeito fazia aquela cara de ‘preciso expulsar o intruso de meu território’, a agarrar-se desesperadamente a sua frágil identidade, e de tão inseguro, se mostra agressivo. Não é que precisa ficar sempre se reafirmando?)

    - Eu não preciso ficar me explicando.

    Então o Victor e o outro-Stevam resolvem esfriar a fervura.

    - Que isso? Que isso?

    - Ele está meio grogue.

   - Te incomoda ou não? – o mal-humorado retrucava.

    Eu, também sem humor. – A você incomoda?

    - Eu me divirto aqui – o músico olha ao redor – Densa desgraça ao redor. Você é que está incomodado.

    - Meu prazer não passa pela auto-destruição.

    - Você está incomodado. (ele vivia repetindo isso) Mas o caminho está livre, você pode ir. (Falava como se fosse a autoridade local, a conceder licenças de ir-e-vir.)

    - E você jamais se incomoda, se inquieta? Aceita tudo?

    - Toda essa podridão é coisa nossa, vem daqui (e apontava o coração) o mundo todo padece do infortúnio do desejo (eu sabia que tais conceitos só poderiam vir dos versos do TH) e não vamos negar isso.

    Claro, vamos criar flores sobre a fossa.

    Não sei onde tudo terminaria, se o Stevam não surgisse. O seu lado, o baixista e um outro, que eu desconhecia.

    - Me patrulhando, é?

    E me evitava. “Serei o guardião de meu irmão?” Mas quando ele se preparava para entrar, eu: - Stevam, ainda não consegui o que quero. Mas não significa que eu desista, que nada vale para mim.

    - Eu sei, e daí?

    - Ela morreu também por causa da banda, do fim da banda... não tinha mais nada...

    Um sorriso doloroso rasgava a sua face:

    - Você tem medo de que eu faça o mesmo.

    E ficamos longos segundos, um diante do outro, olhos baixos (não ousávamos trocar olhares, ou tocar no outro, estávamos à léguas de distância!). Então, sem nada dizer, ele entrou.

    Não iria ficar ali a discutir com aqueles idiotas. Como me visse afastando, o outro-Stevam veio no meu encalço, queria saber se eu ia embora.

    Disse que sim, afinal o que faria ali? – Incapazes de entenderem uma ironia, esses sujeitos! E, quando abordo algo sério, eles prontamente encaram como ironia.

    - Quem muito ironiza, se auto-ironiza. O cúmulo da ironia é a postura séria.

    - Ah, obrigado! Muito confortante, isso!

    Ah, os “belos e malditos”! Que belos atores soturnos! Ele pensava o mesmo, certamente, ali ao meu lado, até o fim do quarteirão, onde, na alameda que desce até a avenida, eu deixara o carro. Ofereci carona, ele recusou. Seguia para outros rumos.



Um epílogo ::::

Quando cheguei em casa foi conferir o poema que o TH recitava. É mesmo do Baudelaire, e chama-se “Épilogue”. Uma tradução livre eu arrisco: “Tal um velho devasso de uma velha amante, / eu venho me embriagar com a imensa puta, / cujo charme infernal sempre rejuvenesce.”





(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)

(outono/ 2002)


    Ontem fui ao velório do senhor Sílvio Avelar, o pai do TH, que morreu de câncer.

    Não sei se eu estava muito indiscreto, mas todos me notaram assim que entrei. Todo de preto, cabelo solto, figura pétrea, entrei no recinto solene, ocupado pelos semblantes pesados dos parentes do falecido.

    TH cabisbaixo junto ao caixão, acompanhando a tia, que agora seria a responsável, a matriarca. Lembro que TH perdera a mãe aos dez anos. TH, uma verdadeira máscara, sem emoções. Eu ofereço meu abraço e condolências, “Pôxa, triste isso.”, com um esmerado tom fúnebre na voz. Mas sei que TH sente total repulsa por essas ritualizações da morte, estas encenações públicas da dor da perda. Afinal, o que significa o falecido para mim?

    O falecido estava não só abatido, mas desfigurado. Os últimos dias da doença foram horríveis. Imagino o sofrimento do TH vendo o pai definhar dia após dia. Mas TH igual a um padre na extrema unção, “Se há algo do qual temos certeza é sem dúvida a morte”

    São as únicas palavras que trocamos.

    Nenhum conhecido nosso ali nos jardins do velório. Os parentes, de ostentada classe média alta, com suas roupas de etiquetas e marcas, exibem olhos vermelhos e gemem sob a perda do nobre advogado. Talvez até algum cliente, livre de processos e penalidades, aqui venha expressar seu reconhecimento.

    Não sei se sou frio, insensível, mas todo aquele luto não passava de mais uma convenção social. “Hipócritas, fingem tristeza!”, eu resmungava pelos cantos.

    Alguém mastiga um sanduíche, junto ao bebedouro, outro conversa sobre política. Não percebem que o morto é insubstituível? Que não se perdeu um advogado de renome, mas uma pessoa? Uma perda irreparável! No entanto, não fui cobrar isso de ninguém, até porque eu não conheci o falecido quando ainda vivia. O que sinto é uma mágoa, em comunhão com TH. É agora órfão, esse meninão de quase trinta invernos, e vai ter que aturar a tia, ali ao lado, com olhares fascistas.

    Um corpo velado num ataúde ricamente adornado, envolto na pálida luz dos círios, destinado a um sepulcro na colina, no campo verdejante, na igualdade dos vermes. Não poderia suportar mais, chego junto ao TH, “Preciso ir embora”, enfrento aquele olhar, “Desculpe eu não ir ao enterro. Cemitérios sempre me deixam deprê.”

    E saí na noite, era mais de meia-noite, realmente!, a indagar sobre vida-morte-vida, tudo passa, os passos passam, eu blasfemo contra a fatalidade, não mais do outro, mas a minha. Estou revoltado – contra a minha morte. Que virá um dia, uma noite... tudo passa, tudo passará... o mundo passa!

Mas não adianta uivar contra a lua, ofender os altos Céus, a inclemência do Altíssimo!, pois nossa morte é diária e sutil, e eu passo a cada novo passo.



 [...]


LdeM

domingo, 13 de fevereiro de 2011

mais Capítulo 1 da Parte 3

[...]





   Atento às várias escolas filosóficas, o professor era daqueles que muito prezavam os pensadores a ponto de não ousar supera-los. A Filosofia enquanto respeito à Autoridade. E ele nem era hegeliano.

   Sistemas filosóficos, dos pré-socráticos aos discípulos de Derrida. Escolásticos. Positivistas. Existencialistas. Uma galeria de belos quadros. Poses pomposas.

   Stevam Lucena se preocupava mais com o que Leila tinha a dizer. A autoridade dela ele acatava! Agora, por acaso, levaria alguém como Platão à sério? Convenhamos!

    Até porque naquela aula eram trechos de um livro que circulava. De um autor inglês disposto a escrever uma “distopia”, isto é, “utopia às avessas”. E o professor ouvia, atentamente, às indagações de Leila, sempre senhora de si e questionadora. Com toda aquela força que Stevam não tinha – e por isso invejava.

    Realmente o professor estava mais libero-pensatore e menos catedrático. Via-se que a aluna conseguia domesticar a sua cátedra. Engavetou suas tiradas academicistas de intelectualismo pedante. E talvez, no fundo, fosse um bom garoto, que outrora até ousara pensar.

    Leila mencionou o nome “Kafka”, e todos se voltaram. Mas não falavam sobre Huxley, e seu “Brave New World”, o “Admirável Mundo Novo”?

    - O Selvagem, o diferente, vira espetáculo, tração de circo. É perseguido, observado. Tipo o Joseph K, do “Processo” do Kafka. Não se admira que ele, o Selvagem, acabe se matando!

    Alguém concordava, Que ser diferente é difícil, que é mais fácil seguir o rebanho. “Ou o Rebanhão!”, ironiza Breno, ao lado de Leila.

    Ainda calado, Stevam observa o perfil da jovem. Também está incomodada. Com o tema, com o livro. Principalmente com a turma.

    As pessoas ou servem a algum propósito ou são descartáveis? – Leila provocava, faces coradas, afastando a franja. – se não se adaptam ao processo, devem ser eliminadas?

    Mas a ironia (que pretendia aliviar a tensão) deixou a discussão ainda mais áspera, e Leila, que tentou jogar limpo, acabou sufocada pelas tiradas irônicas. Os que ainda compreendem se calam diante da maré de mediocridade.

    Certamente por erguer a Leila a um pedestal por demais elevado, Stevam jamais tenha se aproximado.




    Dois ‘guarda-roupas’ na entrada. Intimidado. “Aberto para estudantes?”, ele pergunta. “Só para convidados”, responde o guarda à esquerda. O da direita acena, HD aproveita, “E a Biblioteca, ainda aberta?” Aí, o da esquerda resolve ser mais prestativo, “Vou perguntar” e mergulha na onda de cartolas e fraques, digo, de ternos e carecas. Volta logo, acena simplesmente. “Liberado?”, e HD entra, discretamente.

    Aproxima-se para assinar os livros de presença, junto as madames e conversas de comadres. O congresso da gerontocracia no judiciário. HD assina enfim, e desce ao auditório, lotado de grisalhos e cabeças brancas.

    Senta-se na segunda fila e logo o Presidente da sessão sobe à mesa e espera que os ânimos quase estudantis se acalmem. Pois poucos estudantes estão presentes, a maioria é advogado de carreira, desembargadores, professoras cobertas de maquilagem.

    HD, ali no extremo da fileira, incomodado à todo momento por um passante, e eis que um casal.... Olhem, é tão-somente um bem-trajado e aprumado advogado e a mulher, de vestido justo, saia anil e colete vermelho. Logo o noivo passa de novo. Sempre incomodando o HD, nauseado, “O que estou fazendo aqui?!”

    A dama agora lança um e outro olhar, tendo apenas três assentos entre ambos, mas ele disfarça bm, também não vai dar vexame diante de tal platéia.

    Hora do Hino Nacional, respeito e civismo. Aplausos. Ela senta-se e cruza as pernas, apesar do espaço exíguo, e ele entediado, ali cumprindo tabela, mostrando-se pessoa decente, a cultivar belas virtudes cívicas.

    O palestrante começa a sua fala, arriscando anedotas para quebrar o ‘espírito de gravidade’. Suas palavras ecoam enquanto HD dedica infinda atenção ao que parece divertir a dama, que vê no rapaz um exímio ator. Mostra à face reflexões ponderadas (ele que nem fez questão de balbuciar as palavras vãs do Hino), lábios cerrados em profundo meditar sobre a glória nacional, a lembrar que nossos campos têm mais flores, etc.

    A dama cruza novamente as pernas fenomenais, e ele sendo discreto. Ali, na fileira de trás, a família do noivo, a tia antes declamando um poema meio no deboche (Bocage?), depois se levantando para cumprimentar o sobrinho, com toda afetação, “Ei, me deixem! Que abraço! Hein!”, a mãe sorrindo, a saudar sem efusões a futura nora como boa sogra,o pai atento a careta suarenta do palestrante.

    “A justiça, gloriosa na defesa do cidadão frente a arrogância do Estado...” E ela tira o colete encarnado, joga-o aos braços da poltrona, num olhar sorridente para HD, o guru da discrição. A musa no seio da nata da jurisprudência mineira, em semelhantes trajes, certo que trata-se de alta costura, mas pouco pano, “...desde a sábia Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, sob a inspiração do genial Jefferson...” O noivo volta e novamente incomoda HD, “todo viscoso, esse sujeito”. Cochicham algo noivo e noiva, ele (o noivo) volta-se para trás, troca acenos com a mãe, recebe um livro, então desdobra o óculos e folheia. Ela (a noiva) faz de uma revista (jurídica!) um leque até eficiente. O noivo encobre a bela silhueta, mas (vejam!) ela tirou os saltos altos, ali os dedos encolhidos, enredados na meia-calça. “Teia de aranha!”

    Palavras, palavras. “O que, pelos raios, estou fazendo aqui!”, mas não se decidia a ir embora. Mas não era momento para abandonar o jogo, logo agora que o noivo passou de novo, “Não sossega, o infeliz!” Assim o olhar caiu sobre a musa. Ela não perdia uma oportunidade pra cruzar as pernas, exibindo a meia-calça, “Para que ilusão, se a realidade é melhor!” Ele queria ver os pêlos claros da pela sedosa. Adjetivos nem originais eram. E outra: ele se sentia invadido pelos tempos da opressão, a década de 60, por um mofo de ditadura, “Quantos ali colaboraram com o regime? Se não, o que fizeram? Boca calada!” Agora ali, o palestrante exortava a Justiça à justiça! E defendendo a separação dos poderes, execrando regimes totalitários que atrelam o Judiciário ao Executivo.


    E ele, o filho da contracultura, do tropicalismo, do peace and love, da cabeleira black power, do estilo flower power e dos seminários marxistas? Nada disso! Filho de um funcionário público vindo do interior, e criado nos subúrbios!

    O mofo dos conservadores e o ar jovem do olhar sorridente da dama. Ela que já deixara a revista de lado (talvez para não desagradar aos egos sensíveis, pois certamente o noivo devia ser um dos colaboradores, ou mesmo o editor) e continha uns bocejos (fingidos? O quê? O gesto um ou dois?) O palestrante levantava discretas advertências quanto ao estado da Suprema Corte Norte-Americana, devido as ditas (ou malditas?) ‘medidas de exceção’, contra o terrorismo (ou o ‘império do Mal’?), e que este poderia vencer, caso a América renunciasse ao secular apelo pela liberdade, e censurando manifestações, e cercando os cidadãos de olhos eletrônicos (“o Grande Irmão”?) e que a América lembre-se o quanto é grande sua influência no mundo, que em nome da democracia não acabem por sepultar a liberdade democrática..

    O bom discípulo de Montesquieu silencia, e aplausos ressoam. Dar o fora, e rápido! Anunciam um cocktail, é o sinal. A dama veste o seu colete, e seu perfume o guia quando segue corredor acima. Ele refugia-se no toalete, onde xinga sua imagem no espelho! Quando volta ao salão, ele finge procurar uma face conhecida. A noiva já desapareceu com o noivo.

    Tão discretamente quanto ao entrar, HD saiu. Nem sinal dos ‘guarda-roupas’. Somente os manobristas ocupados.




(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


(inverno de 2000)


    Voltando ao barzinho do Santa Efigênia, depois de dar um tempo, percebo a nossa velha mesa agora vazia.

    O bar está vazio. Hard Rock dos anos 80 e suas baladas e seus solos de guitarra ainda são o prato da casa. Já estou um tanto saudosista?

    Sentei-me cabisbaixo e fiquei lembrando um diálogo que muito me impressionou, a pouco mais de um ano atrás. Eu nessa mesma mesa, e ele, com uma amiga, naquela mesa junto a entrada. Concentrado em meu vinho, sem ter encontrado o Erik, que vez ou outra aparece, só notei uma voz entre confessional e petulante, como se confessasse por desfio, como se mostrasse disposta a fazer tudo de novo.

    - Pois é, foi um custo. Depois minha mãe me aceitando como mulher, entendendo que eu precisava seguir meu caminho, nem que fosse pra quebrar a cara...

    Eu não poderia esquecer aquela pele pálida e aqueles longos cabelos negros, toda de luto, com vestido e coturnos, sempre voltando aos olhos cobiçosos do Oto. Não sei se ainda saíam juntos, afinal a ‘oficial’ de Oto é Carol, igualmente pálida e cabelos de corvo.

    - Fui morar com uma amiga, a Raíssa, você sabe... Aprendi a tocar flauta, um pouco de teclado... cantei um pouco, aquela música bem deprê da banda do Oto. Mas eu pegava muito pesado. Eles tinham lá aquelas drogas. Muito pó, saca? Uma noite, cheirei muito, bebi muito, cheguei ao apê e quando Raíssa abriu, caí, caí assim pra frente, desmaiada, cara! Ela me contou depois. Até me deu banho... Não vi nada, não me lembro. Acho que acumulou tudo, não é? Mas não vou ficar aí marretando o passado.

    Era noite fria, talvez daí os arrepios. Paguei o vinho e saí.

    O mesmo fiz hoje, e ainda mais solitário.



Alfonso: O Oto comentou a sua desistência.

Stevam: Temporada de anistia na ditadura?

Alfonso: Depende das negociações.

Stevam (tenso): Eu? Dar a cara a tapa?

Alfonso: Ambos precisam ouvir, ouvir um ao outro.

Stevam: Acredito o suficiente em mim mesmo para não precisar ficar abaixando cabeça para um ditador cismado a músico.

Alfonso (incomodado com o papel de conciliador): Bem, é que...

Stevam: Eu perdi a paciência.

Alfonso: Na verdade, são os dois intolerantes.

Stevam: Assumo. Se precisa de um anjo decaído. Ele pode ser o deus tirano. Não, não podia continuar, tava engasgando. Não só a sonoridade (o que todo mundo comenta) mas as letras, o sentimento ali presente. É um lamento. Não faço música por diversão.

(Alfonso lembra-se dos exercícios de teclado do Stevam. A repetir melodias e acordes à exaustão. Bach, Mozart, Chopin...)

Stevam: Veja, essas bandas que são ícones. O que há? Imagens. Distorção. Pose de crueldade. “Ora, vejam, o quanto sou sádico!” E dizem ler clássicos da literatura...

Alfonso (diante da pausa reticente de Stevam): Sei, o sentimento se perde. Lamento para uns, divertimento para outros. Isso mesmo lendo as letras entre as músicas?

Stevam: Pois o problema não são as músicas, ou as bandas, e sim, você sabe, o público. Revolta vazia, estética vazia.

Alfonso: E Oto pensa diferente?

Stevam: Não, nisso até concordamos. O problema é conviver com o cara. Não desprezo, entende? Mas conviver é...

Alfonso: Todo mundo cansado? Depois que a garota...

Stevam (interrompendo): Vá ao ponto.

Alfonso: Que tal uma ressurreição? Divulgação por minha conta. Casa bem centrada. Boa segurança. Penso aqui no Matriz... Para os fãs, percebe?

Stevam: Não sei. Lembro do último show. O TH estava lá, em sua pose de aristocrata e tal. Mas o lance foi que quebraram o banheiro. É, quebram. Tudo! Pia e vaso. A grana nem deu para pagar os estragos. (pausa) sabe como é. Querem é descarregar a raiva, o estresse mesmo. ( e olhe que o nosso som é melancólico, não agressivo!) E quebram mesmo. Já paguei muito copo quebrado, garrafa de vinho caro, banheiro detonado! Isso nessas quadras esportivas e tal, imagine então numa casa de shows!

Alfonso: A gente faz um contrato. Um simples inciso muda tudo. Ou aumenta a segurança.

Stevam: Outra coisa. Isso de divulgação. Sabe que tocamos para um grupo muito seleto, é tudo fã, não queremos quantidade...

Alfonso: Sem divulgação?

Stevam: Atrair apenas quem possui o sentimento, entende? Senão fica vulgar, fica banalizado. Isso aí: Banalização. Se fizer sucesso a gente até muda de nome.

Alfonso: pense no contrato. Basta reanimar o cadáver. Muita gente viveu esta banda. A garota mesmo. Ficou tão abalada que... não falemos disso. Entende? Sentimentos em jogo. Na é para tapar o vazio?

Stevam: Tudo isso é muita pretensão. Caímos por sermos muito pretensiosos, o querer ser melhor, muito chio de frescuras. Veja essas bandinhas de três acordes. Elas é que aparecem, rolando uma grana.

Alfonso (percebendo que Stevam perdera o tom rancoroso): Então? Quando assinaremos o papel?





    E aquela noite em que o TH desapareceu? Todo mundo bêbado noite dentro. Como começou? No bar, o do Santa Efigênia. Stevam andando numa noite chuvosa, sem qualquer perspectiva, e tropeça, nas penumbras, em dois vultos. Ninguém menos que Erik, ao lado do novo baixista (via-se logo o instrumento). Ambos retornam de um ensaio pros lado do Alterosa. Resolveram parar no barzinho. Não demorou e o TH apareceu. O mesmo olhar opressivo – fleumático demais. “Saberá algo? Algo de que nem desconfio? Talvez até deve rir da minha ignorância... sim, deve saber muito, mas, claro, trata-se de um dissimulado, um ator na sutileza da encenação.”

    TH recusa comida, aquele caldo, por exemplo, e despreza a bebida. Limita-se a olhar atento. Mãos delicadas, com dedos nodosos, unhas longas, repousam sobre os joelhos. Vagas palavras sobre projetos musicais. Fracassados. “Veja bem, ó Stevam, a nossa banda era pretensiosa demais! Veja bem: dois guitar! Dois vocais masculinos! Além de tecladista e vocal feminino... Letras em inglês e latim – além do português. Recitações. Muita pretensão. Tudo muito custoso.” E Erik não poupava a análise fria dos audaciosos navegantes: “Fazer música é preciso. Viver não é preciso.”

    Depois foi Oto quem se materializou. Arrastava a pobre da Carol, a que vivia deprê, desde a morte da Sônia. Tempos depois, Carol finalmente provava sua sanidade ao abandonar o Oto, mas apenas para cometer a insanidade de ir morar com o Aléxis... Naquela noite, Oto chegou um tanto hostil, marcando a ferro em brasa o infeliz do Eirk. Todo um humor de ditador! Carol não menos, ainda mais com o TH – ela desvia o olhar. Que Carol não suportava o TH, todos sabem. Mas poucos sabem que ela culpava TH pela morte da ‘quase’ amiga, “Ele vivia atormentando ela...” Mas o caso é que Oto chegou com um humor de viking e esbravejou contra o Erik, o irônico – o Erik, cujo passatempo era folhear volumes de Medicina Legal, rindo-se das deformidades e aberrações, deliciando-se com corpos em vivissecções... – Mas e o porquê da discussão? É que o Erik tivera a audácia – para não dizer imprudência – de fazer o ditador nórdico esperar, sob a chuva fina, durante uma hora, lá no centro comercial, próximo do estúdio onde marcaram o ensaio – local tal, hora tal – e assim por diante. Mas é que Erik confundiu tudo – sabe-se lá se com algum propósito escuso...

    Daí aquelas asperidades. Nisso, o TH ergue a palma magistral de diplomata – no afã de apaziguar os ânimos. De repente, e o próprio Oto quem confundiu as coisas – e não assume o erro, jogando a culpa sobre o Erik, que tivera a infeliz idéia de convidar o inamistoso amigo.

    Em vão. Oto detesta ser advertido, aconselhado, coisas desse naipe. Olha direto para o TH com chamas violáceas. “Defensor público, agora? Acha que não assumo quando erro?”, e o olhar de Carol brilha afirmativo! Já Stevam manifesta-se contra o despejo de estresse cotidiano. Toda a fúria contra os insucessos, contra a prostituição artística, contra as gravadoras mercenárias, contra a mídia comprada. Abaixo os modismos da indústria fonográfica! Alguém ali vivia de música? Claro que não.


    Mas o Oto não deixa de proclamar seu anseio de ganhar dinheiro, que não vai sofrer sob as botas do sistema, as vai é lucrar com os “cânceres do Leviatã”, vivendo bem nas entranhas do monstro”, e não à margem. SE o mundo todo é injusto, ele, Oto, é pior! Nada de “autenticidade artística”, for com “complexos de consciência”! Alguém – algum insano! – insinua que Oto pouco entende de música. O insulto final! Mas Oto humilha o interlocutor com o mero olhar, “O que não me impede de montar minha própria gravadora.”

    E Oto se afasta, sempre arrastando a pobre da Carol. Os demais trocam olhares, suspiros de alívio. “O cara ‘tá um vulcão!”, comenta o baixista novato na roda. “E você ainda não viu nada”, sussurra o Erik. Decidem cair na noite e agarram as bebidas. Compram mais vinho – a marca econômica. Numa assembléia, querem saber: para onde? Para onde devem levar suas pobres existências? Ou “existências vãs” como diria um Hélio Lúcio – num claro anacronismo. Opções recaem sobre a coleção de CDs (célebre!) do novo baixista. Até convidam o TH – que excepcionalmente aceita! Rumam logo para a baixada do Santa Tereza. E até TH segue virando um gole de vinho barato.

    Uma presença de locomotiva estremece a noite, a escura, úmida e tropical. Todos comentam novidades de bandas, lançamentos de álbuns, letras blasfemas, detalhes dos músicos, qual o último a profanar um cemitério ou a incendiar uma igreja, ou os instrumentos que desejam comprar. Stevam, por exemplo, pensa num teclado novo, mais avançado. Outros lembram vultos de garotas desejadas – as garotas sempre falta... “Esse bando de lobos solitários e nenhuma ovelhinha pra devorar!”, o desabafo de um.

    Tudo para desabarem no quarto do baixista. Reunidos, congregados, ao redor do aparelho de som. Compartilham os goles de vinho e conhaque. Uma náusea coletiva. Mergulham em devaneios químicos e imagens fantásticas. Corpos desfalecidos, tremores em posições fetais, encolhidos. Outros se sufocam no próprio vômito.

    Certo lampejo e Stevam acorda. Ali está o TH à um canto. Cabisbaixo. Antes, quando chegou, deixou-se a folhear um volume – ricamente ilustrado – sobre a história da magia. As poções, os venenos, os feitiços, os filtros, as mandingas, o voodoo, as simpatias, as ervas do diabo, as curas milagrosas, os pactos de encruzilhadas, o demônio no meio do redemoinho... E depois, ébrio, cambaleou até a rodinha de agito, ali diante das caixas de som. Livrou-se do sobretudo, e da blusa funérea de malha negra. Alvo e pálido à luz. Um cadáver a agitar-se na penumbra. E Erik a erguer um enorme crucifixo, aquele surrupiado no Bonfim. E a névoa de haxixe tudo envolvendo, tudo encobrindo. Agora, um TH vulto cabisbaixo, mas ainda atento, engana-se quem o julga adormecido! Tem um olhar vigilante aquele vulto cabisbaixo. Olha para si mesmo!

    E o sono pesou. O verdadeiro Morpheus com sua manta sobre os corpos entorpecidos.

    E quando amanhece, as cabeças se equilibram, pesadas se erguem. Notam uma ausência. Onde o vulto cabisbaixo? TH não estava mais... Sumira. Evaporou.




  Europa, 11 de maio de 2002


    Meu caro amigo Hector, esta carta que por hora escrevo, é na verdade a reunião de várias, que me deixei esboçar.

    Que cena você escreveu! Essa da leitura da poesia do Drummond na praça, tendo como cenário a crua realidade de uma grande cidade. Eu já havia dito, Há pouca Poesia além dos olhos do Poeta.

    Mas devo admitir que minha situação por aqui não é muito diferente da sua, se for analisada friamente, pois dependo da Bolsa de Estudos, pois o custo de ida aqui é alo e só com o dinheiro do meu trabalho não daria para me manter. Seja como for, sei que se voltar agora para o Brasil, nada mudará na minha situação financeira.

    Nunca mais escrevi um verso! Nem sei quando voltarei a escrever. Isso tem me deixado muito estressado, aliás muitas coisas m estressam por aqui, às vezes dá uma vontade de falar Português, essa língua que adoro! Um dia gritei pela janela: “Minha Língua é minha Pátria! Chega de Chega de Saudade!” Depois ri de meu gesto desesperado, pois quem poderia me entender? Certamente apenas se ouviu alguém gritar palavras desconhecidas, ainda que alguém tenha ficado curioso ou confuso.

    Gostaria de criar Poemas numa linguagem contemporânea, não literária,mas sim publicitária. Na verdade, um grande pastiche que procurasse, com as regras, digamos, clichês de publicidade, fazer Poesia. Uma poesia produto de consumo, feita para ser vendida, lida, sentida e descartada como uma lata de refrigerante ou um jornal ou uma embalagem qualquer. Talvez você estranhe isso, não sei, mas pretendo representar a curiosa situação da Arte na cultura e na sociedade capitalista; pois se observarmos friamente as manifestações artísticas são também produtos de consumo, claro que possuem características distintas de uma lata de refri, mas basta olhar na prateleiras das livrarias, por aqui imensa lojas, onde se pode perceber quão imenso é o Mercado Editorial e os leilões que arrematam milhões por obras “consagradas”.

    Quanto à menção da TV, aqui estou protegido pela TV a cabo, incluída no aluguel, mas nem vou comentar a programação! E rádio é o mesmo, música pop em inglês, raras são as rádios que tocam outras músicas, por isso minha melhor companhia é o meu discman! Aliás, esse apartamento em que vivo, indicado por um colega virtual, é digno de ser descrito. Para começar, nada aqui é meu. Todos os móveis, eletrodomésticos, a decoração, tudo está incluído no aluguel e não posso mudar. Durmo numa cama de bambu, feita em Gana, aliás, toda a decoração é africana, com cortinas, móveis e esculturas, muitas, vindas da África; também há alguns quadros do Caribe, da Tailândia, e no teto da sala duas bandeiras, uma da África do Sul e outra, do gigante “deitado em berço esplêndido”, daí acordo todos os dias e ao abrir os olhos entrevejo as três palavrinhas: “Ordem e Progresso”. Parece provocação!

    Tenho discutido com os exilados do Borges da Costa, pois boa parte dos ex-moradores estão espalhados pela Europa. Tive uma grande surpresa quando recebi vários e-mails de boas-vindas ao exílio voluntário (?) de ex-colegas do Borges, e a partir daí iniciamos vários debates sobre Brasilidade, Nação, Nacionalidade, etc. tenho sustentado sempre que não sei o que é Brasil, nem o que é brasilidade. Seria isso gostar de samba, caipirinha, capoeira, futebol e carnaval? O que tem em comum um nordestino e um paulista? Um amazonense e um mineiro? Certamente a língua! O conceito Não é novo e sabemos que deve ser sempre alimentado, senão se desfaz diante das diferenças regionais. O típico brasileiro, o típico europeu,não passam de um estereótipo! O que é Nação? Antes, pergunto se não seria o Mito-Nação. Pura abstração instrumentalizada pelos donos do poder, através do Estado, pois o Mito-Nação garante a sobrevivência da instituição Estado.

    E assim caminha a Humanidade!

    Até mais.

                    Darío Sabine





(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


   23 setembro 2001


    Impressionante como dois anos passam depressa. E mais impressionante ainda o feito do Oto: nada menos que incentivar uma ressurreição da banda.

    Tenebrae. Trevas. Nome sugerido por TH. Sem saber se há ou havia banda com esse logo. Oto queria um nome em inglês. Eu e Erik também. Mas uma carga fúnebre que o latim carrega não seria facilmente desprezada.

    Ontem fui ao bar do Santa Efigênia. Melodias sombrias de bandas atuais que ouvem muito barroco alemão, Johann Sebastian Bach. E lá estavam Oto e Victor, rodeados de garotas sombrias e pálidas. Foi difícil raptar a atenção de ambos, mas o assunto foi abordado, enquanto um outro foi cuidadosamente evitado.

    Elias discutia novos RPGs com um vampiro-juvenil na mas ao lado. Conflito milenar entre vamps e werewolves? Lendas urbanas e mitos cinematográficos? Você já leu Mary Shelley?

    Impressionante foi a aparição de TH, justo quando Elias abordava sua conhecida tese a discutir se vampiros são cadáveres horrendos ou espectros de beleza funérea. Você já leu Bram Stoker?

    Pediu vinho e sentou-se entre nós. Ouvia silencioso as melodias estridentes de vocais chorosos e protestos guturais, e guitarras assassinas e violinos lutuosos.

    TH limitava-se a acompanhar as conversas, degustando o vinho aos acordes do violino. Na mesa ao lado, não aquela onde estava Elias, um noturno mais velho e experiente exorcizava as bandas modernas e seus modismos, lembrando saudoso os shows devastadores no bar do DCE, por exemplo. As bandas sombrias e autênticas de antigamente.

    - Tudo antigamente era melhor.

    Olhávamos o TH e não sabíamos se ele ironizava. Mas estava com um ar abatido. Disse ao poeta que poderia dormir lá em casa, caso quisesse ir ao ensaio, vista a proximidade do estúdio. Não precisei insistir, ele aceitou.

     Passei a noite fumando e relendo trechos de “Drácula” de Bram Stoker, onde o Conde, logo que ouvia o cantar do galo, pedia licença a Jonathan Haker para recolher-se aos seus aposentos. TH comparava trechos do livro de Stoker com o filme do Coppola.

    Aconteceu que hoje acordamos meio-dia, e graças ao telefonema do Oto, confirmamos o ensaio. Dia sombrio, meio chuvoso. Adequado. E ainda chegamos antes do Oto, na casa do Renan, o novo guitarra-solo a substituir Erik, ocupado com outra banda bem mais pesada. Não levei o teclado, apenas queria assistir. Sentir o clima. TH folheava uns jornais com mais notícias sobre os atentados às torres de Nova York.

    Em seguida, descemos à estação do metrô, para buscarmos o novo baterista, Élcio, que esperávamos menos temperamental que o Victor. Não encontramos ainda qualquer baixista animado. Na estaco, meio a multidão, eis o Élcio, também trajando luto. Todos prontos para o funeral. Élcio achou sensacional o ‘porta-aviões’ do Renan, assim referindo-se ao carro modelo dos anos 70, onde se amontoa músicos, instrumentos e ainda sobra espaço para os roadies!

    TH, em silêncio, folheia os jornais (que Renan usa para limpar o pára-brisas), mesmo quando o motorista refere-se a fatos políticos, guerras iminentes, ou manifesta dúvida quanto a certo termo em inglês.

    No estúdio, assim que cheguei, notei um livro sobre a mesinha da recepção, “O Nascimento da Tragédia”, de Nietzsche, mas uma edição em espanhol. Quando olhei novamente, TH já estava folheando o livro. Pensava comigo que seríamos ali o espírito apolíneo diante da arte dionisíaca.

    Enquanto lia, TH lançava olhares aos músicos, incentivando uma melodia ou outra. Eu fiquei namorando as guitarras. Uma delas afinada por Oto que agora arriscava o vocal, tirando a ferrugem. Diante de seu olhar interrogativo, revelei que não estava disposto a cantar. Todos esperavam, eu era a segunda voz. Mas sentia-me platéia, não artista. Oto tentava ressaltar o vocal, mas a bateria seguia pesadíssima!

    Ao crepúsculo, brindamos no bar do Coreto. Exceto TH que reclamava de sua famosa úlcera, que permitia apenas uma taça de vinho noturna e após farto jantar. E, enquanto Oto e Renan ocupavam a mesa do bilhar, escolhendo tacos e triangulando as bolinhas, TH despejava literatura sobre o baterista Élcio, comentando o conto “Mask of Red Death”, do Poe, onde a Morte Escarlate atravessa os aposentos festivos de variadas cores e nuances até exterminar os frívolos e cínicos cortesãos no banquete do Príncipe. Élcio estava visivelmente arrepiado de prazer macabro. Assim estão irmanados no culto aos clássicos do terror. Prefiro ficar calado.

    Andando pelo bairro, seguindo silhuetas femininas, paramos num trailler, e decidimos (não por unanimidade) um bom espaguete (quem não quis, comeu hamburguer) e Renan nos abandona (TH concedeu muita atenção). Élcio comentou superficialmente o fatídico 11 de setembro e as redes do terrorismo, e TH manifestou seu pesar.

    Oto não comentou, mas percebia que olhava o relógio. Alegou um compromisso, um encontro (com ares maliciosos) e seguiu sob a chuva.

    Ao TH sugeri temas para letras das canções ensaiadas, com paisagens outonais, cirandas de crianças perdidas, coros místicos, e percebi que ele anotava mentalmente as paisagens oníricas, com o olhar fico, pensamento longínquo.

    Depois seguimos rumo a praça e eu me despedi, pois descria a avenida. Lembrei que havíamos ouvido muitas promessas, e ele disse que não acreditava em nenhuma.




continua...


LdeM