segunda-feira, 24 de outubro de 2011

continuando o Capítulo 5 ...

[...]


    Lentamente, sob as goteiras do terminal turístico, Stevam Lucena alcança os portais ainda fechados do matriz, onde restam marcas de eventos passados, e cartazes povoam as paredes com tantas promessas de melodias, estilos e prazeres. Acompanhado por poemas ácidos e odes exaltadas, além de uma espera palpitante no peito, Stevam aguarda com expectativa a abertura dos portais.

    A distribuir saudações entre os convivas, Marco Aurélio, o 'Conde', encaminha-se de um grupo a outro, enquanto o 'Penseroso' chega preparado, com trajes fúnebres, trazendo desassossego e lirismo. À luz de velas, outros poetas se apresentam. Um militante da poesia, Roosevelt Augusto, expõe seus trabalhos, um livro e cartuchos artesanais com minúsculos canudos de poemas. E Stevam comenta com Túlio, o 'Penseroso', a ausência do 'Arcanjo', o poeta Miguel, mas Túlio não esclarece o enigma.

    Outros vultos adentram as masmorras, inclusive o barqueiro Caronte, "condutor dos mortos", a fantasia de Márcio, o 'Barão', e seu amigo, o 'Mephisto', apresentando um sombrio contrato, e também 'Mutante', o mil-caras, de pirata dos setes mares. Mas nenhum causa mais surpresa que a ausência do 'Arcanjo', mas o sarau precisa ter início.

    Com nobreza e presença, o 'Conde' dá início a sessão poética, e Stevam Lucena não hesita em ler uma ode de Ronald de Carvalho, "onde estão os teus poetas, América?", e em seguida, o 'Penseroso' apresenta versos de sua autoria, e também o visitante Roosevelt Augusto, e Stevam declama uma tradução de The Sisters of Mercy, lembrando a "dança sobre os cacos de vidro", e agora é o 'Barão' que surge das trevas, o vulto de Caronte, com uma letra grega marcada na fronte, para recitar "Je rame", de Henri Michaux, "estou remando, estou remando contra a tua vida", e Stevam não pode deixar de lembrar de canção do Sopor Aeternus, com a "dança da crueldade", depois da qual 'Penseroso' exibe mais lirismo atormentado, lembrando a inutilidade da cavalaria contra os blindados, e que "todos os gritos são a expressão do mesmo grito", mas é o 'Barão' que retorna, com versos de Rafael Santos, o 'Vampiro', recém-chegado, recém-defunto, com um obsceno tiro de .38 na fronte, mas vivo o suficiente para divulgar sua obra "Noite dos Vampiros", da qual já acompanhamos a noite de lançamento.



    Solicitando a palavra, e a atenção, dos convivas, Alan, o 'Espectro', lembra o sucesso do Leis da Noite e todo o esforço de produção do evento, agora referência entre os sombrios. E não pode deixar passar a oportunidade de expor em público os seus agradecimentos e anunciar o recente aniversário do 'Conde', que está de volta com seu lirismo sarcástico, mas deixa Stevam Lucena declamar o louco de Nietzsche, que acende uma lanterna em pleno dia, à procura de Deus, ainda que ele, Stevam, esteja à procura de Bianca Maria, que ainda não chegou, e possivelmente não participará do sarau, o que de fato ocorre, mas ele, resignado, ainda se entrega a acidez lírica de Augusto dos Anjos, "Há mais filosofia neste escarro, do que em toda a amoral do cristianismo!"

    Mas é 'Penseroso' quem encerra o sarau, com o poema dedicado ao salão da rainha, o tabuleiro de xadrez, que, estranhamente, ou não, traz à Stevam Lucena a lembrança de cenas do blockbuster "Harry Porter". Contudo, fantasias à parte, e muitas inusitadas, aqui piratas, espectros e bruxas se confraternizam, e, neste helloween, um vampiro é visto abraçando um lobisomem, enquanto Stevam está junto ao bar, em conversa muito literária com Davi, pois este é o nome real do 'Mutante', e esboçam enredos sobre vampiros em alto-mar, enquanto o vampiro-mor Rafael Santos afia os caninos no alvo pescoço de uma dama escarlate, e Márcio, o 'Barão', tece explicações sobre a letra grega, a marca sombria em sua fronte.

    E, enquanto em discussão com Túlio, o 'Penseroso', sobre as hierarquias do Umbral e do Empíreo, além do marketing dos romances espíritas, psicografias e outras viagens astrais, Stevam Lucena percebe a chegada do poeta Miguel, o 'Arcanjo', um tanto melancólico, com visível pesar, a lamentar a pouca produção poética e a criar certa expectativa quanto a performance da meia-noite.

    Mas, enquanto a masmorra vai sendo ocupada por mais condenados, Stevam Lucena, sozinho numa mesa de bar, apertando entre os dedos a garrafa de água mineral, ou o cartucho com poemas, o qual pretende presentear a Bianca Maria, vez ou outra levantando o olhar, num passeio meio a tantas faces, a sondar em outras presenças um alívio para uma atormentadora ausência.

    Contudo, momentos depois, de findo o sarau, em plena discotecagem, chega a esperada Bianca Maria, com trajes marroquinos em véus negros e com uma rosa em mãos. Ela oferta algumas saudações a alguns conhecidos, e senta-se diante de Stevam Lucena, que não pode mais se agüentar de apreensão, querendo saber qual é a decisão dela, visto que aquela noite pode ser o início, mas pode também ser o fim. E ela em sedução com aquele look das Arábias, ao estilo "Mil e Uma Noites", e ela parece mesmo uma semita, uma filha de emir ou sultão, advinda do crescente, com os olhos pintados, a lembrar aquelas estatuetas egípcias, e Stevam permite se lembrar de mulheres muçulmanas que tecem longos lamentos, e imagens de guerras, a invasão da Palestina, a conquista do Iraque, mas todas as dores são afastadas quando Bianca oferta um sorriso.

    Sentindo a fragrância da rosa oferecida, Stevam Lucena ouve pacientemente quando ela diz, "Até pensei em terminar, parar tudo por aqui mesmo. Mas depois de ver o seu sorriso... Você me ama, não é?", e ele sorri, "Mas que pergunta! Você sabe que sim, e o quanto eu te amo", e Bianca Maria abaixa o olhar, cheia de pudores, envolta em véus, deixando à mostra os olhos com mil sombras e enigmas. A imagem da mulher que se diz seduzida, mas que, em verdade, seduz.



Data: 30 oct 2005 - 18:21
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: decisão
Para: Valkyria [amanda.dark@X.com], bianca maria [abeatadanoite@XX.com.br]


minhas saudações!

não tenho palavras para expressar a minha admiração por ambas. E
não consigo comunicar o quanto estou confuso.
mas preciso ser sincero comigo mesmo.

quando a Amanda surgiu na minha vida, eu vivia, a muito tempo, sem
ligação afetiva com mulheres, e sem alguém que realmente me
dedicasse alguma atenção.

Amanda, surgiste elogiando meus poemas, oferecendo atenção - ou
seja, tudo o que eu mais queria - e começamos uma troca de
afetividade (e cumplicidade), ainda que doentia.

eu tenho problemas, a Amanda também, e a Bianca, idem. A
Bianca chamou minha atenção, com seus versos implorando
por amor, mas limitei-me a convidá-la (assim fiz com muitos
outro(a)s para o sarau do Leis da Noite.

mas, tempos depois, Bianca, tu elogiaste meus versos, e eu não
poderia mais ignorá-la. E era justamente em um momento em que
passavas por dificuldades. Precisavas também de atenção, muita
atenção.

porém, a diferença é que Bianca está próxima (ainda que moremos
a 30 km distantes) e a Amanda, distante.

no entanto, nada de comparações - quem sofre mais, quem briga
mais com a família, quem é mais desamparada, etc - não pretendia
fazer escolhas.

mas a escolha precisa ser feita. Esse jogo duplo precisa ter um
fim.

Se escolho A, ou B, estou comparando-as afinal, e ambas são
únicas e insubstituíveis, mas não posso, por outro lado,
dividir-me: dar, àquela distante, a alma, e, àquela próxima,
o corpo.

acrescente-se que escolhendo uma, faço a outra sofrer, e se
abro mão de ambas (para evitar a escolha) o sofrimento será triplo.
assim, não sei como sair dessa.

o enredo fugiu ao meu controle.

eu sempre ironizei esses 'affairs' à distância - um poeta amigo meu
deixou tudo em BH e foi morar dois meses no Nordeste, para
concretizar uma paixão à distância, mas pessoalmente o lance é
outro...

a Amanda acostumada á afeições distantes, a Bianca que acredita que
é preciso ser tête-à-tête, olho no olho, e eu totalmente sem rumo,
somente desejando atenção - e compreensão.

é certo que preciso escolher, mas não julgarei mérito, mas
praticidade. Não posso interferir na vida de alguém em outra
cidade, outro Estado, sem possibilidade de encontrá-la, de
protegê-la, de ser companheiro e apoio. Ainda mais, quando
alguém está próximo e precisa do meu apoio.

não está em jogo comparações, e muito menos compaixão.

Amanda, não posso prometer mais nada, e Bianca, não pretendo
quebrar promessas. Amanda, ofereço minha amizade e atenção,
e, Bianca, ofereço a minha paixão.

afetuosamente,

Stevam




    Dia de Finados. Data lúgubre, mas não se pode perder a oportunidade de visitar a amada.

    Assim se sentia Stevam Lucena, tal um fiel enamorado que se dirige a casa da dona de seu coração, pois assim se decidiram!, lembrando todos os momentos e carícias meio a penumbra da festa deprê-dançante, e todas as esperanças de ter, enfim, encontrado alguém.

    "Bianca, você quer namorar comigo?", e estalou um beijo, "Lembro que trata-se de um fardo um tanto pesado.", outro beijo, "Então fale agora, ou cale-se para sempre!", e ela, sorrindo, dissera, "Sim, Stevam, eu quero."

    E agora, com o mesmo sorriso, ela abria o portão azul encravado no muro branco, "Oi, meu bem! Entre, querido!", e ele entra todo realizado. E Dona Efigênia está assistindo a novela global, e no intervalo ela aparece para uma cordial troca de saudações.

    Uma névoa rubra se derrama no quarto de Bianca Maria, onde a banda Madredeus embala os sonhos líricos, e ela estava ao computador, o mesmo de onde envia as doces mensagens de amor e devoção, e agora o devoto é ele, a inclinar-se e beijar seus pés, "Ai, querido, o que é isso?", ela está arrepiada, e ele, em sussurro, "Estou beijando seus pés de bailarina", e ela gemia, consentindo, como ele agora dizia, "pés de bailarina, pernas de bailarina, corpo de bailarina", num elogio, ainda que a ferisse lá no íntimo, nela, nunca uma real bailarina.

                                                 "Haja o que houver
                                                 Eu estou aqui

                                                 Haja o que houver
                                                 Espero em ti"


    E a voz harmônica de Teresa Salgueiro continua a flutuar, e Stevam Lucena viaja na presença da amada, enquanto Bianca Maria troca 'messengers' com os amigos, dispersos por toda a Grande BH, "Quer enviar alguma mensagem também", ela pergunta, e ele agradece, em recusa, assim a máquina, o portal para o mundo, é logo desligada.

    "Ah, você demorou, querido. Fiquei entediada, por isso entrei na net", ela se desculpa, a levantar-se, a transmitir frêmitos por todo o vestido, cheios de estampas de flores e pétalas, e ela ainda diz, "Vou trocar o CD. Que tal algo mais animado?", e ela encontra uma coletânea dos The Smiths, que parece ser, segundo o gosto dela, um tanto 'animado', e uma canção invade o quarto.

                                   "the boy with the thorns in his side,
                                   behind the hatred there lies a murderous desire
                                   for love..."

e enquanto o Morrissey canta sobre o destino do "garoto com um espinho na carne", Stevam deixa-se lembrar das noites em que fugia das aulas para abrigar-se no quarto andar, na salinha de vidro, onde, às quartas, havia o programa "Brumas de Outono" na rádio Santê, que era comunitária de verdade, e tocavam muito som dos anos 80, Smiths, principalmente, e entrevistavam um músico, e ele dizia que nos melhores momentos da sua vida rolava a trilha sonora dos Smiths, e Stevam não entendera, pois para ele Smiths só significa letras cheias de melancolias e frustrações, e o músico a lembrar os 'melhores dias de minha vida' e só depois, algum tempo depois, é que Stevam entenderia.

                                   "how can they see the love in our eyes and
                                    still they don't believe us?"

    E Bianca já o convida para reclinar-se ao seu lado na cama, e trata-se de um convite irrecusável, e lábios logo deslizam sobre os seus, e línguas trabalham com ardor, e suspiros são mútuas testemunhas, e um dia ainda Stevam vai entender que os melhores momentos de sua vida se desenrolaram sob as melodias melancólicas dos Smiths.

    Ao seu lado, Bianca Maria está particularmente mais amorosa esta noite, não poupando carinhos, fonte de aromas e arrepios, e sussurros, "Você me ama de verdade?", "Sim, eu te amo, e você ainda duvida!", "É que já me magoaram muito, sabe, aquele que eu amo sempre me magoam", e os beijos pretendem fazer calar as dúvidas.

                                             "Well, I'm afraid
                                             It doesn't make me smile
                                             I wish I could laugh
                                             But that joke isn't funny anymore"

    A voz de Morrissey sobe e ocupa o quarto, em outra faixa, a lembrar que "esta piada já não é engraçada", e a pensar bem os traumas de relacionamentos do cantor inglês não é a trilha ideal para este casal que ainda se experimenta. Mas há toda uma doce melancolia naquela voz que seduz e relaxa, e Bianca está ardente do que nunca antes, com suas mãos delicadas percorrendo os pêlos do peito dele, acariciando o umbigo, descendo até a borda da calça jeans, hesitando. "Aquela noite, você ficou constrangida, mas você nada impede." e ele guiou a mão dela até dentro da calça e ela agarrou seu desejo pulsante com cuidado e ternura, e massageou, e apertou e sentiu todo o volume de um prometido prazer. mas ainda não seria aquela noite.


                                       "I've seen this happen in other people's lives
                                         and now it's happening in mine..."

ela se estendeu na cama e ele apossou-se dos seios arfantes, pinçando cada bico e comprimindo com certa ânsia, e à contra-luz, na névoa escarlate, viu o par de belezas se destacar, pequenas e redondas. Então seus lábios trabalham ali, sôfregos, aspirando e sugando. E gemidos e murmúrios e desculpas e pedidos e exigências encobrem, por vezes, a trilha sonora. E ela em medo, passa a hesitar, a recear deixar-se levar para longe, ou antes, para perto do prazer, "deixe eu mudar o CD", é uma desculpa e uma fuga.

    Stevam Lucena se recompõe enquanto Bianca Maria seleciona um outro álbum em sua discoteca, e não surpreende escolhendo uma coletânea do Cure, e logo deixa-se abraçar no centro do quarto, ele a dizer, "eu preciso ir embora, Bianca. Você me deixaria ir embora?", e ela suspirando, "oh não, não vá embora, ainda não! Você é cruel, você chegou tarde! Por que não chegou mais cedo?", e se abraçam e ela quase desfalece, e ele a segura na cintura, e as mãos dele escorregam saia adentro, nas curvas e na pele lisa, deslizam e encontram as colinas e a umidade dos recantos íntimos e um calor arde na ponta dos dedos que adentram e, girando, são prontamente seguros num aperto.

    "Esperei horas por isso, fiquei até doente, gostaria de ter ficado dormindo hoje", ele traduz ao ouvido dela, enquanto a canção "Close to me" circula pelo quarto e sobe na cama, onde se aninha ao lado da gata que se insinua silenciosa , e Bianca está de joelhos diante dele, "não me deixe ainda", e ele se ajoelha também, e estão ambos ajoelhados, um diante do outro, e ele ainda brinca dentro dela, com dedos ágeis, e é recompensado com suspiros e mordidas na orelha, "achei que este dia jamais terminaria, tão perto de mim", ele sussurra, o que Robert Smith canta, e é melancólico, mas é também sedutor.

    Oh, poderia tanto ser esta noite! Mas ainda não. A mãe está no quarto ao fim do corredor e já passam das vinte e três horas, e esta visita está se estendendo demais, e Dona Efigênia, mãe e pai, daqui a pouco estará exigindo prestações de contas, "o que significa isso?", e ele se levanta e ela vai junto, mas se joga na cama, e ele não pode negar outro beijo, e ela o enlaça, mãos firmes atrás da nuca, porque quando a mulher quer, ela consegue, e ele cai na cama, a amassar toda a roupa que alisara a pouco, e ela nunca antes estivera tão ardente, nem nas penumbras da boate, nem em seus sonhos mais lascivos, mas é preciso ir, existe uma coisa chamada "conveniência", o que outros chamam de "moral e bons costumes".

    "Tento enxergar na escuridão", ele diz, é um trecho da canção, e desliza pelo corredor rumo a porta, é preciso ir embora, mas daria todos os seus castelos no ar para ali se abrigar.




    Ao chegar ao parque ecológico, em outra tarde de sábado, HD encontra Alfonso Lucena em preparativos na 'sala dos literatos'.

    - Você sempre chega cedo, hein, meu caro!

    Alfonso aceita a saudação do recém-chegado e exibe, orgulhoso, o cartaz, inspirado em estéticas soviéticas, para marcar aqueles encontros entre velhos amigos. E a asperidade sonora de um Rage Against the Machine é o que HD escolhe entre os CDs disponíveis e começa, de imediato, a esboçar um conto raivoso, sobre infidelidades e traições.


    É quando materializa-se o terceiro ente da trindade, o poeta, contista, performancer, o multimídia Leir Macedo, sugerindo que saiam um pouco da toca e "desçamos para onde o povo está", e o povo está na arena do parque.

    O estudante Soares também aparece, com suas teses e volumes encadernados, transbordando versos. E HD deita-se na semi-lua do palco de cimento e enxerga lá em cima além das árvores o recorte do céu ainda azul, e restos de uma melodia (jazz? Björk?) chega e se dissolve, e ele quer compartilhar alguns versos de Bertolt Brecht, mas antes, ao som de Rage Against, como já deixara Alfonso sob aviso, um poema que escrevera para a falência do sistema carcerário,

                               "esses trancafiados no subsolo, esses degredados
                                da vida social,

                                esses humilhados e ofendidos, esses excluídos
                                do banquete social,

                                esses varridos para debaixo do tapete, essas faces
                                humanas amontoadas entre grades

                                esses restos de refugos das tramóias sociais
                                insistem em assombrar os donos do poder,"

e declama, antes grita, os versos, enquanto "They came around the family, and the pockets full with shell", esbraveja Andy La Roche, "Bulls on parade! Bulls on parade!", e todos devem se lembrar dos escombros do Carandiru, o que nada devia a um campo de concentração!

    Então, contra o nazismo nosso de cada dia, ergue-se a voz de um Brecht, "Gegen Verfuhrung", "Contra a Sedução",

                                                "Lasst Euch nicht verführen!
                                                 Não se deixem seduzir!"

    E o Soares e Alfonso se entreolham, "será que o HD não está um pouco exaltado?", mas exaltado é pouco, pois HD está é muito indignado!

                                              "Lasst Euch nicht verführen
                                               Zu Fron und Ausgezehr."

                                               Não se deixem seduzir
                                               Para o jugo e opressão.

    Mas a tarde de fúria ainda não terminou, pois HD tem fôlego para o longo e compungido "Operário em construção", de Vinícius de Moraes,

                                                 "Tudo, tudo o que existia
                                                 Era ele quem o fazia
                                                 Ele, humilde operário
                                                 Um operário que sabia
                                                 Exercer a profissão."

e o tom da voz se eleva a medida que o operário toma consciência de sua ação no mundo das coisas as quais ele cria e depois acabam por condicioná-lo, e a voz se estremece quando o operário enfrenta os delatores e sofre nas mãos dos agressores e não se acalma quando o operário está diante do patrão a prometer-lhe mundos e fundos, "Dar-te-ei todo esse poder", e o operário diz "Não!"

                                                "-Loucura - gritou o patrão
                                                 Não vês o que te dou eu?
                                               Mentira! - disse o operário
                                               Não podes dar-me o que é meu."

    E o poema finda numa apoteose de auto-consciência e de superação, quando o operário constrói a si mesmo! E depois HD está mais calmo, já tendo deixado vazar toda a sua fúria! Vez ou outra é preciso descarregar protestos líricos, senão pode-se não poupar orelhões e pára-brisas!

    E, mais relaxado, HD reclina para ouvir a leitura de "A Bomba", de Carlos Drummond de Andrade, feita por Alfonso, ao som de Mozart.

    A figura se destaca nos degraus da arena, recortada contra o quadro crepuscular de um sol a agonizar e mantém um silêncio, entre solene e teatral, enquanto os violinos e os violoncelos se arrebatam, na sinfonia de Amadeus Mozart, e aAlfonso abre a antologia na página exata.

                              "A bomba
                              é uma flor de pânico apavorando os floricultores (...)"

e ainda um vento sem escrúpulos vai rodeando por entre as vestes das garotas que brincam no playground, e ainda dispersando folhas secas de degrau a degrau, ainda desfazendo os penteados das senhoras que acompanham as filhas, ainda vasculhando os papéis, aquelas folhas com símbolos gráficos, que repousam aos pés de HD que, encolhido, ouve o poema e a sinfonia num enlace só.

                                  "A bomba
                                  é miséria confederando milhões de misérias (...)"

e a voz pausada e ressonante de Alfonso segue os compassos dos acordes sinfônicos, num contraponto de palavras, numa cadência de queda, a queda da bomba.

                                "A bomba
                                amanhã promete ser melhorzinha mas esquece (...)"

e a admiração pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, o autor deste poema "A Bomba", publicado em "Lição das Coisas", é o que brilha no olhar e nos gestos de Alfonso, segurando a antologia com a mão direita, enquanto a esquerda gesticula com anéis de fumaça, ao amparar entre os dedos o cigarro aceso.

                                                    "A bomba / é podre."

e Leir Macedo tem olhares presos aos degraus e suas folhas secas, e o Soares olha mais para dentro de si mesmo, e HD observa o poente às costas de Alfonso, daquele ângulo, imponente e no papel de maestro, da sinfonia e do fim da tarde, e o escritor M. mantém-se em estática e extática meditação, talvez a contabilizar os prejuízos da bomba.

                                                    "A bomba / fede."

observa-se a movimentação tardia de alguma perplexa sombra, a imaginar, consigo mesma, do que se trata, quem são aqueles tipos ali nos degraus da arena do parque ecológico, e a afastar-se, carregando seu casulo de timidez.

    E aplausos estremecem o fim do dia.





Noite de sábado, 05 novembro - lua crescente


  Olá Bianca, minha querida,

   Muitos abraços!

    Ah, Bianca, devíamos agora estar juntos, mas a tua indisposição... bem, então estou aqui lendo e relendo as tuas cartas, sentindo o perfume que me deixa excitado, e admirando a imagem poética das "borboletas no estômago".

    Admirável a tua carta! Finalmente estamos conseguindo nos entender - ainda que tu compliques demais as coisas. Sabias que eu te amava desde os e-mails, amava a tua pessoa - não me importava se encontraria uma morena ou ruiva, alta ou baixa, feia ou bonita... mas amei a tua simpatia desde o início! Gostei, não do teu físico, mas da tua presença e companhia. Hoje gosto de tudo: da amiga, da poesia e da mulher.

    Mas repito que complicas muito as coisas - tendes a superdimensionar os fatos, as falas. Claro que, ontem, achei muito pedante, de tua parte, ficar exigindo a ida ao cinema, mesmo eu dizendo que estava sem grana, mas entendi a tua vontade - ainda que em duas ocasiões tenhas recusado convites meus (para o lançamento do livro do Rafael e para a peça teatral) mas não me senti ofendido ou magoado, tu é que se sentiste culpada, por pressão da própria consciência (que, tal nas personagens de Dostoiévski, é o teu próprio carrasco)

    Fora isso, Bianca, tens a mania de te autodepreciar, ou superestimar os outros em qualidades que desejas para ti mesma.

    Bianca, não sei porque não confiaste em mim desde o início. Eu abri o jogo logo de imediato, expus minhas cartas na mesa, abri minhas defesas, fiquei todo vulnerável.

    Mas eu te amo, e quero estar ao teu lado.


                                                                              Do teu Stevam






    Stevam Lucena chega um tanto atrasado, afinal podia usar a desculpa de morar fora da capital, e eis que Bianca Maria está à mesa diante de Michael Bishop, acompanhado por sua Carolina, loira e sorridente, mas Bianca está toda concentrada num artigo do Suplemento Literário, e se arrepia quando Stevam se aproxima e sussurra em seu ouvido, "Oi, querida."

    Realmente trata-se de um banquete, oferecido por Michael e outros amigos, onde pretendem debater a Fidelidade, tema por demais polêmico, e Michael adora justamente isso: a polêmica.

    Confortável, ao lado de sua amada Carolina, Michael desculpa o atraso de Stevam, pois existem outros em semelhante falta, pois visto que HD, por exemplo, ainda não chegou. "Mas iniciaremos assim mesmo", e Dalton, no outro extremo da mesa, concorda. Ao lado de Bianca, que já concluíra a leitura do artigo, e agora se reclina sobre a sua mão, para beijá-la, e não apenas deposita em sua pele um beijo molhado, mas também se inclina sobre o braço dele, com olhares de devoção.

    É um casal apaixonado, o que todos vêem. E outras mulheres se aproximam, e ocupam as cadeiras ao lado, convidadas por Michael, e HD finalmente chega, distribui saudações e ocupa o outro extremo da mesa, e um garçom serve a água mineral que Stevam Lucena solicitou e todos aguardam o "boa noite a todos!" a ser proferido por Michael, a deslizar olhadelas para todos.

    E aquele banquete logo se torna uma verdadeira terapia em grupo, "há meia fidelidade?", e Dalton ergue a bandeira do homem fiel, atitude da qual muito se orgulha, e uma das mulheres começa, do nada, a narrar as infidelidades de seu ex-marido e logo está vertendo lágrimas para o assombro de todos, que perfeitamente entendem, "mas a mulher precisa é de um analista", sussurra alguém, mas tudo bem, apenas não podem haver exageros, e Michael acena a HD, com o seu 'olhar de esfinge', como insiste o próprio Michael, e o crítico começa a ler a carta de um traído e todos esperam a carta de um marido corneado, mas trata-se, muito surpreendentemente, da carta-testamento de Getúlio Vargas, que suicidou-se em agosto de cinqüenta e quatro, "e quem o terá traído? As forças nacionais? As superpotências? As classes dominantes?", HD insiste em levar a discussão para o lado político, a traição no jogo político, mas em vão, a terapia continua, e Bianca deseja ir embora, a alisar sutilmente o braço de Stevam, mas não sem antes de responder a uma pergunta de uma das convivas, "vocês de conheceram aqui nos banquetes?", e ela responde, "não, nos conhecemos na internet.", "oh, que interessante", "se fosse você eu tentava, é muito bom", Bianca arrisca-se até a um conselho, pois percebe-se que aquela ali não é mulher de ficar sozinha, numa noitada de quarta-feira.

    E, jurando fidelidade, Stevam Lucena e Bianca Maria atravessavam a Savassi e rumam direto para a Praça da Liberdade, ela a concordar que fidelidade é muito importante, que está feliz em estar ao lado dele, mas que tem receios, "acho que não ficaremos muito tempo juntos", ela diz, e ele estremece, "mas você já está prevendo a nossa separação?!", e passam diante do Palácio e se sentem pequenos diante da imponência das palmeiras e notam o banco onde se conheceram, e o Rainha da Sucata, e sentam-se no banco junto aos quatro amigos escritores. Bianca Maria senta-se entre Fernando Sabino e Otto Lara Resende, sentados, e Stevam Lucena permanece em pé, ao lado de Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino, ambos em pé, e temem voltar ao tópico 'separação', ainda mais porque acabaram de se encontrar e ainda nem se conhecem, "e quem se conhece? Você se conhece?", ela diz, "quanto tempo é necessário para se conhecer alguém? Seis meses? Um ano? Dez anos? A vida toda?", ela continua, e ele mantém um silêncio, petrificado, ao lado das estátuas, ao brilho do vulto envidraçado da Biblioteca Estadual.

    E descem a rua da Bahia, pesarosos, acompanhando as passadas de outros casais, os brilhos em outros olhares, os gestos de carinho e aproximação que todos ousam, e muitos se enganam e se perdem, quando o amor não é amor, mas exigências de um algo mais, e nunca estamos saciados.

    E é na rua Espírito Santo, após atravessarem as calçadas boêmias do Edifício Arcângelo Maletta é que o assunto surge, não se sabe como, e ela se agarra ao braço dele, e ela não quer que ele morra e diz que se ele morrer, ela se deitará junto ao cadáver dele, e ele então reprova estes exageros dela, "essa vontade que você tem de chocar as pessoas, Bianca! Essas roupas todas indiscretas, sei lá, querendo chamar a atenção dos outros, sem mais nem menos! Atitudes que eu não entendo", e é o que basta para faísca de incêndios e discussões, e ela, de início, se silencia, num amuo, mas ele diz, "igual aquela de mal eu chego à sua casa, você me levar para o seu quarto", e ela não agüenta, "mas é porque confio em você, ora! Acho que vou levando qualquer um para o meu quarto?!", e ele fica perdido, "ora, não é isso, não quis dizer isso, mas é como se você tivesse daquele jeito para a sua mãe, como um desafio diante de sua mãe, a dizer assim, 'mãe, eu levo para o meu quarto quem eu quiser', entende?", não, ela não entende, e ela está se sentindo uma rameira, ao lado dele, quando estão diante do vulto sombrio da igreja de São José, e aqueles conventos, sabe-se lá, e essa cena vai se repetir dali a um mês, mas por enquanto ela está a dizer, "é por isso que eu digo que nós vamos nos separar logo. Temos gênios muito fortes, não aceitamos a opinião do outro", e ele concorda e se desespera, e pensa consigo mesmo, "mas essa mulher já está pensando em me abandonar! E me agride justamente porque me ama, porque eu consegui, a duras penas, que ela me amasse! E ela se ressente disso, pois nos planos dela não havia nem uma menção a um súbito e ardente amor por minha pessoa!", ele deixa os passos seguirem e deixa-se levar pela noite amena, e ao seu lado um corpo de mulher, mas uma mente e um destino distantes.



 [...]



continua ...


LdeM

sábado, 8 de outubro de 2011

mais Capítulo 5 ....

[...]



Quinta, 06 de outubro 2005


Querida Amada Bianca,

Sinta-se abraçada!

    Estou contente com nossas tentativas de compreensão mútua,
com nossa coragem de assumir nossas afetividades passionais,
mesmo que compartilhando desassossego.

    Pois não posso nem mencionar felicidade, em nosso caso,
pois somos nauseados de consciência, somos perturbados
(traumatizados) demais.

    Meus poemas são uma tentativa de comunicar, de saltar o
abismo entre as almas, de estender uma ponte. Os teus poemas,
imagino, são uma declaração desesperada de 'vejam, como eu
estou sozinha!', como se tivesse jogado uma garrafa ao mar,
com um manuscrito dentro (e eu encontrei a garrafa e li a
mensagem. Senti que as palavras foram escritas exatamente
para mim!)

Há uma canção do Moonspell, "A Poisoned Gift of Love", onde
o amor (mais apropriado seria 'paixão') é comparado a um
veneno, a uma maldição, onde os amantes tornam-se marionetes
sob os caprichos do sentimento. Os amantes prometem-se uma
felicidade que é irreal, pois a paixão é 'chama' que é "infinita enquanto
dure" (V. de Moraes). Se prometessem compreensão e respeito,
com equilíbrio e parcimônia, conseguiríamos estabilidade (e tédio),
porém, sendo afeto, logo irracional, a paixão quer "tudo ao mesmo
tempo agora."

Hoje falamos sobre o "sentimento doloroso da existência",
que é conceito do Schopenhauer - que está presente em teus
textos e tuas idéias, ainda que não tenhas lido o filósofo.
Eis uma amostra do drama generalizado da condição humana,
e a maldição da consciência: quanto mais sabemos, mais
traumatizados nós ficamos.

E por que são os geniais que se matam? Por sentirem o fardo
da gratuidade/efemeridade da existência: "Eu vivo por nada,
eu morro por nada" (Anathema). E isso eu aprendi a cada
vez que tentei adiantar o fim (e imaginar que assim jamais
nos encontraríamos!!), naquele quarto escuro em 2002, mas
aprendi que somente eu posso conferir significado à minha
existência, somente eu posso encontrar um sentido que a
justifique - diante de mim, não dos outros.

Assim, busquei na música e na poesia uma desculpa para
continuar a existir. Por isso eu sobrevivi, e continuarei
a sobreviver.

                                             Stevam Lucena





    - Quer dizer então que aquela reunião deu frutos?

    HD perguntou quando o garçom serviu outra cerveja, e Michael Bishop agradeceu, dispensando o rapaz de virar a bebida nos copos, gentileza da qual ele mesmo se encarregava.

    - Sim, com certeza. Talvez assim resolvamos o problema das finanças, pois estamos no vermelho.

Desde a conversa em maio, num bar do Edifício Arcângelo Maletta, diante de taças de vinho, quando mencionara o festival dedicado ao músico, e poeta, psicodélico, não haviam retornado ao assunto, o que confundira HD, depois daqueles shows de rock progressivo que Michael promovera no Matriz, lá no terminal turístico.

    - Podemos montar um cronograma para a captação de patrocínio. - HD sugeriu, enquanto erguiam os copos em um brinde.

    Mas Michael apresentou outros planos. - Talvez para o próximo, mas para o primeiro vamos ter que contar com nossa equipe e toda a boa vontade possível. Dinheiro do nosso bolso. Quando o primeiro for um sucesso, teremos voz diante dos patrocinadores, e o segundo será o maior, o real e mais lucrativo.

    E HD entregou-se a pensamentos, admirando os filtros dos sonhos que ainda continuavam ali, desde a festa do Óbvio, em agosto do ano anterior, em que sumira logo para não discutir novamente com o Alfonso, mas os filtros lembravam a pele de uma certa loira, mas o pensamento resvalou para um semblante desejado, e era o de Cibele Alvez, para quem ele ligara, antes de encontrar-se com Michael, e ela aceitou o convite para um passeio.

    Por isso, vez ou outra, HD olhava o visor do celular, exatamente como faz agora, quando Michael pergunta:

    - Algum compromisso, meu caro?

    - Marquei de encontrar a Cibele, às nove. E, permita-me, algum problema em trazê-la aqui?

    - Fique à vontade, Hector. Somos amigos.

    E HD levantou-se, para telefonar. Mas ninguém atendia, em casa dela, e nem ao celular, o que ocorrera? Então ele desceu até a pracinha, onde estudantes se reuniam, naquela noitada de sexta, nos bares e derramavam bebidas e gargalhadas, e HD notou afinal a presença de Cibele, junto a duas mulheres que brincavam com um minúsculo cãozinho, cheio de acrobacias, subindo e descendo dos bancos de tijolos.

    - Onde você estava? Você demorou. - ela diz, quando eles se abraçam.

    - Eu liguei para o seu celular, e nada!

    - Ficou no apê.

    - Ah, entendi. E então, vamos?

    A moça se despediu das mulheres que se divertiam com o simpático animalzinho e seguiram rumo ao bar, à uma esquina da universidade católica, mas por ruas mais vazias.

    Michael Bishop continua na mesma mesa, com o mesmo olhar, tudo igual, exceto um copo de cachaça, que ele pedira, na ausência de HD.

    - Ora, você demorou, meu caro. Boa noite, donzela.

    E HD se desculpou, explicou o que ocorrera, e notou o olhar que Michael dedicava ao decote da sua amiga, que aliás estava encantadora. Com seu jeito livre e solto de ser, era a simpatia dando volta pelo bar.

    - Precisamos marcar uma reunião, ainda neste mês, com os Diretores, principalmente com o Dalton, que cuida da grana. E a data será seis de janeiro. A data do evento, claro. Aceita?

    A cachaça brilhou contra a luz, branca, atraente e sobretudo mineira, destilada lá pros lado de Betim, naquele parque ecológico, e HD, pensando tudo isso, aceitou e bebeu, e distinguiu o olhar de Cibele através da transparência do copo. E sentiu que não estava tão apto a beber, mas a presença de 'poderoso chefão' de Michael Bishop não aceitava ser contrariada. Por isso só ficava bêbado em presença do mecenas.

    - Então vou deixá-los a sós, meus queridos. E enviarei um e-mail marcando a reunião com o pessoal todo. Até mais. Meu caro, Hector. Prezada donzela! Ah, sim, até mais Cibele. Obrigado.

    E HD levantou-se, e o que previra, agora acontecia, uma tonteira ébria, e as formas de Cibele brilhavam e flutuavam à luz do bar e ele foi ao toalete, e quase que o teto cai, literalmente, pois o local está em reformas e ele nem notou, e voltando, abraça a jovem toda encantos, e mostra segurança.

    - Que tal um passeio?

    É claro que ela já percebe o andar trôpego, e como se não fosse suficiente o nada perfurmado odor de álcool, mas ela acha tudo muito divertido.

    - Hector, você está bêbado, cara!

    - Ora, o que é isso? Mas eu não bebi nada. E foi só um dedo de boa cachaça mineira! É que eu estou feliz!

    E saiu distribuindo gargalhadas pelas ruas, vazias, de classe média, tendo ao fundo o perfil solene da arquitetura da universidade católica, e Cibele agarrada ao seu braço esquerdo, talvez pensasse em ampará-lo, se ele cambaleasse e caísse da calçada rumo às sarjetas.

    - Eu estou feliz! Não posso mais ficar feliz? É proibido? Todo mundo fica feliz, menos eu! Hoje é a minha vez, pô! Estou feliz porque você está ao meu lado! Muito feliz!

    E não consegue represar o riso, as risadas que brotam em cascata, ou anunciando tempestades, com trovões de gargalhadas, e ele podia se lembrar daquela crise na casa de Flávio Toledo, o velho amigo Flávio Toledo, que ainda voltará a sua vida, o bom amigo Flávio, e na casa de Flávio ele todo bêbado e rindo de quem?, ora, na cara, nas fuças daquele Augusto, o bom cunhado, que já até abandonou a mulher, a linda irmã do Flávio, como é mesmo o nome dela? Flávia? Fabiana?, e ele, o pobre HD rindo e rindo, e claro que foi o escândalo da temporada, e nunca deveria ter acontecido!

    - Mas eu não posso ser um cara feliz? Tenho que ficar só preocupado com o governo? Com os 'falcões' no poder? Com os invasores do Iraque? Com as demissões em massa? Como desemprego estrutural? Com Hitler invadindo a União Soviética de Stálin? Ora, que se exploda!

    E ele quase podia ouvir o Vladimir gritando, "Que se exploda!!" e continuava, portanto, a rir, e deixar-se ser amparado pela bela companheira, e que decote, deus meu!, e olhe que eu sou ateu!, mas eu poderia viajar eternamente nestes peitos, que delícia essa menina!

    E Cibele continua ali, agarrada ao seu braço, puxando-o para a calçada, quando ele ameaça resvalar para além do meio-fio, a cair de boca na sarjeta.

    - Cara, você está bêbado! Não acredito!

    E não demorou ela começa a rir também, e assim foi um estranho casal que cruzou a pracinha, onde tantos jovens se divertiam, se beijavam, se tocavam, se experimentavam, se gozavam, se conheciam... passos lentos a descerem as vazias ruas do bairro classe média, com seus prédios e muros, e suas casas e grades e seus barzinhos e lan houses e suas árvores, tal aquela dama-da-noite, que perfumava a rua inteira, e Cibele colheu um ramo e ficou esfregando entre os dedos, triturando o sumo e aspirando o aroma, enquanto os risos voltavam para de onde vieram, e HD se silenciava e se serenava.

    - É o Michael. Ele a dizer que precisamos conversar, e a gente senta para conversar e pronto, começamos a beber. É sempre assim. Mas eu disse a verdade. Eu estou feliz. Hoje é uma noite para ser feliz. - e olhou ao redor, voltava a racionalidade instrumental, e suas bússsolas voltam a marcar o norte, e ele diz - Por que não ficamos na praça?

    - Ora, Hector, estava tudo um tumulto só!

    E ela foi guiando ambos até a pista da via expressa e eis uma pracinha, só concreto, onde uns skatistas brincam, em disputas e acrobacias, em desafios entre os seus pares, e o casal adentra aquele reino de destemidos e sentam-se no bando junto a cerca de arame, bombardeados pelos faróis e buzinas, e ruídos e estridências de rodinhas, e gritos de meninos exaltados.

    Mas haveria de ser ali, e ela voltou, depois de refrescar-se no bebedouro.

    - Hector, você é um tipo de cara que sofre demais. Precisa se soltar às vezes.

    E HD mirou dentro dos olhos de Cibele, e achegou-se, agora até esquecendo o trânsito do outro lado da cerca, e nem pensou em campos de concentração, isso só surgiu depois, mas ali, enquanto ela se inclina para amarrar o all star surrado, e aquele decote, ele aproximou sua face, e sussurrando - Eu preciso de paz! - ousou deliciar-se naquele lábios.

    Beijaram-se, indiferentes ao que havia além, e ali os skatistas já desapareceram, "Ainda bem que sumiram", ele murmura, e Cibele, maliciosa, "Ora, por que?", e os lábios se sugavam e se mordiam, e línguas trabalham, conjuntamente, e HD quis beijar aquela orelha, e sua língua passeou ali, tal peregrina, em cada voltear e curva, e Cibele só sabia gemer.

    "Mas é tarde", ela lembra, e HD amaldiçoa a invenção do relógio. Contudo, é preciso ir, e seguem abraçados, agasalhados um no outro. E o trânsito em seu fluxo seguia, e leste-oeste em dois sentidos, e viam apenas luzes e velocidades, naquele enlace, despertando de uma embriaguez para outra, e escolheram a pista onde todo mundo seguia rumo a Cidade Industrial.




    Novamente, na estação do metrô, no Eldorado, Stevam Lucena espera a chegada de Bianca Maria, nauseado de ansiedade, após dez dias sem apertar o corpo macio em seus braços, contentando-se com telefonemas e cartas, derramando-se em papéis em e-mails o seu desassossego.

    Com uma saia indiana e sandálias, e um sorriso, Bianca Maria circula junto aos orelhões diante da pastelaria, e se jogam um nos braços do outro. "Vamos andar?", ele a convida, "A noite está ótima", e ela concorda, e realmente a noite não poderia ser mais agradável, nem quente nem fria, e ventos ausentes e uma bela lua crescente. Cenário romanesco.

    Seguem ao longo da ferrovia, e passam a um quarteirão da residência da família Lucena, mas não pretendem uma pausa ali, visto não terem qualquer privacidade. A Praça da Glória é preferível. E para alcançar suas alamedas vislumbram antes o Parque Ecológico e sua pracinha, onde garotas brincam de ciranda-cirandinha diante de uma imagem de santa. Bianca Maria está curiosa, e tendo o corpo enlaçado pelo braço de Stevam Lucena, lança um olhar para dentro do singelo altar, e ele se interessa, a lembrar que bastam subir a avenida e cruzar a João César, avenida de tumultos, e a Praça está logo ali à esquerda de quem se anima.

    Sobem de braços dados, e outros casais rumam igualmente para a avenida e suas diversões, ofertadas por bares, boates, casas de show, danceterias, hotéis, shopping center, lan houses, pizzarias, o mexidão popular, motéis, coretos com música ao vivo, e todos trocam olhares cúmplices de assassinos do tédio. E a Praça merece um parágrafo a parte.



    Chama-se Praça da Glória e já foi um oásis no cotidiano de concreto e asfalto. Mas hoje é um cemitério. É como os jovens, que ainda são ali freqüentes, com seus skates e roupas soturnas, a denominam, e não enganados, pois ali estão apenas as ruínas. Antes um filete de água descia sobre um monjolo e desaguava em dois laguinhos artificiais, separados por duas pontes, que conduziam os visitantes até uma roda d'água, de onde anteviam a cruz néon da igreja defronte.

    Hoje a roda d'água está quebrada, o monjolo virou brinquedo, um tanto perigoso, para os jovens, e os laguinhos secaram, e tornaram-se excelentes pista e rampa para skatistas audazes. E a decadência tornara-se um chamariz aos jovens com suas mentes inquietas e cheias de fantasias, encontrando ali um espaço para sonhos de eras bárbaras que não poderia viver dentro de seus quartos, diante dos monitores de seus PCs.

    A praça-cemitério. Foi assim que Stevam Lucena apresentou o local a curiosa Bianca Maria, que adorou. E encontraram um banco à sombra de uma árvore imensa, disposta contra um dos gigantescos postes de luz rubra que iluminam toda a praça. Num abraço de carinho, entregam-se a necessária prioridade de 'colocarem os assuntos em dia' e ele comenta que já escrevera um poema ali, em início de dois mil e dois, "andando sozinho consigo mesmo", e que TH era outro que muito freqüentava o local, quando rumava para a periferia, e mesmo o 'Conde' perambulara por ali, segundo dissera o Valêncio, certamente em visitas ao Rafael, o 'Vampiro', e todos os sombrios da região, depois de se encontrarem na feirinha da Portugal, sejam 'pesados' ou 'românticos', pois ambos os grupos ele conhecia, adoram passear pela praça, "ou o que sobrou da praça", como dizem.

    Mas ele não quer se entregar a recordações, quer viver o presente, e detestaria saber que ela está entediada, "ah, eu adoraria comer bombom", ela diz, e o desejo da amada é sempre uma ordem, "vamos ao shopping", ele decide. E o shopping justamente aquele no campo onde realizavam festivais, e onde o lembrado Rafael, que não era seu conhecido na época, apostava corridas de bicicleta com coleguinhas da vizinhança, todos da classe média em urbana decadência.

    O dia artificial do hipermercado atrai os jovens tal estas luzes da praça atraem as mariposas, e todos caminham juntos, mas com olhares dispersos nas vitrinas e suas promessas de felicidade em suaves prestações e paz à preços módicos e sossego em liquidação. Mas Stevam e Bianca procuram precisamente uma caixa de bombons, e ele escolhe um suco em lata, sabor manga, e água mineral, indispensável, e enfrentam a fila do caixa, com excelente humor, ali onde outros casais parecem que marcaram encontro, assim as mulheres atentas a preços, inclinadas sobre os homens, que conduzem, orgulhosos, os carrinhos com mercadorias.

    E voltam para a praça, para o mesmo banco, e abrem, com avidez, indisfarçada, a caixa de bombons e ela oferece um bombom que ele morde adiantando a face, quase engolindo junto os delicados dedos da jovem, e ela sussurra, sorrindo, "ai, que sexy!", e ele sorri em reflexo, e escolhe um bombom com recheio de amendoim, e outro de chocolate branco, e observam os jovens, e o brilho azul néon da cruz moderníssima da igreja, e um grupo de roqueiros evangélicos que entoam hinos ao cristo, e os vultos dos casais nas sombras dos arbustos, e a noite é ótima, realmente.

    É quando percebem seus lábios unidos. Ela oferece o bombom entre os dentes e ele dispôs-se a colher ali mesmo a doçura, e acabou por encontrar duas! E foi um beijo com gosto de chocolate e ela voltou a comentar uma certa torta de chocolate que ele presenteara a melhor amiga, e ela até promete aquela delícia, quando ele for em visita. E ela só reclama do gosto de manga, "ora, mas é o refresco...", ele lembra, "Mas eu não gosto de suco de manga", e ela finge um desgosto.



    Abraçados e perdidos em beijos, experimentam com ardor o estarem juntos, e ele tira dela as sandálias que abrigam os pés delicados, e massageia aqueles pezinhos, dedo por dedo, e a pressionar as solas um tanto ásperas, "eu gosto de andar descalça, lá em casa", ela comenta, e acaricia suas pernas, e ele aprecia o desenho das mesmas, a lembrar-se que ela já dissera ter sido bailarina, e que adora dançar, e ele realmente aprecia aquelas formas, mas ela diz, constrangida, "nem tanto, querido, pode ter gente olhando", e cisma que um cidadão, lá no outro banco, observa, com olhares de malícia, o jovem casal.

    Mas duas mocinhas se aproximam, e estendem um folheto de cunho religioso, e dizem, "viemos aqui por causa do seu sorriso" e Bianca Maria agradece, e as jovens angélicas retornam ao grupo que ainda entoa os hinos ao estilo rock'n'roll, mas sem atrair os demais jovens dispersos, de um lado os punks, do outro os pós-punks, e na zona neutra, os skatistas.

    E se a praça evocara versos de Charles Baudelaire ao inquieto Stevam Lucena, aquela aparição pós-neo-religiosa, ao estilo Jovem Guarda, muito destoa de seu lirismo decadentista, não por supor solução, mas devido ao ruído das vozes, nunca preferível ao silêncio, apenas rompido pelas folhas secas e o espocar dos beijos.

    E resolveram seguir até o coreto, passando pelas paradas de ônibus, diante da danceteria, fotografando mentalmente os sorrisos dos casais, e o perambular dos solitários, e o buzinar dos carros que conduzem patricinhas e princesas, e no coreto, seus corações estão mais próximos, e novas confidências vem à tona, e nenhum dos dois deseja ir embora, e já passa das dez horas. E ali, naquele coreto, Bianca Maria recorda cenas de família, e Stevam Lucena relembra os velhos shows, e que ali mesmo Valêncio conversara com TH, na noite em que seu irmão Alfonso viera procurá-lo, a ele, Stevam, época em que se perdiam em discussões depois do fim da banda, o fim definitivo, uma semana depois que as torres de Manhattan desabaram, "meu pai estava na minha festa de aniversário, e mamãe e ele pouco conversaram", ela diz, e "era para acabar mesmo, a banda não tinha mais futuro, nem sentido", ele diz, e prestam relatório de suas perdas, e uma não é menor que a outra, pois uma banda de música não é diferente de uma família.

    Na parada de ônibus, outros casais, e uma dama de vermelho, que prontamente atrai a atenção de Bianca, aconchegada a Stevam, e um tanto fremente, a perder fôlego como após uma corrida, e ele percebe que ela tem asma e respira pela boca!, mas ela atenta as curvas e toda a sensualidade da moça de vestido vermelho, uma morena realmente bela e atraente, mas ele não entende, ou só entenderá certo tempo depois, assim como só agora percebera a dificuldade respiratória dela!

    Não há ônibus, mas apenas aquelas kombis, em transporte dito 'alternativo,' mas ilegal, mas não há escolha, já passa de uma hora da madruga, e Dona Efigênia já ligou, e a jovem a se explicar, "mãe, aqui no Eldorado não tem ônibus, vamos ir de van mesmo!", e quando chegam ao Calafate, tudo às escuras. Uma árvore caíra, rompendo as linhas de transmissão.

    Encontraram Dona Efigênia diante de uma vela, e com péssimo humor, o que foi infinitamente desfavorável para Stevam Lucena, que pisava pela primeira vez na casa de Bianca Maria, e em semelhantes condições e circunstâncias!

    Mas ela, a jovem anfitriã, promete uma melhor recepção, no próximo sábado, até porque certamente sua mãe não deixaria, tão cedo, que a filha saísse de casa. afinal havia a promessa (quebrada!) de chegar antes de meia-noite!





Tópico: DEFESA PSÍQUICA

Ele: por que todo o sucesso de Harry Porter? Falta magia em nossas vidas?
E por que a busca por lugares ditos místicos? Vide o tal vale do amanhecer. Aqueles médiuns vestidos iguais a sacerdotes egípcios em pleno planalto central! Aquela mistura de indianismo, paganismo, espiritismo, haja sincretismo!
E os psicanalistas, imagine!, com todo aquele tom conciliatório de busca do Sagrado, do Divino. Coisa que Freud não hesitava em declarar Ilusão, necessidade de Defesa Psíquica, de dar um 'sentido' a nossa existência.

Ela: por falar em psicanalista, eu recebi um diagnóstico do psiquiatra..

Ele: os psicólogos, os psiquiatras classificam os humanos iguais os entomólogos classificam insetos, aracnídeos, colecionando borboletas por gênero, família... se você não é paranóico, é psicótico, senão é esquizofrênico. O próprio Freud era lá meio paranóico. Imagine: o pai da psicanálise!

Tópico: DEMOCRACIA

Ela: referendo é um tremendo mal-entendido.

Ele: igual a pensarem que vivemos numa democracia representativa liberal. Representativa, por que? Veja, os representantes do povo (assim se dizem!) apenas representam a si próprios, ou interesses de grupos econômicos ou políticos. O povo não tem representantes...

Ela: alienado, o povo vota em imagens.

Ele: este é um país sem revoluções - e quando ocorrem é de cima para baixo, vede 1930, ou 1964, que revolucionam apenas para continuar o mesmo, a mesma elite - não tivemos o abalo das revoluções russa, francesa, inglesa... e democracia liberal? Capitalismo democrático? Quer maior contradição que esta?


Tópico: ARTE

Ele: a Arte enquanto superação ou diversão? Veja aí as novelas 'globais', o trabalho de uma escritora como a Glória Peres (que literalmente escreve muito, umas doze horas por dia!) todo voltado para a alienação.

Ela: mas ainda é uma Arte...

Ele: eu vejo a Arte enquanto superação, despertar da alienação, mas o produto artístico televisivo é alienante, mantém a massa anestesiada. Despertar é perceber a tragédia das desigualdades sociais, e agir pela revolução.

Ela: arte revolucionária?

Ele: é como vejo. Ao estilo Maiakóvski. Arte ciando símbolos para a mudança. E não uma arte instrumentalizada, igual a esta da televisão.


Ela: pois é, mas o povo chega cansado, quer se divertir, relaxar...

Ele: daí eu não crer em revolução popular... mas, enquanto esquerdista, eu creio em mudanças, numa sociedade sem tantas desigualdades.


Tópico: LITERATURA NACIONAL


Ele: veja essa mania de ficar copiando europeu. Temos toda uma literatura aqui, desde Mário de Andrade, e ninguém valoriza. Veja que se Machado de Assis ainda segue padrões franceses, Mário de Andrade, que leu as novidades que Oswald de Andrade trouxe da Europa, digeriu as obras estrangeiras e pariu obras singulares. Não existe nenhum livro semelhante ao "Macunaíma", ninguém na Europa escreveu igual a Clarice Lispector, e no entanto, ela não foi reconhecida. Quantos prêmios nobel o Brasil já perdeu?

E outra: Mário de Andrade lutava por uma literatura nacional, um estilo nosso, e tentou unir os escritores, ninguém escreveu mais cartas do que ele...

Mas veja os hispânicos: famosos (desde Macedônio e Borges, e García Márquez), idolatrados na Europa, com realismo-fantástico, que explora o Absurdo, mas que teve doloroso parto nas entranhas da própria Europa, em Praha, nos pesadelos de Kafka. Os argentinos, e o colombiano, superaram o tcheco, melhoraram o original, entende? E mandaram de volta, e os europeus ficaram em êxtase!


Tópico: PADRÕES x LIBERDADE CRIADORA


Ele: há liberdade no ato criativo. O artista superando sua condição, coisa que já dizia Nietzsche.

Ela: mas há toda a influência que determina a criação...

Ele: você quer negar a liberdade? Mas, veja, pode-se criar a partir da influência, e superá-la, na forma de um estilo próprio. É, como diria Oswald de Andrade, antropofágico!

Veja bem, você lê Clarice Lispector, eu também leio Clarice Lispector, daí escrevemos com a mesma influência, o mesmo sentimento, no entanto temos estilos diferentes. É a singularidade do ato criativo. É desenvolver um estilo pessoal, singular, único.

Ela: tá certo, concordo que é possível ser livre ao criar...

Ele: e mais: negar até essa liberdade é aceitar a determinação, isto é, a repetição dos padrões. E a velha discussão: há uma ordem no Universo ou tudo é aleatório - Deus joga dados? Os padrões se repetem, nos gestos, falas, comportamentos, sem que tenhamos consciência. Uma dízima periódica tem uma ordem por mais que seja um amontoado de números. Matemática do caos: fractais: há ordem (padrão) na desordem (acaso). E os números refletindo a harmonia das esferas? Pitágoras! Está aí um autor que preciso reler. O matemático é o grande iluminado, não o filósofo, de Platão...


Tópico: COINCIDÊNCIAS E PADRÕES


Ele: às vezes, você passa junto a um telefone e este toca, ou então um carro vermelho passa todo dia, na sua rua, no mesmo horário. Fenômenos simultâneos... já viu o filme TRUMAN SHOW, onde o cara descobre que vive num mundo fake, falso, dadas as repetições, as mesmas pessoas, os mesmos acontecimentos... existem coincidências ou tudo está determinado, programado? Vivemos numa imensa MATRIX, onde repetimos, perpetuamos um programa, numa seqüência de padrões?
Eu detesto padrões, a pretensa normalidade...

Ela: então dizer que você é normal te ofende?

Ele: sim, me ofende. Eu detesto a normalpatia, o doente da normalidade, o cara enquadrado, todo formatado, padronizado, que segue todas as regras, normas, padrões, e se esforça para agradar gregos e troianos, e repete os chavões, os gestos, os preconceitos, as idiotices de um sistema de exclusão e alienação.

E, já aviso, você vai encontrar muitos assim, do seu lado, no trabalho, na sala de aula, nos corredores das faculdade, e vai morrer de tédio e raiva. Gente que é medíocre e se dá bem, sobe nos cargos, consegue promoções. Por que? Porque dança conforme a música, vão se adaptando ao ritmo e galgando posições, distribuindo sorrisos e gracejos, mestres na hipocrisia... enquanto isso, os gênios, os flutuantes, os criativos, ou se matam ou são crucificados...

Por que os gênios se matam? Ora, porque não querem ser cúmplices dessa palhaçada, dessa comédia que é trágica.

Desculpe-me, se eu vou falando muito, mas eu preciso argumentar, para não pensarem que é somente uma opinião minha, que não há todo um pensamento investido nisso...

Ah, querida, poso passar uma lista de autores de cada perspectiva, até porque estás muito conciliatória, mas preciso ir almoçar...






    Os convites de Leir Macedo e Alfonso Lucena chegaram por e-mails. Primeiramente o de Leir, desejando reunir os poetas, os velhos amigos, "que andam todos dispersos em seus logradouros" e depois, o de Alfonso, reforçando, e formalizando.

    Não só a curiosidade levou HD ao parque ecológico, mas também certa saudade. Principalmente de Leir, que se afastou para junto de seus contos, e sem apertar a mão de HD há quase um ano! E quanto a Alfonso, viviam uma amizade daquelas turbulentas, tão complicada quanto a de Goethe e Schiller, Byron e Shelley, Maiakóvski e Brik, Max Brod e Kafka, Lênin e Trótski, Sartre e Camus.

    Encontrou Alfonso em casa, logo no início do mês, sem mesmo avisar, e isso já bastou para irritar o amigo e literato, que detesta semelhante atitude. No entanto, se HD é formalista por um lado, e totalmente espontâneo em outro, por exemplo, a sua sem-cerimônia com os amigos, quando inoportuno, almoça e janta, dorme no quarto de hóspedes, e ainda pede um dinheiro emprestado! E como se não bastasse, depois foram visitar o escritor M., do qual Alfonso é fã confesso, e HD não poupou ironias, mesmo diante do literato, que vivia em sua ' torre de marfim'! E Alfonso ligou na mesmíssima tarde, dizendo, sério e lacônico, "não posso mais perder o meu tempo", recusando a amizade de HD, que entendera, "eu sei, não sou acadêmico e catedrático o suficiente para você", mas HD sabia que não era exatamente esse o problema.

    Mas isso era uma fase, outrora outras discussões. Mas sempre restavam a amizade, coisa de egocêntricos, que não podem viver sem os elogios do outro. E sempre surgia uma ocasião, tal a memorável tarde sob à sombra das chaminés do Itaú, no estacionamento do agora shopping, e andando depois junto as vitrines, discutindo o stalinismo, a ditadura do proletariado, os discursos de Fidel, recitando cartilhas políticas enquanto degustavam pastéis na praça de alimentação.

    Semanas depois resolvem participar de uma reunião dos marxistas, em plena Avenida Amazonas, numa tarde de sábado, e Alfonso perdera o endereço, e precisou fumar dois cigarros antes de lembrar-se, do edifício pelo menos, isso depois de entrarem em três outros! Depois a dificuldade foi lembrar-se do andar, e no elevador, subindo e descendo, parando de andar em andar, percorrendo os corredores até encontrarem vozes reunidas numa saleta discreta, onde o orador, um tipo boliviano, narrava as peripécias e vicissitudes de Che Guevara.

    E Alfonso incensava em comentários o seu faro de detetive de fazer inveja aos agentes do PIDE, da Gestapo e do CCC, em encontrar, isto é, rastrear e localizar os núcleos comunistas! Mas, durante a reunião, Alfonso ouvia atento, e cheio de respeitos e formalismos, o simpático orador e seu discurso sobre o necessário internacionalismo, e ainda mais quando HD solicita a palavra e denuncia a invasão cultural ianque e européia, enquanto os nacionais desconhecem a literatura hispano-americana, "riquíssima, em contextualizar, e denunciar, nossos problemas sociais, de longa data", e passa a citar Rulfo, Martí, Astúrias, Fuentes, García Márquez, paz, Arlt, Llosa, Onetti, Galeano, Allende, Sábato, Cortázar, Neruda, Mistral, Cardenas, Bastos, Carpenjier, Puig, Piglia, dentre outros, para a felicidade e contentamento do orador, que ali encontrava, diante de seus olhos incrédulos, um conhecedor de real literatura, "e não esses volumes ianques que descem, iguais as toras, Mississipi e Rio Grande abaixo."

    No entanto, nem HD nem Alfonso fizeram qualquer amizade no grupo, muito coeso e engajado, assim como nem HD nem Hélio Lúcio alçaram vozes entre os anarquistas, assim não mais voltaram, ou antes, Alfonso voltou sozinho uma ou duas vezes, segundo diria depois.


    E tudo isso HD pensa, relembra, rememora, sofre e deleta, enquanto folheia uma antologia de poemas de Maiakóvski, traduzidos pelos irmãos Campos e Boris Schnaiderman, volume este emprestado por Darío Sabine, e o qual HD nunca se animou a devolver.

    Alguém em passeio sob as árvores, observando as crianças em suas brincadeiras, certamente alguém que HD reconhece. E é Leir Macedo quem se aproxima, de óculos escuros, uma boina lembrando o Neruda, com sua pasta cheia de novidades literárias, e quer saber o que HD anda tramando.

    - Um romance de mil páginas sobre o nada.

    - Um novo "Ulisses"? Andanças de HD por Belô?

    - Você é um vidente, Leir! Estilo excessivo, labiríntico, fragmentado e estressado em pleno cotidiano, onde nada acontece. Nada de assalto, assassinato, crimes, a serem elucidados, ou conspirações a serem desmascaradas, e nada de adultérios, nem pactos suicidas, nem seitas esotéricas ou aliens que desejam dominar o mundo, muito menos jovens bruxos ou garotas com superpoderes! Quem quiser esse tipo de trama que compre o best-seller do mês! Há um excesso deles, um excesso de tudo aliás! Nisso penso ao contrário do Alfonso, que julga haver um vazio, um "vazio da época"! há um excesso e estamos todos desinformados devido a um excesso de informações, e nem temos certeza de coisa alguma devido a um excesso de ângulos, opiniões e perspectivas!

    E por falar em Alfonso, eis que o literato se aproxima. - Meus caros literatos! Aqui no refúgio dos bosques urbanos, à sombra das paineiras, em diálogos platônicos!

    E, após ligeira troca de abraços, convida: - Eu preparei para nós, os eleitos, uma sala ali junto a entrada. Espero que seja confortável.

    Realmente confortável, e o esforço era nesse sentido. Mas antes de adentrarem o recanto dos literatos, aproxima-se a figura de Dalton, o "Vladimir", com sua ciência de professor e cadência de boêmio, pronto a despejar lírico protesto sobre os alienados!

    Alfonso dispõe-se a relatar novidades, em concisos informes, enquanto HD vai colhendo jornais e zines, ali disponíveis, pousados sobre as cadeiras. O escritor M. está presente, e também o estudante Soares, ainda tecendo seus estudos sobre os poderes, e sobre os livros sagrados de todas as religiões, "que não passam de apenas um - os humanos que se deixam guiar pelo não-humano!", ele insiste.

    Seguem-se ora lacônicas, ora verborrágicas apresentações, além de poses para fotos, e declamações gestuais de Leir macedo, antes que HD leia o seu poema, ao estilo Maiakóvski, "A miséria ama companhia"

"miséria adora companhia
                                     para culpar dos infortúnio
                                                                           outros miseráveis"

E que conclui,

"se preza a companhia
                                é porque a miséria
                                                              jamais se cria sozinha.

Na periferia da periferia
                                    A periferia da cidadania."




    E Dalton não pode deixar de ler seu "Que se exploda!", poema visceral que ainda o deixará célebre, e mal-visto entre alguns,

                              "Que se exploda os intelectuais!
                               Que se exploda a academia burocrática dos letrados!"

    E o outro-Stevam chega quando Dalton já prepara-se para seguir rumo ao poente, para os braços da amada, que, todos sabem, não pode ser deixada à espera. Nota-se que HD acompanha Dalton até a saída, certamente a esperar um modesto empréstimo, mas desta vez Dalton não foi tão generoso.


    Mas Stevam Valêncio entrega-se ao seu poema sobre "o asfalto até nas almas", e nossas vidas meio aos monóxidos, no entanto, Leir distribui suas despedidas, e os amigos resolvem beber ali no barzinho diante do parque, convencidos pela generosidade de Alfonso e do Soares, que prometem pagar a conta, e o outro-Stevam aproveita para pedir uns cigarros avulsos, e pelo menos dois foram parar no cinzeiro de Alfonso, que discute a literatura local, com seus vultos e sombras, os escrevinhadores em gabinetes e masmorras.

    - O pessoal se esforça, rabisca umas frases, e revisam, cortam, reescrevem, se entregam a suores estéticos em noites de insônia, mas é de dar dó, meus caros, pois não chegam a lugar algum.

    E de súbito está abatido pelo peso das próprias declarações, e mais ninguém está animado a colóquios literários.

    - Eu trocaria a literatura, de bom grado, por uma loira peituda.

     Claro que ninguém acredita que HD acabou de dizer isso! "É só para relaxar um pouco!", ele em vão se explica.

    Alfonso e o Soares preferem continuar bebendo, mas HD e outro-Stevam concordam que o melhor a fazer é dar umas voltas e seguem a João César, repleta de vida noturna e mocinhas desfilando.

    - E aquela garota que te virou a cabeça?

    - A Cibele? Ótima coadjuvante para o nosso enredo.




    O bairro Calafate segue constrangido entre a via férrea, tendo por acréscimo a linha do metrô, e a Avenida Amazonas, que se derrama desde o hipercentro. Formado em torno da coluna vertebral da Rua Platina, onde comércio, polícia e religião se encontram, ainda que não se confraternizem, o bairro é uma amostra do casario das décadas de vinte e trinta, muitos ainda conservados, que abrigou os mestres de obra e os pedreiros que ergueram a capital de Minas.

    Se muitos dos funcionários habitavam o Prado, o Carlos Prates e o Alto Barroca, a maioria dos serventes e pequenos comerciantes, antigos mascates, se concentraram na faixa que vai do batalhão até as margens do ribeirão Arrudas, hoje uma avenida sanitária, a Teresa Cristina, atualmente a ligar o Gameleira ao Betânia, e região.

    Não foi por nenhuma das vias rodoviárias citadas que chegou o esperado Stevam Lucena. Aguardado em casa de Bianca Maria desde as 18 horas, só conseguiu chegar às dezenove, alegando ter perdido o metrô. A estação é ligada a Platina por uma passarela, a desembocar na área das agências bancárias, e Stevam ainda andou cento e poucos metros rumo a igreja matriz, a São José Calafate, de onde a rua desce e atravessa a avenida Silva Lobo, a subir, do outro lado, rumo a rua Campos Sales.

    No entanto, se Stevam Lucena percorre toda esta geografia, dedica pouca atenção, mais ocupado com seus monólogos interiores, daqueles que não levam a lugsr algum, do tipo 'agradarei minha sogra?' ou 'isso de encontrar mocinhas em casa de família é muito romântico' ou 'não devia ter me atrasado, visto que isso causa péssima impressão'.


    Abandonando o prosaico, tudo se torna lírico quando Bianca Maria abre aquele conhecido portão azul, recortado no muro alvo, que separa o sobrado do tumulto da rua. Um vestido simples, sem maquilagem ou outros enfeites, ela oferece um acolhedor sorriso de 'até que enfim você vai conhecer a minha casa'. E Dona Efigênia na cozinha, a preparar a sonhada torta de chocolate, o segundo motivo da visita.


    Uma atordoante melodia, um duelo de delicado soprano feminino e medonho gutural masculino, "a bela e a fera", vazava do quarto de Bianca Maria, para onde ela o conduziu, após alguns minutos de protocolar e salutar conversa com a mãe anfitriã. E, por segundos, Stevam Lucena lembrou de acordes de Theatre of Tragedy, banda que muito o agrada, e que ouvira muito, ao lado de Oto e TH, ou nas noites de RPG à luz de velas com Elias ou Erik, e pensou por um segundo, se ela colocara aquela trilha sonora para agradá-lo, porém distinguiu logo a sonoridade, quando o vocal feminino se elevou, e percebeu seu engano: é Within Temptation, banda que a agrada mais que a mencionada Theatre, "Que tal o meu quarto?"

    Uma penumbra, e uma luzinha rubra brilha num canto, e um guarda-roupa simples, e uma escrivaninha com o aparelho de som. Junto a porta, um armário, e atrás da porta, uma prateleira para calçados. Sob a janela, e ao lado da cama, um criado-mudo com um enorme sapo verde, além de figuras lendárias e míticas, além de uma pavorosa aranha negra de plástico, que por instantes parecia real!

    "Assustador", ele diz, e volta-se para a escrivaninha, onde agora repara, sob uma capa plástica, o formato do PC, de onde ela enviava aqueles e-mails adocicados. Na parede, entre o guarda-roupa e a escrivaninha, vê-se, um quadro: dois jovens arlequins em pranto. Abaixo, recortes e folders, bem visível, por exemplo, aquele mesmo folheto do "Leis da Noite", de meados de dois mil e três, o primeiro que ele presenciou, antes de insinuar-se no casarão do TH, e era de um quadro de Munch, uma mulher de cabeleira rubra, uma vampira fatal, e para completar todos os paralelos e coincidências (existem coincidências?), eis que Bianca Maria estende a Stevam Lucena uma folha datilografada, e trata-se de um dos poemas colados na parede do matriz, em fins daquele ano, é intitulado "Catarse" e plenamente escrito após aquele show sombrio e lírico no centro histórico, uma semana antes. E ela guardara a folha por todo esse tempo! "Achei lindo o poema, por isso guardei", e ele deixou-se a ler, lançando olhares de assombro místico, e diz "Acredita se eu te disser que nem eu tenho mais cópia deste poema?", e era verdade, ele não tinha muito cuidado com o que escrevia, a rabiscar em papéis avulsos, ou guardanapos, distribuía para os amigos, depois não se recordava mais.

                                             "Come into my world,
                                             See through my eyes.
                                             Try to understand,..."

    Ele ouve um trecho da canção que é despejada no quarto, e mentalmente, quase instintivo, pode traduzir, "venha para o meu mundo, veja através de meus olhos, tente entender...", e tudo parece ligado, igual ele lera naquele soneto do Baudelaire, sobre as "correspondências", realmente tudo é uma "floresta de símbolos", mas a voz dela o despertou do devaneio, "Quer ouvir um outro som? De repente você ficou abatido...", "É um tanto triste", ele diz ainda cabisbaixo.

    Então um silêncio , o girar do CD no equipamento, e outra melodia se eleva, e conhecida, de minissérie global, baseada em obra de Eça de Queirós, em acordes lusitanos, uma voz de ninfa,



                                             "Ai que ninguém volta
                                              ao que já deixou..."

    Sim, Madredeus, esse é o nome do grupo, em belíssima canção, e um nevoeiro de imagens de outrora ameaça tragar o ouvinte, um sorriso de Sônia Regina, uma palavra de advertência de TH, uma certa noite quando retornava para casa, e uma moça se debruça da varanda sob a luz mortiça do poste, e ela sorriu, e ele se afasta tímido, e nunca mais a viu, nem procurou saber quem era, o que fazia ali, àquelas horas adiantadas, mas ali no quarto a voz flutua na canção,

                                              "Ai que ninguém lembra
                                               nem o que sonhou..."


    E Bianca Maria o convida a se acomodar ao seu lado na cama, sobre a colcha com motivos infantis, fadas e anjos, e um gorducho gato branco aparece, com imponentes bigodes empinados, incomodado com a presença do estranho. Incomodado, corrigi-se, por tratar-se de uma fêmea, "É a Sherezade. Não parece uma princesa?", e Stevam Lucena só espera que a gata não comece com infindas histórias, e aquela cena desperta recordações de Sônia Regina meio aos gatos de Oto Marques, ou a brincar com os gatos de sua mãe Nádia, em distante e sepulto passado.

    Mas logo a mãe, Dona Efigênia, anuncia o jantar e a torta de chocolate, e degustam os pratos, pois a mãe é hábil cozinheira, enquanto as canções lusitanas se sucedem e os temas se alternam de gostos musicais a desejos artísticos, passando pela atual ocupação profissional de Stevam Lucena, que esclarece trabalhar com digitação, e não esclarece muito.

    De volta a penumbra do quarto, é de bom-tom alternar a trilha sonora, ainda que a música seja maravilhosa e ambos se sentam às margens do Tejo, ou um rio de longínqua aldeia, e se querem continuar viajando, Bianca Maria elege uma cantora de canções folclóricas, ou resgatadas de cancioneiros populares, ou recriações e composições próprias, inspiradas em semelhantes tradições, e exibe para Stevam Lucena o encarte do álbum, Loreena McKennitt, "The Mask And Mirror", e uma canção com algo de ibérico, de marroquino, passeia pelo quarto, e já ambos estão presos aos abraços, e a doçura da melodia embala um momento de sem-tempo, uma época a expandir do quarto, tirando a cama de um aqui e agora, além das turbulências do metrô que passa, aos fundos da casa, além do vulto da gata que se insinua no quarto, como se fosse um daqueles tapetes voadores das "Mil e Uma Noites', e além de Minas, e além de Bagdá, já flutuassem rumo às terras longínquas somente alcançadas nos sonhos, e os beijos são beijos de todas as fantasias acalentadas.

    Perfumes se mesclam, e dela os gemidos são aromas, "eu adoro o seu cheiro", ele sussurra, e uma canção em tradições árabes se deixa verter, em paisagens sonoras de um certo mercado noturno em Marrakesh, "onde vultos se aproximam em círculos, com tochas que iluminam suas faces", e ele vai traduzindo a canção, em lento sussurrar, e ela entrega-se a distante viagem, "a lua crescente agita-se no céu, e os poetas dos tambores mantém as pulsações suspensas, e a fumaça vai girando e sumindo..."

                                                 "Would you like my mask?
                                                  Would you like my mirror?"

e os olhos dela assim fechados, e os lábios dele se encontram em seus ouvidos, balbuciam sílabas arabescas no voltear das orelhas, "você pode olhar para si mesmo, você pode olhar um para o outro",


                                                 "You can look at yourself
                                                   You can look at each other"

e os vultos parecem estar todos ali, naquele quarto, olhos postos sobre aquela cama, todos em círculo, e com suas tochas, seus olhos em chamas, a refletirem as labaredas, todas aquelas chamas, de ardor, de devoção religiosa, de paixão, de reencontro.

                                                  "The stories are woven
                                                   And fortunes are told..."

e ele, em sussurros, "as estórias são tecidas e as fortunas são narradas", e os vultos olham para os horizontes da procura, e ele vê os vultos se afastarem, iguais aqueles monges do clipe do Joy Division, "Atmosphere", onde os monges na praia, mas não há monge algum, não há praia alguma, e ela abre os olhos, tão logo a canção finda, "Sabe que eu te amo? Eu te amo, meu poeta!", e parece que ele nunca se acostumará a esse 'poeta' vazado dos lábios dela. Ele, um poeta? Será realmente? Então, aquela, ao seu lado, é sua esperada musa, e ele diz, "eu te amo, minha marroquina", e uma nova canção se inicia.




Data: Sat, 29 Oct 2005 - 19:09
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: eu confesso, sou injusto
Para: Valkyria [amanda.dark@XXX.com.br]
Cco: bianca maria [abeatadanoite@XX.com.br]


Olá Amanda,

Saudações.

Recebi a tua carta - e entendi. A mágoa, a raiva, a frustração.
e concordo, compreendo mesmo: eu não presto.

Estou sendo injusto com uma pessoa especial, surpreendente
mesmo. Por que vivemos tão distantes? Por que?


Eu tento encurtar as distâncias - tempo e espaço - mas
confesso que não consigo. Estou muito confuso.

Não consigo me decidir por qual amor. Eu te amo, mas
com algo de sublime, meio platônico.

E fico magoado quando insultas a Bianca. Sim, pois ela sabe
De tudo e compreende. Não, a Bianca não é bonita, é
Simpática.

Tem uma consciência impressionante - e sofre. Uma personagem
de Dostoiévski.

E não era um lance erótico. Ela parece uma beata - 'a beata da
noite' - toda reservada. Demoramos quinze dias para andarmos
de mãos dadas e quarenta dias para o primeiro beijo.

Então, Amanda, pela nossa velha cumplicidade, desejo solicitar
que não ofenda a imagem da Bianca. O errado aqui sou eu,
que não consigo me decidir.

E não é ela que me persegue, sou eu quem a persegue.

A Bianca também sofre, eu sofro, todos sofremos. Todos
precisamos de atenção e compreensão.

Eu entendo a tua ira - eu realmente estou sendo injusto.
preciso, então, escolher.



Stevam






 
[...]


LdeM