domingo, 20 de março de 2011

continua o capítulo 2 de Flores no Asfalto


[...]

 
Importante diálogo metafísico e teológico entre HD e Crânio



    Preferiram assistir o pôr-do-sol na varanda. Wilson, ou o Crânio, como era conhecido, jogou uma coberta sobre as pernas, e deixou-se recostar na cadeira de rodas. Abotoando a camisa de flanela, HD sentou-se sob as cascatas de samambaias.

    - O problema então é o método? Está até parecendo o Descartes...

    - É verdade. Mas eu nunca consigo desembaraçar o novelo.

    - Livre-pensadores livrepensando...

    A mãe do Crânio surgiu, como boa anfitriã, a oferecer café. Ambos aceitaram. O poente trazia um aconchego e uma melancolia. O sentimento de finitude (do dia e da vida) precisava ser expulso pelas palavras. Por isso, HD continuou.

    - Já disseram mesmo que não sou filósofo apenas por falta de método e diploma.

    Os olhos do Crânio sorriram detrás dos óculos, mas ele nada disse. HD sentiu-se encorajado. Percebia-se a qualidade do interlocutor.

    - Precisamos considerar a coerência das abordagens, não as crenças pessoais ou coletivas. A crença é emocional a priori, mas o método é dado a posteriori. – como o Crânio concordasse, em silêncio, HD prosseguiu. – A resposta depende da pergunta. Isto é, perspectivas limitam a abrangência da resposta. E igualmente importante é considerar a Coerência enquanto consenso de argumentos contrários, numa certa dialética. Podem ser aceitas a réplica e a tréplica.

    - O que impede o confronto de crenças.

    - Concordo. Caso contrário, impossibilita o diálogo.

    Esfregava as mãos, pensativo, agora que o café esquentava a garganta. Podiam encarar um sol que agora não oferecia mais ameaças. - Uma primeira pergunta, Wilson, a saber, a possibilidade de almas, espíritos, sem a existência de Deus, considerando-se Deus enquanto Inteligência Suprema. Da condição dada, levanta-se duas perspectivas. A de Deus Eterno (é, foi, será) ou Deus enquanto Evolução (Foi, passado remoto, e Será, em futuro esperado).

    - Mas e as relações da mente humana com a Inteligência? Deixe-me explicar. Trata-se de Mente Humana além das circunstâncias (há na mente humana um reflexo da Inteligência Suprema, antes da existência do corpo) ou o Ser Humano é o resultado de circunstancias de nascimento e formação cultural, onde o meio social nos determina?

    - Faz sentido. Mas para evitarmos um pensar-viciado, vamos pensar diferente do ensinado. Por exemplo, para essa questão procurar não pensar de forma cristã.

    Estando o Crânio de pleno acordo, HD entrelaçou os dedos e despejou. – Possibilidade da existência da alma dependente da existência de Deus. Deus é a Grande Alma, que gerou tais almas. Alma só pode provir de Alma.

    - Como pode Deus-Alma Perfeita criar almas imperfeitas? Deus perfeito criar um mundo imperfeito?

    - Podemos enumerar cosmovisões. O Mundo foi criado perfeito e foi deturpado. O Mundo foi criado imperfeito devido a existência de duas forças (Bem e Mal) em combate. Deus perfeito se torna imperfeito ao fragmentar-se em numerosas almas (espíritos enquanto força ativa) para adquirir experiência. Cada um de nós é uma fagulha do fogo divino. Tudo é Deus. Há uma transmigração das almas do mais simples vegetal até o ser humano. Tudo compartilha o fogo divino. O Perecer é o criar de nova vida. Vivemos num mundo imperfeito, mas é o melhor possível.

    - Parece-me que em todas as cosmovisões, a perfeição é identificada com a Unidade.

    - O multiculturalismo não estava na moda.

    Sorrisos. Enquanto isso, o sol morria.

    - Evitemos digressões. A outra possibilidade. Almas existentes independentes de uma Consciência Universal dotada de Vontade. Mas é possível um Deus perfeito enquanto futuro, isto é, não é Deus quem forma as almas, mas as almas, unidas, o formarão. Igual na parábola dos trinta pássaros que buscam Almotássim, e não sabem que trata-se delas mesmas o que tanto procuram.

    - E Deus é a União de todas as almas, assim não havendo separação entre Criação e Criador, logo Deus não transgride as próprias Leis, Não que Deus seja limitado, mas Ele É O QUE É.

    - Não há milagre. Anotemos. Lembro de um sofisma. Deus pode tudo. Pode criar uma pedra que Ele não pode carregar? E Ele pode carregar esta pedra?

    - Labiríntico. Mas já parou para pensar que o problema do Deus-Um-com-todas-as-coisas é a impossibilidade de superação, de Transcendência, pois Deus é a Imanência Absoluta.

    - Um Criador não distinto da Criação.

    Eis a noite. Crânio desliza até o interruptor. A luz deita-se sobre as samambaias, prolongadas em sombras esguias. HD insiste. - Outra perspectiva. O conceito Deus só existe na Mente Humana enquanto superação das nossas deficiências. Deus enquanto projeção dos Anseios. Deus é Imortal, pois eu não posso ser imortal.

    - Deus é tudo o que não somos.

    - Complexo e tanto, não? – acariciando as folhas caídas sobre o alpendre, HD procura um roteiro no mapa mental. – Mas se eu disser “Anseio de Perfeição”, de onde veio a idéia de Perfeição, isso de querer superar-se? Somos (naturalmente) dados à Transcendência?

    - Se sim, há contradição. Pois, segundo a perspectiva, a Mente é construída socialmente, logo nada antes (exceto o aparelho neuro-sensorial). Então alterando-se a questão: a idéia de Perfeição enquanto uma predisposição que será estimulada, ou não, pelas circunstâncias?

- Faz sentido. Se não, é coerente, pois ainda o que chamamos de Transcendência é ainda condicionada, determinada, pelas circunstâncias. Somos o que aprendemos. “O homem é aquilo que come.” E até o mais original entre nós é ainda produto do meio em que se formou.

    - É mesmo um labirinto. – gracejou o Crânio, algo sério – Quais as possibilidades do Cristo bíblico?

    - A segunda pergunta. Para analisa-la é preciso avaliar os testemunhos do fato. A Bíblia ou os tantos manuscritos encontrados em cavernas na Palestina. Quanto a tais escritos a mesma avaliação: trata-se de inspiração divina, ou é literatura, ficção local? Se é inspirada, é Verdade, logo Transcendência, e se é ficção é construto temporal, a partir de lendas e fábulas.

    - Literatura é determinada socialmente, enquanto produto histórico. Então as abordagens se articulam de acordo com A, além das circunstancias, e com B, determinado pelas circunstancias.

    - Crânio, devo reconhecer que você diagramou muito bem! Assim, se consideramos a abordagem B, temos a leitura enquanto metáfora. As imagens descritas para chamarem a atenção. Pois se houve milagre, por exemplo, caminha sobre as águas, foi milagre para a mente humana, não para Deus. Voltamos a perguntar se há milagre. Existem tais alterações das leis divinas, leis físicas? Continuemos. Todo mito é reportagem. Ocorreu algum evento que originou a narrativa. Um rebelde político contra o Poderio Romano. Figura carismática que movimentou as massas. Tal figura foi revestida de atributos divinos ao longo de narrativas sucessivas e posteriores, num verdadeiro processo de canonização, enquanto o aspecto de luta política se perdia.

    - A Hierarquia monopolizou o Saber e delegou a Felicidade ao Outro Mundo, incentivando nos fiéis a Esperança.

    - Meus parabéns pelo realce das maiúsculas. Mas ainda não terminei. Hipótese do Reformador Religioso. Fortalecido após a descoberta dos papiros conservados lá nas cavernas junto ao Mar Morto. Isso ainda em fins dos anos 40. É possível uma ligação entre o reformador e os essênios, verdadeiros puritanos (desculpe-me o anacronismo), e comprovadamente excluídos do judaísmo hegemônico, tal qual os hereges durante o poderio católico-romano.

    - O reformador seria tal um Lutero...

    - Outro anacronismo, mas vale. Agora uma mescla de perspectivas, hipóteses e teorias. O Reformador enquanto processo. Houve o indivíduo e seu papel histórico. Talvez o filho de rei que foi ocultado meio a humildes campônios. Houve uma intervenção dos poderes, que se sentiram ameaçados. Houve o sacrifício, a condenação. Relatos orais posteriormente coletados. A versão dos evangelistas lida por Paulo de Tarso, aumentada pelos Padres da Igreja, e vendida como Verdade até os nossos dias.

    - Qualquer semelhança com Antônio Conselheiro e Canudos é mera coincidência?

    - A História se repete enquanto farsa?

    - Espártaco. Os Gracus. Babeuf. Vendéia. Contestado.

    - Você devia estudar História, Wilson. Deixaria seus professores em pânico. Mas talvez você devesse ler Gibbons, aquele clássico sobre o Imperium Romanum.

    - O problema é que lemos tradução. Melhor seria ler latim, hebraico. Não creio que tradutores sejam confiáveis.

    - Toda literatura é produto da época. Afinal, aguardavam o Messias. Era o zeitgeist, o ‘espírito da época’. Ou diríamos, a Mentalidade.

    - Entendo. O Messias. Mas quem – o que – estamos esperando hoje em dia?

    Não houve resposta.




    Quando Stevam Lucena folheou as obras, os manuscritos e trechos datilografados (naquelas velhas Remington, que nem se via mais) do finado poeta TH, tudo diante dos olhos de Alfonso, seu irmão, este não pôde acreditar no que via.

    - Tudo inédito? Tem certeza?

    Alfonso é daqueles que adoram novidades, e esta era valiosa. Mas e a família do falecido?

    - Família? Agora querem colher a prata que se formou do acumular das lágrimas?

    - Stevam, você está falando igual ao próprio TH!

    E estava mesmo. Stevam conseguia perceber que através da auto-outorgada missão de divulgar as obras destinadas ao mofo, ele estava dando um novo sentido a sua existência? Notaria isso?

    O caso é que a Sociedade Literária da cidade gostou da iniciativa. A novidade chegou à Biblioteca, onde JB mostrou vívido interesse, ms sobrou para HD resolver o que a Entidade  municipal poderia fazer. Poderiam ceder a sala de multimeios, o auditório. HD tanto opinou, que foi indicado como responsável pela organização.

    É que HD gosta da movimentação, e esta foi a caráter. Como atrair público para o lançamento de autor obscuro? E Stevam não tinha oratória para ‘segurar’ o evento.

    Stevam, sim, aquele jovem, ali junto a entrada, a olhar tímido até para a própria imagem refletida na porta de vidro. No barzinho, onde derramava-se canções de Zeca Baleiro, o irmão Alfonso sempre fazendo contatos. Alfonso, que HD conhecera recentemente, num curso da Prefeitura, sobre projetos para leis de incentivo à cultura.

    Estava empolgado, aquele jovem pálido. Alfonso (disso HD se lembrava) revelou algo dos problemas do irmão, com seus fracassos, drogas, e que o poeta TH era um velho amigo. O TH que igualmente não teve vida tranqüila, apesar do nível social da família. O poeta se matou na noite de Ano Novo.

    Mas nada disso constaria nas biografias. E a pensar bem, ninguém ali era de qualquer renome. HD, um funcionário. Alfonso, um promoter em início de carreira. Stevam, um ressurgido dentre os mortos. TH, um dos mortos.

    Mas um imagem grudenta. – Ó Alf, diga-lá! Você já foi à alguma recepção do Automóvel Clube? E com o seu irmão?




    Duas semanas sem as visitas ao genioso Crânio, e sem interlocutores interessantes, HD nota a ausência do jovem amante da Filosofia, que passava as suas tardes em companhia dos Pensadores. E bons interlocutores são raros.

    Da última visita HD comentou suas leituras metafísicas, por exemplo, aquele volume de Teosofia, da Madame Blavatsky, traduzido por ninguém menos que Fernando Pessoa, o que não causa espanto ao erudito Crânio, às voltas com textos sagrados hindus. E claro que Crânio sabe que a tal Madame é uma heroína russa que conseguiu acesso a certos segredos tibetanos, “Não, nada referente ao Dalai Lama, por favor. O Dalai já é pop!”

    Aquela manhã, a Biblioteca fechada. Aliás toda a região, comércio, colégios e escritórios, devido a queda da rede elétrica. Turbinas continuam a girar, geradores não param de gerar, mas a energia não vem aqui chegar! Qualquer semelhança com o monumental blackout de New York é mera coincidência? Ou trata-se de outra crise energética, outro ameaçador “apagão”? a fragilidade das grandes cidades é espantosa! É preciso concordar com o saudoso professor de sociologia que se espantava a cada manhã em ver o mundo ainda ‘funcionando’. E certamente não porque ele lera o Apocalipse (ou “Apocalípticos e Integrados”, do Eco)

    Você sai de casa. O comércio está fechado. As luzes apagadas. Os semáforos desligados. O brilho das vitrinas totalmente ausente. As escadas rolantes paradas. Os elevadores, idem. Os computadores desligados. A torradeira, idem. E por aí vai. Sua imaginação é desvairada demais. A Idade Média de volta após o cataclismo do setor energético. Somente a imaginação não se apagou.

    Pelo menos desta vez a civilização não acabou. Assim HD pode reclinar-se em sua confortável cadeira, após o almoço, e ler as tragédias do dia anterior. Notícias internacionais, pelo menos estas, já que ninguém sabe informar o que ocorreu na rede elétrica da região. Estamos preocupados com atentados a bomba lá no Iraque (e atentado contra a ONU!) e deixem-me ler.

    - Emprestado? Logo hoje?

    Um rapaz mostra-se visivelmente decepcionado diante da Bibliotecária (que não é a nossa conhecida Vera, agora em férias até a primavera) por não encontrar o livro desejado. Logo surge outro jovem interessado em material didático sobre artes cênicas. Lista de autores. Nelson Rodrigues. Dias Gomes. Ariano Suassuna. O rapaz comenta a ausência da outra atendente, que julga muito gentil, não que a senhora não seja, não é isso, e a Bibliotecária menciona as férias da colega, e o outro lamenta, mas pelo menos ela descansa, é que ela sempre me indica filmes.

    Pena que HD tem que cumprir seu horário ali até dezessete horas, pois está morrendo de tédio. As mesmas bibliotecárias com suas intrigas, e frases feitas, mascando as previsões do horóscopo, e os mil afazeres que se resumem a nada, ler, cortar, colar, ler..., e os mesmos bocejos intercalados por sorrisos de atenção.

    Depois descera ao Parque, ruminando mentalmente velhos diálogos e presentes monólogos, “O que te causa mais horror: que tudo seja um acaso, ou que tudo seja planejado, por Seres Supremos, por uma Inteligência Suprema? Então? O que mais te apavora: que após a morte nada exista, ou que encontre lá toda uma nova realidade, seja paraíso ou inferno? Não é tudo um imenso absurdo? O homem é bom ou é mau? Há coincidência ou é tudo Providência?”

    Mas as árvores não podem responder, nem os seres empoleirados nas árvores, e neste banco não se senta apenas um funcionário público entediado,mas um homem frustrado. Não que HD aceite isso facilmente. Para quê pensar nestas coisas? Ele deveria é estar estudando para o concurso do Patrimônio Público e elaborar projetos de tombamentos de casarões seculares para transformar todos em centros culturais. Havia outros metafísicos no mundo, eles que se esforçassem! Se virem, seus maníacos!

    No entanto, um simples fragmento de diálogo rouba-lhe a atenção. Aquela tarde mesma, ali na Biblioteca. Na mesa ao lado, um jovem ao estilo punk discute, até eufórico, com um outro jovem, possivelmente de formação cristã. “Deus nesse mundo podre?”, e o outro busca argumentos bíblicos, mas é interrompido, “Ainda que exista, é de todo inútil!”, e o outro emudece. Que argumentos teria? Ali estão os jornais. Guerra, fome, corrupção. Ah, são as profecias! Pobre crença. Empolgado, o anarquista não é mais racional, “Não existe não, cara!” e tenta se agarrar num argumento, por exemplo a biografia de Gandhi, “Homem, líder, sem recorrer a Deus”, e o cristão não pensa assim, “Havia a fé, sim! Sem fé nada é possível.” E eu tenho fé que daqui a pouco serão dezessete horas!

    Mas HD percebe crer, talvez não na esperança ou na Vida Eterna, mas na verdade. Que há algo ocultado atrás de véus e que ele precisa saber o que é. “Ora, que mistério é tudo isso! E eu não o conhecerei?”

    É assim que HD chega a casa de Wilson, o Crânio, para uma breve visita, mas vez ou outra prolongada até o jantar.

    - Você acredita em coincidência?

    Pego de surpresa, o Crânio desconversa, envolve a mãe no enredo, e ela fala em Providência, Destino, Profecia, e o Crânio se julga salvo. Mas HD volta às questões sobre os ditos encontros casuais. A anfitriã aborda os sonhos proféticos, Você sonha e realmente acontece. Como bom leitor de Freud, HD precisa concordar que alguns sonhos são “pra lá de surreais”, e que Jung tem toda uma outra linha de interpretação, com arquétipos, inconsciente coletivo, até a abordagem mística de vivências passadas, Mas aí a coisa se complica...!

    O Crânio oferece café, mas HD prontamente recusa, “Eu nervoso desse jeito e você aí a oferecer café?” E passam a sala de estar, onde tranqüilamente podem conversar sobre literatura. Iso quando HD não se dispõe a destilar seus rancores.

    - Olha se é coincidência. Altas horas, o telefone toca, eu acordo num sobressalto, atendo. Desligam.  Eu sonolento deixo o telefone meio fora do gancho. De manhã, logo percebo e vou me sentir culpado. O que estraga o meu dia! Só porque uma alma penada liga noite adentro!

    Folheando Baudelaire, HD julga encontrar traços suspeitos de reacionarismo. Até porque não há “imparcialidade”, que o autor reflete a sua “consciência de classe”, que comunismo é mesmo coisa de pobre, que se ele, Hector, fosse rico queria mais é que pobre sumisse. Agora, imagine, você, um tipo tal o Gandhi, advogado com carreira e carisma, e a preocupar-se com os miseráveis, andando em trapos, preocupado com um punhado de sal.

    - Trouxa! Os ricos dirão!

    - E não é? Eles pensam assim. Olha esse aí: que idiota! Bom que sobra mais pra nós!

    Coincidência ou não, soa a campainha. A mãe atende e recebe a visita. Uma jovem, amiga da família. Sorrisos e risinhos. A mãe é a anfitriã pronta a guiar a moça através daquele reino rumo a penumbra da cozinha. E HD agora tem dificuldade em reatar a conversa. O brilho no olhar da visitante?

    O Crânio ainda em comentários sobre a guerra na Mesopotâmia, e de súbito estão em Império Otomano, e num salto atravessam a Segunda Guerra Mundial, a estrada de Berlim a Bagdá. HD não pretende se demorar, mas o interlocutor está à disposição. O interesse alemão em diminuir a influencia britânica no Oriente Médio. A diplomacia de duas caras. O desmembramento após a Primeira Guerra. Todos querem ser amigos dos árabes.

    E HD só sorrindo, acusando o Crânio de usar uma estratégia para segura-lo ali. – Ah, você sabe que o estudo das guerras me interessa muito.

    E logo chega a hora do jantar, anunciada pelo peixe na chapa. O que muito agrada ao nosso HD, não um fã ardoroso de carne vermelha, talvez por velha influência de Darío Sabine, militante vegetariano. Sentado à mesa, HD é apresentado à visitante. Não aparenta termais de vinte anos, com olhos claros e curiosos, voz calma e pausada, melodiosa e treinada. Apresenta-se como Elen Lauria e revela estudar artes cênicas.

    O Crânio apresenta seu amigo Hector Dias como um apaixonado por literatura e filosofia e que Elen não se sinta tímida em expor dúvidas ou pensamentos.

    - E eu até hoje não terminei de ler “O Mundo de Sofia”...

    - O do norueguês Jostein Gaarder? Livro muito procurado. Uma boa introdução ao pensar, aos pensadores...

    - Volume e tanto. Calhamaço. E quem disse que eu tenho tempo pra ler? Ora no teatro, ora no cursinho. E sábado ainda vou fazer um programa na rádio...

    E HD reconhece aquela voz realmente! Crepúsculos de sábado, em melancolias, ouvindo melodias de um rock rural, ou pop inglês. E diante de seus olhos (incrédulos!) a materialização da dona daquela voz, rindo-se de bandas ditas alternativas e anunciando as novas queridinhas das paradas de sucesso.

    - O mundo é mesmo pequeno. Existem coincidências? – e HD lança uma olhadela ao pacato Crânio, ocupado com o omelete e o molho inglês.

    - Como é? – ela quer saber. Mas HD explica sucintamente que pode tranqüilamente emprestar o seu livro para a curiosa locutora. Ela agradece com um sorriso-colgate e reconhece que já deveria ter lido o tal livro.

    -Acho que perdi muito tempo na minha vida.

    Uma mocinha de dezoito anos falando tão profundamente assim já é o suficiente para atrair a atenção de HD, que promete solenemente trazer o livro na próxima visita.




    As escadarias da Matriz são o cartão-postal do nosso centro histórico, desde antes dos tempos do Curral. Nessas escadarias namoramos, conhecemos futuras esposas, protestamos e freqüentamos quermesses e peças litúrgicas para a edificação da alma e arrecadação de rendas.

    Talvez muito se diga sobre as tais escadarias, um excesso que não podemos evitar, coisa emocional mesmo, certamente por um vazio do que dizer. Mas a referência é necessária.

    A nossa Biblioteca, modesta, situa-se aos pés das escadarias que se derramam para a rua lateral, aquela dos edifícios que destoam de toda a paisagem colonial, e lá, meio ao cheiro de livro velho, onde adentro, junto com o Stevam, a folhear um volume do professor e poeta local Carlos Antônio, reencontro, em figura típica de leitor, o recém-chegado HD.

    Na verdade, encontrei o cara antes do almoço, na oficina de Produção Cultural, que nosso centro de cultura promovia, mas sem dar muita atenção. Apresenta-se correto e discreto, se levando muito à sério. Hector Dias, estudou História, é escritor, quer trabalhar com promoção cultural, natural do Barreiro, conhece a realidade da periferia, é arquivista na Biblioteca Municipal, e outros detalhes, que não digo esquecidos, pois nem ouvi.

    Não que o Sr. Hector seja desprezível, mas por um excesso de mornidão e confiança de funcionário público, e mesmo concordando-se com o Drummond que a literatura nacional é feito de funcionários públicos, mas não vejo nada literário irradiar dessa figura. Talvez já esteja contaminado pela burocracia.

    Foi Stevam quem empolgou com o tal HD. Afinal, precisamos de alguém que nos dê uma mãozinha para lançar o livro do TH. E o homem conhece o meio literário. Olhei para Stevam com toda a paciência do hemisfério ocidental, E eu não conheço?

    - Vejo que não perde tempo.

HD jogou um olhar de náufrago, levantando as órbitas de um mergulho num denso volume, que posteriormente descubro ser uma biografia (autorizada?) de Joseph Stálin.

    Apresentei um exemplar do recente livro de poemas do nosso caríssimo Carlos Antônio, ao qual dedicou dois minutos de sua preciosa atenção e poupou adjetivos ao qualifica-lo sucintamente, “Bom!”, e apontar “certa influência de Manoel de Barros”, e prometeu escrever um ensaio crítico sobre a obra, visto perceber toda a minha boa-vontade com a mesma. Estranhei o fato de ele querer me agradar.

    Depois o convite para o almoço. Agradecemos mui cordialmente e gentilmente recusamos. Pensou um momento e, olhando para o Stevam, disse ter encontrado na manhã anterior, ali mesmo, “um outro Stevam”. Corrigimos prontamente, quer dizer, “o-outro-Stevam”. Sim, pode ser, se o conhecem. Moreno, alto, olhar calmo, ms sem ocultar curiosidade, fala pausada, mas de súbito empolgada, mostra-se grande apreciador de Friedrich Nietzsche.

    Sim, é ele mesmo, o-outro-Stevam. E até imagino a cena. HD lendo atentamente a biografia do Stálin (no polêmico trecho da invasão nazista em 22 de junho de 1941, se o Grande Pai sabia ou não) e interrompido (ainda que polidamente) por um jovem moreno, alto, olhar calo, etc, a indagar (como o-outro-Stevam sempre faz) se “você estuda filosofia?”, pois seu projeto de vida é estudar filosofia (quiçá algum dia ele consiga!). E HD respondendo que “academicamente não, mas continuo folheando volumes de Marx e Sartre” o que, de imediato, rompe a timidez de outro-Stevam que se auto-convida para sentar (se não estou incomodando) dispostos a discutir o niilismo em Nietzsche até as últimas conseqüências (até a Biblioteca fechar).

    Com certeza, a gente reencontra o Hector, o HD, no lanchinho da tarde, e talvez o convite de Stevam o interesse. Por enquanto é deixar o literato em companhia de expoente autor local. Lembrei-me depois que aquele exemplar do Carlos Antônio era autografado.



    Cuidadosamente mapeou os trajetos da mocinha, e sabia onde exatamente cada localização, contudo nunca a encontrava!

    Exceto uma vez, quando HD foi ao Centro Cultural e Elen Lauria acabava de sair da aula de teatro, com as amigas, e concedeu-lhe um momento de atenção, enquanto ele, na escadaria, anotava um trecho de poema, que insistia em ruminar mente adentro. Olá, como vai você? Muito bem, e a mocinha?, Estamos aí, Ensaiando a nova peça?, Oh, sim, quilômetros de textos para decorar! Nisso, as amigas, já ao pé da escada, não demoram em convocar a mocinha com visíveis sinais de impaciência. Ela se despede com monossílabos e sorrisos. E desaparece.

    Ou no Centro Cultural, ou na casa do Crânio, ou na Rádio Comunitária. E os esperados encontros não ocorrem. Não que exatamente idealize conversas e gestos, mas está sendo devorado pela curiosidade. Quem é essa Elen Lauria?

    Talvez nunca viesse a saber, se não soubesse por meios indiretos de certa festa em casa da jovem atriz, e sutilmente se apoderasse do endereço da mesma em elaborado telefonema ao irmão do Crânio.

    É que após rondar o Centro Cultural e visitar a Rádio Comunitária pelo menos duas vezes, sem qualquer sucesso estratégico, e nunca encontrando a moça na casa do Crânio, ele, o nosso HD, resolveu ir a tal festa, sem convite! Invasão de privacidade!


    Meio as tias e primas, ela atende a campainha. De vestido longo e descalça. Cabelos presos junto a nuca, transpassados por varetas nipônicas. Infinda surpresa ao depara-se com sua figura. Mas vãos entrar! Muito educada. Apresentações e tantos vultos femininos. E ela não pode se dividir em tantas atenções, pronta a auxiliar a mãe nos doces e confetes ou em guardar os presentes da irmã, sim, pois trata-se da festa de aniversário da irmã caçula, menininha mui curiosa que quer de qualquer jeito saber quem é esse fulano!

    Obviamente ele nada pode dizer, ali deslocado, e nada pode fazer além de observar cada gesto da atriz, meio aos convidados, toda sorrisos, a trocar gracejos com as primas, bailando com sandálias transparentes e unhas brilhantes. De súbito, surge meio ao turbilhão de faces e saias, a esperada face e seu sorriso oferecendo uma bebida. O irmão mostra-se amistoso, mostra desenhos que esboça em telas. Os primos estão à distancia. Há um videogame sedutor ligado lá no quarto.


    Uma semana depois, HD telefonou, em trasbordante futilidade, mas interessado no que borbulhava naquela cabeça. Ela apreciava versos? Ele enviaria versos. Ela lia calhamaços de filosofia? Ele emprestou dois títulos de sua Biblioteca. Ela dedicava-se a estudos de língua inglesa? Ele não hesitou em emprestar gramática e dicionário. Ela é fanática por música estrangeira? Ele oferecia folhas e mais folhas com traduções de bandas rock ianque e pop inglês. E ela o que fazia?

    Ao telefonema, Elen Lauria era movida a argumentações, e todas partindo Dele. Era incapaz de iniciar um assunto e de alimentá-lo, ainda que fosse teatro (seu sonho, sua dedicação) ou música (sua diversão). Pausas longas e silêncios opressivos marcavam tais insólitos telefonemas. Mas HD tinha diante de si a chave que abre todas as portas e fortalezas, a saber, a paciência.

    - Mas, diga-me, Elen, o que achou de “O Mundo de Sofia”?

    - Sei lá. Parece literatura infantil, mas pelo menos eu descobri que existe vida inteligente no mundo das fábulas...

    Mas nunca se animava a terminar a leitura do referido. E assim não chegava a uma conclusão. E estava mais preocupada em estudar para o vestibular das Artes Cênicas, que era amedrontador, segundo comentários de antigas vítimas.

    - Elisa tentou no ano passado e não passou.

    Mas quem era Elisa? HD não tardaria a descobrir.


    Ele e o convite para o lançamento do livro do obscuro poeta TH, mas ela alegando já ter prometido sair com a Elisa. Assim sempre. Não era possível pois havia Elisa. Ou não poderei hoje, pois há um compromisso com Elisa. Faltava revelar que tinha um affair com a Elisa, trata-se da melhor amiga e dessas coisas a gene entende e até perdoa.

    Mas havia também o melhor amigo, Jaime. Que vez ou outra, ele, HD, ouvia semelhante nome e não conseguia chegar a um acordo consigo em como deveria ser semelhante figura. Mas não adiantemos.




    Levantou-se com a aurora, jogou a mochila nas costas e saiu. Perambulando pelas ruas estreitas da Lagoinha, suas ladeiras e casas seculares, a desmoronarem. Viu lá de cima o mármore dos túmulos, as lápides negras, as lajes brancas, e a capela no campo de morte.

    Descendo e ultrapassando os pés vagarosos rumo aos velórios, chega diante da inscrição em latim, MORITVRI MORTIS. Cumprimenta o porteiro e indaga sobre a inscrição.


    “Dos mortais para os mortos”, aqueles que vão morrer oferecem esta morada aos que já morreram. – assim esclarece o homem, encurvado sob o peso do tempo, a saber-se futuro habitante da macabra morada.

    Os seguranças da portaria ressaltam a proibição quanto o uso de máquinas fotográficas. O cemitério não é museu, convenhamos. Ainda que seja atração turística. E nem mesmo desenhos, e muito menos compilações de jazigos e nomes. E nada de recolher souvenirs. Pode comprometer o senhor, entenda.

    Adentra a sinistra morada, sendo envolto pelas imagens da dor, esculturas feitas de lágrimas e fé. Lápides negras tal ébano, lustrosas ou cobertas de flores secas, ou lajes alvacentas, ou amareladas por fungos. Algumas trincadas pelo correr do tempo, pela invasão de raízes vorazes. Árvores mirradas ali estendem sombras exangues sobre as criptas.

    Datas sobre as lajes, décadas passadas, testemunhas de gerações naufragadas, lembranças gravadas na pedra. Este aqui jurista, morto aos 65 anos, quantos filhos?, cinco netos?, 1890-1955, seguem-se citações bíblicas, “E Deus confortará...”.Sob um anjo infante uma triste inscrição, datas próximas, 27-08--05-09-1962. Uma vida mal desabrochou e já é uma chance perdida! Respirando uma semana entre os vivos, tão precocemente arrebatada! Um anjinho.

    Enormes monumentos da lembrança e da morte, os mausoléus, as criptas, os jazigos perpétuos das tradicionais famílias. Contraste com os campos verdejantes marcados por plaquinhas e algarismos negros e desbotados, na anônima morte no cemitério-parque. Não uma necrópole, mas um bosque onde floresce o absurdo.

    Mas aqui os mortos ilustres! Os fundadores! Os patriarcas! Descansam na companhia gloriosa da justiça, da Sabedoria, da Tristeza. Sobre eles, os Grandes Homens, o esplendor das Leis, ou o Bom Pastor, a pesarem sobre os seus ossos mofados.

    Até na decadência um elitismo, aqui um bairro nobre, aristocratas do Estado, junto aos muros, décadas de 60, 70, os bons pais de família, as reservadas mães austeras, as vovós sempre bem penteadas, os obedientes filhos do destino. Mármores em destaque meio a tripulação das eras. Que Deus tenha misericórdia!


                                                  Sônia Regina Dalmas

                                                  27.12.1980 – 25.09.1999


    Ao lado um casal de anjos. Suas asas se confundem. Uma jovem de mármore lamenta reclinada sobre o túmulo. Na pedra as manchas deixadas pela chuva e pelo sol lembram lágrimas que escorrem. Um Cristo Bom Pastor apascenta suas ovelhas sob as colunas dóricas.

    O tempo parou, mas o vento carrega folhas secas.

    Sônia A Rainha das Almas. Insônia das Almas.

    Sob as cruzes os vermes traçam esguias espirais tecidas entre as mortalhas das gerações.

    Quando saiu, pela mesma portaria, ninguém o incomodou.




continua...

quarta-feira, 9 de março de 2011

Capítulo 2 - iniciando...


Flores no Asfalto


Capítulo 2 


    - Deixa eu te apresentar ao Crânio.

    JB encontrou HD na hemeroteca e foi logo arrastando o rapaz, não sem esclarecer que o verdadeiro nome da eminência era Wilson, mas por se tratar de um gênio, o apelido se justificava.

    O gênio estava em sua cadeira de rodas. Paciente. Todo jovial, braços robustos, olhar curioso. Um cobertor cobria as pernas.

    Sua calma, sua imobilidade, era compensada por suas leituras vorazes, isso quando não escrevia longas páginas de pensamentos e monólogos, ou ousava sonetos camonianos. Uma enciclopédia viva, as bibliotecárias elogiavam.

    E o Crânio (permita-se o apelido) folheava “Crime e Castigo”, de Dostoievski, eminente autor russo, cujas personagens de consciência atormentada e situações-limite incomodaram existencialmente muitos livre-pensadores. Mas será Dostoievski apenas um cristão torturado? Revolucionário, que preso, se converteu à causa de seus carcereiros?

    E abordaram o excesso de consciência na mulher de Leopold Bloom, quando Molly regurgita pensamentos noite adentro. Ambos mui orgulhosos a elogiarem a obra de James Joyce, “Ulisses”.

    E discutiram o cinismo enquanto grande invenção do Ocidente, e basta citar o exemplo de Diógenes, o Cínico, ou Falstaff, de Shakespeare, e o rir de si mesmo (o que difere de Hamlet, que sabe – ou hesita – demais e se afunda, no trágico).

    E prometeram um ao outro uma discussão ao nível filosófico a la Schopenhauer sobre o como sobreviver com a Consciência de si mesmo, carregando um fardo de um sentir-se sempre incompleto.

    - O fardo do Vazio é que nos aniquila.

    Crânio adorava estas frases de romances filosóficos. (E não fora ele que indicara Jostein Gaarder para a curiosa Elen? E que depois HD foi ingênuo o suficiente para emprestar o volume?) Mas não adiantemos.




    Certamente que as palavras de cortesia de JB em seu carisma de sorrisos amplos, houvera por derreter certo gelo no coração de HD, deslocado nos tramites e arquivos da Biblioteca. Precisava de luz no caminho e teve. JB nunca negou uma dica, uma orientação, até inconveniente às vezes, HD nem precisando.

Naqueles corredores, onde vez ou outra, o Crânio a deslizar de estante a estante, com dúvidas tantas e palpites outros, e discutiam Dostoievski ou declamavam Florbela Espanca, quando não folheavam os jornais e reclamavam a mesmice, “o mudar para continuar o mesmo”, coisas assim, ou abraçam junto ao peito o Rosa, aliás, um volume do Rosa, geralmente o clássico “Grande Sertão:Veredas”, e alçavam olhares de inegável saudosismo.

    - Guimarães Rosa? Sim, eu leio. Escreve livros que você só lê com um dicionário Português-Brasilês ali do lado.

    - É porque, veja você, é no descostume de desler o mundo que o homem se manifesta, no olhar aberto em demasias, assim imoderadamente, tipo minha tia Deolinda dizia, ela, lavadeira, lá na ribeirinha, beira de Jequitinhonha, com os olhos vidrados d’água, a lembrar do seu homem morto no pó da estrada, tiro pelas costas, e aquilo de trazer cascatas nos olhos da gente.

    Quando JB assim começava, HD até se sentava.

    - Nas ribeirinhas, em busca da terceira margem, eu em versejar o aqui de dentro, sem outro rumo na vida, cristãmente em ajudar os necessitados, não igual dizem por aí que o fraco a gente termina por derrubar. Não, deusquelivre! Caridade. Um cuidar que nunca se viu! Amor ao próximo que se aprende, e cada pessoa um poema. E estilo! Não rabisco num papel, mas carne-e-fôlego, um rir e um chorar, vai de um subir-descer na vida aceitar. E todos irmãos, que o Pai é um só. O entedio? Que quando confiança tenho, pra ouvinte de paciência, não poupo fala, e tudo vai de transbordo. E eu ainda de ir ao barraco da escola do arraia, eu sozinho e eu, nos pastos de berros, e uns vôos de anu, e ainda não sabia que eu era menino assim feliz, pois não, feliz desabendo de rir, comendo poeira do sertão, e inté que catei os cadernos e fui prum colégio, na cidade que tinha até fonte de luz na praça, e um professor, Sô Acyr, que ajuda minha mãe com passagem e conheci o parque da Capital, num domingo de olhos arregalados.

    Nisso, HD se acomodava, que o rio tinha ainda muito que transbordar.

    - Então que circulando em torno d’eu o novo mundo, que assombro!, de mirrado no meu canto, a querer estender asas e qual!, buraco maior que as pernas, só colhia dissabores, em tentando só sozinho conseguia nada, nadamente, Num desandar de sobre as vontades da gente, quase num desistir, conheci o WS, numa mesa de bar, e ele salvador de letras e rabiscos, mão toda estendida, tirou do poço fundo o lá caído, este que vos confessa, vexame não tenho, e o vôo do anu-poesia num arrepio só, desusado, fundoso, com cara-coragem... O WS? Sucintamente assuntando, ele vinha como que em asas, todo lá encimando. Bicava de mesa em mesa. Um filhote sob as asas, que era o MC, de óculos e brilho. E de livro aberto, os livros, que vendiam como a cura da peste, para separar os ignorantes dos sábios, para encantar moça bonita nos braços do namorado. Mas sem poesia de enfeite, que WS não é disso, homem-de-plumas, voando lá longe, lá encima! Ousava ter jeito de acompanhar o anu, o pássaro-sílabas que voejava acima das cabeças e cachaças.

    - E os estudos? – HD, no torpor do interesse.

    - Ah, os estudos! E estudo na Capital, num quartinho de pensão da Sagrada Família, com livros de mofo-memória e gritos dos vizinhos e mascates, e um trânsito dos quintos dos infernos, e eu moendo a coluna no asfalto, os joelhos doendo, a vender plano de saúde, que Jesus-os-tenha, e a cursar a escola de gente grande descabeçado caído na carteira, noite de sono, sem sono escuranoite, vivendo assim, só Deus sabe, e você veja, o WS publicou o meu livro e eu enviei exemplar para minha mãe, e ela respondeu e lágrimas, não no envelope, que molhava tudo!, mas se telefone gotejasse, ah, então gotejava!

    E, por ventura, vinha um estudante de olhos esticados para o arquivo da hemeroteca, o que livrava HD da descrição rosiana dos vultos familiares de JB, o de olhos úmidos.



    Naquela tarde, HD não se surpreendeu ao encontrar o Crânio em companhia dos livros, mas não esperava que Crânio estivesse lendo algo obscuro como um Bhagavad Gità.

    Grosso volume entregue aos dedos ágeis do gênio, mas julgara ser uma Bíblia daquelas católicas, mas era a sabedoria indiana que atraía a atenção do erudito Crânio.

    Não era mito que o autodidata estudava quinze horas por dia, até porque o que mais poderia fazer?

    - Pouco conheço de Oriente, meu amigo. Ainda nem entendi o Ocidente...

    Era a desculpa de HD. Nada mais que a senha para o Crânio iniciar o seu monólogo sobre as grandes figuras da filosofia indiana, os mitos e as viagens, a visita dos deuses, e não satisfeito, aborda os pensadores chineses, os monges do Tibet, a mensagem de esperança do Dalai-Lama.

    HD ali, pacientemente sentado, ouvindo e pouco contribuindo, percebe que outrora jamais faria semelhante visita, ou concessão, com toda aquela boa-vontade em estar atento às palavras do outro.

    - Sabe, meu amigo, acho que todo esse interesse por orientalismos não passa de uma frustração com o Ocidente.

    E HD, tão pacientemente quanto antes, esclarece nada entender de brâmanes, castas, avatares, carmas, e que pouco se interessa por filosofias dualistas ou não, niilistas ou não, que sua preocupação atual é entender como é feita a programação das rádios, como é movimentada a propaganda governamental, em como funciona a Indústria Cultural.

    Então Crânio empresta um volume de “18 de Brumário” ao nosso HD, pois “A Dialética do Esclarecimento”, percebia-se, ele já havia lido.

    E durante um chá com broa de fubá, entram num acordo não escrito de só conversarem sobre literatura, e criticando as tantas traduções de “O Corvo”, The Raven, de Edgar Allan Poe, passam a excomungar as academias e os beletristas.




    Na visita anterior, HD encontrou Wilson, o Crânio, lendo o Baghavad Gità, e folheando volumes de Poe, além de obras de Karl Marx. Agora depara-se com o irmão de Crânio, o solene Hudson, dedicado a leitura de um livro que denuncia a “corrosão do caráter” nas sociedades modernas.

    Quando Hudson se ausenta um momento, HD se apossa do livro e, notando ser uma obra de autor cristão, comenta que é coisa dos reacionários, que fazem um diagnóstico até coerente, mas a cura que apresentam é o retrocesso – o fundamentalismo.

    - O homem de ontem tinha mais caráter que o homem de hoje? – HD começa, coçando o queixo, todo pensante. – Talvez, ontem a identidade se formasse mais sólida, mais rochosa, até. Mas será que somos piores hoje? O que há é muita depreciação, “Nos últimos dias, os homens serão egoístas, mentirosos, vaidosos, desprezadores de pai e mãe, mais amigos dos prazeres...”, ah, vocês conhecem o versículo... E os homens não foram sempre assim?

    O irmão religioso defende um exame do texto bíblico, no que se filia aos neoreformistas, afastados do emocionalismo dos neopentecostais, e sua visão dos problemas sociais não é desfocada, mas as curas que sugere são até mais desastrosas que a doença. E concorda ser assim pois o homem é teimoso e mau por natureza.

    - Natureza humana? Esse papo de que o homem é naturalmente bom ou mau? Uma boa discussão? Dividamos os times: o homem é mau, a sociedade o domestica, temos aí Maquiavel, Hobbes, Freud; ou o homem é bom, a sociedade o perverte, temos então La Boètie, Rousseau, Bakhunin, Marx.

    Crânio, pensaroso no seu canto, percebe a distinção e mostra-se indeciso entre o otimismo de Rousseau e a suspeita de Freud. HD prefere confrontar Marx e Freud, lembrando das carências.

    - Se todas as necessidades de um homem forem satisfeitas, ele será virtuoso? Se recebeu carinho, porque ser agressivo? Se tem o que comer, por que vai roubar? Mas o homem está constantemente insatisfeito, em ânsia permanente. Saciado o apetite, surge a libido, e obtido o prazer, brota a cobiça, junto com a vaidade e a intriga.

    Crânio concorda. – Hoje quer comer, manhã, uma companheira, depois uma morada, então um carro, e amplia a casa, chegam os filhos, a escola dos filhos, agora dois carros, a faculdade dos filhos...

    Os interlocutores acompanham, ele continua, enquanto HD observa o crepúsculo além da varanda.

    - Quem vai satisfazer os apetites do individuo e conserva-lo pacífico? Quem vai alimentar, acariciar, dar casa, carro e roupa lavada? Quem vai distribuir a renda?

    - É de se pensar se o Estado seria capaz. Apaziguando a cobiça. Mas quem o arquiteta? A quem defende? Para os nossos pensadores citados é geralmente considerado opressor, não libertador.

    - E o Estado de Bem-Estar Social?

    - Pode amortecer a luta de classes, mas não a supera. Salvou a Europa nórdica, onde sem qualquer revolução a nobreza ainda viceja, mais de duzentos anos após a cabeça de Luís 16 ter rolado...

    - Sem considerar os fascistas monarquistas...

    - O fascismo é fascinante? – HD provocante, no sem-rumos da prosa.

    - A perversidade tem livre vazão. – diz o religioso.

    E HD cita o exemplo de Eichmann. Homem polido, cortês, fiel cumpridor dos deveres. Mesmo que sejam o sistemático extermínio de pessoas indefesas.

    - O homem era um simples burocrata. Cadáveres? Nada mais que números numa planilha. Veja o Sr. Adolf. Terá assassinado alguém? Digo, diretamente. Pois lembro que foi soldado na Primeira Guerra, mas na batalha o assassinato é anônimo.

    Crânio lembra os fascistas com apoio cristão. HD não se surpreende. – Veja o Plínio Salgado. O sujeito conseguiu o prodígio de ser fascista e cristo ao mesmo tempo. De orgulhar o generalíssimo Franco!

    Crânio não disfarça um sorriso irônico. Hudson, o irmão, é o único a continuar solene, em profunda atenção. Preocupa-se com tantas digressões, “Ficaremos aqui até de madrugada!”

    HD adianta-se em esclarecer que não estuda as guerras como um hobby, ou para saciar ímpetos militares, mas porque quanto mais se informa, mais se espanta, mais irracional acha tudo aquilo, assim é vacinado contra qualquer militarismo.

    - Mas ainda bem, se algum dia acharmos tudo aquilo normal, então estaremos incapazes de qualquer indignação!

    - Mas não vivemos assim, meu caro? – HD com amargura. – Olhamos a miséria nua e crua e subimos o vidro do carro, fechamos a janela, desligamos a TV. ‘Boa noite, querida, que estou entediado. Me acorde às seis.’

    Olharam-se em silêncio. A noite invadia os pensamentos. Algo pesava, não era só angústia. Era hora do jantar.

    HD aceitou o convite.




    O rapaz de roupa preta e camiseta de banda de som pesado, todo sério, adentra a Biblioteca e logo pergunta sobre livros de filosofia. Atendido pela bibliotecária, que disponibiliza rapidamente alguns volumes da coleção Os Pensadores. Pronto para a leitura, o rapaz acomoda-se numa mesa lateral.

    HD continuou na Hemeroteca. Caso a Bibliotecária saísse, HD poderia ajudar os estudantes. Fichas catalográficas fora de ordem eram a sua preocupação atual.

    Outro rapaz entra e procura pesquisa, ou alguns recortes, sobre Terrorismo. A bibliotecária está pronta para servi-lo. Começam a folhear revistas e pastas da hemeroteca.

    A bibliotecária comenta sobre os grupos irlandês e basco, e apresenta grupos anarquistas e palestinos, depois espalha recortes sobre os terroristas islâmicos, e os atentados contra os Estados Unidos.

    - Pois o IRA é que bizarro. Antes d detonar as bombas, os caras ligavam, avisando sobre o atentado!

    Vera e o seu senso de humor. HD não pode deixar de comentar a origem do Exército Republicano Irlandês e seu terrorismo um tanto romântico, e lembra cenas do filme “Michael Collins”, que narra as vicissitudes do IRA após a queda de Parnell, e de como Collins, não exatamente um fanático, é morto antes de alcançar seus objetivos. E morto por traição dos próprios companheiros!

    - Visavam desmoralizar o governo inglês, e forçá-lo à negociação. Nada de ênfase em eliminação física que se nota nos terroristas fanáticos.

    A sempre falante bibliotecária comenta outros filmes sobre terroristas, tipo “Inimigo Íntimo”, outro sobre irlandeses versus ingleses, ou “O Informante”, sobre a CIA atuando dentro dos EUA e sua face fascista.


    HD não pode deixar de comentar (ainda que as fichas catalográficas continuem fora de ordem) a ilegalidade de tal atuação, uma vez que tal Agência foi criada para atuar no exterior do país. E comenta que nos filmes os agentes, em dada idade, são aposentados e enviados para ilhas secretas (supõe-se) para que não divulguem o que sabem (são homens que sabem demais) e claro que há toda uma teoria da Conspiração que insinua eliminações físicas.

    - É até importante essa série de filmes feitos a partir de arquivos. Muitos dos quis só agora abertos! Desmistificam as ações, o trabalho dos agentes, as razões dos espiões-duplos. Já estamos cansados de James Bond.

    O Arquivo vai ter que esperar, pois HD segue lembrando que já passou a era do terrorismo, digamos ‘romântico’, e que se o IRA era ingênuo (imaginem os árabes visando antes de atacarem o World Trade Center!) o ETA, o grupo basco, é ultrapassado, sem apoio popular, visto terem surgido contra o fascismo centralista do Generalíssimo Franco, que se arrasou até os anos 70, e restaurou a monarquia.

    - E nem vamos comentar o terrorismo de esquerda. As falanges vermelhas italianas e o Baader Meinhof alemão.

    Voltam à questão da CIA atuando no interior dos EUA e de como de tanto lutar contra o fascismo os EUA se tornaram fascistóides! - Já notaram a quantidade de filmes de guerra made in USA? – HD sentou-se à mesa lateral para melhor dissertar. – A República agora é Império. Filmes para que os jovens inflem seus peitos de orgulho e morram pela glória da p´tria (a qual julgam democrática!) em terras distantes. Quantos filmes belicistas desde o Vietnã? Podem fazer uma lista! “Platoon”, “Apocalypse Now”, “Rambo”, “Resgate do Soldado Ryan”, para citar os mais famosos. Depois de derrotar a Cartago fascista e a Gália pseudo-comunista, a nova Roma torna-se refém do espírito guerreiro, isto é, da indústria bélica.

    E HD continua a trazer à lembrança que o método (se realmente existe) de eliminar agentes e não aposenta-los, se assemelha aos métodos de regimes “totalitários”, não importa se de ‘direita’ ou de ‘esquerda’. Apesar de muitos preferirem usar a “lavagem cerebral” e não a eliminação física. – Querem devotos, não mortos.

    Então é a vez de Vera, a bibliotecária, citar a obra “1984”, do inglês George Orwell e filme baseado na obra, onde a cena da “redoutrinação” é destaque. HD lembra que o protagonista se tornou, ao fim, um defensor do sistema que ele condenava. A bibliotecária acha que o protagonista foi eliminado, pois o “Big Brother”, o Grande irmão, não tem absoluta certeza da “devoção” dele.

    - Mas, minha querida, o livro é um alegoria. O cara encontra sua amada num parque – e não trocam palavra! Logo deu resultado a tal “reprogramação”.

    A bibliotecária até aceita que seja ‘alegoria’, onde várias interpretações são possíveis. HD aponta na estante o volume de “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, e não é demais lembrar como os ditadores conseguem ‘convencer’ os dominados.

    - Pois há um limite para a eliminação física. Morrem somente os mais ‘recalcitrantes’. Talvez seja o caso do romance. O qual prometo que vou reler. – HD apazigua a polêmica.

    Agora é Vera quem está animada. Cinema é sua obsessão e parece que o assunto vai render. “MIB – Homens de Preto”, onde o governo oculta informações, para o melhor bem-estar dos cidadãos, ou “A Rede”, onde uma internauta-maníaca é perseguida, ou “Matrix” ou “13o. Andar”, ambos sobre a Realidade enquanto ‘simulacro’, simulação digital.

    - Eu queria saber por que filmes assim fazem tanto sucesso. Isso desde “Metropolis”, ou “Blade Runner”, onde o que parece humano é replicante, é máquina. Ou esse “Matrix”, onde tudo nada mais é do que imagens desfilando mente adentro. Identidade e Realidade. É o existencialismo em revival, seis décadas depois? Virou entretenimento ou estamos um tanto esquizofrênicos? Perceberam que todos os filmes tratam da questão: Quem Somos?

    - Ou o que somos? – a bibliotecária Vera esboça um sorriso. – Talvez uma tomada de consciência, mesmo acompanhada de pipoca e refri. Faz pensar sobre a massificação, a homogeneização das culturas e mentes. A Globalização.

    - Mas a Globalização é considerada ‘processo histórico’. O problema é a norte-americanização do mundo. Mas há quem diga que sempre há um Império. Um poder para centralizar e guiar hegemônico os povos e as economias. Egito, Grécia, Roma, Grã-Bretanha ou United States, não importa. Trata-se de um ‘papel histórico’.

    - É. A História se repete.

    - Sim. E o Império não pode negar seu ‘papel histórico’. Quer queiram quer não, são o Império da vez.

    - Marionetes de marionetes.

     As atenções se voltam para o rapaz que lê Os Pensadores, a um canto, tão silencioso.

    - Tal o Big Brother. Quem vigia quem vigia à tela? – HD mais enigmático. – Quem vigia quem? Quem guia quem?

    - E cuidado com a Oráculo.

    - Você também desconfiou dela? Afinal, aquilo que você quer é o que te ensinaram a querer. O que você quer é o que eles querem que você queira.

    - Quem arquitetou a Matrix?

    - A matriz hollywoodiana. Mas esqueçamos os tantos efeitos ou as trilhas sonoras estressantes. Imaginemos agora ter em mãos o script, o texto, os diálogos...

    - Esquecendo a parafernália digital. – diz o rapaz que lê filosofia.

    - Sem tantas explosões e tiroteios... – lembra a bibliotecária.

    - Certo. A Matrix engloba tudo. Portanto questionar sobre a mesma já está no programa! A dúvida sobre o Sistema já está programada e é sempre esperada! Trata-se, assim, de uma auto-análise do Sistema. – Pausa para certificar-se da atenção dos demais.- Tratando-se de um sistema fechado, não h´espaço para a liberdade, tudo é pré-determinado.

    Pausa para pensamento profundo e metafísico. Mas logo quebrada pela bibliotecária Vera, a lembrar novamente do filme “13o. Andar”, onde não há o tal andar (tão temido!) e o protagonista sai a procura de um assassino, e vai percebendo que ao seu redor se passa uma simulação, um jogo, e que por sua vez alguém joga o jogo, um jogo dentro do jogo.

    - As caixas chinesas, a mamãezinha russa. – HD, surpreendido.

    - Uma dentro da outra, ao infinito. – o rapaz meio aos Pensadores, empolgado.

    - Mas, voltemos ao onipresente “Big Brother” de Orwell. Quem vigia aquele que vigia à teletela? Hein? Estou aqui, ali uma câmera, lá um vigia de olho em mim. Mas quem está de olho nele? Quem, afinal, observa todos?

    - O mestre dos fantoches? – o rapaz já esquecendo os Pensadores.

    No entanto, Vera, a bibliotecária, não encerrou seu comentário quanto ao filme do jogo-dentro-do-jogo, referindo-se a possibilidades outras para os acontecimentos do jogo. – Tipo uma mesa surgir numa sala, ou uma cadeira a mais, ou a menos, uma visita chegar, ou alguém sair, coisas assim.

    - Tipo os programas de videogame, onde o obstáculo surge à esquerda da tela numa fase, e na próxima, pode surgir à direita, e em outra, aparece no meio. Ou seja, o programa mantém os elementos, digamos 1 – 2 – 3, mas varia, em outras combinações, 1 – 3 – 2 ou 2 – 1 – 3 , ou outras.

    “Espero que eles sejam bons em Matemática. Que tal os múltiplos universos paralelos? Só para um leve brainstorm.” - Assim existem alternativas a cada possibilidade. Ao entrar aqui poderia ter dado um passo a mais, deslocado dez centímetros e derrubado a pilha de livros na segunda mesa à direita, ou estaria no horário do lanche, e não haveria este diálogo. Entendem? Mas imaginem se tais possibilidades coexistissem simultaneamente, separadas por segundos e milímetros! A realidade em que derrubo a pilha de livros e aquela em que passo sem incidentes. A realidade em que vou lanchar às dezesseis horas e a que vou lanchar às quinze horas. E que pudéssemos transitar de uma para a outra!

    Talvez o esperado brainstorm de HD se modelasse mais num monólogo, mas o rapaz às voltas com os Pensadores parecia interessado. HD não poderia deixar de provoca-los. – Já leram o conto “O Jardim das Sendas que se bifurcam”, de Jorge Luis Borges? O protagonista ouve que várias realidades coexistem. Aquela em que ele passa uma mensagem, a outra onde é preso. Aquela em que o interlocutor é amigo, a outra em que são inimigos. Ao fim, o protagonista mata o interlocutor, quando este distraído, vira as costas. Assim acaba por realizar numa só Realidade ambas as possíveis – aquela em que são amigos (pois não passaram a tarde conversando?) e a outra em que são inimigos (onde um acaba por assassinar o outro). Pra cada ‘sim’ e ‘não’ um caminho aberto no Tempo, um jardim, sim, mas um tanto bizarro.

    Mas a Vera continua insistindo no filme “13o. Andar”. – Mas no filme é como se houvesse o 4. pois surgem coisas novas!

    - Mas aí então é um ‘sistema aberto’, com livre criação de elementos, o 4, depois o 5, e os demais, somando-se os elementos anteriores. O sistema fechado é diferente.

    HD procura ilustrar suas palavras de forma lúdica. Com uma folha de ofício, enrolando-a, demonstra o circulo, extremidade unidas, e em seguida, a espiral, transformando a folha num canudo. - O círculo é o Eterno Retorno. Nietzsche leu bastante os Pré-Socráticos, que devem ter lido os indianos, e tal. Já a espiral, mesmo sendo labirinto, tem um começo e um fim. E se for esticada – HD desenrola a folha – temos um ente linear, característica da visão cristã: da Criação ao Juízo Final.

    Mais brainstorm, segundo o script. HD nem concede uma pausa. – O Eterno Retorno, uma obsessão não só de Nietzsche, onde sendo o Universo finito, e todas as combinações já se fizeram, e todos se repetem, o que já foi será. Esse momento repete-se infinitamente o mesmo! Um círculo do qual não temos consciência. Eu levanto esta caneta (claro, um pouco de movimento e didatismo, senão o tédio...) neste gesto agora. E infindas vezes antes e infindas vezes depois. Não há como o mundo ser diferente do que é. É o melhor possível. Lembra Leibniz, que dizia que vivemos no melhor dos mundos possíveis, pois Deus é perfeito e não pode criar um mundo imperfeito. Toda imperfeição é sempre aparência, pois tudo concorre para o nosso bem. E,claro, acabou sendo satirizado pelo Voltaire, que criou o Doutor Pangloss, que apesar das atribulações do pobre Cândido, sempre vê algo de positivo, ao crer que tudo acontece para o nosso próprio bem!

    Agora parece que o rapaz interessado em filosofias está começando a se situar meio a ‘tempestade cerebral’. Argumenta que a série 1 – 2 – 3, sugerida por HD, é muito limitada,provendo apenas seis combinações, mas HD logo o interrompe lembrando que trata-se de um exemplo didático, que a série pode ser infinita, e que podem ser ditadas regras para a formação de novos elementos a partir dos básicos 1 – 2 – 3 , tipo o 4 (1 + 3) e o 5 (2 + 3), e assim por diante.

    - E se sugeri a série de três é por termos aqui um exemplo prático. Você, estudante, é o 3. Eu, o 1, interfere com o 2, a nossa bibliotecária, e ambos conquistamos a sua atenção. Sem a discussão, eu organizaria o Arquivo, e a Vera atenderia o pessoal, e você faria sua pesquisa e continuaríamos desconhecidos. Mas houve uma “interferência”, pois um “tema” uniu três pessoas vindas de pontos diversos (pensem bem!) , unidos aqui por interesses diversos, e justamente para tal debate, pois de repente estamos numa ‘Matrix’ e esta está se auto-analisando através de nossas perspectivas, em um roteiro já previsto, numa cena já programada!

    Ignoremos os olhares de apreensão, e continuemos. – A Matrix se protege divulgando a Caricatura de si mesma. Ora, se a Matrix faz auto-análise (pois não esconde o que é, imaginemos, mostrando-se aí em tantos filmes e livros!) faz em forma de entretenimento. Se alguém realmente perceber a simulação e for divulgar, todos pensarão tratar-se de alguém comentando um filme tal e tal. Ninguém levará a sério! O cara, se insistisse, seria isolado, para “medidas terapêuticas”! Em “Cidade das Sombras”, o assistente do detetive descobre o ‘simulacro’, a experiência onde são cobaias, e passa o tempo todo a rabiscar espirais, denunciando o labirinto. E o que fazem? Camisa de força nele!

    Percebendo ter a audiência nas mãos, HD continua, reclinado em sua cadeira. – Vejam, por exemplo, a questão dos alienígenas, o maior sucesso nos cinemas, onde não passam de anõezinhos verdes e carecas, ou lulas gigantes, ou altos-magricelas-raquíticos-cabeçudos-de-olhos-imensos. Ora, rir dos ‘aliens’ é a melhor forma de não acreditar neles! Tais seres disformes construiriam naves interplanetárias?

    O estudante amigo da filosofia não oculta a preocupação, mas agora HD não pode parar. – Mas e os homens de preto que sempre aparece quando um evento suspeito ocorre? Algo “não-identificado”. E o Caso Roswell? O que aconteceu? O que o governo oculta da população? Algo que causaria pânico coletivo? Um acordo com os ETs para impedir uma invasão? “A verdade está lá fora”, não é o que diz a série “Arquivo X” ? Pensem com calma. Por que será que tais filmes fazem sucesso? Não borbulha tal suspeita no “inconsciente coletivo”? Afinal, agora percebemos, vivemos numa teia de ignorância.

    Sombras de suspeita pairam sobre a sala de leitura. Mas não é agora que HD vai desistir. – Temos, ou não, a tendência de acharmos que o nosso umbigo é o centro do universo? Pensamos que tudo gira ao nosso redor, a procura de um “Sentido”, uma profunda Significação para os eventos, digamos, casuais. Se atravesso a rua e justamente naquela hora o sinal se abre, verde para o transito, eu passo a resmungar que “é só eu por o pé na rua para o sinal abrir”, aí eu preciso correr e tal, mas se eu soubesse antes a distância que me separa do cruzamento, e minha velocidade, e o intervalo de variação das luzes do semáforo, seria suficiente um breve cálculo e entenderia as razões matemáticas. E poderia ter me apressado, atravessando assim a rua calmamente. – pausa para conferir a atenção, técnica retórica não menos importante. – Se chego a um cruzamento e um carro quase me atropela, vou pensar que os Céus estão contra mim! No entanto, tal se deve às mesmas razões matemáticas. A minha distância até o cruzamento, a distância do veículo até o mesmo cruzamento. Em seguida, a velocidade de ambos. Assim descobriremos que o tempo para posição igual cruzamento é o mesmo! Mas o que imaginemos? Que o carro teve infindos momentos para passar ali, mas passou JUSTAMENTE quando ali atravessávamos. Atribuímos um Significado ao encontro. Não há coincidências para o coração. Daí brota toda a superstição.

    Não sei se alguém está acompanhando a digressão, que começou em terrorismo e cinema e já se perdeu em labirintos matemático-metafísicos. Mas não é momento para hesitar diante da oportunidade de esclarecimento da massa ignara.

    - Quais as posições diante da estatística dos eventos? Aqueles que pensam que sabendo a posição e a velocidade de todas as partículas do universo (ou mais modestamente, de um sistema, em dado momento) poderia se prever, a partir do movimento das massas, o futuro (nada mais que as futuras posições das mesmas). Outros acham tudo incerto, pois avaliamos sua posição, não é exata a velocidade, e sendo calculada esta, não confiamos na posição. Aqueles que afirmam que “Deus não joga dados”, havendo uma Ordem na Natureza, leis físicas irrevogáveis (ou alteradas em condições extremas, à velocidade da luz ou em buracos-negros). Outros declaram que tais leis físicas (e outras causalidades) são produtos da mente humana, em busca de uma ordenação universal. E ainda há quem pense em um pobre gatinho numa caixa, sem sabermos se está vivo ou morto, logo cinqüenta por cento vivo e cinqüenta por cento morto.

    Espero que alguém tenha entendido, pois vou continuar. – Determinados ou livres para a espontaneidade? Tudo pré-programado – Matrix, the movie! – ou alguma lacuna para o ato criativo, novo e inesperado? Se somos determinados e tudo é uma simulação, e nossa mente é um programa, não há transcendência. Um deja-vù pode ser uma repetição de seqüência, um gato preto passando duas vezes no corredor. Ou uma semelhança, assim como 1 – 2 – 3 e 3 – 2 – 1. E o que poderia atrair nossa suspeita seria seguidas ocorrências de tais falhas ‘operacionais’. Mas onde situar o absurdo? O que julgamos ‘comum’ não seria um absurdo? Se todos os dias você encontra as mesmas pessoas, um carro branco ou verde passa por sua rua, todo dia, entre meio-dia e uma hora da tarde, se patenteia o comum ou o absurdo?(pausa) Melhor agora é voltarmos às referências a filmes. - O mesmo carro passando por sua rua, todos os dias, ao mesmo horário. Suspeito, não? Que o diga o ingênuo Truman, que só desejava ser “espontâneo”. Não é assim em “Truman Show”? O protagonista se entrega à ações desconexas, um tanto ‘loucas’, dizendo estar sendo ‘espontâneo’. Liberdade o romper uma suposta causalidade? Livres no projetar-se ou livres por pensarmos que somos livres? Liberdade penas enquanto co – ‘livres para’ e não ‘livres de’?

    A bibliotecária passa a olhar o relógio. Hora do lanche? Ou medo da Supervisora ou (pior!) da Diretora, que podem não gostar da palestra?

    - Interferência? – pergunta a malicioso, o rapaz acompanhado pelos Pensadores.

    - Nada. A chegada da Diretora é prevista. Faz parte do programa ela aparecer à tarde.  Estranho seria se o telefone tocasse e ela justificasse a ausência. O roteiro vai pela facilidade, a nossa mente (cheia de reentrâncias) é que complica.

    Recolhendo os recortes, enquanto o estudante agradece, Vera, a bibliotecária, tem um olhar sonhador. Talvez a pensar que aquele Hector Dias tem uma imaginação e tanto. Mas é perceptivelmente hora do lanche, e ela deixa o novato do Arquivo junto com o rapaz dos Pensadores.

    HD folheia uma antologia de poesia, encontra “Especulações em torno da palavra homem”, “Mas que coisa é o homem, / Que há sob o nome?”, enquanto o rapaz revela seu interesse em estudar Filosofia, “Um ser metafísico? Uma fábula...”, pois o Saber é a mais alta aquisição do ser humano, “Quanto vale o homem?”, e a Ciência é o mais alto Ideal das mentes iluminadas, ansiosas por desvelarem as leis intrínsecas da Realidade, “E são tão engraçadas / As horas do homem?”, no intuito de trazer a Verdade ao convívio dos seres nas trevas da ignorância, “Como vive o homem, / se é certo que vive?”, considerando-se a conveniência de aliar Conhecimento e Esclarecimento, uma vez que o Poder deve levar necessariamente a um maior grau de Perfeição, “Que milagre é o homem? / Que sonho, que sombra? / Mas existe o homem?” Carlos Drummond de Andrade.

    O rapaz se resumia agora ao silêncio da Biblioteca. HD se voltou, após ler o poema. O rapaz explicitamente esperava algo, uma palavra de apoio, e HD ousaria decepcioná-lo?

    - Sei. Mas acho que você está lendo Platão demais.




(esboço de carta para Darío Sabine)
(carta jamais enviada)



Os grandes escritores são híbridos, deslocados, estranhos para si mesmos, com suas identidades frágeis e cambiantes. Vejamos. Fernando Pessoa, educação inglesa, vida pacata em Lisboa, sebastianismo e misticismo; James Joyce, irlandês a escrever em inglês, perambulando pela Europa levando Dublin no bolso; Sartre, origem alsaciana e vivendo o drama francês; Camus, franco-argelino, cercado de africanos francófobos; Hemingway, um ícone ianque nos palcos de guerras europeus e simpático à Cuba; Clarice Lispector, ascendência ucraniana, infância no Recife, carreira no Rio, vivencia mundo afora, com o marido diplomata, não se admira que vivesse a perguntar-se “Quem sou eu?”; Natalie Sarraute, que na França vivia se lembrando da Rússia; Milan Kundera, em Paris retratando sua saudosa Boêmia; Gunter Grass, entre os poloneses e os prussianos, agarrado ao tambor e aos seus três ano; Ismail Kadaré, das montanhas albanesas, exilado em Paris; e muitos outros. Veja o conterrâneo do Castillo, o Dorfman, fã do Pato Donald, que descende de russo (certo?), viveu na Argentina, nos States, no Chile, novamente nos States, transitando com um dilema a tiracolo, se emigra do espanhol para o inglês.




    Poderia mesmo acreditar?! Um convite do próprio WS! Um telefonema no cair da noite, direto do Salão do Livro. Evento temático referente a literatura portuguesa moderna. Surreal! Mas aceitou prontamente, até porque precisava conversar com o poeta-editor.

    Pensava em Hélio Lúcio e até levou consigo textos do amigo. WS ainda ausente, então o jeito foi acomodar-se no auditório e deixar-se por conta dos versos. Sofrendo a consciência da efemeridade, o poeta Hélio Lúcio realmente dispunha de vocabulário rico e muita imaginação, flertando com simbolistas e modernistas, sem esquecer os poetas da decadência, “existências vãs!

    Um dos poetas amigos de WS acaba de chegar, mas desconhece HD. Assim, a primeira pessoa a notar o rapaz foi a bela secretária lusitana, a distribuir a programação do evento. Os intermediadores serão acadêmicos e literatos mineiros. MC, outra sombra de WS, adentra o auditório, mas sem perceber o nosso HD, que já começa a imaginar-se invisível por artes que desconhece.

    E quando WS apareceu (afinal!), suas múltiplas ocupações não permitem que ele perceba HD na platéia. A montanha que vá até Muhammed! WS está de excelente ânimo e seu sorriso já é saudação suficiente. Depois acomodou-se ao lado de HD. Do outro, apareceu MC. E começaram a conversar, de forma a impossibilitar a HD a compreensão do que se passava na mesa de debates. Um jovem autor lançava um romance? Um prestigiado poeta e editor, outro título de poemas? O caso é que os amigos conversam ATRAVÉS de HD que tenta inutilmente entender o que diz a crítica literária e romancista lusitana. Já não bastasse o sotaque! Acho que os excelentíssimos poetas aqui querem escandalizar os presentes. Mesmo diante da autoridade ali representada pelo simpático cônsul português.

    E se escândalo é o que querem, logo conseguem. Surpreendente como suas faces, suas vozes se transmutam em geradores de emoções! Estarrecendo os incautos, que presenciam uma voz agônica elevar-se de um corpo agônico! O poeta é o ator que faz reviver a emoção que gerou o poema! Ressuscita seu sofrer e o dramatiza!

    Não está solitário, em sua emoção, o nosso HD. Ao seu lado, uma senhora se agita e suspira, e não hesita em palmas abundantes, até levantando-se, no que é imitada por todos!

    O que os audazes poetas queriam era quebrar o solene academicismo do momento, com a crítica ocupada em longa exposição da produção literária contemporânea em Portugal, mas ninguém poderia imaginar WS caído pelo chão, e sendo arrastado, al um fardo, por MC que bradava, desferindo violentos murros no próprio peito, com suas palavras catárticas sob o jugo das inclemências e absurdos do existir, e ressuscitado, WS a exibir-se em contorções de serpente, até levantar-se de súbito e ousar retrucar a primeira voz, denunciando a rejeição, o indivíduo alienado de si mesmo. (Os lusos estavam perplexos!) E depois de correrem, gritando pelo corredor, entre as cadeiras da platéia, e de MC tirando a camisa (com motivos florais!) de WS, com explícita fúria, cada um voltou à sua cadeira, calmos e disciplinados! “Bravo!”

    Assim o evento se dividiu em antes e depois. Os lusos em comentários, a digerir o escândalo, que tais ‘empolgações’ não existiam em Portugal, onde se o poeta se apresentar com roupa um pouco diferente, já é discriminado, imagine-se então jogar-se ao chão, em convulsões, a rastejar e tirar a camisa! Nada pareciam entender da performance, que brotou ali tal a revivificação do sentimento, o mesmo que levou a gênese das palavras, aquelas cristalizadas no papel em pungentes versos!

    Os lusos ainda “digerindo o salazarismo reacionário”, e sem a “benção do tropicalismo”, viam tudo com preconceitos “caretas”. Quem assim esclarecia era a senhora ao lado, a que não poupou aplausos. HD mirava suas memórias a se perguntar: Quem seria? Sim, pois ele a conhecia. Uma amiga do WS, de um sarau de lançamento de uma coletânea de contos de conhecido magistrado recém-falecido... Uma noite de gala, diga-se. No Automóvel Clube.

    Tapete vermelho, lustres floreados, escadarias estilizadas, uma viagem no tempo. Papel de parede parisiense, quadros franceses, canapés do Segundo Império, e todo um bom-gosto que os colonizados sempre copiam. Ao chegar, HD encontrou WS recepcionando a fina flor da elite. A livresca TFM. Os senhores e as senhoras, aparentes do magistrado, que agora colhiam os louros, e os direitos autorais. Mas os poetas estavam na sala à direita, à meia-luz, acomodados em poltronas e cadeiras em semi-círculo e em declamações intimistas.

    Com seus poemas irônicos, destaca-se famoso poeta, com um quarto de século de carreira, e não menos destacados os amigos de WS, a saber, o entusiasta MC e o modernista ED, que se alternam em vozes e clamores, enquanto HD é convidado a sentar-se. Ao seu lado, gentil senhora que, em sorrisos amáveis, não hesita em segurar-lhe o braço, a insistir em que o rapaz declame algo, “Você não quer ser poeta?”, mas ele ainda a pensar de onde a conhece, “Eu sou poeta, ms hoje sou boa ouvinte.”

    Apresenta-se como Nélia Lemos, e mesmo tendo idade para ser mãe de HD, conserva toda uma jovial vivacidade, com autoridade de anfitriã, mesmo em casa de outros, disposta a fazer apresentações, de braços dados ao rapaz, a passear pelo salão, Eis o jovem poeta Hector Dias, querida Miriam, Querida Carmen, um jovem poeta amigo meu, Meu querido Arthur, apresento-lhe o poeta Hector Dias, e HD é todo sorrisos diante de senhoras de gosto artístico e de senhores de nobre educação, e Nélia, sempre agarrada ao seu braço, ironiza, “O que você vê? Diga-me, você que é poeta!”, é um desafio e ela não dá trégua, “Vai me dizer que não percebeu?”, “O que? Do que se trata?”, “Ora, mas assim você me decepciona! Olhe o cenário diante de seus olhos, meu querido!”, “Um teatro?”, diz HD, encenando igualmente.

    Belo cenário, aliás. Uma linda mocinha recebe sorrisos junto à entrada, certamente a filha do autor falecido (e não falecido autor) que, de vestido de debutante (mas com suas deliciosas dezoito primaveras) e corpete e cabelo solto, é toda sorrisos e simpatia. Outras moças passeiam de braços dados, com trajes menos clássicos, não muito preocupadas com assuntos literários. Dois rapazes de fino trato, porte lusitano, estão junto às janelas do salão principal. Um deles à rigor, cabelo à escovinha, gel a la anos 50. o outro, sim, realmente todo Elvis Presley, contraponto óbvio, jaqueta preta e topete, que (olhando-se melhor) parece o Morrissey. Serão irmãos? Conversam, mas sem afastarem os olhares das mocinhas, o rebelde sem causa parece ser o mais velho, no entanto o todo à rigor, o mais responsável, talvez o autor do convite ao irmão para prestigiarem o evento social.

    Distribuindo saudações e sorrisos de fotografia, Nélia ainda em insistências, “Não vai declamar um poema seu?”, e recusa champanhe apenas para devolver a taça e derrubar outras duas, em altivas desculpas, quando o garçom aproxima-se para varrer os cacos, “você não é poeta, Hector?”, “Eu sou poeta, mas não de salão.” E aponta os colegas, junto às senhoras em glamoroso roteiro de emoções e aplausos.

    Nélia Lemos ergue a voz e recita versos de seu novo livro, que ela mesma fez questão de ilustrar, em vistosa aquarela, exímia artista plástica que é, e vê-se que seus poemas muito agradam aos presentes, e o próprio WS em seus arrebatamentos agrolíricos, sobre os quais HD escrevera, conquistando assim a atenção e respeito do poeta. Atenção que WS poderia conceder, caso HD estivesse pronto a esperar, as aquela noite acenava com gestos brumosos de um sonho, ou algo lido em algum memoralista francês, perdido entre entusiasta da poesia e arrivistas do sistema judiciário, lembrando que é Bloomsday, e que poderia estar no episódio Circe de Ulisses, caso o ambiente não fosse de tão alta respeitabilidade. Não, esta noite não merece uma espera, merece um grito, e ainda que WS solicite a HD a espera de um momento, desta vez, ou daquela vez, HD não se deixou à espera.


    E quando Nélia Lemos, reencontrada, o convida para um brinde, a comemorar o “maravilhoso momento de estar ali entre artistas e poesias a sentir-se toda viva.” Por que negar companhia a tão simpática escritora? E ela precisava de alguém para conversar. Lamentava a futilidade de tantos eventos e elogiava sem pausas o talento do ‘estrondoso’ (termo que ela repetia) WS.

    Sendo alguns anos mais velha que sua mãe, HD via naquela senhora a imagem de meio século de História. Ele nutria essa mania. Via as pessoas mais velhas como ‘arquivos’ ambulantes. E não se enganara desta vez. Nélia Lemos começara a abrir as gavetas da memória.


    De tropicalismo, a saudosista Nélia chegou a resistência armada após um seqüência de raciocínios e lembranças que HD infelizmente não acompanhou. Não que a interlocutora fosse desinteressante ou piegas, mas, ao contrário! É que ele se esforçava por se lembrar do que fazia ali, ou porque viera. Um convite, aliás, dois, o de WS primeiro. Depois esta escritora quinquagenária que revela um passado esquerdista revolucionário! E esta senhora (que é mesmo um arquivo-vivo!) está lembrando seus tempos de resistência, prisões nas mãos dos agentes da segurança e da ordem, enumerando siglas que HD reconhece, lidas em relatórios,nunca ouvidas dos lábios humanos. Lábios que tenham levado choques ou não, murros ou não. Tudo tão remoto! Seus pais sempre foram muito discretos quanto a comentários sobre a finada Ditadura Militar, uma vez que foram fiéis cumpridores de seus deveres para com a pátria. Se assaltaram bancos? Se seqüestraram embaixadores? Se distribuíram bombas nos órgãos de repressão? Se marcharam para os sertões em combates armados? Se entraram selva adentro até os rebeldes do Araguaia? O que é isso, menino?!

    Claro, coisas de subversivos! E eis uma bondosa senhora a sua frente, pagando a cerveja, e lembrando de como sobreviveu a dois interrogatórios, o segundo com direito a certa dureza por parte dos agentes, gente nada gentil, ela sorri, mostrando na pele outras marcas. Arame torcido ou cigarro aceso.

    A sorridente Nélia, de sorriso melancólico, precisa desabafar. E por acaso (haverá acaso?) tem diante de si um poeta e historiador, atualmente arquivista, discreto funcionário público, pronto a ouvi-la, a interroga-la (ainda que sutilmente e em nome da memória histórica, não da segurança nacional) colhendo desabafos e reminiscências.

    Ainda que preferisse vinho, HD bebia tranqüilo a cerveja, e a entrevista teria se prolongado não fosse pelo recital programado para o mezzanino, onde o poeta, e recente romancista, comentaria sua obra, além de ler preciosos trechos da mesma.

    Nélia não perderia por nada. Enquanto isso comentava sua carreira nas artes plásticas (com suas aquarelas) e de repente já estava em Fernando Pessoa (após breve passagem por Van Gogh e pintores holandeses do século 17) sempre perplexa com os heterônimos, que para muita gente (ela inclusive) era ‘lance de mediunidade’. No corredor, alguém deve ter pensado que abordavam um dos romances de José Saramago.

    HD agora ouvia mais atencioso o breve histórico do jovem poeta lusitano, que se entrega ao leitura de seus versos, com líricas fotografias do cotidiano. Está Nélia ao seu lado, apresentando nomes aos personagens, o poeta é o promissor José Luís Peixoto e muito bem fizeram em convidá-lo para uma visitinha a terra tupiniquim.

    Logo um poeta local (não podia deixar de ser outro amigo de WS) empolgou-se numa homenagem aos portugueses, a declamar versos de Fernando Pessoa, o que muito agradou a todos.

    Se queres vinho (e vinho do Porto!) estás servido. Realmente, ao lado, uma mesa repleta de doces típicos e vinho do Porto! Bem-vindo a Lisboa! O poeta propõe um brinde aos laços d amizade luso-brasileira. E não só o fantasma de Fernando Pessoa levanta a taça!

    Percebendo WS ao seu lado, HD não hesitou em falar de negócios, ainda que em extenso prólogo sobre os eventos, etc, ou o sucesso dos eventos, etc, as campanhas de divulgação da nova editora, que muito interessava aos escritores “em busca de um lugar ao sol”, e outros chavões, mas finalmente insinuando uma certa crítica aos valores exorbitantes que poderiam afastar alguns novatos de menor poder aquisitivo, ainda que literatura seja uma arte cara, e com lamentável excesso de pequeno-burgueses e funcionários públicos, como já dizia Carlos Drummond de Andrade.

    Não demora muito e o poeta que propôs o brinde, acompanhado de um romancista, se aproximam e encenam apresentações de praxe. Outro possível cliente para o selo editorial, e assim perdoe-me, caro Hector, mas. No entanto, foi só MC aparecer e WS o romancista esquecer. Impossível a conversa entre cinco pessoas (ainda mais poetas!), é egocentrismo demais por metro quadrado. O romancista, mais prosaico, até que se podia engolir, apesar de seu ecologismo romântico de defesa de nossas populações ornitológicas, e HD preocupado com as nossas populações periféricas.

    Por falar em romance, HD tece longos comentários, ao despedir-se de Nélia, que prontamente apresentou o jovem ao grisalho marido, que ali está para conduzi-la ao lar, sweet home. Ele suporta menos os artistas, com seus ares de agente de seguros, “mas vá lá, ele não morde! Pelo menos sempre vem me buscar.”

    Talvez HD não encontrasse mais aquela exótica Nélia, mas sentia suas ânsias de pesquisador renascidas. Afinal, não é todo dia que se encontra um arquivo vivo.




    No dia seguinte, segunda-feira, manhãzinha normal, HD conseguiu localizar o bardo Hélio Lúcio. Meu Prezado, o interesse de vossa parte em participar de oficinas literárias e etc, Meu caro Hector Dias, o interesse de minha parte é correspondido e muito me orgulha o vosso convite, Prezado, sei que vossa agenda pode não permitir, Caríssimo, HD, pra que todo esse formalismo?

    Enquanto esperava Hélio Lúcio, HD não podia deixar de folhear alguns livros, a constar títulos de Fernando Pessoa, Flaubert, Mann e livretos recentes do (ontem louvado) WS em plena ascensão, não ao Panteão, mas ao mainstream da indústria cultural. Aqui representada pela imprensa carioca.

    Comentando suas leituras recentes, HD recebia em respostas os versos de Hélio Lúcio (que somente declama Hélio Lúcio!) gritados sob o viaduto, enquanto os passos rumam até a Serraria. Onde, aliás, HD não encontra qualquer conhecido, amigo ou literato. Nem no stand dos independentes. Onde os poetas amadores? Onde os editores de fanzines de subúrbio? Onde os divulgadores de panfletos e ataques líricos?

    Nem adiantava procurar. Trataram de ir logo reservar lugares para as oficinas de poesias (que já registrava cinqüenta interessados!) com ênfase em oralidade.

    Trocavam versos digitados (ou xerocados) na praça dos eventos, enquanto os universitários (e futuros vestibulandos) assediavam as prateleiras de livros técnicos e literários para concursos. Poucos visitavam a Exposição portuguesa, por isso para tal porto navegaram. Não só de Fernando Pessoa vivia a literatura lusitana. De narrativas orais, passando por cantigas e baladas, e os famosos fados, até a prosa pós-moderna, o mundo das letras da antiga Metrópole ali se achava representado.

    Sentados no auditório (ainda não apareceram as tais cinqüenta almas!) os amigos comentam alguma questão poesia e performance. Eu que não sou performático penso que é a palavra que deve emocionar, não gritos, gestos, convulsões..., Vai esclarecendo HD, mas eis que o motivo que aqui nos traz (e tal narrativa) se apresenta.

    Lá na primeira fileira, alguém mui falante, muito diplomático, e não se trata do palestrante, ou da palestrante, pois a coordenadora (e professora, pedagoga, educadora infantil) se apresenta e brinda a platéia com um violão eximamente mal tocado. Não, não é ele o motivo dos murmúrios entre HD e HL. O caso é que Hélio Lúcio pensa ter identificado no sociável cidadão em foco o vulto de um antevisto (e raramente encontrado) poeta e editor.

    Editor. Palavrinha mágica neste mundo de autores desamparados, pobres ovelhas desgarradas em busca de um pastor, de um homem que detenha o poder de transmutar odes e contos em papel xerocado naquelas maravilhosas edições ricamente ilustradas e histericamente procuradas.

    Mas não será desta vez que os poetas ali, nossos amigos, terão sorte. Logo a oficina finda, com real ênfase em oralidade, pois a coordenadora, psicopedagoga, educadora, etc, não fez mais do que vestir musicalmente alguns conhecidos poemas de autores nacionais, mostrando que não só Toquinho e Vinícius podem atentar contra os versos escritos. Gente, poesia no papel é poesia morta!


    Não discutimos os méritos e contra-argumentos, mas, como escrevíamos, a oficina logo finda, e o poeta e editor, que muito interrompera o andamento da mesma, é cercado por miríades (mas não temos mais que quarenta pessoas aqui!) de interessados e interlocutores ávidos.


    Se desejavam fazer contato, perderam o bonde. HD não ficaria ali esperando (até que esperaram quinze minutos) e aquela bajulação toda só fazia reabrir sua gastrite. Nervosa? Ó Lúcio, poupe-me, sim? Assim deixam a feira do livro, fartos de livros, fartos de editores, e até fartos de autores!



...

continua...



LdeM