quarta-feira, 22 de junho de 2011

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  Do diário de HD



   dom, 13 de junho


    Ontem, um banquete digno de nota. Convite do Sr. Michel Bishop, para um encontro filosófico em seu casarão do Carlos Prates, nas cercanias do aeroporto.

    Alfonso julgou de bom tom aceitar o convite e lá encontramos um banquete à luz de velas, gótico e socrático, com a temática Sedução.

    Na mesa vejo volumes de Jean Baudrillard, Sade, Nietzsche (“A Genealogia da Moral”), Kierkegaard (“Diário de um Sedutor”), Machiavelli (“O Príncipe”), Oscar Wilde (“Retrato de Dorian Gray”), no buffet, um strogonoff de primeira classe, arroz à grega, e outros pratos de fina culinária.

    Descendentes de ingleses, Bishop é um verdadeiro gentleman, tendo à sua direita o administrador Ivan, com seus olhares perfurantes, e, à sua esquerda, a secretária Nélida, cuja beleza seduz e cuja presença intimida.

    Acomodados ao lado de Dalton, o Vladimir, nossa ponte até o castelo, aquele que ousou apresentar-nos ao lorde, cuja hospitalidade atrai tantos literatos e pensadores. E ali estão estudantes de política e filosofia, um casal de poetas, um casal de vestes sombrias, outro casal de pose burocrática. Umas vinte pessoas à mesa, sob a luz dos candelabros de três braços, ao som de clássicos e rocks sinfônicos.

    E Michael Bishop cita o exemplo de Napoleão e sua sedução sobre os soldados. Aliás, antes ele lê um trecho de “Diário de um Sedutor”. Ivan defendia que a sedução é uma forma suave de dominação e eu lembrei que a sedução envolve o uso de máscaras. É quando o Alfonso defende uma distinção entre sedutor e cínico, pois “Hitler era sedutor por acreditar em si mesmo”, no que recebe meu apoio. Cínico é aquele que manipula as máscaras, sem acreditar nas próprias. Então Ivan distingue ‘sedução’ de ‘carisma’, e Dalton leva o assunto para topos político, ao lembrar o conceito de Gramsci para “hegemonia” e o papel dos líderes, sejam fascistas ou comunistas, na condução dos povos. Preciso lembrar que Dalton é socialista? A alcunha “Vladimir” já o retrata, imagino, com sua barbicha de Lênin e sua ênfase a la Maiakovski.

    Então Alfonso explica o problema do culto a personalidade, e cita os exemplos de Hitler, Stálin, Mao, dentre outros ‘condutores dos povos’, que dominam o imaginário por concentrarem poderes político e simbólico. Mas eu lembro que na sedução há a má-fé dos seduzidos, tipo as mulheres que aceitam um convite e fingem não saber as intenções do autor do convite. E acabei incomodando as mocinhas ali presentes, e aceitando as várias provocações, quando acuso as mulheres de jogo-duplo e interesse, despejando um pouco da minha frustração, e o aspecto erótico da sedução acaba predominando.

    A discussão se torna passional, e o banquete acaba num mal-estar geral, o que é lamentável. Julgo necessário proclamar minhas desculpas.

    Ao som de rock progressivo, ainda avançamos noite adentro, diante dos restos do banquete, eu, Alfonso, Dalton e um amigo de Bishop, pois o anfitrião se retirara para os seus aposentos, acompanhado pela bela secretária, o que não me admira.

    Anoto aqui um comentário de Alfonso, e lamento ter esquecido o contexto. Menciona uma curiosa opinião comum entre mim e H, o poeta póstumo, pois admiramos (em comum) o movimento ludista do século 19. No caso (ele diz) eu admiro por motivações ‘proletárias’, enquanto TH concorda com Lord Byron, que defendeu, em 1812, os operários como “revolucionários da liberdade”, pois TH é um aristocrata liberal, a defender uma monarquia constitucional, o que é uma excessiva leitura de Nabuco e Ricardo Reis, eu digo.

    E Alfonso, então, se posiciona a favor da classe média?




    qua, 16 de junho


    Hoje é Bloomsday. Faz cem anos, Leopold Bloom em andanças no labirinto das ruas de Dublin nas páginas de Ulysses de James Joyce, literato mais que irlandês, europeu.

    E o Centro de Cultura recebeu toda uma programação destinada à literatura, à música e ao teatro com a temática céltica-grega-mítica. Não podia participar devido a compromissos, mas agendei com Hélio Lúcio nossa visita às exposições e palestras, além de mostra de vídeos.

    Hélio não apareceu, mas o evento consumiu toda a minha atenção. Irlanda de Joyce, A cara de Joyce, Introdução à Joyce, Estátuas vivas de Joyce, Livros de Joyce, O Retrato do Artista quando Jovem, Ulisses, Finnegans Wake, Música de Câmara, objetos de curiosidade e devoção de tantos fãs e neófitos.

    Historicamente, críticos literários e psicanalistas discutem “a violência e política na literatura irlandesa”, “linguagem de Joyce” e “visão psicanalítica de Joyce”, onde entrelaçam nacionalistas e seus dialetos, a subversão do idioma inglês até os seus limites lingüísticos, a presença dos sonhos na redação polifôrmica e polisemântica de Finnegans Wake, e não entendo muito bem, mas penso numa questão para englobar toda esta fragmentação.

    “Sabemos que Joyce não se envolveu com a política, ou o radicalismo terrorista de um IRA, mas sempre se preocupou com a condição da Irlanda, ainda que a considerasse “uma porca que devora os próprios filhotes”. Pergunto, então, se não terá sido na literatura o seu protesto? Num terrorismo lingüístico contra o inglês, o idioma do dominador?”

    Acho que não entenderam a minha proposição. Não chegaram a lugar algum. E até insisto, para a analista, “Joyce, afinal mais europeu que irlandês, apesar de carregar Dublin na mente, amava ou odiava a Irlanda?”, e ela se limitou a ambigüidade do afeto, do auto-exílio, e lembrou de Dante.

    Em seguida, um lanchinho, enquanto aguardamos o “monólogo de Molly Bloom”, o derradeiro episódio, Penélope tecendo pensamentos, interpretada por uma atriz. Uma tentativa de desvelar as sombras da imagética e sensitiva mente feminina, perdida em recordações e afetividades, entre a fidelidade e o desejo.

    Nos corredores, um senhor descontente acusa o evento de ser “invasão cultural”, e a perguntar se na Irlanda dedicam algum evento a Érico Veríssimo ou a Guimarães Rosa, e que os brasileiros são todos uns deslumbrados com essas coisas internacionais, isso de Dia de Bloom, e fiquei a matutar se não estaria eu diante de um Policarpo Quaresma!

    Esperei alguma inscrição prévia para as “leituras abertas de Joyce” pois pretendia ler um trecho de Finnegans Wake e um poema meu ao estilo joyceano, mas em vão. A programação já previa performances e atuações teatrais com trechos e colagens, com a presença das noivas de Finnegans Wake, as fluências de Anne Lívia Plurabelle, e a palavra gigantesca representando o trovão em extensão plurilingüística, e outras surrealidades.

    Quando eu já me retirava, um senhor me aborda, sorridente. “Muito a propósito a tua intervenção, lá no debate.”, então agradeço. Ele pergunta, “O sr. é estudante?” E voltando-me, noto seu olhar curioso. “Sou escritor”, respondo e vou embora.




    sáb, 19 junho


    Atrasado, mas nem tanto, cheguei ao Museu Municipal no entardecer e formalizei a contratação do segurança, o vulto de smoking e presença intimidadora a permitir apenas a entrada dos convidados.

    Dentro do Museu, a Exposição já montada – desde ontem – com os poemas em belíssimas molduras italianas, e ilustrações de Inácio, inspirado pelas metamorfoses de Ovídio ou pela Metamorfose de Kafka.

    Tudo organizado, o som enchendo o ar de melodias jazzísticas e nem sinal dos músicos. Descubro – após um telefonema estratégico – que Edgar não vem e o Délcio Palma aparece, mas sem seu violão. E Victor-Hugo também chega como visitante, não músico, e circula meio aos poemas, enquanto trocamos impressões, quando chegam os convidados.

    Inicio o sarau, lendo um trecho de “O Guardador de Rebanhos”, “Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo?”, poema de Alberto Caeiro, e Alfonso lê um poema próprio, longo e discursivo sobre suas andanças, e nisso um contador de causos narra uma peripécia, e uma poeta lê um do Fernando Pessoa ele-mesmo, o Délcio declama um poema de própria lavra, e JB faz o mesmo, e o outro causo, e em seguida Dalton, o Vladimir, lê um texto de Michael Bishop, e o ator Álvaro declama justamente Álvaro de Campos, “Não, não quero nada. Já disse que não quero nada.

    Aurelius é convidado, e relembra Vinícius de Moraes, com sonetos amorosos, mas também com sonetos sombrios de Augusto dos Anjos, além de Pessoa, “O poeta é um fingidor”, e Hélio – já empolgado – desabafa seus versos simbolistas-catárticos, “Existências vãs!”, poema vômitos que desorientou os desavisados.

    No clima, Alfonso lê Georg Trakl, “Lamento cego no vento”, eu leio outro do mesmo autor, “Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer...”, e, em seguida, bem a propósito, o meu “Mentardecer”, o mesmo poema que não li no Bloomsday, mas apresentei aos amigos de JB. E ele mesmo foi o próximo a declamar, com emocionados sonetos de Florbela Espanca, e as poetas ficam coradas quando o contador de causos declama poema de Drummond, do livro “Amor Natural”, onde abundam erotismos e lascívias. E já nos términos – o Museu fecha às 21 horas – JB declama um possível poema de cordel, Álvaro declama Vinícius de Moraes e Aurelius encerra com Drummond: “Sejamos pornográficos, docemente pornográficos”, para escândalo de algumas.



    Segunda, 21 de junho


    Ao chegar, nove da manhã, colei os cartazes com poemas concretistas, dos irmãos Campos, de Pignatari e Grünewald, e outros modernos modernistas.

    De súbito, eis a Imprensa. De que se trata? Exponho a Exposição e a jornalista se extasia diante da lupa para poemas fonte 8 (poetas inspirados é isso aí!) e o câmera sai gravando tudo, inclusive uma breve entrevista (vinte e nove poemas, selecionados de uns sessenta, vinte poetas, betim, contagem, belô, neves, divulgar, lembrar que existem, segue o texto, etc)

    De tardinha, chegam os colegas do Alberto, da escola de teatro, e exatamente às quatro, perante umas vinte (calculo) pessoas, o artista declama, dança, desenvolve performances e canta “Eu caçador de mim...”

    A TV grava tudo.

    Convido todos a lerem os poemas, e adieu.


    Terça, 22


    Hoje a inusitada performance dos representantes da Óbvio, com a chegada de Nélida, enquanto eu preparo a aparelhagem de som. Logo, Michael Bishop e Ivan adentram e trocamos saudações.

    A trilha sonora é o álbum “the final cut” da banda inglesa Pink Floyd, quando a figura de um caixeiro-viajante, com a maleta cheia de livros, deseja vender a um arruinado gentleman, a preços exorbitantes, alguns volumes, os mais exóticos, os mais diminutos, de “A Metamorfose”, de Kafka. Ou então Napoleão Bonaparte, o colete aberto, diante das tropas francesas, “Não reconhecem o vosso imperador?” E em sua apoteose enfia na cabeça o chapéu cheio de chá. Alice In the Wonderworld? E eleva-se um aroma cálido do chá-com-limão que o Chapeleiro Louco entorna no chapéu...

    Assim, performance teatral, declamações, desnudamento em protesto lírico, tudo espontâneo! Eis a Óbvio!

    Poetas participam enquanto Alberto se apronta, e lá está JB marcando presença. O sol já declina quando o ator sobe ao palco e se entrega a monólogos e lamenta o fim da infância. E todos, hipnotizados, se entregam ao crepúsculo.


    Quarta, 23


    Hoje esperamos a chegada de Makely e sua turma. Ele ligara pela manhã e tudo confirmado. Agora a pouco ainda tentava se localizar. Está a caminho. (O caso é que ele entendera que o evento seria às seis) Bem, enquanto isso converso aqui com o Moretti, o mestre do reggae, e ouvimos faixas de seu álbum, e, justamente quando ouvimos uma música em parceria com o Délcio Palma, este aparece.

    A prosa vai de música a literatura e volta, e depois de reggae ouvimos os poemas declamados por Makely, estrategicamente gravados num CD que acompanha o livro.


    Estamos todos em expectativa. Mais de quatro e meia!

    Ainda folheando os ensaios de Alfonso Lucena, quando percebo a movimentação: é o Makely em pessoa! Ele, Maísa e Bruno Brum. Os artistas tão esperados! É mais de cinco horas!

    Assim dou pouca atenção ao artista, tenho que desmontar o cenário de um espetáculo que não aconteceu. Apresento à comitiva a Exposição, que inclui um poema de Makely. Ele deixa uns livros, e some na noite, abduzido pelo Moretti.

    Depois – museu fechado, etc. – ainda garimpo ânimo para ir à Biblioteca, passar uns e-mails.


    Quinta, 24 de junho


     Anoto a presença de dois interessados em poesia: como ler a tal ‘poesia concretista’? O que é poesia, afinal? “Se isso é poesia, eu também sou poeta!”, diz um. (Revelou ser publicitário!) O que é, antes, por que, escrever? O que é literatura?

(acrescentar à nota de quinta: sarau na lagoa do nado)

    Não pude reprimir meu espanto ao encontrar todos ao redor das velas, parecendo uma roda de ciganos uivando para a lua, que aliás está crescente

    Lá estavam os amigos. Alfonso, Hélio Lúcio, Stevam Valêncio e a sua amiga Sandra, e o tal ‘teatro de bolso’, meio às árvores do parque, é mais uma arena, ou agora, um palco de desafio de cantadores de viola, onde os poetas, os arautos, os bardos soltavam a voz cada vez mais exaltados.

    Percebi quando o WS chegou, mas sua atenção foi atraída para o Alfonso, a declamar seu longo (e já famoso) poema sobre as suas andanças, não antes de exaltar os símbolos nacionais.

    Ao estilo sulista, chapéu e poncho, o poeta Llobus declama em alta voz (não sem antes convidar os presentes a calarem as bocas) os seus versos sobre o poeta preso no cotidiano nefasto e banal.

    Surpresa mesmo foi o Hélio Lúcio a saltar meio as velas, a despejar seu virulento “Existências vãs!” que manda aos ‘paredón’ os fracassados na vida.

    Animado pelos amigos, desci à arena para ler trechos de “Ode Triunfal”, de Álvares de Campos. Mas logo, WS canalizou as atenções, ao declamar “Cântico Negro” de José Régio, “Não, não vou por aí...”

    Finalmente consegui abordar WS assim que Llobus desceu à arena, e confirmei meu convite, lembrando da presença de um poema de sua autoria na Exposição, etc. Isso enquanto Stevam Valêncio lia os seus versos, tal um monólogo de Hamlet, mas todo a la Byron, pisando nas velas e aumentando as trevas do universo. E nem todos se recuperam pois Hélio desceu (caiu?) até (sobre?) as velas e (arriscando-se a se tornar uma tocha humana) foi declamando (berrando?) seus versos que confundimos com latim (ou árabe?)

    Em dado momento, o poeta Evangelista recebeu uma entidade em plena conflagração do conflito agônico e liberou todo o seu pathos helênico na forma de cabloco tartamudeante a narrar seus causos destilando sua sabedoria milenar. Alguém, sem necessária iniciação, tentava acompanhá-lo o que aumentou a confuso reinante.


    JB se destaca do grupo soturno (quem diria!) e arranca das fossas cardíacas um poema de Florbela Espanca. Relativa calma antes da tormenta. É impressionante, mas as meigas garotas se transmudavam em joanas d’arc quando pediam aos berros que todos ouvissem seus versos chorosos e tudo se assemelhava a um psicodrama coletivo com todo o mundo desabafando seus espinhos na carne. Enfim, muito berro e pouca arte.

    Depois tudo virou mesmo uma arena e roda de candomblé.


    25 de junho


Sexta. JB apareceu por aqui, atento a mesa de livros.
Li “Tabacaria” na íntegra, sem cortes.
E nada mais a dizer. Não houve público.

    (Agora à noitinha)

    Encontrei Alberto, o ator. Fomos visitar uma poeta amiga do Aurelius. Deliciados com amendoim canjica caldo quentão ouvimos opiniões sobre o que fazer em termos de iniciativa cultural na cidade. A outra visita, uma jornalista, se mostrou muito bem informada sobre a lei de incentivo à cultura.


    Dom, 27

    Ontem, quando Alfonso mencionou o desejo de cair na noite, enfrentamos o frio, ao orelhão, tentando encontrar a garota e o acontecimento, e esperançosos folheamos a lista de eventos, e Alfonso a reclamar que há eventos demais. Mas ontem não havia!

    O tédio era incômoda visita e Alfonso passava a mão no rosto, desconfortado. Acabamos saindo. Simplesmente. Sem rumos. Nos bares nada havia. Ou melhor: o de sempre havia. O mesmo programa em sua enésima edição.

    - Não há um bar rock’n’roll em Contagem?

    Sentados diante do shopping, o templo pós-moderno, ocupamos um território já demarcado pelas forças de ocupação. Antevíamos uma noite de grande tédio. Então resolvemos andar. Andar simplesmente.

    Enquanto comentava a solidão dos vigias noite adentro, Alfonso tenta conciliar o horror industrial com a alma dos bairros e fazer um poema. Lembro aqui o meu poema que, work in progress, quer sair de mim tal um Alien, Oitavo Passageiro, rasgando-me as entranhas.

    Mas o som de uma guitarra elétrica nos alcançou meio a imensidão dos galpões e um lirismo com cheiro de graxa se impôs. Mas o nosso ânimo não estava à altura do preço do ingresso.

    - Lá no Eldorado a coisa ‘tá bombando!

    Esse era o Alfonso querendo ir à pé todo o caminho. “Só se for sozinho”, eu respondia. E assim voltamos, no coletivo noturno, até onde tudo começou. E o bar? Que rock’n’roll nem nada! Mais ainda assim o Alfonso tomou sua cerveja gelada e eu rabisquei o poema que brotava do meu umbigo.



    Segunda, 28 de junho

    Conversei com o Benito, acompanhado pela filha e uma cerveja, a esperar o Aurelius e o sarau. O professor tenta me explicar a ausência de seu grupo de crianças na Exposição. Em vão. Mas sou gentil.

    Ele e a filha seguem, e eu espero o poeta. Que não demora. Aurelius chega acompanhado por Wagner, e este por sua flauta. O tema da noite é Amor e Morte. E Aurelius inicia com o Eros. Vinicius de Moraes, Camões, Neruda, Pessoa. Eu recito Pessoa, mas versos de Reis e Caeiro. Alguém mais chegou. O irmão do Alfonso, o Stevam. Todo soturno. E Aurelius já iniciara a parte Thânatos, com poemas de Augusto dos Anjos, Castro Alves e Baudelaire. Os malditos. Stevam vem encerrar no clima gótico. À luz de velas, com um longo poema de Edgar Allan Poe, “Annabel Lee”, e surpreendidos, ao se acenderem as luzes, com as ausências no ambiente.

    Mas encontro o olhar de Simone. E ela sorriu pra mim.


    29 de junho, uma terça-feira


    Todo evento para dar certo precisa de três fatores: o clima, a presença do artista e a presença do público.

    Hoje veio a platéia, mas não apareceu o ator convidado.

    Ontem não apareceram nem platéia nem escritora nem palestrante.

    Apareceu um repórter. Ocupei-me em apresentar-lhe a Exposição.



    Hoje, dia 30, passei a manhã esperando que alguém da XX Editorial entrasse em contato, confirmando a presença. Em vão.

    Antes de chegar ao Museu, passei na Prefeitura. Precisava de um contato no setor de comunicação social. Mas encontrei um conhecido de Aurelius, um funcionário, e descobri que a mulher de tal secretário é a diretora de tal setor, e julgo interessante a informação.

    Mas não parei por aí. Há outras conexões. Na referida Secretaria, descobre-se que o diretor do departamento é afilhado de importante deputado estadual. O cidadão não soube me explicar um item básico como divulgação de eventos.

    No orçamento participativo, encontrei o eleitorado do deputado. Grupos que se julgam representantes dos anseios populares. Um rapaz, ostentando uma camiseta vermelha, integrava a comissão do bairro. Um olhar atento, perseguindo o assessor. Talvez não saiba que joga no time dos perdedores.

    Seguirei garimpando nomes.


(anotação noite adentro)


    WS lançou seu livro Cachaprego nos jardins do Palácio das Artes e pude reencontrar os amigos.

    Os poetas da lagoa do nado. O Evangelista, o Llobus, o Daniel, declamadores e seresteiros. Alfonso também apareceu, além de Stevam Valêncio e um colega.

    Degustando um vinho comentamos os devaneios kafkanianos junto a Michael Bishop, Ivan e Nélida, a lembrarmos o memorável banquete, além da performance na Exposição, que já causa polêmica.

    Aí um poeta-performancer sai declamando e, literalmente, lançando os livros, subindo pela escada lateral do Grande Teatro, se despindo, e, dramático em quase-nudez, desmaia. (E eu troco olhares com o Ivan, autor de façanhas semelhantes.) O ator é efusivamente aplaudido.

    De súbito todo percebem MC abraçado a uma árvore a declamar seus poemas-fluxos, ribeirões de denso desabafo. Enquanto isso, conversamos sobre adaptações cinematográficas de clássicos da literatura.

    O anfitrião WS abre espaço para os poetas presentes e Luiz Edmundo Alves declama “Senhas” de Adriana Calcanhoto, “Eu não gosto do bom gosto...”, além de um poema próprio. E segue-se Llobus, e até sua amiga Nélia, com seus depoimentos líricos.

    Era o momento de seguir na noite, perambular pela cidade, pois “minha vida é descer Bahia e subir floresta”, enquanto os amigos se reúnem no Maletta, onde Ivan bebe um vinho, e ao seu lado os incorrigíveis anarquistas de salão. Em plena Cantina do Lucas discutindo Artaud, Rimbaud, Bukowski e outros delírios.

    Após deixarmos as célebres dependências do Edifício Arcângelo Maletta, descemos a Avenida Augusto de Lima, lamentando mais uma noite abortada por morarmos nos subúrbios.

    Enquanto morríamos de tédio, em plena praça Raul Soares distribuíamos moedas entre os pedintes.


1o. julho, quinta


    Alberto chegou três em ponto. Espetáculo intenso. Música e dança. Silêncio. Performances poéticas.

    No intervalo li um poema de Ricardo Reis.

    WS não apareceu. A poeta amiga de Aurelius embarcou numa viagem metalingüística. Multiculturalismo. Descrição semântica da realidade. Cubismo. Palavra-força.

    Muito produtivo o encontro – ainda que sem público.


Contabilidade:


50 reais para o transporte, paguei um lanche (R$ 4,50), paguei passagens (3,50), e em Belo, passei dois reais para o Alfonso, e gastei cinco reais de xerox e gastei outros 50 centavos (WC). Sobra R$ 4,50.




Sexta-feira, 02 de julho


    Não houve o grande encerramento.

    Conversei com a Simone, no shopping. Ela não confirma a palestra. Sabe que não há público.

    Procurei o amigo de Aurelius na Prefeitura. Inútil. Em procissão pelos corredores ouço uma ópera alemã. Surreal.

    Realmente sem público, concedi toda a atenção ao Délcio, com os seus projetos literários, sua obsessão além das modinhas de viola.

    Encerramento monótono.
    Igual a este diário.

    E quem é o último a (quase) visitar a Exposição? O Stevam Valêncio, que chega tarde demais. Fecho a porta e entrego a chave.

    Conversamos na praça, bebemos num bar, onde até recebemos as saudações de Victor-Hugo, preparando-se para tocar na noite.

    Por sorte não perguntou-me nada referente ao sucesso da Exposição.




    Por descuido Simone esquece o seu convite? O que tortura HD é o caráter proposital de tal esquecimento. Desculparia se fosse mero capricho.

    E HD não fazia muita questão de aparecer, mas Edgar insistira, “Hector, você está me abandonando!”. Assim, após uns poemas e umas canções, não muito original, sem aquela euforia inicial.

    Seguiram para a festa de formatura do pessoal das Letras, numa badalada boate da cidade. E Edgar tem um plano para que HD entre.

    - Simples, meu nobre. O Oswaldo, não o Montenegro!, disse que tem compromisso. Assim você passa a se chamar Oswaldo, e resolveu-se! Vamos, meu velho!

    Mas o mundo é mesmo pequeno! Um dos seguranças que estão ali é justamente aquele contratado para a noite de abertura da Exposição, e o cidadão sabe que o Oswaldo ali é o senhor Hector Dias, funcionário público, promotor cultural e outros dados curriculares.

    É preciso Simone, com feminina intervenção, chegar até a portaria, sondar os prós e os contra e permitir a entrada dos dois rapazes. Edgar sempre bem rajado, ainda que não em traje a rigor. Ms HD! Hector Dias está uma lástima, com sua calça jeans desbotada, camisa de flanela, olhar blasé e nada apresentável.

    Quando HD entra, Simone horrorizada, não disfarça o constrangimento, e se apressada para apresentar o artista Edgar às amigas, arruma um jeito de conduzir HD, à distância segura, até a mesa de Aurelius.



    Sim! O próprio Aurelius que, em companhia de Wagner, folheia uma antologia de Fernando Pessoa. Aurelius de gravata e suspensórios, e Wagner de traje completo, todo fineza aristocrata. A gravata amarela de Aurelius faz nascer um sorriso nos lábios trêmulos de HD. Mas aqueles dois ali destoam do ambiente, onde atores se esmeram para produzir boa impressão, exibindo vestidos alugados e penteados que duram até meia-noite. O livro sobre a mesa de Aurelius é o único em todo o recinto. E deve causar espanto. Mas não estamos numa formatura da turma de letras?

    - Oitenta por cento estudou licenciatura e vai ser professora.

    É Aurelius. E em tom didático. E aquela gravata amarela impagável! Edgar logo se junta aos amigos. Todo sorrisos. As amigas de Simone são belíssimas, mas HD não trocara três beijinhos com nenhuma delas. Edgar tem marcas de batom na face esquerda.

    O quarteto, não muito fantástico, fica discutindo poesia e poetas, folheando a antologia de Fernando Pessoa, “Como estou farto de semideuses!”, enquanto HD oculta sua inveja no segundo bolso da camisa.

    - E as “criaturas que são inúteis e existem”?

    A voz de Wagner atravessa o fumo do ambiente, a valsa mal-tocada, a encenação social, o despropósito de tudo, todos os belos projetos de existência, naquela banalidade do momento, o tédio e a náusea de falsos músicos, falsas canções, falsos sorrisos, falsas vedetes, belas professorinhas que se aquecem para as greves de amanhã.

    - A inutilidade de todas as coisas.

    - O quê ele disse? – Wagner inclina-se para Aurelius.

    - A inutilidade de todas as coisas.

    - A inutilidade de todas as coisas?

    - A inutilidade de...

    - Ah, por favor, parem de repetir esta frase!

    - Mas foi você mesmo quem disse!

    - Inútil ficar repetindo...

    - O inútil?

    - Vocês precisam agarrar uma dessas professorinhas, isso sim! – diz Edgar, e abre-se num sorriso manchado de batom.

    - Continua sendo inútil.

    - Mas, confesse, Hector, você está louco para beijar a Simone!

    HD observava a moça se esquivando entre os parentes, enquanto a voz de Edgar ecoava dentro de seu vazio.

    - Uma alegria que não convence. A inutilidade de...

    - Todas as coisas?





 [...]




LdeM

terça-feira, 14 de junho de 2011

... folheando o capítulo 3...

Do Diário de HD


(2004)


terça, 06 de abril


    Convidado, por Alfonso Lucena, para um lançamento de livro. Marcado para 18 horas no centro de cultura, centro histórico.

    Antes faço uma visita, e ele surpreso. Ele e a mania de agendar. Almoço e tópicos sobre produção cultural, ao som de pop inglês. Concentrados, enquanto a chuva cai.

    Alfonso crê num vazio, onde eu vejo um excesso. Desinformação gerada por excesso de informação. Planos para o show literário. Definir a programação. Lista de convidados. Detalhes da divulgação. Assim, ao computador, atravessamos a tarde chuvosa, atarefados.

    Encontramos o poeta Leir Macedo, pontualmente, na portaria. Sorrindo, sugeriu uma ‘intervenção’, “Aqui e agora, meus caros”. Proposta feita, folheamos Fernando Pessoa. Alfonso apresenta-me a um estudante. Dalton, que alguns chamam de “Vladimir”, e logo descubro o motivo. Estuda Geopolítica, e adentra discussões sobre fascismo e suas máscaras democráticas. “Vivemos numa democracia?”, ele perguntava. Tem toda uma retórica ao abordar a possibilidade de liberdade, inclusive artística, num regime planificado, numa ditadura do proletariado, num estado socialista. Eu lembro as possibilidades do socialismo, que se considerarmos bem nunca houve socialismo. Os regimes assim denominados não passaram de estatismos, totalitarismos, neo-mercantilismos, modo de produção asiático.

    “Há liberdade no estatismo? Há democracia no capitalismo?”, eu pergunto. Dalton, aproveitando a questão da liberdade, cita o anarquismo teórico, mostrando certa leitura. Alfonso e a velha questão: o homem é mau e o Estado o domestica OU o homem é bom e o Estado o perverte? Ele e suas leituras de Machiavelli e Hobbes contrapondo as de Rousseau e Bakhunin. “Ruim com o Estado, mas pior sem este?” Lembro minhas experiências no “Carnaval Revolução”, junto aos anarquistas, e onde conheci o Bob Punk, que mencionou uma certa “Óbvio”. Nisso, o interesse de Dalton. Pensa em dizer algo, mas Leir estava ao nosso lado. Com poemas próprios.

    Eu preferi Walt Whitman, “Os Adormecidos” (The Sleepers). Alfonso e poema próprio, sobre o vazio da época. Chega Stevam Valêncio, uma mocinha e um amigo (o JJ). Ofereço ao Stevam (o outro-Stvam, como diz o Alfonso) outros poemas do Pessoa. Ele recita Álvares de Campos, “Não, não quero nada.” Sandra, a sua acompanhante (muito elegante, aliás) narra um conto dela mesma. Leir e mais versos próprios. Eu (novamente) com “A Flor e a Náusea” do Carlos Drummond de Andrade.

    Depois um cocktail.

    Sou apresentado a curadora da exposição de arte. Ela curiosa quanto à ‘minha’ exposição (tão anunciada) Esclareço ser uma exposição de poemas, o que causa o maior assombro. Alfonso às voltas com a programação do evento show literário, e arrasta os artistas para os degraus da casa azul. Rabiscamos um cronograma.


    Alfonso sugere um passeio ao luar, ali pelo centro histórico. Outros convidados se dispersam. Conversava ainda com o Leir, quando seguiram pelo calçamento de pedras. Alguém junto as paredes. Afonso reconheceu seu irmão.


Qua, 07 de abril


    Filmes na casa do Stevam Valêncio, quando não se deleita lendo Spinoza e Nietzsche. Gótico e pagão, poeta e filósofo, um sujeito incomum.

    Stevam Valêncio um tanto de porre, após a noitada na escadaria da igreja matriz, ouvindo contos vampíricos, como ele mesmo disse. “O Stevam, o irmão do Alf, estava lá”. Não esperamos o JJ, o amigo, logo atentos ao filme “Fight Club” (aqui, “O Clube da Luta”), algo esquizofrênico.

    (Lembrei de outros. Matrix. Cidade das Sombras. Truman Show. Beleza Americana. Decadência da sociedade consumista. Paranóias da vida moderna. Teorias da conspiração.)

    Assistimos a “Pulp Fiction” e aparece o JJ, cínico diante da violência gratuita nos grandes centros urbanos. Insensibilidade da sociedade competitiva, das máfias que assediam os cidadãos, na ineficiência dos poderes constituídos, etc. “Antes ele do que eu!” Mais cínico que o Quentin Tarantino. A surf music rolando. Ambos os filmes indicados pelo próprio JJ, cinéfilo e maníaco.

    Escurece, e ousam andanças. Prefiro um descanso.


Sábado, 10 de abril


    Ensaio da banda do Edgar. No estúdio de Tony, o do saxofone. “Gente, eis o poeta. Seja bem-vindo, poeta.”, Tony e a simpatia, à moda lusa. Tem um pé em Lisboa. A família, duas gerações, ele revela, singrou os mares, “um tanto já navegados”, e aportou no Rio, depois ousaram o trem para as Minas.

    Interessados nos meus poemas. Sugestões para escrever letras. Ouço as melodias. Flertam com o Clube da Esquina, com a Bossa Nova, com o pop rock. O que há de original hoje? Talvez a mistura.

    Lanche. Sanduíche e vários tipos de molho. Ligam a TV, acomodados nas poltronas, atentos a clipes musicais. Bandas de rock pesado flertam com RAP. Cantoras latinas seminuas. Astros da música negra conquistam as praias turísticas em carros conversíveis. O mundo à disposição de um toque no controle remoto. Aceito a cerveja. Relaxo.

    Edgar passa em casa antes do show. Não recusei o convite. Felizmente. Conheci a sua biblioteca, com biografia de Cazuza, com clássicos lusitanos, antologias de Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade. Volumes de História. Brasil Império. Segunda Guerra Mundial. Obra sobre as tropas nazistas na Rússia. Edgar empresta-me o livro.

    Seguimos para o show. Fiquei um pouco. Acabo de chegar. Escrevo isso e vou dormir.




    - E por falar em vampiro...

    Alfonso se adianta e abraça o irmão, o vulto noturno que trilha o calçamento de pedras do centro histórico. Os amigos se voltam, e notam um casarão. Sandra se acomoda sob o poste, ao reflexo rubro-laranja, os outros já sentados ao meio-fio, na boca da sarjeta.

    - Ó Steve, o que há?

    Nenhuma resposta. Sandra percebia o desassossego de Stevam. – Vê se se acalma, menino! Senta aqui ao meu lado.

    Não precisou repetir. Agora todos encaram o casarão, do outro lado da rua. E de mão em mão vai uma brasa acesa. Todos fumam. Stevam se resigna,e Sandra aceita a missão diplomática. Mãos de mãe e mulher nos cabelos longos despenteados, olhos nos olhos. Onde só lê aflição. – O que há, Stevam?

    O rapaz (o filho, o amante) não responde. Deixa-se acariciar. E Alfonso e o outro-Stevam querem entrar no tal casarão. Pronta aprovação de JJ e seu irmão KL. Sandra, também curiosa, se levanta. Stevam apóia-se nas grades do portão e espera.

    Alheio. Única percepção: Sandra junto ao jardim, ao lado do que sobreviveu de uma roseira. De súbito, os outros voltam. Alfonso e o outro-Stevam folheiam livros achados nos cômodos abandonados do casarão. Cena se ilumina na mente alheia: um vulto invadindo um casarão e encontrando caixas de livros e valiosos manuscritos, não, muito romanesco! Valiosos versos de jovem poeta suicida...

    - Belos trajes vampíricos, Stevam. – repete JJ, pois fizer o comentário antes e ele nem percebeu. Aliás, JJ é quem inicia o assunto “vamp tales

    - O que estão folheando, seus gatunos? – É Sandra, a única mocinha na turma, que quer saber de tudo.

    - “O Elogio da Loucura”, de Erasmo de Rotterdam. – Resposta em tom pomposo dada por outro-Stevam.

    - Prefiro Machado de Assis. Você já leu “Dom Casmurro”, Stevam?

    O problema é que os dois Stevam se voltavam, e se entreolhavam. Sandra nunca se lembrava de usar os sobrenomes como os outros faziam. – Ah, perguntei pro Lucena, o Steve.

    Aí o outro-Stevam abaixa os olhos aos livros resgatados no lixo. E todos seguem nas ruas mal-iluminadas. JJ lembra velhas lendas sobre vampiros, e Alfonso ironiza os vampiros de superproduções hollywoodianas e com “caras de superstars em banda pop”, e segue-se uma meia-volta volver, um recuo tático, até as escadarias da Matriz.

    Lá encima, meio aos arbustos, a lua rompe o véu de nuvens. Um lirismo alcoolizado seduz agora. Acomodados nas escadarias. Alfonso não hesita em enlaçar Sandra, e se de início ela até permite, logo se afasta. Os dois Stevam observam a cena, que precisa de um roteiro. O título da peça talvez seria “três corações solitários e uma simpática mocinha”. Sim, pois os rapazes faziam de tudo para agradar a Sandra, a “estrela” dessa peça. E a “associação dos solitários anônimos” não dava sossego. Certamente é Stevam o mais tímido, e a recusa de Sandra resultando em empate, a restar a possibilidade dela continuar com o outro-Stevam, que, afinal de contas, foi o autor do convite.

    Assim, desta vez, Alfonso não consegue o que quer. Mas não se importa. Stevam abre a antologia de Cruz e Sousa,

                                  “Pelas regiões tenuíssimas da bruma
                                   Vagam as Virgens e as estrelas raras...”

e Sandra se apóia em outro-Stevam, quando o vento rodopia no alto da Matriz e as janelas dos edifícios defronte se apagam, e Stevam exuma os versos

                              “... E nos brilhos da luz, vagos e vários,
                                Há dor, há luto, há convulsões, venenos...”

e JJ solta espirais alvíssimas de fumo, que tal uma névoa, encobre a visão do templo, e o irmão KL, reclinado, observa atento o crescimento lento da relva e Alfonso, a cabeça entre os joelhos, deixa-se abater pela beleza nascida do desejo frustrado, enquanto Stevam abre a edição comentada de “Eu” de Augusto dos Anjos,

                               “Homem! Por mais que a Idéia desintegres,
                                Nessas perquisições que não tem pausa,
                                Jamais, magro homem, saberás a causa
                                De todos os fenômenos alegres!”

e a cabeça aloirada de Sandra repousa no braço direito de outro-Stevam, com outra brasa viva, e JJ e KL trocam sussurros no escuro, enquanto Alfonso abraça a si mesmo, enquanto Stevam mergulha na leitura de “Cismas do Destino”,

                               “Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
                                 A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
                                O corvo que comer as tuas fibras
                                Há de achar nelas um sabor amargo!”

e os risos abafados de JJ despertam os risos angustiados de Alfonso, pobre Alfonso!, que faz estremecer a friorenta Sandra e arranca um sorriso leve na seriedade de outro-Stevam, pois sua ternura se valoriza na derrota dos outros, e o luar brilha acima dos edifícios, e Stevam lembrará deste mesmo luar, dali a um ano e meio, quando ali acomodar-se ao lado de Bianca Maria, agasalhados um no outro, na brisa fria de primavera, mas não adiantemos, pois agora ele se limita a suspirar por Sandra e ler Álvares de Azevedo, os versos de “O Poeta moribundo”,

                                  “Poetas! Amanhã ao meu cadáver
                                    Minha tripa cortai mais sonorosa!...
                                   Façam dela uma corda e cantem nela
                                   Os amores da vida esperançosa!”


e Alfonso continua em seu riso histérico, com isso de “corvo que comer as tuas fibras”, com isso “minha tripa cortai mais sonorosa”, que é trágico sem deixar de ser cômico, e os irmãos JJ e KL, ébrios, pouco interagem, a menos que o assunto seja filmes de terror, mas o tema agora é nevoento, de brumas literárias, e nomes soturnos afloram, a saber, Sade, Baudelaire, Stoker, Lautréamont, e Stevam em narrativa curta, mas arrepiante, com toques de “Conde Lopo” do Álvares, com um tom a la Lautréamont, em círculos tal um Proust labiríntico, com beleza áspera (ou bela aspereza), e quem já leu Jean Genet entenderá, e um mocinho, em plena madrugada, seguido por um vulto que ele, o moço andejo, não percebe até o momento fatal, quando toda ação já é inútil!

    Um breve estado de choque e a risada histérica de Alfonso cortava o ar noturno, o luar sobre as brumas do asfalto e o silêncio dos olhares, O que há, minha gente?, simplesmente que Alfonso não suporta aquele sucesso do Stevam, seu irmão, o próprio Abel do Gênese, e não pode deixar de ironizar, de exibir o seu bom e velho desprezo de Caim, o que não é tutor do irmão, mas não serve a comparação, nem Esaú e Jacó, pois Stevam é o primogênito.

    Nada disso importa. Apreciam o tom nebuloso de noite de luar, os jovens sonhadores, nutridos por fábulas e versos soturnos, inúteis e patéticos, com seus risos histéricos e faces doentias, sem rumo na vida e sem esperança de futuro.




    Ao crepúsculo, eles se animam a um passeio nos bosques. Stevam Valêncio quer fumar no alto da colina e observar o cromático declínio do sol. Convidou JJ e HD, mas se o primeiro aceitou por inércia, o segundo recusou por fadiga. Mas encontram Stevam Lucena no caminho, sempre disposto a andar.

    JJ, com toda a sua paixão por cinema, comenta o “A . I. – Inteligência Artificial” de Spielberg, onde robôs com forma humana servem como escravos, ou substituindo crianças no afeto dos pais, ou garantindo prazer ao desejo das madames, e Stevam relembra o clássico “Blade Runner”.

    - O caçador de andróides... de repente, ele mesmo pode ser um andróide...

    - Na verdade não temos certeza algum do ‘que’ ou ‘quem’ somos.

    A tirada filosófica de outro-Stevam, entre uma baforada e outra, ecoa n subida da colina, quando asas negras, assustadas, elevam-se na atmosfera fétida das carcaças de gado morto, atiradas às margens da estrada de terra.

    - Não sabemos o que somos, nem o que seremos...

    - Após a morte? – indaga Stevam.

    - Eu creio que algo de nós continua. – esperançoso, JJ estudava algo de espiritismo – Nossas almas seguem em outros ciclos de superação e evolução.

    - E essa crença te alivia, te consola? – quer saber o outro-Stevam.

    - O que te causa mais assombro, mais terror, Valêncio, - a voz de Stevam ecoa cavernosa junto a muralha de palmeiras e eucaliptos – Que a morte seja o fim, a carne mortal e o Eu mortal, e somos meramente aminoácidos pensantes, OU que após o fim do corpo, algo sobreviva, um espírito e consciência, uma ‘alma’, digamos, a sofrer julgamento, a ser recompensada ou punida?

    No entanto, não é outro-Stevam quem responde, pois JJ ousa um passo a frente. – O que me assusta é a idéia de morte total. Sou carne e, sendo carne, apodreço! Toda a minha existência seria um acaso e um desperdício!


    Mas, no escuro, as trevas reais, Stevam continua encarando o amigo Valêncio, que responde, entre dentes, atordoado. – Não sei. Sinceramente.


    - Pois acho medonho que haja um mundo além, um inferior, outro superior. Cada um com nove círculos...

    - Não adianta citar Dante. É literatura.

    - É uma metáfora. Não creio em Céu ou em inferno. O TH já dizia...

    - E não venha despejar a autoridade de TH em cima da gente!

    O descaso de outro-Stevam por Dante, Stevam até aceita, mas agora desprezar o nosso TH! – Qual o problema, Valêncio?

    - O problema é a sua falta de idéia própria. Vive citando os outros! Eu prefiro dizer que não sei do que ficar enumerando sábios e literatos e gurus como prova disso ou daquilo.

    - Pois agora você está falando igualzinho ao TH!

    Caiu um silêncio pesaroso enquanto os urubus sobrevoavam o bosque e a estradinha. Os passos levantam poeira e avançam na escuridão, rompida por um farol, vez ou oura, na estrada principal.

    - E o que sabemos realmente? Só possuímos conjecturas, teorias, possibilidades!

    Stevam fura a escuridão densa em trilhas incertas, a cruzarem os regatos, saltando sobre as pedras lisas, úmidas e perigosas, atentos aos pios agourentos das aves noturnas, envoltos na fumaça dos cigarros, os olhos brilhantes nas trevas, buscando orientação na posição das estrelas, ignorantes de qualquer astronomia, imersos em discussões metafísicas.

    - E quem triunfará no final? O Bem ou o Mal? Afinal, pensemos, existe ‘final’? e se tudo for um imenso círculo? A serpente a morder a própria cauda?

    - Ah, por favor, Steve! Você aí regurgitando as suas leituras de Nietzsche!

    Enquanto JJ e outro-Stevam fumam, e Stevam lembra sonetos de Augusto dos Anjos, “Triste, a escutar pancada por pancada, A sucessividade dos segundos..”, sim, “O Lamento das Coisas”, eles podem ouvir, filtradas entre as árvores, as vozes ecoando à distância, unidas em cânticos e hinos religiosos se elevando até a colina. O que será? Deduzem serem os cristãos, em seus cultos sob as árvores.

    - Algo meio pagão, não acham? – pergunta Stevam, aguçando os ouvidos.

    A procura da diferença, o querer afastar-se da vida urbanizada, numa ânsia de retorno à natureza, que a civilização ocidental dita cristão vem arruinando.


                              “E quando, ao cabo do último milênio,
                                A humanidade vai pesar seu gênio
                               Encontra o mundo, que ela enche, vazio!”


    Daí Stevam concluir, entre cínico e melancólico. – É, é pesaroso. A única diferença entre eles e nós é que não temos algo para adorar...

    Mas dos assuntos místicos, JJ passa para os épicos, a saga de “The Lord of the Rings”. E segue tropeçando e descrevendo suas idéias para um romance, ou série de quadrinhos, que se inspiram em RPG, ficção científica, fábulas, mangas japoneses, a beber em mil fontes, enquanto Stevam ironiza o excesso de fantasia, ainda que admirado com os livros de Tolkien. Assim também, o outro-Stevam, que adora épicos, mas a suspeitar dos filmes épicos, aqueles enlatados ganhadores das novas safras de Oscars.

    Descansam num bar de beira de estrada, daqueles que só vendem cachaça e pão seco, e pedem água e pão sovado e comem ali mesmo, nas mesas rústicas, enquanto dois lavradores discutem a política local, com velhas rixas de coronelismo, daquelas que imaginamos ainda existir apenas nos romances de Lins do Rego ou Guimarães Rosa, mas que para aqueles dois homens bronzeados e fatigados, ali de pé, ao balcão, bebendo uma cachaça da autêntica, é a mais palpável realidade. Violência nas cidades? E a violência nos campos? É o que diz o jornal de ontem.

    Folheiam jornais do dia anterior, os únicos ali encontrados.

    - Guerra no Iraque: um novo Vietnam?

    Stevam lê em voz alta algumas manchetes, enquanto os outros mastigam. A tempestade no deserto perdeu o rumo e a razão na miragem das areias. Vira a página. Prisão de programadores que divulgavam fotos de pedofilia em rede mundial de computadores. Pornografia sem controle. O desvario sexual e a decadência moral.

    - Até onde a liberdade vai, sem se tornar libertinagem?

    E o assunto ‘sexo’ anima os passos, quando do retorno, rumo ao centro histórico. E a humilhação das mulheres nos filmes pornô? Será uma reação masculina à onda de liberação feminista? E as mulheres que passam merecem olhares atenciosos, lascivos até. Mas, cansados, corpos pesados, sentem um desejo tímido, sossegado.

    E a passo lento, olhares resguardando delírios, seguem para casa.




Realizado o show literário


    Alfonso, o bom irmão, dissera, explicitamente, que ele chegasse cedo, mas Stevam chega na hora em que as velas se apagam. HD no palco, rodeado por velas, aquelas que Alfonso apaga uma a uma, aos versos de “A Noite dissolve os homens”, de Carlos Drummond de Andrade, “... a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer, a noite dissolve as pátrias...”, enquanto Stevam procura um lugar, o que não é difícil, o auditório está vazio. Pobre Alfonso! Pobre Alfonso.

    O mestre de cerimônias não é nenhuma surpresa. Ali o Leir Macedo, o de sempre, empolgado consigo mesmo. Mas Stevam encontra o outro-Stevam na segunda fileira, o lado de Sandra. Talvez tenha sido o perfume que serviu de guia...

    Mas não há tempo para respirar ou aplaudir!, HD, pedante, autoritário, empunhando um decreto, ou algo que o valha, parece mais um arauto em praça, em tempos imperiais, “Decreto do Congresso Internacional do Medo!”, e recita “Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos”. E um casal ao estilo pub inglês vem entoar baladas tristes de Belle & Sebastian, com os acordes depressivos de um Radiohead.

    Mas eis HD novamente! Ao som de Rage Against the Machine, “They come arond the families / with the pockets full with shells!”, alertando que “Bulls on Parade!”, “Os tiras estão na parada!”, mas a exibir o uniforme das SS nazista, com braçadeira com suástica e cinturão e tudo e o braço direito erguido e tal e recitando parte da trilha sonora de “Fight Club”, “Esta é a sua vida / É a última gota para você!”, gritando uns “Heil!” a cada cataclisma sonoro, a cada batida eletrônica, a cada scratch niilista, “Nada é estático. Tudo é movimento. E tudo está desmoronando. Esta é a sua vida.”, e o vocalista vai gritando “Bulls on Parade!”, “Os tiras estão na parada!”, e HD continua numa manifesto a denunciar o vazio da mídia e dos neo-cultos, o fascismo religioso e seus comandados e seus asseclas, e arranca de si as suásticas e as cruzes e incendeia os ícones e símbolos em pleno palco, incitando os ouvintes a criarem novos valores e “não exumarem valores antigos!”

    Não há tempo para aplausos e CONSUMO, LOGO EXISTO no cartaz que o Alfonso ergue. E um aristocrata sobe ao palco, a distribuir folhas, livrando-se de seus textos, e parodiando Franz Kafka, quem seria? A dupla de indie rock volta ao palco com clássicos de The Verve, Oasis, Blur, Massive Attack. Meire, poetisa e performancer, declama um poema dela mesma, com temática mortuária, a la Henriqueta Lisboa.

    Leir volta à cena com declamações pop, ao estilo Bono Vox, enquanto o outro-Stevam se prepara para subir ao palco. Com uma voz fraca, aliás, e teve sorte em ser ouvido, o público era reduzido e respeitoso. E os aplausos explodiram. Nem tanto pelo poema, mas porque Valêncio foi o único a se curvar perante o público. Mas, ora, o outro-Stevam é um gentleman que ouve Beethoven e Mozart!

    Mas as luzes se apagam. Alfonso é seguido pelo facho de uma lanterna, nas mãos de HD, lá no meio da platéia. Declama eufórico e panfletário aquele poema das andanças noturnas com o primo, aquele aloucado do Lúcio, sociólogo das noitadas, antropólogo das quebradas, cientista político dos subúrbios! E logo outro louco aparece, deve ser o Dalton, o “Vladimir”, que apaga as luzes e mantém dois minutos de escuridão e silêncio, andando nas sombras, tropeçando nas flores do asfalto, caindo na ribalta do palco, somente para ler meia dúzia de versos ridicularizando tudo aquilo!


    É quando HD surge todo de branco, parecendo mais um médium espírita, e perambulando pelo palco, lamentando a flor que Dalton pisara a pouco, no ápice da escuridão, “Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.”, outro poema do Drummond, “A Flor e a Náusea”, e logo se percebe quem decidiu a programação, e sempre com ares democratas!

    Leir assume os holofotes (literalmente!), mas sabemos que HD-Drummond já volta. Uma mesa e uma cadeira estão disponíveis na lateral do palco. As “aves raras” de Leir dão lugar a um escritor em sua mesa, rabiscando versos apenas para atira-los fora, longe de si, “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, ...”, em sua mesa, a meditar a cada versos, insatisfeito, a embolar os papéis, “A literatura estragou tuas melhores horas de amor”, e não era verdade?, soubera disso quando falhou junto ao corpo quente de Sônia Regina, ao sentir-se atolado de literaturas sádicas e masoquistas, sadomasoquistas!, incapaz de transcender o papel e possuir aquele corpo ofertado, mas ele afastou a imagem, continuou observando o escritor, o talentoso HD, o poeta em sua mesa, “Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota...”, mas o sorriso de desdém de Sônia Regina era mais claro, mais reluzente (mais cegante!) que os holofotes, que a lua de verão, que o sol em pleno meio-dia, pois ele falhara em dar prazer a mulher, seminua na cadeira, diante das estantes da biblioteca de seu pai, livros de futura herança, que esperam ser lidos, mas nisso HD já termina o poema “Elegia 1938de Carlos Drummond de Andrade e se levantava da mesa.

    Mais Drummond ainda se destinava a platéia atônita, agora na voz de Meire com o famigerado “José”, “E agora, José? A festa acabou,...”, sim, a Meire e seu visual das criptas, lembra as mocinhas no Leis da Noite, em temas macabros, ressoando um poema irônico como uma balada lúgubre, “e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mofou, / e agora, José” e as palavras eram uma forma de afronta, mais do que um consolo, como se o pobre José nem compaixão merecesse, “Se você gritasse, / se você gemesse, ...”, com voz doce, mas de despedidas de enterros, o pobre José, “Mas você não morre,”, ela diz quase num deboche, é o fim do pobre José atirado do limbo da existência para as estrofes de um poema, “Você marcha, José! / José, para onde?”, para onde?, para onde todos vamos?

    Mas, logo, Alfonso declama versos próprios, talvez para Glória, a Glória perdida, ou para Sandra, a Sandra desejada, “O crime? Nosso egoísmo e bruto desejo / de sermos amados.”, e sua própria atitude é de confessar a derrota para atrair simpatias, como se dissesse, cândido e afinal purificado, “Ela não soube me amar!”, e ele sempre fazia isso, Stevam sabia. Os irmãos, afinal, se conhecem.

    Nova escuridão desce. As velas são acesas, uma a uma, e HD, com sua voz de orador em tribuna, vai recitando a segunda parte, mais otimista, de “A noite dissolve os homens”, “Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida,...”, e as velas brilham, um vulto penumbroso e multifacetado se destaca, é certamente HD, voz triunfante contra o medo do escuro, “O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos...”, uma vela, com sua chama bailante, apresenta um pedaço do braço, outra, um trecho do rosto, parece um corpo desfigurado, esquartejado, num quadro cubista de Picasso, “Havemos de amanhecer.”, todas acesas, agora iluminam um corpo inteiro, e a face do orador, enfim completa, exibe a franqueza de um sorriso, ainda mais quando os aplausos ressoam.

    Tudo se encaminha para o final, luzes e holofotes explodem, nos quatro ângulos, HD numa cadeira. Livro em mãos, em leitura grave (obviamente Drummond!) dos versos de “Os ombros suportam o mundo.

                            “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus

e todos os olhos se apertam (quem sabe assim goteja uma lágrima?), e a voz lembra que o “o coração está seco”, o poema segue em sua própria clarividência, pois “a vida é uma ordem.”

                                       “A vida apenas, sem mistificação.”

    E Stevam se ergue com os aplausos.





(do diário de HD) (2004)


         qui, 22 de abril


    Sarau memorável. Artistas homenageados, entre eles, eu e Edgar. Por nossa iniciativa de música e poesia. “Caro Edgar, ouça as novidades! Enfim o reconhecimento!”

    Edgar e sua elegância. Ao seu lado, fascinante, estava Simone. Trocamos saudações. Eu mais caloroso, e ela sempre simpática. Outros amigos chegam. JB, na organização, está em todos os lugares, em saudações e listando as participações. Beto e Aurelius juntos ao palco. Alberto (o ator) ainda esperado. Benito chegou, amigável, e sentou-se ao lado de Edgar. Ao ouvido de Simone comento algo sobre o evento de literatura africana. Está confirmado. Ela em sorrisos. Está satisfeita consigo mesma. Outro ator, o Álvaro, também apareceu, mas nada sabia sobre o Délcio Palma.

    Apresentações de dança com Alberto, mesmo atrasado. Sem perder o estilo. E música popular com um casal, coisa comum. E performances, sem comentários.


    Sarau. Beto declamou algo de Leminski. Aurelius, algo de Pessoa. Eu e meu poema sobre a nossa geração. Álvaro lembra o Patativa do Assaré. Depois novamente o casal, com mais música popular.

    Quando das premiações, deixo o meu discurso sobre as dificuldades na produção cultural, devido aos tramites burocráticos (indireta para o cabide de empregos da secretaria de cultura) ou à desconfiança dos patrocinadores (indireta para os empresários que desconhecem o marketing cultural), e placas com homenagens foram distribuídas para os artistas.

    Encerramento. JB congregou os poetas e amigos no palco e, de mãos dadas, em semi-círculo, sugeriu que cada um ‘invocasse’ para nosso círculo uma personalidade digna de admiração. E JB invocou Mário Quintana, por sua poesia singela, e Beto lembrou de Raul Seixas, o ‘maluco beleza’, por sua insatisfação com a mesmice, e Benito, piscando para o Beto, citou Leminski e sua rebeldia, e Simone mencionou Carlos Drummond de Andrade, afinal estávamos de “mãos dadas”, e Álvaro exumou Renato Russo, por poesia e música, e o cantor Moretti invocou o ídolo do reggae Bob Marley, por sua mensagem, e Edgar lembrou de Vinicius de Moraes, o poeta boêmio, e o desenhista Inácio mencionou Cazuza, outro destaque na música e poesia, e Aurelius (não podia ser diferente) invocou Pessoa, pois “o poeta é um fingidor”, e eu fechei o círculo com Augusto dos Anjos, ao declamar “A Idéia”, “De onde ela vem?! De que matéria bruta...”

    Todos comovidos.

    Para brindar, descemos para o bar cultural, diante da universidade católica. Um trio de jazz. O baterista e o baixista são os da banda de Edgar. Confraternização geral. Edgar e Benito trocavam gracejos com a garçonete e Tony logo apareceu com seu saxofone. Simone, ao meu lado, sob o véu de fumaça, enumerava as tantas barreiras no caminho, “Havia uma pedra no meio do caminho”, ela sorri, para quem se aventura na produção cultural, “É derrubar um Adamastor por dia, querido!”, e seu perfume se confunde com o fumo, e os cabelos fremem a cada risada, que nisso ela é indiscreta. E entrega-se a comentários mordazes, a descrever cada personagem ali. Os fugitivos de uma revista em quadrinhos, “Negros e lisos os fios ondulam em cascata”, rabisco no guardanapo.

    O saxofone empolgado e eu louco para abraçar aquela moreninha do Macedo, mas ela não abaixava a guarda, senhora de si, Sei não ter o talento suficiente para balançar aquele corpo. É preciso um fascínio a mais. O fascínio do poder, o brilho do dinheiro.

    Emocionado, deixei o meu abraço. Despedidas distribuídas entre amigos. Edgar, Beto, Benito, Aurelius, Tony, e outros, todos amigos DELA. Simone sorriu e disse “Boa noite!”, e aceitou a carona de Aurelius.




    Dom, 25 de abril


    Ontem, a apoteose de Alfonso Lucena. Realizado o show literário.

    Esforço e investimentos, e certa decepção, com a platéia um tanto reduzida (cinqüenta almas), enquanto a produção incluía três, os artistas convidados eram sete, sendo um casal de músicos, com ênfase em música pop inglesa.

    Não acompanhei tudo, concentrado no camarim, junto aos poemas do Drummond. Assistirei ao vídeo depois. (Inclusive uma conversa – que imaginava informal – com o poeta e mestre de cerimônias, Leir Macedo)

    Sou apresentado ao Sr. Michael Bishop. Ao fim do evento, Alfonso surgiu no camarim, conduzindo Dalton, o “Vladimir”, e o gentleman com sua fineza britânica (ainda que a pronúncia de seu nome seja à alemã), “Mas pode me chamar de Miguel, o Bispo.” Afora os trocadilhos (dos quais não me lembro) Quem é? Ninguém menos que o mento e fundador da Óbvio, que, enfim, Dalton foi obrigado a confessar (ele é um dos integrantes!) O que seja a Óbvio, não sei. De Óbvio nada tem. Atmosfera de mistério a Agatha Christie. Exige uma ‘iniciação’. Uma seita? Um grupo esotérico? Uma máfia? Uma sociedade secreta? Um grupo de amigos que se reúnem para discutir políticas e literatura? Uma produtora de eventos? Tudoissoaomesmotempo?

    Registro os aplausos de uma platéia, reduzida mas emocionada. Depois, fotos. E elogios, obviamente aceitos. Fiz questão de cumprimentar a poeta Meire, além de confraternizações com Stevam Valêncio e JJ.

    Na portaria, ao folhear o caderno de presenças, eis as assinaturas de Flávio Toledo e Ariella Saraiva! O Flávio aqui esteve e nem percebi! Possivelmente saiu antes, senão eu receberia os entusiasmos. Agora, ele, homem casado, pouco tempo para os amigos.

    Segue-se noitada nos bares do Eldorado, por convite de Alfonso. Irrecusável. No entanto, ainda sob a euforia, uma sombra de decepção.


    (um complemento)


    Na verdade, prosa aberta com o Leir. O vazio? Que vazio? Eu só vejo o excesso! Excesso de estilos musicais, de literatura, de informações, de eventos, de quase-eventos, de pseudo-eventos, de filmes descartáveis, de enlatados made in USA, de seriados de dramas cotidianos, de produtos culturais os mais inúteis, de manuais de sobrevivência urbana os mais paranóicos, de guias de meditação a tratados de semiótica, de grupos de alcóolatras a grupos de viciados em pornografia. Excesso, uma fragmentação, uma diversidade sem rumo, que cria um vazio de valores. Aceita-se tudo. Vende-se tudo.


    Agora, vou dormir.




Qui, 14 de maio


    Conforme prometido, participei do evento promovido por Simone e Gabrielle, com eficiente assessoria de Beto, Benito e Edgar. Ênfase na literatura de autores africanos de língua portuguesa.

    No auditório da universidade católica, diante dos professores e suas observações, que não perderam as palestras de ontem (teoria da literatura, lingüística e semiótica) Alguns poetas se acomodam, inclusive um amigo de JB. (Ousou trechos ásperos de Castro Alves, “Os Escravos”)

    Também Délcio Palma, Álvaro (o ator), o presidente de importante entidade literária, além de alguns poetas bissextos, algumas poetas lânguidas.

    Toda gentil, Simone aproximou-se, assim que me notou. Interessada no que eu preparara. “Agostinho Neto, António Jacinto, Ilídio Rocha”, respondi. Ela sorriu, “Angola e Moçambique!”. Conhece os poetas e aprova.

    O presidente da importante entidade literária narrou extensa e prolixamente a história da mesma e declarou a importância da literatura na educação de corações e mentes.

    Convidado ao palco, declamei o “Poema da Alienação”, de 1961, escrito por António Jacinto, falecido em Lisboa, em 1991.

                                   “Não é este ainda o meu poema
                                   o poema da minha alma e do meu sangue
                                   não...”

    Simone, ao lado da professora de letras e do presidente da importante entidade literária, observava com um brilho nos olhos, enquanto Edgar, ao lado de Beto, se empolgava com minha performance, quando gritava em dialeto afro

                                        “O meu poema anda descalço na rua
                                   o meu poema carrega sacos no porto
                                   enche porões   esvazia porões
                                  e arranja força cantando

                                   ‘tué tué tué trr
                                   arribuim puim puim’ ”

na lateral do auditório, Délcio Palma, todo diplomático. Saudações trocadas com Gabrielle e gracejos ousados com Benito. As poetas lânguidas, em maturidade (não exatamente da escrita) se reclinam, olhos quase fechados. O embalo dos versos.

                                   “O meu poema nada sabe de si
                                    nem sabe pedir

                                    o meu poema foi feito para se dar
                                    para se entregar
                                    sem nada exigir.”



    Depois, o poeta a declamar Castro Alves. Correto, cuidadoso, sem empolgação. Gabrielle surgiu ao meu lado. Os guardiões da tradição afro haviam chegado, e que eu declamasse mais um poema, para o fechamento. “Sem problemas”, e fiquei curioso quanto aos “guardiões da tradição afro”, mas logo Délcio Palma revelou-me tratar-se da “Comunidade dos Arturos”, de Contagem, que conservam muito da cultura dos antepassados. Os que vieram naqueles medonhos navios negreiros, descritos nos versos de Castro Alves,

                                   “Tinir de ferros... estalar do açoite...
                                    Legiões de homens negros como a noite,
                                    Horrendos a dançar...”

    Tradição dionisíaca, a dos artistas africanos. Trajes e danças. Ritmos e gestos. Sorrisos e dialetos. Tudo a transbordar. Muito emocionado, o Délcio, ao meu lado. Ele muito ligado aos apelos afros, não só por seus ancestrais, mas pelo artista que é.

    Agostinho Neto, de Angola, para fechar o evento. O poema “Desfile das Sombras”, com o qual me emocionei.

                                       “As sombras
                                       que se esvaziaram no tempo
                                       deixaram-me esta ânsia

                                        e o eco múltiplo
                                       do tilintar das suas correntes:”

    Edgar abraçou-me, em elogios, “Meu nobre, mais do que poeta, você foi ator!”, e igualmente Simone. Não poupou gentilezas.

    Seguimos para o bar cultural, onde Edgar encerrou o evento com música brasileira. Mas Simone não pôde me dar atenção. Haviam outros convidados.



    Encontramos Stevam Valêncio no cursinho pré-vestibular, no Edifício Dantes, na artéria aorta da metrópole, e conseguiram arrastar o estudante para uma palestra. Aliás, HD conseguiu. Depois de um acordo com Alfonso, que foi o autor da proposta. Se dependesse de Hélio Lúcio, seguiriam todos para o sarau lá na zona norte, na Lagoa do Nado, cenário de subversões artísticas e atentados poéticos.

    - Você vai perder uma palestra do Silviano Santiago?

    Alfonso pensava assim ter o argumento final. E realmente. Stevam Valêncio entrou no cursinho e logo voltou com a mochila. “Vamos dar o fora!”

    O interesse de Alfonso era até de presentear o palestrante com um de seus poucos exemplares restante do seu livro com o poema das Andanças. Idéia luminosa e iluminista. Do alto da pirâmide descem os raios de luz, os raios que se derramam sobre os neófitos, sedentos do Conhecimento. Alguém lera isso em obscuro lugar. Mas o tom solene era ali real. O palestrante ali estava para “derramar a luz” sobre os sedentos, afastar as sombras da caverna...

    Um panorama da criação literária e o papel social do escritor. A narrativa enquanto espelho diante da sociedade. A narrativa enquanto delírio compartilhado. Quem escreve, escreve pra alguém. Até onde escrita é sessão de análise, isto é, auto-análise? Alguém anotava os tópicos, outros trocavam sussurros. “Vou me manifestar!”, ali estava HD inquieto ao lado de Stevam Valêncio, enquanto Alfonso voltava-se com olhares irônicos, “Faça o seu manifesto!”, mas não acreditavam.

    Até que HD pediu o microfone. – Por que essa de fazer estátua para escritor depois de morto? “Escritor bom é escritor morto?” É das pessoas se aproximarem e baterem no ombro do escritor, “Meus pêsames!”, como se o escritor fosse um leproso! Por que esse trauma com o escritor, e por que a auto-piedade do mesmo, que parece pedir desculpas por existir!

    O palestrante ponderava e era obrigado a concordar. A pobre raça dos escribas! “Farejador de carniça, prematuro coveiro, procurador do ninho do mal no seio de uma boa palavra...” (1), só para citar trecho de James Joyce, muito citado nesta palestra, como exemplo do escritor em luta permanente, em contraste ao escritor em repouso constante nas lembranças, um Proust, convenhamos.

    Depois fizeram uma fila para um aperto de mão, e Alfonso embarcou, com seu livro a postos, enquanto os demais se preocupavam com o vinho branco. Uma amiga de Alfonso apareceu, curiosa.

    - O que o Alf anda fazendo?

    A mocinha atendia pelo nome de Sandra, como outra conhecida nesta narrativa. E era tão inquieta quanto. “O que o Alf anda fazendo?” era só o começo. Mas por sorte o próprio Alfonso aparecia, pronto para esclarecer pontos nebulosos.

    - Vamos dar uma volta, meus caros?

    E assim se livrou de uma outra palestra. A de como tratar uma mulher. Ministrada pela própria interessada.

    - Você estava bebendo, Alf?

    - Não, absolutamente. Quem estava molhando o bico eram esses aí.

    E de súbito, HD parou no ‘boulevard’ da Rio de Janeiro, em plena Praça Sete, embriagado não de vinho branco, mas de poesia. Queria um sarau ali e de imediato.

    - Vou ler a “Ode Triunfal”, sem cortes!

    E esta foi a senha! Leu o poema do Pessoa, sem cortes! “Tenho febre e escrevo” tornou-se “estou bêbado e leio!”, e logo alguns vultos se interessaram em saber do que se tratava. Um discurso subversivo? Uma palestra sobre os maquinismos modernos? Um louco lendo um texto de outro? E já passavam das nove, ou vinte-e-uma, horas, e uma senhora, com uma sacola de supermercado, parou, ao ouvir o trecho “Come chocolate”, etc, mas logo se afastou, um tanto escandalizada, o que não desanimou o grupo, pelo contrário!

    Outro que se animou de pronto foi o Hélio Lúcio. Com seu torpedo lírico naufragando vidas acomodadas, “Existências vãs!” era o bardo com seu brado, que logo atraiu outro público, pois quando Stvam Valêncio se animava, quem estava na platéia? Um bêbado e uma mendiga, ali recebendo atenções de HL e Alf. Antes acomodados nos degraus, agora todos se exaltavam, e falta pouco para Alfonso deixar os braços de Sandra e abraçar a mendiga carente!

    Mas Alfonso ainda esta lendo seu poema das Andanças e os mendigos ainda estão à distância, com os ouvidos ainda carregados com brados de HL, que agora arranca outra folha de amassada de sua pasta de fiscal do Fisco, como gracejava Alfonso, que não perdia uma chance, e de passo em passo, todos falavam aos gritos e os passantes julgavam presenciar uma encenação, caso contrário ali estaria fervilhando de policiais!

    - “Ninguém me ama ninguém me quer ninguém me chama de Baudelaire...” (2)

    - “Sigo cabisbaixo à procura de uma flor no asfalto...”

    - “Explícitos hematomas da consciência doentia...”

    - “Ah, sentir-se cegado-se cegado por todos os faróis, atropelado por todos os ônibus, nos cruzamentos de todas as avenidas...”

    E de repente os mendigos estavam ali, solidários, em lágrimas, em real comoção e agora sim, eis Alfonso abraçando a mendiga, que é toda agradecimentos, “A quanto tempo ninguém me dá um abraço, moço!”, e HL apóia o bêbado que quer ainda entender tudo aquilo, e só não podem oferecer mais um gole ao cidadão, que vai assim trocando as pernas, rente aos muros da cidade, excluído de todas as aconchegantes varandas e luminosos balcões de botecos, vergonha para a família e devedor de todas as garrafas, e os poetas enfim tem ali uma companhia, os vultos que vagueiam na noite sem nada além de uma coberta e um banco de praça ou marquise de loja, e agora querem saber quem são aqueles rapazes bem vestidos, delicados e asseados, a bradarem no meio da noite para quem quiser ouvir.

    - “Somos o grito indomado do desconforto da existência!”


(notas do Editor. (1) Tradução de trecho de “Shem The Penman”, de “Finnegans Wake”. (2) verso de famoso poema de Antônio Barreto, poeta mineiro.)




(do diário de HD)

(2004)

terça, 1o. de junho

    Visita ao Alfonso. Ele sempre me surpreende. Não planejara a visita. Ele convidou-me após o recital do Makely Ka.

    Conseguimos (finalmente!) conhecer o poeta e músico. Hélio conseguiu (nunca me disse como!) o número do celular, e então, do centro de cultura mesmo, ali no barzinho, ligamos para o artista. Alfonso ainda duvidava, ao lado de uma mocinha, a interromper o Hélio o tempo todo (e Hélio detesta isso!) com trocadilhos de péssimo gosto, obviamente imaginando agradar a nova conquista.

    O objetivo era convidar Makely para a Exposição de Poemas. Daí a peregrinação até o Coração Eucarístico, num instituto religioso (onde jamais imaginaríamos encontrar o artista!) Muito simpático, o Makely. E sua companheira, a cantora. Num breve prólogo, com oratória simples e didática, lembrou que a poesia e a música nasceram unidas, com os velhos arautos, os bardos dos tempos de Homero.

    Cantou poemas próprios e recitou uma paródia dos beatniks. Poemas do seu impagável “Ego-Excêntrico”, onde na capa figura o seu egocêntrico umbigo! Presente ou o Alfonso com um exemplar. E aceitou o convite, quando trocamos endereços de e-mails. Mas ele estava com a agenda cheia e seguiram-se despedidas cordiais.

    Alfonso financiou nosso lanche diante da universidade católica e seguimos para o Eldorado. Na João César (avenida que descubro homenagear o pai de JK, um tropeiro, segundo se sabe), eis uma banca de livros, nas laterais do shopping local, uma pequena fartura de títulos, além de raridades. De início, aquelas famosas revistas de mulheres nuas, mas, notei (com assombro) títulos de Joyce e Fitzgerald. Assim comprei “O Retrato do Artista quando Jovem” e “O Grande Gatsby”. Deixei os livros nas mãos de Alfonso.

    Após o almoço, reclinamos nas almofadas da biblioteca, na ausência de seu pai, e ouvíamos Alice In Chain, o álbum acústico, enquanto Alfonso folheava os livros e eu encontrava um volume sobre traduções de “Finnegans Wake”, dos irmãos Campos, ousados trans-criadores.

    Mas antes de James Hoyce, Fernando Pessoa. Alvo de nossas leituras. (Não apenas o Pessoa, pois eu lia “Boca do Inferno”, de Ana Miranda, onde o protagonista não é ninguém menos que o poeta Gregório de Matos.) O fato é que o Pessoa, em específico Álvares de Campos, muito nos interessa por seus pontos de vista em múltiplas perspectivas. Apontei tal achado ao Alfonso, como uma gênese de um longo poema (que ora escrevo) Fortes ressonâncias de “Ode Triunfal”, onde o urbano, o complexo e o vivencial é despejado no poema de versos longos e oratória hiperbólica, “Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados,...”

    Alfonso insinuou que em minhas experiências de andanças havia algo de místico. Que sabemos muito presente em Kerouac, com seu “On the Road”. E outros beatniks (a citar Ginsberg e Ferlinghetti) que muito me interessam. Neguei esse aspecto místico. Apontei as visões possíveis, a pluralidade. Alfonso ironizou, a julgar-me discípulo do Professor Antunes. Ignorei. E lembrei que tal temática já se encontra em Nietzsche, que dizia não haver lugar privilegiado para se ver o mundo.

    Nietzsche já avisara que se derrubamos valores, por exemplo, a Moral, a Família, o Dogma, etc, devemos criar novos valores. Algo deve substituir as estruturas arcaicas, não se pode abolir tudo e deixar um niilismo (lembrai-vos de Turgueniev! Lembrai-vos de Bazárov!) ou uma anomia (lembrai-vos de Durkheim!) E Alfonso boceja meio às citações de Durkheim (justamente!) sobre a onipresença da Comunidade. Mas folheio o “A Era dos Extremos” de Hobsbawm e eis o pobre século 20 que tentou de tudo, o anarquismo, o comunismo, o fascismo, o nazismo, o movimento hippie, o feminismo, a liberação sexual, a música ligeira, mas a “falta de sentido” continua.

    Enquanto isso, as Religiões se modernizaram, vide o Cristianismo. A consideração de Alfonso não foi deslocada, pois eu folheava “O Elogio da Loucura”, um livro velho e mofado que fora encontrado num monturo de lixo num casarão abandonado (segundo ele disse) e que sejam católicos carismáticos ou neo-evangélicos, os cristãos se adaptaram ao mundo” e assim a religião voltou a dar uma certo ‘sentido’. Segue-se a conquista das massas, com os ‘rebeldes de cristo’, o rock cristão, o samba cristão, e outros mais.

    Mas concordei. “Vá com Deus”, “Fique com Deus”, as pessoas querem Deus, o Deus sem muito rigor, sem muito compromisso, pois o desprezo pelo compromisso é a marca do homem nauseado (e dos ‘homens ocos’) do século 20, e apontei o volume de “A Náusea” em sua estante. Veja que Sartre se atentou para o fenômeno, com seu Antonio Roquetin sempre deslocado, vazio; seu Mathieu se evadindo de todo o compromisso, evitando qualquer laço, a imaginar-se ‘homem livre’. Temos assim uma religiosidade divertida até, onde a religião é ponto de encontro, onde se faz novos amigos, onde se encontra a ‘cara metade’, onde conhecemos o futuro patrão.

    Parece que Alfonso se agradou do rumo da conversa. Os trechos que eu lia em “Retrato do Artista”, a descrição das missas e dos horrores do inferno, ou em “Gatsby”, as festinhas do novo rico e as falsas amizades que a riqueza compra. Quando falava, era em pausas, em monólogo, sem didatismos. A u tempo atrás, uns dois séculos, o império da religião. Lá estava o indivíduo absorvido no coletivo supersticioso e crédulo. Borbulhou o liberalismo, a afronta irreligiosa. Hoje, o irreligioso individualista. Não o ideal humanista do homem em-si-mesmo, mas o indivíduo consumista do ‘mercado livre’.

    Na pausa, percebemos que o acústico do Alice In Chains deixara o silêncio. Alfonso encontrou “The Bends”, do Radiohead, na mesinha com revistas. Ouvíamos então o indivíduo a perceber-se solitário e perdido. E confesso que eu nunca me acostumei com o Thom Yorke (prefiro um esbravejante Rage Against!) Mas Alfonso não terminara ainda. Pois o indivíduo às voltas consigo mesmo não criou alicerces coletivos, então surgiu a reação, lambendo o vômito pregando a religião e o coletivismo, seja comunista ou fascista, não importa se fundamentalista ou oficialmente ateu. E quando me refiro a um individualismo é este que é estimulado pelo mercado, para o consumismo. O individualismo não existe ainda, e deve ser defendido. Trata-se do individualismo da autonomia diante de uma cultura de massificação.

    Eu precisava concordar com ele, ali ouvindo Thom Yorke em crise depressiva, ainda que comercializável. E voltava ao filósofo com o martelo. De que adianta destruir valores se não os substituímos? Nietzsche conhecia o niilismo, daí alertar. Contra o perigo do vazio, que leva os indivíduos para a vida anômica, para o sem-sentido, para o álcool, para as drogas, para a diversão fútil, para o sexo hardcore, pra os demagogos em seus púlpitos, para os divãs de analistas, para os discursos de um líder. Alguns dissidentes protestam, outros se matam, e o mundo continua, o mercado lucrando com a alienação, em sutil socialização para as exigência do lucro.

    Mas como ir contra a alienação, se os dissidentes se tornam, por si mesmos inofensivos, em busca de refúgio nos ópios, nos prazeres do sexo e das drogas?, isso Alfonso polemizava, enquanto me observava a folhear o “Dialética do Esclarecimento” de Adorno e Horkheimer, pois o hedonismo é útil ao lucro, e a rebeldia é facilmente entorpecida, instrumentalizada e comercializada, e os rebeldes não percebem que logo não passam de outros consumidores, acorrentados em outra caverna, quando acabam de se libertar de outra. Essa referência de Alfonso é facilmente explicada. Eu folheava “A República” de Platão.


    Ele destacava outras peças sociológicas da estante, com suas obras de Lakatos, Freyre, Manheim, Weber, Ianni, Iglésias Kurz, Chomsky, Zizek, Klein, e recortes de jornais com estatísticas de concentração de renda, no Brasil e no mundo, “Cerca de 23,6% da população brasileira vive com 1 dólar ou menos por dia”, recorte de Jornal do Brasil, 17 de abril de 1998, e Alfonso apresentava gráficos, pirâmdes sociais estilizadas, baseadas em dados dos cinturões industriais da região metropolitana, e folheando, números da esfera produtiva bailavam, com 300 famílias, duas mil pessoas, possuem 500 empresas, cada uma com 20 cargos administrativos. Assim 10 mil executivos, cada uma com média de 2 mil empregados. Logo, um milhão de proletários. Números do topo para a base da pirâmide.


    E eu, já nauseado, sugeri que trocássemos o som, e ele não entendeu meu desgosto com o Thom Yorke. Inseriu o do Makely (que vem no encarte) e a voz ocupou os nossos pensamentos e o nosso entardecer.

    E fechamos todos os livros.




(Do Diário de HD)

    quinta, 03 de junho

    Encontrei a Simone numa danceteria. Conversamos e não chegamos a lugar algum.

    Fiquei sabendo que a encontraria na tal danceteria, por inconfidências de uma poeta, amiga de Edgar e Aurelius, que ofereceu-me carona, quando eu retornava da Prefeitura.

    E, de fato, fiquei ansioso. Encontrei Délcio Palma na Biblioteca e viajamos nos planos para o novo livro, para o qual espera minhas sugestões e cuidadosa revisão. Estou pronto para a tarefa, digo, pois é preciso animar o autor.

    À noite, rumo à danceteria. Aurelius, com sua boina parisiense, a la Neruda. É o primeiro que aparece. Sorrisos e bebida em mãos. Uma batida eletrônica, suponho ser Kraftwerk ou Chemical Brothers, sei lá, e brilhos globulares saltitando no escuro. Casais e quase-casais se esfregam, úmidos de suor. Fotógrafos armados de flashs para um site de fotos de festa, atraído as mocinhas ansiosas por carreiras d modelos. No mais, os ‘paparazzi’ são tolerados.

    A poeta e sua amiga estão junto a Aurelius, sentado em almofadas. Aceito o vinho e espero alguma face conhecida. Apoiado numa colunata banhada de luz néon, eu registro a chegada de Simone. Elegante e toda confiança, ela me presenteia com um sorriso. Mas vai distribuir suas gentilezas aos demais. A poeta me observava, no entanto, não tenho ânimo para ser amável. Simone voltou, a arriscar uma prosa sobre as repercussões do evento sobre a literatura africana, o show de Délcio Palma no dia seguinte ao evento, e quer saber o motivo da minha ausência. Não acreditou na minha agenda lotada. Depois, insistiu em eventos, como seria a palestra dela na Exposição, enquanto eu queria desviar o assunto para esferas menos profissionais.

    - Vamos experimentar as almofadas?, eu convidei.

    Acomodados, ouvíamos os risos das garotas ao redor de Aurelius, que sempre tirava dos bolsos um dito picante ou um poema satírico. Mas o cigarro de Simone me enervava, com o jeito de soltar a fumaça, daquelas cenas de filme noir, como a morrer d tédio existencial num boulevard parisiense dos anos 40, “Oh, como você é petulante, querido!”, quando eu apenas sondava o desejo dela por mim.

    - Para falar a verdade, eu gosto da melodia da sua voz, ela dizia.

    E comentava os gracejos e ‘cantadas’ dos clientes da loja do shopping, onde trabalha, com a estilista mais badalada da temporada! Ou lembrava seus contatos na Prefeitura, na Secretaria de Cultura, mesmo de-tes-tan-do o funcionalismo, mas ambicionando cargos e rendas. “Vamos trabalhar dentro da máquina, querido!”, e aquele jeito de pronunciar “querido”, eu que não sou absolutamente.

    Olhava ao redor, e os ‘paparazzi’ ainda em busca de vítimas, afinal é preciso fotos comprometedoras para as colunas sociais.

    Aqueles lábios sem batom, com gosto de fumo, e dedos morenos mancados por um mal-hábito de adolescente, “Edgar também voltou”, ela dizia, e eu olhava ao redor, e não percebia, ela ria, “Edgar também voltou a fumar!”, e aí eu entendia e ria, sentindo-me ridículo.

    Resumindo, Simone não se importa, ou antes, eu não sou importante. Ela admira meu talento (Elen também), mas não sou seu destino, nem a ponte. Não estou incluído em seus sonhos e ambições. Sua face está reclinada junto a minha, mas seu olhar está em outro troféu.


 
[...]


LdeM