domingo, 13 de fevereiro de 2011

mais Capítulo 1 da Parte 3

[...]





   Atento às várias escolas filosóficas, o professor era daqueles que muito prezavam os pensadores a ponto de não ousar supera-los. A Filosofia enquanto respeito à Autoridade. E ele nem era hegeliano.

   Sistemas filosóficos, dos pré-socráticos aos discípulos de Derrida. Escolásticos. Positivistas. Existencialistas. Uma galeria de belos quadros. Poses pomposas.

   Stevam Lucena se preocupava mais com o que Leila tinha a dizer. A autoridade dela ele acatava! Agora, por acaso, levaria alguém como Platão à sério? Convenhamos!

    Até porque naquela aula eram trechos de um livro que circulava. De um autor inglês disposto a escrever uma “distopia”, isto é, “utopia às avessas”. E o professor ouvia, atentamente, às indagações de Leila, sempre senhora de si e questionadora. Com toda aquela força que Stevam não tinha – e por isso invejava.

    Realmente o professor estava mais libero-pensatore e menos catedrático. Via-se que a aluna conseguia domesticar a sua cátedra. Engavetou suas tiradas academicistas de intelectualismo pedante. E talvez, no fundo, fosse um bom garoto, que outrora até ousara pensar.

    Leila mencionou o nome “Kafka”, e todos se voltaram. Mas não falavam sobre Huxley, e seu “Brave New World”, o “Admirável Mundo Novo”?

    - O Selvagem, o diferente, vira espetáculo, tração de circo. É perseguido, observado. Tipo o Joseph K, do “Processo” do Kafka. Não se admira que ele, o Selvagem, acabe se matando!

    Alguém concordava, Que ser diferente é difícil, que é mais fácil seguir o rebanho. “Ou o Rebanhão!”, ironiza Breno, ao lado de Leila.

    Ainda calado, Stevam observa o perfil da jovem. Também está incomodada. Com o tema, com o livro. Principalmente com a turma.

    As pessoas ou servem a algum propósito ou são descartáveis? – Leila provocava, faces coradas, afastando a franja. – se não se adaptam ao processo, devem ser eliminadas?

    Mas a ironia (que pretendia aliviar a tensão) deixou a discussão ainda mais áspera, e Leila, que tentou jogar limpo, acabou sufocada pelas tiradas irônicas. Os que ainda compreendem se calam diante da maré de mediocridade.

    Certamente por erguer a Leila a um pedestal por demais elevado, Stevam jamais tenha se aproximado.




    Dois ‘guarda-roupas’ na entrada. Intimidado. “Aberto para estudantes?”, ele pergunta. “Só para convidados”, responde o guarda à esquerda. O da direita acena, HD aproveita, “E a Biblioteca, ainda aberta?” Aí, o da esquerda resolve ser mais prestativo, “Vou perguntar” e mergulha na onda de cartolas e fraques, digo, de ternos e carecas. Volta logo, acena simplesmente. “Liberado?”, e HD entra, discretamente.

    Aproxima-se para assinar os livros de presença, junto as madames e conversas de comadres. O congresso da gerontocracia no judiciário. HD assina enfim, e desce ao auditório, lotado de grisalhos e cabeças brancas.

    Senta-se na segunda fila e logo o Presidente da sessão sobe à mesa e espera que os ânimos quase estudantis se acalmem. Pois poucos estudantes estão presentes, a maioria é advogado de carreira, desembargadores, professoras cobertas de maquilagem.

    HD, ali no extremo da fileira, incomodado à todo momento por um passante, e eis que um casal.... Olhem, é tão-somente um bem-trajado e aprumado advogado e a mulher, de vestido justo, saia anil e colete vermelho. Logo o noivo passa de novo. Sempre incomodando o HD, nauseado, “O que estou fazendo aqui?!”

    A dama agora lança um e outro olhar, tendo apenas três assentos entre ambos, mas ele disfarça bm, também não vai dar vexame diante de tal platéia.

    Hora do Hino Nacional, respeito e civismo. Aplausos. Ela senta-se e cruza as pernas, apesar do espaço exíguo, e ele entediado, ali cumprindo tabela, mostrando-se pessoa decente, a cultivar belas virtudes cívicas.

    O palestrante começa a sua fala, arriscando anedotas para quebrar o ‘espírito de gravidade’. Suas palavras ecoam enquanto HD dedica infinda atenção ao que parece divertir a dama, que vê no rapaz um exímio ator. Mostra à face reflexões ponderadas (ele que nem fez questão de balbuciar as palavras vãs do Hino), lábios cerrados em profundo meditar sobre a glória nacional, a lembrar que nossos campos têm mais flores, etc.

    A dama cruza novamente as pernas fenomenais, e ele sendo discreto. Ali, na fileira de trás, a família do noivo, a tia antes declamando um poema meio no deboche (Bocage?), depois se levantando para cumprimentar o sobrinho, com toda afetação, “Ei, me deixem! Que abraço! Hein!”, a mãe sorrindo, a saudar sem efusões a futura nora como boa sogra,o pai atento a careta suarenta do palestrante.

    “A justiça, gloriosa na defesa do cidadão frente a arrogância do Estado...” E ela tira o colete encarnado, joga-o aos braços da poltrona, num olhar sorridente para HD, o guru da discrição. A musa no seio da nata da jurisprudência mineira, em semelhantes trajes, certo que trata-se de alta costura, mas pouco pano, “...desde a sábia Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, sob a inspiração do genial Jefferson...” O noivo volta e novamente incomoda HD, “todo viscoso, esse sujeito”. Cochicham algo noivo e noiva, ele (o noivo) volta-se para trás, troca acenos com a mãe, recebe um livro, então desdobra o óculos e folheia. Ela (a noiva) faz de uma revista (jurídica!) um leque até eficiente. O noivo encobre a bela silhueta, mas (vejam!) ela tirou os saltos altos, ali os dedos encolhidos, enredados na meia-calça. “Teia de aranha!”

    Palavras, palavras. “O que, pelos raios, estou fazendo aqui!”, mas não se decidia a ir embora. Mas não era momento para abandonar o jogo, logo agora que o noivo passou de novo, “Não sossega, o infeliz!” Assim o olhar caiu sobre a musa. Ela não perdia uma oportunidade pra cruzar as pernas, exibindo a meia-calça, “Para que ilusão, se a realidade é melhor!” Ele queria ver os pêlos claros da pela sedosa. Adjetivos nem originais eram. E outra: ele se sentia invadido pelos tempos da opressão, a década de 60, por um mofo de ditadura, “Quantos ali colaboraram com o regime? Se não, o que fizeram? Boca calada!” Agora ali, o palestrante exortava a Justiça à justiça! E defendendo a separação dos poderes, execrando regimes totalitários que atrelam o Judiciário ao Executivo.


    E ele, o filho da contracultura, do tropicalismo, do peace and love, da cabeleira black power, do estilo flower power e dos seminários marxistas? Nada disso! Filho de um funcionário público vindo do interior, e criado nos subúrbios!

    O mofo dos conservadores e o ar jovem do olhar sorridente da dama. Ela que já deixara a revista de lado (talvez para não desagradar aos egos sensíveis, pois certamente o noivo devia ser um dos colaboradores, ou mesmo o editor) e continha uns bocejos (fingidos? O quê? O gesto um ou dois?) O palestrante levantava discretas advertências quanto ao estado da Suprema Corte Norte-Americana, devido as ditas (ou malditas?) ‘medidas de exceção’, contra o terrorismo (ou o ‘império do Mal’?), e que este poderia vencer, caso a América renunciasse ao secular apelo pela liberdade, e censurando manifestações, e cercando os cidadãos de olhos eletrônicos (“o Grande Irmão”?) e que a América lembre-se o quanto é grande sua influência no mundo, que em nome da democracia não acabem por sepultar a liberdade democrática..

    O bom discípulo de Montesquieu silencia, e aplausos ressoam. Dar o fora, e rápido! Anunciam um cocktail, é o sinal. A dama veste o seu colete, e seu perfume o guia quando segue corredor acima. Ele refugia-se no toalete, onde xinga sua imagem no espelho! Quando volta ao salão, ele finge procurar uma face conhecida. A noiva já desapareceu com o noivo.

    Tão discretamente quanto ao entrar, HD saiu. Nem sinal dos ‘guarda-roupas’. Somente os manobristas ocupados.




(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


(inverno de 2000)


    Voltando ao barzinho do Santa Efigênia, depois de dar um tempo, percebo a nossa velha mesa agora vazia.

    O bar está vazio. Hard Rock dos anos 80 e suas baladas e seus solos de guitarra ainda são o prato da casa. Já estou um tanto saudosista?

    Sentei-me cabisbaixo e fiquei lembrando um diálogo que muito me impressionou, a pouco mais de um ano atrás. Eu nessa mesma mesa, e ele, com uma amiga, naquela mesa junto a entrada. Concentrado em meu vinho, sem ter encontrado o Erik, que vez ou outra aparece, só notei uma voz entre confessional e petulante, como se confessasse por desfio, como se mostrasse disposta a fazer tudo de novo.

    - Pois é, foi um custo. Depois minha mãe me aceitando como mulher, entendendo que eu precisava seguir meu caminho, nem que fosse pra quebrar a cara...

    Eu não poderia esquecer aquela pele pálida e aqueles longos cabelos negros, toda de luto, com vestido e coturnos, sempre voltando aos olhos cobiçosos do Oto. Não sei se ainda saíam juntos, afinal a ‘oficial’ de Oto é Carol, igualmente pálida e cabelos de corvo.

    - Fui morar com uma amiga, a Raíssa, você sabe... Aprendi a tocar flauta, um pouco de teclado... cantei um pouco, aquela música bem deprê da banda do Oto. Mas eu pegava muito pesado. Eles tinham lá aquelas drogas. Muito pó, saca? Uma noite, cheirei muito, bebi muito, cheguei ao apê e quando Raíssa abriu, caí, caí assim pra frente, desmaiada, cara! Ela me contou depois. Até me deu banho... Não vi nada, não me lembro. Acho que acumulou tudo, não é? Mas não vou ficar aí marretando o passado.

    Era noite fria, talvez daí os arrepios. Paguei o vinho e saí.

    O mesmo fiz hoje, e ainda mais solitário.



Alfonso: O Oto comentou a sua desistência.

Stevam: Temporada de anistia na ditadura?

Alfonso: Depende das negociações.

Stevam (tenso): Eu? Dar a cara a tapa?

Alfonso: Ambos precisam ouvir, ouvir um ao outro.

Stevam: Acredito o suficiente em mim mesmo para não precisar ficar abaixando cabeça para um ditador cismado a músico.

Alfonso (incomodado com o papel de conciliador): Bem, é que...

Stevam: Eu perdi a paciência.

Alfonso: Na verdade, são os dois intolerantes.

Stevam: Assumo. Se precisa de um anjo decaído. Ele pode ser o deus tirano. Não, não podia continuar, tava engasgando. Não só a sonoridade (o que todo mundo comenta) mas as letras, o sentimento ali presente. É um lamento. Não faço música por diversão.

(Alfonso lembra-se dos exercícios de teclado do Stevam. A repetir melodias e acordes à exaustão. Bach, Mozart, Chopin...)

Stevam: Veja, essas bandas que são ícones. O que há? Imagens. Distorção. Pose de crueldade. “Ora, vejam, o quanto sou sádico!” E dizem ler clássicos da literatura...

Alfonso (diante da pausa reticente de Stevam): Sei, o sentimento se perde. Lamento para uns, divertimento para outros. Isso mesmo lendo as letras entre as músicas?

Stevam: Pois o problema não são as músicas, ou as bandas, e sim, você sabe, o público. Revolta vazia, estética vazia.

Alfonso: E Oto pensa diferente?

Stevam: Não, nisso até concordamos. O problema é conviver com o cara. Não desprezo, entende? Mas conviver é...

Alfonso: Todo mundo cansado? Depois que a garota...

Stevam (interrompendo): Vá ao ponto.

Alfonso: Que tal uma ressurreição? Divulgação por minha conta. Casa bem centrada. Boa segurança. Penso aqui no Matriz... Para os fãs, percebe?

Stevam: Não sei. Lembro do último show. O TH estava lá, em sua pose de aristocrata e tal. Mas o lance foi que quebraram o banheiro. É, quebram. Tudo! Pia e vaso. A grana nem deu para pagar os estragos. (pausa) sabe como é. Querem é descarregar a raiva, o estresse mesmo. ( e olhe que o nosso som é melancólico, não agressivo!) E quebram mesmo. Já paguei muito copo quebrado, garrafa de vinho caro, banheiro detonado! Isso nessas quadras esportivas e tal, imagine então numa casa de shows!

Alfonso: A gente faz um contrato. Um simples inciso muda tudo. Ou aumenta a segurança.

Stevam: Outra coisa. Isso de divulgação. Sabe que tocamos para um grupo muito seleto, é tudo fã, não queremos quantidade...

Alfonso: Sem divulgação?

Stevam: Atrair apenas quem possui o sentimento, entende? Senão fica vulgar, fica banalizado. Isso aí: Banalização. Se fizer sucesso a gente até muda de nome.

Alfonso: pense no contrato. Basta reanimar o cadáver. Muita gente viveu esta banda. A garota mesmo. Ficou tão abalada que... não falemos disso. Entende? Sentimentos em jogo. Na é para tapar o vazio?

Stevam: Tudo isso é muita pretensão. Caímos por sermos muito pretensiosos, o querer ser melhor, muito chio de frescuras. Veja essas bandinhas de três acordes. Elas é que aparecem, rolando uma grana.

Alfonso (percebendo que Stevam perdera o tom rancoroso): Então? Quando assinaremos o papel?





    E aquela noite em que o TH desapareceu? Todo mundo bêbado noite dentro. Como começou? No bar, o do Santa Efigênia. Stevam andando numa noite chuvosa, sem qualquer perspectiva, e tropeça, nas penumbras, em dois vultos. Ninguém menos que Erik, ao lado do novo baixista (via-se logo o instrumento). Ambos retornam de um ensaio pros lado do Alterosa. Resolveram parar no barzinho. Não demorou e o TH apareceu. O mesmo olhar opressivo – fleumático demais. “Saberá algo? Algo de que nem desconfio? Talvez até deve rir da minha ignorância... sim, deve saber muito, mas, claro, trata-se de um dissimulado, um ator na sutileza da encenação.”

    TH recusa comida, aquele caldo, por exemplo, e despreza a bebida. Limita-se a olhar atento. Mãos delicadas, com dedos nodosos, unhas longas, repousam sobre os joelhos. Vagas palavras sobre projetos musicais. Fracassados. “Veja bem, ó Stevam, a nossa banda era pretensiosa demais! Veja bem: dois guitar! Dois vocais masculinos! Além de tecladista e vocal feminino... Letras em inglês e latim – além do português. Recitações. Muita pretensão. Tudo muito custoso.” E Erik não poupava a análise fria dos audaciosos navegantes: “Fazer música é preciso. Viver não é preciso.”

    Depois foi Oto quem se materializou. Arrastava a pobre da Carol, a que vivia deprê, desde a morte da Sônia. Tempos depois, Carol finalmente provava sua sanidade ao abandonar o Oto, mas apenas para cometer a insanidade de ir morar com o Aléxis... Naquela noite, Oto chegou um tanto hostil, marcando a ferro em brasa o infeliz do Eirk. Todo um humor de ditador! Carol não menos, ainda mais com o TH – ela desvia o olhar. Que Carol não suportava o TH, todos sabem. Mas poucos sabem que ela culpava TH pela morte da ‘quase’ amiga, “Ele vivia atormentando ela...” Mas o caso é que Oto chegou com um humor de viking e esbravejou contra o Erik, o irônico – o Erik, cujo passatempo era folhear volumes de Medicina Legal, rindo-se das deformidades e aberrações, deliciando-se com corpos em vivissecções... – Mas e o porquê da discussão? É que o Erik tivera a audácia – para não dizer imprudência – de fazer o ditador nórdico esperar, sob a chuva fina, durante uma hora, lá no centro comercial, próximo do estúdio onde marcaram o ensaio – local tal, hora tal – e assim por diante. Mas é que Erik confundiu tudo – sabe-se lá se com algum propósito escuso...

    Daí aquelas asperidades. Nisso, o TH ergue a palma magistral de diplomata – no afã de apaziguar os ânimos. De repente, e o próprio Oto quem confundiu as coisas – e não assume o erro, jogando a culpa sobre o Erik, que tivera a infeliz idéia de convidar o inamistoso amigo.

    Em vão. Oto detesta ser advertido, aconselhado, coisas desse naipe. Olha direto para o TH com chamas violáceas. “Defensor público, agora? Acha que não assumo quando erro?”, e o olhar de Carol brilha afirmativo! Já Stevam manifesta-se contra o despejo de estresse cotidiano. Toda a fúria contra os insucessos, contra a prostituição artística, contra as gravadoras mercenárias, contra a mídia comprada. Abaixo os modismos da indústria fonográfica! Alguém ali vivia de música? Claro que não.


    Mas o Oto não deixa de proclamar seu anseio de ganhar dinheiro, que não vai sofrer sob as botas do sistema, as vai é lucrar com os “cânceres do Leviatã”, vivendo bem nas entranhas do monstro”, e não à margem. SE o mundo todo é injusto, ele, Oto, é pior! Nada de “autenticidade artística”, for com “complexos de consciência”! Alguém – algum insano! – insinua que Oto pouco entende de música. O insulto final! Mas Oto humilha o interlocutor com o mero olhar, “O que não me impede de montar minha própria gravadora.”

    E Oto se afasta, sempre arrastando a pobre da Carol. Os demais trocam olhares, suspiros de alívio. “O cara ‘tá um vulcão!”, comenta o baixista novato na roda. “E você ainda não viu nada”, sussurra o Erik. Decidem cair na noite e agarram as bebidas. Compram mais vinho – a marca econômica. Numa assembléia, querem saber: para onde? Para onde devem levar suas pobres existências? Ou “existências vãs” como diria um Hélio Lúcio – num claro anacronismo. Opções recaem sobre a coleção de CDs (célebre!) do novo baixista. Até convidam o TH – que excepcionalmente aceita! Rumam logo para a baixada do Santa Tereza. E até TH segue virando um gole de vinho barato.

    Uma presença de locomotiva estremece a noite, a escura, úmida e tropical. Todos comentam novidades de bandas, lançamentos de álbuns, letras blasfemas, detalhes dos músicos, qual o último a profanar um cemitério ou a incendiar uma igreja, ou os instrumentos que desejam comprar. Stevam, por exemplo, pensa num teclado novo, mais avançado. Outros lembram vultos de garotas desejadas – as garotas sempre falta... “Esse bando de lobos solitários e nenhuma ovelhinha pra devorar!”, o desabafo de um.

    Tudo para desabarem no quarto do baixista. Reunidos, congregados, ao redor do aparelho de som. Compartilham os goles de vinho e conhaque. Uma náusea coletiva. Mergulham em devaneios químicos e imagens fantásticas. Corpos desfalecidos, tremores em posições fetais, encolhidos. Outros se sufocam no próprio vômito.

    Certo lampejo e Stevam acorda. Ali está o TH à um canto. Cabisbaixo. Antes, quando chegou, deixou-se a folhear um volume – ricamente ilustrado – sobre a história da magia. As poções, os venenos, os feitiços, os filtros, as mandingas, o voodoo, as simpatias, as ervas do diabo, as curas milagrosas, os pactos de encruzilhadas, o demônio no meio do redemoinho... E depois, ébrio, cambaleou até a rodinha de agito, ali diante das caixas de som. Livrou-se do sobretudo, e da blusa funérea de malha negra. Alvo e pálido à luz. Um cadáver a agitar-se na penumbra. E Erik a erguer um enorme crucifixo, aquele surrupiado no Bonfim. E a névoa de haxixe tudo envolvendo, tudo encobrindo. Agora, um TH vulto cabisbaixo, mas ainda atento, engana-se quem o julga adormecido! Tem um olhar vigilante aquele vulto cabisbaixo. Olha para si mesmo!

    E o sono pesou. O verdadeiro Morpheus com sua manta sobre os corpos entorpecidos.

    E quando amanhece, as cabeças se equilibram, pesadas se erguem. Notam uma ausência. Onde o vulto cabisbaixo? TH não estava mais... Sumira. Evaporou.




  Europa, 11 de maio de 2002


    Meu caro amigo Hector, esta carta que por hora escrevo, é na verdade a reunião de várias, que me deixei esboçar.

    Que cena você escreveu! Essa da leitura da poesia do Drummond na praça, tendo como cenário a crua realidade de uma grande cidade. Eu já havia dito, Há pouca Poesia além dos olhos do Poeta.

    Mas devo admitir que minha situação por aqui não é muito diferente da sua, se for analisada friamente, pois dependo da Bolsa de Estudos, pois o custo de ida aqui é alo e só com o dinheiro do meu trabalho não daria para me manter. Seja como for, sei que se voltar agora para o Brasil, nada mudará na minha situação financeira.

    Nunca mais escrevi um verso! Nem sei quando voltarei a escrever. Isso tem me deixado muito estressado, aliás muitas coisas m estressam por aqui, às vezes dá uma vontade de falar Português, essa língua que adoro! Um dia gritei pela janela: “Minha Língua é minha Pátria! Chega de Chega de Saudade!” Depois ri de meu gesto desesperado, pois quem poderia me entender? Certamente apenas se ouviu alguém gritar palavras desconhecidas, ainda que alguém tenha ficado curioso ou confuso.

    Gostaria de criar Poemas numa linguagem contemporânea, não literária,mas sim publicitária. Na verdade, um grande pastiche que procurasse, com as regras, digamos, clichês de publicidade, fazer Poesia. Uma poesia produto de consumo, feita para ser vendida, lida, sentida e descartada como uma lata de refrigerante ou um jornal ou uma embalagem qualquer. Talvez você estranhe isso, não sei, mas pretendo representar a curiosa situação da Arte na cultura e na sociedade capitalista; pois se observarmos friamente as manifestações artísticas são também produtos de consumo, claro que possuem características distintas de uma lata de refri, mas basta olhar na prateleiras das livrarias, por aqui imensa lojas, onde se pode perceber quão imenso é o Mercado Editorial e os leilões que arrematam milhões por obras “consagradas”.

    Quanto à menção da TV, aqui estou protegido pela TV a cabo, incluída no aluguel, mas nem vou comentar a programação! E rádio é o mesmo, música pop em inglês, raras são as rádios que tocam outras músicas, por isso minha melhor companhia é o meu discman! Aliás, esse apartamento em que vivo, indicado por um colega virtual, é digno de ser descrito. Para começar, nada aqui é meu. Todos os móveis, eletrodomésticos, a decoração, tudo está incluído no aluguel e não posso mudar. Durmo numa cama de bambu, feita em Gana, aliás, toda a decoração é africana, com cortinas, móveis e esculturas, muitas, vindas da África; também há alguns quadros do Caribe, da Tailândia, e no teto da sala duas bandeiras, uma da África do Sul e outra, do gigante “deitado em berço esplêndido”, daí acordo todos os dias e ao abrir os olhos entrevejo as três palavrinhas: “Ordem e Progresso”. Parece provocação!

    Tenho discutido com os exilados do Borges da Costa, pois boa parte dos ex-moradores estão espalhados pela Europa. Tive uma grande surpresa quando recebi vários e-mails de boas-vindas ao exílio voluntário (?) de ex-colegas do Borges, e a partir daí iniciamos vários debates sobre Brasilidade, Nação, Nacionalidade, etc. tenho sustentado sempre que não sei o que é Brasil, nem o que é brasilidade. Seria isso gostar de samba, caipirinha, capoeira, futebol e carnaval? O que tem em comum um nordestino e um paulista? Um amazonense e um mineiro? Certamente a língua! O conceito Não é novo e sabemos que deve ser sempre alimentado, senão se desfaz diante das diferenças regionais. O típico brasileiro, o típico europeu,não passam de um estereótipo! O que é Nação? Antes, pergunto se não seria o Mito-Nação. Pura abstração instrumentalizada pelos donos do poder, através do Estado, pois o Mito-Nação garante a sobrevivência da instituição Estado.

    E assim caminha a Humanidade!

    Até mais.

                    Darío Sabine





(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


   23 setembro 2001


    Impressionante como dois anos passam depressa. E mais impressionante ainda o feito do Oto: nada menos que incentivar uma ressurreição da banda.

    Tenebrae. Trevas. Nome sugerido por TH. Sem saber se há ou havia banda com esse logo. Oto queria um nome em inglês. Eu e Erik também. Mas uma carga fúnebre que o latim carrega não seria facilmente desprezada.

    Ontem fui ao bar do Santa Efigênia. Melodias sombrias de bandas atuais que ouvem muito barroco alemão, Johann Sebastian Bach. E lá estavam Oto e Victor, rodeados de garotas sombrias e pálidas. Foi difícil raptar a atenção de ambos, mas o assunto foi abordado, enquanto um outro foi cuidadosamente evitado.

    Elias discutia novos RPGs com um vampiro-juvenil na mas ao lado. Conflito milenar entre vamps e werewolves? Lendas urbanas e mitos cinematográficos? Você já leu Mary Shelley?

    Impressionante foi a aparição de TH, justo quando Elias abordava sua conhecida tese a discutir se vampiros são cadáveres horrendos ou espectros de beleza funérea. Você já leu Bram Stoker?

    Pediu vinho e sentou-se entre nós. Ouvia silencioso as melodias estridentes de vocais chorosos e protestos guturais, e guitarras assassinas e violinos lutuosos.

    TH limitava-se a acompanhar as conversas, degustando o vinho aos acordes do violino. Na mesa ao lado, não aquela onde estava Elias, um noturno mais velho e experiente exorcizava as bandas modernas e seus modismos, lembrando saudoso os shows devastadores no bar do DCE, por exemplo. As bandas sombrias e autênticas de antigamente.

    - Tudo antigamente era melhor.

    Olhávamos o TH e não sabíamos se ele ironizava. Mas estava com um ar abatido. Disse ao poeta que poderia dormir lá em casa, caso quisesse ir ao ensaio, vista a proximidade do estúdio. Não precisei insistir, ele aceitou.

     Passei a noite fumando e relendo trechos de “Drácula” de Bram Stoker, onde o Conde, logo que ouvia o cantar do galo, pedia licença a Jonathan Haker para recolher-se aos seus aposentos. TH comparava trechos do livro de Stoker com o filme do Coppola.

    Aconteceu que hoje acordamos meio-dia, e graças ao telefonema do Oto, confirmamos o ensaio. Dia sombrio, meio chuvoso. Adequado. E ainda chegamos antes do Oto, na casa do Renan, o novo guitarra-solo a substituir Erik, ocupado com outra banda bem mais pesada. Não levei o teclado, apenas queria assistir. Sentir o clima. TH folheava uns jornais com mais notícias sobre os atentados às torres de Nova York.

    Em seguida, descemos à estação do metrô, para buscarmos o novo baterista, Élcio, que esperávamos menos temperamental que o Victor. Não encontramos ainda qualquer baixista animado. Na estaco, meio a multidão, eis o Élcio, também trajando luto. Todos prontos para o funeral. Élcio achou sensacional o ‘porta-aviões’ do Renan, assim referindo-se ao carro modelo dos anos 70, onde se amontoa músicos, instrumentos e ainda sobra espaço para os roadies!

    TH, em silêncio, folheia os jornais (que Renan usa para limpar o pára-brisas), mesmo quando o motorista refere-se a fatos políticos, guerras iminentes, ou manifesta dúvida quanto a certo termo em inglês.

    No estúdio, assim que cheguei, notei um livro sobre a mesinha da recepção, “O Nascimento da Tragédia”, de Nietzsche, mas uma edição em espanhol. Quando olhei novamente, TH já estava folheando o livro. Pensava comigo que seríamos ali o espírito apolíneo diante da arte dionisíaca.

    Enquanto lia, TH lançava olhares aos músicos, incentivando uma melodia ou outra. Eu fiquei namorando as guitarras. Uma delas afinada por Oto que agora arriscava o vocal, tirando a ferrugem. Diante de seu olhar interrogativo, revelei que não estava disposto a cantar. Todos esperavam, eu era a segunda voz. Mas sentia-me platéia, não artista. Oto tentava ressaltar o vocal, mas a bateria seguia pesadíssima!

    Ao crepúsculo, brindamos no bar do Coreto. Exceto TH que reclamava de sua famosa úlcera, que permitia apenas uma taça de vinho noturna e após farto jantar. E, enquanto Oto e Renan ocupavam a mesa do bilhar, escolhendo tacos e triangulando as bolinhas, TH despejava literatura sobre o baterista Élcio, comentando o conto “Mask of Red Death”, do Poe, onde a Morte Escarlate atravessa os aposentos festivos de variadas cores e nuances até exterminar os frívolos e cínicos cortesãos no banquete do Príncipe. Élcio estava visivelmente arrepiado de prazer macabro. Assim estão irmanados no culto aos clássicos do terror. Prefiro ficar calado.

    Andando pelo bairro, seguindo silhuetas femininas, paramos num trailler, e decidimos (não por unanimidade) um bom espaguete (quem não quis, comeu hamburguer) e Renan nos abandona (TH concedeu muita atenção). Élcio comentou superficialmente o fatídico 11 de setembro e as redes do terrorismo, e TH manifestou seu pesar.

    Oto não comentou, mas percebia que olhava o relógio. Alegou um compromisso, um encontro (com ares maliciosos) e seguiu sob a chuva.

    Ao TH sugeri temas para letras das canções ensaiadas, com paisagens outonais, cirandas de crianças perdidas, coros místicos, e percebi que ele anotava mentalmente as paisagens oníricas, com o olhar fico, pensamento longínquo.

    Depois seguimos rumo a praça e eu me despedi, pois descria a avenida. Lembrei que havíamos ouvido muitas promessas, e ele disse que não acreditava em nenhuma.




continua...


LdeM

sábado, 5 de fevereiro de 2011

segue o cap. 1 de Flores no Asfalto


(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


(verão de 2000)


    Cansei de ver a menina à distância. Sei que ela estuda no Estadual, dois quarteirões acima. E confirmei o fato quase derrubando o seu vulto apressado no beco da Norberto Mayer.

    Na pracinha, na volta, ela com as amigas, mas depois segue pela João César sozinha.

    Percebo que ela ouve os meus passos. Terá estremecido? Não sou nenhum vampiro em busca de vítima. Além do mais pouco falta para meio-dia e o sol não estava nada tímido. 

    - Posso te fazer companhia? – eu digo, eu é que sou o tímido aqui. – E aí, gata, vamô dá um rolé? – é o que deveria ter dito.

    Ela segue adiante. Não mostra estar surpreendida. Sufocando o susto? Anda mais decidida. Altiva.

    - Então não posso te conhecer? – eu insisto, mas quase desistindo.

    - Olhe, cara, estou com pressa.

    - Ora, o que é isso? Não é todo dia que você passa aqui, assim sozinha, não é? Sempre com suas amigas...

    “Imagine, o cara me patrulhando!”, o olhar dela deixa explícito.

    - Olhe, o meu namorado deve estar me esperando ali na praça.

    A praça a menos de um quarteirão.

    - Namorado? É, realmente existem uns caras de sorte, não é?

    Nunca devi ter me menosprezado assim. Ela voltou-se, irônica.

    - É mesmo. Outros, não.

    - Se algum dia quiser me encontrar eu apareço ali no bar do Coreto, sábado à noite. Té mais ver.

    E saí, atravessando a praça, mão no bolso. Frustrado. A fantasiar que a vontade dela era dizer que não tinha namorado nenhum, e de repente poderia me chamar de volta, perguntar meu nome. Ou então dizer que apareceria no bar do Coreto, sábado à noite.

    Mas fiz tudo errado. Quem manda ela ser tão parecida com a Sônia?




    Por que Stevam, em suas noites de insônia, sofria o peso das lembranças? De um ano, ou dois, sepultos no passado. Quando as risadas (ou meros esboços de sorrisos irônicos) de Breno, o líder de tantas zombarias (além das torcidas organizadas), golpeavam como um medicamento de efeito retardado, que fica alojado nas veias e, de súbito, substitui pálidos sintomas por outros, mais torturantes.

    No primeiro dia de aula, deslocado num mundo de sorrisos e esperanças juvenis, Stevam deixou-se à janela a observar a vastidão do Campus, com suas avenidas e alamedas internas, onde estudantes transitam em seus dias de aprendizado (ou não), entre desejos e advertências.

    Entra uma estudante. Cadeiras se arrastam. Stevam olha por sobre o ombro – e vê-se diante de uma alucinação! Sônia, sua colega de classe? Um espectro agora a sua companhia? Ela, assim preocupada com sua solidão? Bem, os cabelos são mais claros. Mas é a mesma pele, o mesmo corpo, a mesma expressão no olhar, aquele rosto meio oval. Apenas o cabelo diferencia – não é tão escuro quanto o de Sônia, o que realçava a palidez... mas Sônia pode ter tingido o cabelo!

    E – glória das glórias! – ela é a primeira pessoa a dar-lhe atenção! Na aula de filosofia, quando a classe é dividida em grupos de discussão, Leila (eis o nome dela!) convida o Stevam para que o solitário participe no grupo dela.

    Mas – desgraça das desgraças! – precisava ser o grupo do Breno? Ele com seu sorriso sarcástico, suas piadas sem graça, mas que sempre arrancam risadas...

    Mas o que Stevam não esquece é a cena no segundo dia das provas específicas, quando no vestibular, e ele, atrasado, chega à sala e ouve o rapaz próximo à porta, a comentar com uma garota, “Menos um”, a apontar, lá no canto, a única cadeira vazia. Logo a ser ocupada por Stevam! O rapaz percebeu – mas logo disfarçou. Mas era indisfarçável aquele ambiente de competição. Eram concorrentes, não?, todos são candidatos – as vagas são poucas! Não havia espaço para piadinhas, e muito menos amizade. Cada um por si – e contra todos!

    Como Stevam poderia ser amigo de um sujeito que desejou a sua não-inclusão, a festejar com antecipação, sua ausência?

    Breno pode até ser inteligente (tem ótimas habilidades lingüísticas – vide os trocadilhos), mas nunca entenderia os abismos da solidão do Stevam, que vivia a indagar-se “Por que uma pessoa dessas decidem estudar psicologia?”

    E era, certamente, a mesma pergunta que Breno fazia a si mesmo – à respeito do Stevam.





    Após a miragem de uma ressuscitada Sônia Regina, na primeira de sua curta e melancólica vida acadêmica, Stevam encontrou-se só, nos corredores solitários do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, ouvindo ‘Kid A’ do Radiohead.

    Primeiro dia de aulas. Apresentações. Fósforo entre os dedos, antes que se apague.

    - Leila Lorena Trivelli, dezenove anos, belorizontina, adoro ler, leio muito sobre psicanálise, Freud, Jung, e outros, e gosto de passar o fim-de-semana no campo...

    O fósforo quase lhe queima os dedos.

    Dedos que ele beijaria para aliviar a dor.

    E Ela o convidara para integrar seu grupo de Filosofia A!

    Certo que Stevam andava mesmo em busca de uma paixão, mas tendo um contato de terceiro grau com a Esperada era como se uma chama o chamuscasse.

    - Stevam Lucena, vinte e dois anos, contagense, do Eldorado, e gosto de literatura, eu escrevo uns versos, tenho uma banda, quero dizer, espero voltar com a banda, e...

    O fósforo belisca a unha. É jogado ao chão.


    Talvez foi naquele momento que Olga o notou. Também aquele lance de banda. Tem menina que adora cara que tem banda! Isso quando ela também tem uma banda, ou pretende ter.

    Olga não perdia uma oportunidade de parar Stevam no corredor, perguntar sobre a banda, se ele tocava teclado a muito tempo, se já havia gravado um CD, e outras curiosidades que já entediavam o Stevam. Mas certamente se Leila fosse a interessada... No entanto, Leila não faria tais perguntas.

    - Stevam, você já leu Sartre?

    Ele não acreditou e se voltou. – Não. Quer dizer, uns contos. Por que?

    - Que dizem ser nauseante.

    - Às vezes é mesmo. “O inferno são os outros”. Meu pai é que lê muito. Tem uma biblioteca e tanto. Escreve algumas coisas também. (Pó, mas ela não perguntou sobre o meu pai!) O Sartre parece ser muito, como eu vou dizer, muito existencial, existencialista.

    Aí Breno aparecia. – Eu prefiro Dostoiévski.




    Quando Stevam deixou atrás de si o refeitório, vulgo “bandejão”, já era aquela noite juvenil, de brisas em carícias, e presenças difusas. Vultos noturnos deslizam no Campus. A noite toma posse de tudo, a descer sobre os seres e as coisas. Abrigado, sob os arbustos da pracinha, viveu o momento cercado pelo entrechocar de sons. Os alto-falantes do barzinho da Biológicas e o coro de vozes. Viu, um lampejo, o palco armado defronte da praça. Viu a tenda erguida, o circo da infância. As vozes subiam, ondulavam, desciam, confusas, fundidas na estridência das caixas de som. Cantos sedutores de sereis metálicas, harmonias de rangidos e grunhidos. A banda ajustava o equipamento.

    Talvez as árvores o deprimissem, naquele oásis separado das abóbadas do anfiteatro, no pouco verde limitado pelo complexo das Exatas. Havia algo no ar. Saiu e andanças, para onde os passos levarem, mas com um olhar atento, evitando assustar os casais nas escadarias, entusiasmados na penumbra. Passos adiante, mãos nos bolsos, a mochila em vaga presença, fardo supérfluo. Andando como quem nada quer, lento, braços junto ao corpo. Algo no ar, sim, noite grávida, prometia. Mãos nos bolsos, olhares ao redor, na arena do circo, sem tenda, encarando, vez ou outra, os passantes. Foi descendo as escadas, uma voz o alcança, num tremor, “Oi, Stevam!”

    Gaguejou um “Olá!” diante de Amélia, flutuante num traje noturno. Contudo, ele seguiu adiante, rumo ao palco, na movimentação dos preparativos. Pediam um eletricista. Contornou o esqueleto de metal, a escapulir para o outro lado. Pinça uns papéis do bolso, ajunta todos na carteira, inventa compromissos, depois se acusa de esquecimento, deixa as mãos nos bolsos, com a desculpa da noite fria, vai contornar o espelho d’água da Biblioteca Central, e encontra-se novamente diante da Biológicas, desvia-se de um grupo em vozes alteradas, pensa desaforos, e enfrenta a luz do barzinho, com a densidade do som, as faces pintadas junto às mesas.

    Olhares fixos pedem explicações, O que ele anda fazendo por ali? Ele em dissimulações, fingindo estar em busca de alguém, de algo, do tempo perdido, mas as faces não desistem, fixas em gestos no quadro, um painel cubista, um tanto deformadas, em perfis, em bocas assim abertas, risos dilatados. Felizes, todos satisfeitos. Nada a fazer ali. Saciados, eles. Supérfluos, ele ali – um visível excesso. Vai até o fundo do bar, saguão manchado de cores, ao espantar-se com as caricaturas nas mesas e com as faces nas paredes! Até o limite mesmo, o nariz nas paredes, a tocar o grafite, a aspereza, a agressão das cores, até nauseado voltar-se, em volteios, andando em ziguezague, ao cruzar entre as mesas, transpondo a entrada, pronto para furar as sombras dos arvoredos.

    Sem abordar qualquer náufrago, sem rancor. Fiquem aí neste mundinho: preciso seguir adiante! Novamente o palco, a sugar os olhares ao redor, todos a procura de algo, alguém – um apoio, um rumo, um Sentido – banco, pedra, resto de grama, onde descansar as pernas fartas de vaguear pela plena plenitude.

    - Ó Stevam! Vem cá!

    Sim, novamente a Amália. Ele aproxima-se. Ali as três Deusas, as três Parcas. Em trajes noturnos. A simpatia de Amália, a seriedade de Leila e o jeito intelectual de Olga.

    - Perdido por aí, Stevam?

    - Veio para o show? – era a voz de Olga, agora atenciosa.

    A outra, presente, mas discreta, a hermética Leila. Sem ânimo, como se percebia à algum tempo, deixando-se à deriva. Notava-se algo.

    Não, não está perdido. Estava ali na biblioteca. A tarde toda. “Não viram? Não falei que ele vai longe!”, Amália mastiga as sílabas junto com a goma sabor cereja. Ele, todo modéstia! Aproveitando o tempo. O trabalho de Gestalt...

    - Ó, não! Nem me fale! Trabalhos out! Get out!, querido! Viemos nos divertir, ora!

    Stevam não entendia como Leila agüentava. Sim, diversão, “Embriagai-vos...” As moças disfarçam. Uma distorção vem desculpar o deslize irônico. Um músico afina o instrumento na agudeza das agulhas. Olga atenta (Olga que toca violão), “Belo acorde!” Ouçam isso ... um dedilhado assim...” em gestos, dedos em passeio, deslizam ao longo do braço.

    Amália, olhar carregado. “Você toca, não é, Stevam?”, Sim, Teclado (modesto) “Violão, também?” Bem,... as cordas exigem certa destreza... treino dedicado. Pitada de talento também... “Mas com essas unhas!”, Amália desce os olhos nas unhas longas do rapaz, que recebe de Olga a provocação “Existe talento?”

    - Pois é. Não sei ao certo. Tanta metodologia científica que já não tenho certeza de nada. Tanta coisa que julgava ser sólida e real – não passavam de miragens. Ando até mais calado. É só dizer algo – e é “Senso Comum”.

    As outras é que atuam, mas Stevam observa Leila. Todas olham com certa condescendência. Um rapaz em confissão de fraquezas...

    Amália agarra o braço de Olga, “Vai montar uma banda? Verdade?”, “Ah, ninguém entende! Uma banda? Tocar aonde?”, “É que suas letras são muito sérias, Olga. Dá até uma ‘fossa’!” E os olhos pintados de Amália se voltam para Stevam, “Só deprê, essas meninas! Olha a Leila aí. Acorda, garota!”, e encarando o rapaz, “Você curte é literatura, poesia. Eu sei, Stevam.”

    - É, eu escrevo. Meio deprê também. É que eu leio muita gente atormentada. Castro Alves, Augusto dos Anjos, Baudelaire. Fernando Pessoa.

    - “O Livro do Desassossego”, diz Olga, soturna.

    - Ai, meu deus! Que deprê! Só deprê! Deixa disso! – Amália, elevando os ânimos. Mas o fardo sobre os ombros de Leila-Atlas começa a pesar sobre todos.

    - Ela nem precisa fazer cara de quem freqüenta análise.

    Amália, nessa pontaria certeira, atinge Leila, que então enfrenta o olhar de Stevam, “Elas só querem me animar. Fui arrastada. Um show alucinado! Proclama as histéricas!” Stevam, sem saber o que fazer, arrisca: Eu perdi uma amiga. Vivia à base de anti-depressivos. “Distúrbio bipolar”, Olga se arriscava. Era psicológico. O corpo sofre porque a mente sofre.

    - Ora, por favor, gente! olha a cerveja aí! Sorrisos! – Amália resolve intervir. Em vão.

    - É para entender tudo isso que estou estudando psicologia.

    Diante da confissão dele, vem de imediato a Olga: “Para entender os próprios problemas?”

    - É. (desvia o olhar) Diversão, Amália? Esquecer a dor de existir, você quer dizer. Comentar o pesar com certa distância, de preferência com luvas cirúrgicas. Podemos te ouvir o professor em seus devaneios sobre a Angústia, sobre a Náusea. É didático. (Diante das ironias, s colegas murcham.) eu li “A Náusea”, do Sartre. Aliás, li não, só enfrentei um pouco além da metade. É claustrofóbico, é...

    - Nauseante! – Olga vira a cerveja num gole. – Coisa de dar realmente náusea.

    - Ha Ha! Ler “A Náusea” dá náuseas! – Amália ainda insistia no clima festivo, não poupava risadas. Consciente do riso nulo, ela tentou suturar. – Desculpa, gente! Mas vocês, hein? É de morrer de tédio!

    Amália talvez desista, vai afastar-se para junto das barracas, vai providenciar cerveja. Encontra outras colegas. Saudações, beijocas, risinhos. Ajeita as trancinhas. No grupinho, destacava-se outra garota (se não me engano, o nome dela é Shirley), sempre a atrair atenção, abraçando as outras.

    - Se ficar analisando, a gente não vive... – suspira Olga, algo constrangida.

    Ali o “bizarre love triangule”: o triângulo ali era mesmo bizarro. Olga encara o Stevam, que só percebe o fardo noturno sobre a Leila.

    - Mas o pior é sair analisando os outros: o Freud da galera!

    - O analista ‘selvagem’. Um chato! – Olga num complemento ao desabafo de Leila. Toda aquela cena a oprimia, a sentir-se ilhada no mar de risos e ruídos.

    Stevam não suporta mais. – Vocês ficam? Eu vou indo. Descansar um pouco... – dizia atento aos olhares de Leila. – Divirtam-se.





Barreiro, 22 de abril de 2002


  Darío,

    Inicio esta apresentando desculpas pela demora. Mas é este um período difícil – e a faculdade está devorando o meu tempo.

    Hoje estive em Contagem, ocupado em distribuir currículos, e parei na praça do Eldorado, merecido descanso após ter percorrido cinco agências, e procurando paz meio a agitação urbanóide, abri a Antologia Poética, do Drummond, e tentei encontrar-me ali, entre versos, em avessos, além ousando pensar-e-sentir além do mar de mesmice, “O poeta declina de toda responsabilidade /na marcha do mundo capitalista.

    Reli, semana passada,o conto “Erostrato”, do Sartre e tive arrepios, reli o Drummond (aquele poema que fala que não podemos “dinamitar a ilha de Manhattan”; li “On the Road”, do Kerouac, aquele beatnik, onde o narrador imagina árabes chegando para explodir Nova York (olhe que o livro data de 1954!); comecei a leitura de “A Condição Humana”, de Malraux. Arrepios – mais arrepios.

    Arrepios, sim. O Erostrato odeia os homens e os humanistas, e até parece um vírus ou um mutante. Mas, no entanto, é justamente humano! O chinês no livro do Malraux sofre crises existenciais – ao estilo Clarice Lispector – antes de consumar o assassinato. Ambos humanos, demasiadamente humanos!

    Pois é. Estava na praça. Lia o Drummond – reclinava a cabeça, pálpebras cerradas, meditava – e eis que “me chega um cidadão”, a pedir fumo, um cigarro, “Fumo aí, irmão?”, “Não tenho.” Depois outro mendigo, prostrado no jardim, entorpecido. Outro a banhar-se nos jatos de água dos canteiros. Tudo em local público, cinco horas da tarde! Ele lá, de calção, banhando-se com uma velha marmita deformada, um troço todo amassado e cheio de ferrugem. Um sorriso desdentado. Passo ao largo. Posso amá-lo? Não somos ambos vítimas? Quem me assegura que amanhã não estarei lá, sob a torneira pública, a banhar-me com semelhante sorriso acéfalo, agradecido pelos progressos da bela civilização?

    Na praça, sob as árvores, os trabalhadores cansados, o vendedor de espelhos, o de capas plásticas para celular, o de revistas de saúde, ad infinitum. As putas, os desempregados, os andarilhos, os parias, os varredores de rua, e os varridos-para-debaixo-do-tapete, “pois é, pra quê?” E eu lendo os poemas, como se desafiasse tudo e todos – o barulho, o excremento das pombas, o vai-e-vem dos transeuntes, os risinhos das garotas, o pigarrear de um ancião curvo e tropeçante, os ousados skatistas, o relincho das buzinas – e eu ali dentro dos poemas,

                                   “Não vou queixar-me da vida
                                     ou falar (mal) do governo brasilial.
                                     Nem cicatrizar ferida
                                     resultante do meu ser-no-mundo-atual”
                                                                   (Conversa Informal com o menino)

    Contudo, a amargura – estou lendo a quarta parte de “Memórias do Cárcere”, onde Graciliano Ramos revela a indignidade nos porões da ditadura varguista, e lembro que pouco diferem dos campos de concentração nazistas ou ‘gulags’ stalinistas. O homem devora o homem. Por que de um extremo ao outro?

    Estatismos e totalitarismos e democracias falidas. Por que insistem em valores caducos? Atacaram o valor Moralidade-Religião e não criaram novos valores. Então precisam encher o mundo de policiais, agentes, radares e câmeras. Antes: “Comporte-se, Deus está vendo!”, agora: “Sorria, você sta sendo filmado!”

    Espero que você aí, no Velho Mundo, esteja em melhores lençóis, pelo menos é felizardo por ter se livrado da TV brasileira. É a esperança de seu amigo Hector, assombrado por cultos-propagandas, sem casa sem emprego, mas com todo “o sentimento do mundo”.




    Foi em certo crepúsculo que Stevam Lucena encontrou TH em casa do Oto. O TH chegara pouco antes, o buscar o sossego na rusticidade quase rural da quase chácara do Oto (que assim cultivava os mesmos gostos do Germano, que vivia nos limites da zona urbana, quase adentrando os campos e as plantações)

    Para o Stevam, o TH já andava irritado, blasfemando contra os religiosos e seus proselitismos, “que te param no meio da rua e te enchem com lendas hebraicas”. Então o Oto não podia ficar calado, ele com seu anti-semitismo, anticristianismo exemplar.

    Mas o problema para TH é outro, pois ele jamais afirmara que somos umas argilas pensantes (ou os ‘caniços pensantes’ de Pascal), e que só restam dúvidas. As dúvidas que os religiosos exploram. E se há um Além, um Juízo Final?

    Stevam, pouco efusivo nas saudações, deixa-se acomodar numa poltrona, sem intervir no quase monólogo. Até porque nunca vira TH tão, digamos, pouco fleumático.

    - Os cristãos – eles mesmo se assumem assim – examinam autores – Freud e Jung, ou Nietzsche – todos iconoclastas, de um modo ou de outro, e citam um trecho ou outro que interessa às suas doutrinas! Dizem assim: Olhe, meu filho! – pois a atitude é de paternalismo mesmo – você é um revoltado contra Deus por que você transferiu para Ele, o Pai de todos nós, a revolta que você nutriu contra o seu pai carnal, contra a dominância e a sua submissão.

    E não era verdade?, Stevam se indagava, tentando lembrar quando ouvira, em depoimento do próprio TH, sobre os dogmatismos do pai um tanto zeloso. O pai e o tio discutiam sobre o dogma da Trindade, um Deus ao mesmo tempo é três! A Questão da Trindade, pois ambos haviam lido Jung. E um jovem de treze anos presenciando a discussão. Dois irmãos se atacando por conceitos metafísicos. O pai de TH não oculta a irritação, naquele diálogo conflituoso Bíblia versus Bíblia. TH não entende, mas se incomoda com a animosidade. Para o pai, Deus é Três, para o tio Deus é Um. TH entra na conversa, e lembra da moderação, que o caso não é tão grave para que dois adultos (e irmãos!) se ataquem assim. Mas o pai não só mostra-se intransigente como áspero, e irado (como um bom cristão) num grito e um tapa: “Não é grave? Rapaz, estamos falando sobre o Nosso Deus! O Nosso Senhor Jesus Cristo e o Santo Espírito! Morda essa língua!”

    O que de fato ocorre, pois com a bofetada a língua de TH foi parar entre os maxilares, entre os dentes. Ele sente o gosto de sangue na boca. Até hoje.

    Mas TH já continuava sua palestra: - Mas os bons filhos de Deus não citam Freud quando ele fala que agarramo-nos às nossas crenças por estas representarem valores relevantes na construção de nossa identidade. Quanto mais atacam nossas crenças, mais nos apegamos a essas, pois as crenças – dizemos as NOSSAS crenças – somos nós, e negá-las seria negar a nós mesmos – o que quer que seja isso! Negar a tradição cristã ocidental seria negar todo sacrifício anterior para construí-la, o sangue das Cruzadas, as fogueiras da Inquisição, e assim negar o nosso contexto, só possível devido a tanto sangue e fumaça enegrecida!

    Oto resmungou algo sobre o dito de Cristo que não viera trazer a paz, mas a espada, e que o Cristo era ora um polemista ora um resignado, “Daí a César o que é de César”, ou não passa daquelas imagens de porta de igreja, ora menino na manjedoura, ora martirizado.

    - Mas qual versão de Cristo? Qual Cristo? Cada biografia, uma nova personagem. O Cristo de Mateus ou de João? O Evangelho segundo Constantino? Quatrocentas mil biografias do Messias? Uns dizem que ele era um rebelde anti-romano, outros dizem que agregou construtos religiosos a sua imagem, passando-se por Filho de Deus, ou que alguém fez dele o Filho de Deus. Uns dizem que ele era de linhagem real, merecia ser rei, daí Herodes querer mata-lo, outros dizem que era pobre mesmo, mas rico no Espírito, o Filho de Deus, crucificado por questões de Estado, traído pelos judeus, raça maldita. E inda existem aqueles que conseguem a proeza de aceitar e misturar todas as versões anteriores! Pois foi instruído junto a príncipes, onde já se viu um filho de carpinteiro com tal erudição e oratória? Não, convenhamos, era pobre e peregrino, não era dono nem das próprias sandálias, e seu Conhecimento vinha diretamente do Trono Divino (pois ele é Deus, defendem),poderia nascer filho de lixeiro que já saberia, em si, a Enciclopédia Britânica. Alguns vão dizer que amou mulher, teve até filha (vide Graal e merovíngios), outros vão defender, até a morte, que ele foi casto. Qual Cristo é o seu Cristo?

    O TH tinha mesmo que ser filho de quase Pastor ali pregando diante de sua quase congregação (Teria ele consciência dessa imagem? Ficaria ofendido se alguém a insinuasse? Como veria a si mesmo naqueles momentos de torrencial desabafo?) – Vejam como é difícil ler a Bíblia. Muitas tradições, do aramaico, grego, sírio. E a versão em latim, a Vulgata, a dos Setenta, etc. não há em latim um equivalente para o termo em aramaico? Faremos uma aproximação. O copista poderia estar um tanto cansado quando trocou os sinais. Fora os monges, doutores, falsários descarados! Percebam um exemplo: Cristo na cruz, olha para o dito bom ladrão, “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”. Entenderam a sintaxe? O emissor diz que hoje (agora) anuncia que algum dia, no futuro, na Ressurreição, o ladrão estará com Ele no Paraíso, ou o emissor quer dizer que hoje (hoje mesmo) o ladrão já vai ascender aos Campos Elísios? Então, a frase é outra se, “Em verdade te digo, hoje, que estará comigo no Paraíso”?

    Se o TH fazia questão de um detalhe de vírgula, imagine quanto aos conceitos teologais! – Isso de imanência e transcendência depende do ponto-de-vista. Pode ser a Imanência de Deus através da nossa Transcendência, ou a nossa imanência através da Transcendência divina, ou ainda criamos a Transcendência-Deus numa evasão de nossa imanência. Afinal, TRANSCENDÊNCIA é existir algo-lá, além-de. Não se assustem, Deus existe quando cremos nele, ele existe se muitos crêem nele, ou ainda deus APENAS existe se cremos nele, sendo o que é, uma concentração de energias psíquicas e crenças polarizadas numa massa crítica simbólica qualquer. Entendem?

    Oto limitava-se a acariciar seus gatos, enquanto Stevam bocejava. Não por desinteresse, que TH falava muito bem, convenhamos, mas era o tédio existencial. Tipo: com ou sem Deus tudo a mesma m...

    - Vendo Sua Criação, Deus cindiu-se. Um lado confiando nas Potencialidades Humanas, e outro lado, ironizando os Humanos à cada tropeço. Assim, Cristo é o lado que confia, e Satã é o que duvida.

    - Satã em Deus? – Stevam não pode evitar o assombro.

    - Por que não? Talvez Deus o tenha arrancado de si e arremessado ao inferno, como um recalque.

    - Inferno: o Inconsciente de Deus?! – Stevam, novamente assombrado.

    - Novamente: Por que não? Lá se amontoariam todas as lembranças e desejos reprimidos. O quarto de despejo da Psiquê Divina.

    Stevam perplexo (posso lembrar perfeitamente este momento) e o TH didático: - Deus precisa dos Homens, até mais do que o inverso – Ele sabe que somente existe se os Humanos acreditarem nele. Cristo tanto proclamou que confiava nos Humanos até a Morte, que teve de cumprir, teve de provar diante do Diabo.

    - “Perdoai-os pois eles não sabem o que fazem.”

    - Mas essa pode ser a maior ofensa contra a Humanidade! Será que não passamos de um monte de crianças balbuciantes e prepotentes?

    Oto parece não entender o alcance da discussão (Não que o Oto seja um simplório, mas o TH é um tanto metafísico ) e TH precisa ser mais performático. Vai se aproximando da mesinha, onde, a um canto, ao lado do cinzeiro em forma de crânio, destaca-se um tabuleiro de xadrez e peças talhadas à mão (presente do próprio TH) e didaticamente prossegue:

    - Os cristãos, os espiritualistas, os transcendentalistas jogam o mesmo jogo, sobre o mesmo tabuleiro – e apontando as peças – O bispo, este cardeal, o médium, o xamã, a sacerdotisa, o monge budista, o xintoísta, o espírita, o brâmane. E o que o materialista faz? Isso! – e abateu a mão sobre as peças ao longo do tabuleiro, derrubando todas sobre a mesa, onde deslizam, caindo no tapete – Negam o jogo! Nada além-do-corpo. Somos neurônios, aminoácidos, ácidos nucléicos, flutuações hormonais, e nada mais.

    (Quase se podia ouvir um bater de asas negras e um crocitar, “Nothing More.”)

    - Os materialistas estão dando tiro no escuro. O caminho mais rápido para a conversão religiosa passa pelo curso de física quântica. Leiam Fritjof Capra! Incerteza, exclusão, salto fotônico, energia torna-se matéria, onda ou partícula? Deus não joga dados, Código Genético, Singularidades, Hipótese Gaia. Sim, cada um e seu Ponto de Mutação. Buracos negros no córtex cerebral. Neuróglias suicidas. Entendem?

    Oto, acariciando os gatos: - Do que ele está falando?

    - Que de tanto os caras saberem (ou julgarem que sabem) ao fim não sabem nada.

    - E não é assim? – TH, atento aos pupilos – Quanto mais síncrotons constroem, mais templos enchem. Quanto mais centrifugam a matéria, mais espiritualistas realizam congressos. Quanto mais quebram átomos e contam quarks e mésons, mais angustiados exumam dogmas e aceitam crenças.

    - Saiba qual o seu anjo da guarda. Onde estão os seres astrais? Quem são os espíritos de luz? Você acredita em duendes? Ou em gnomos psicodélicos? Sua banda de rock é satanista? Você já viu a sua fada madrinha? – Stevam estende a ironia.


    (Lembro que quando anotei este diálogo, rabisquei no fim da página: Marx combate o Espírito Absoluto Hegeliano, enquanto Darwin suporta os espiritualistas evolucionistas, e Nietzsche e seu amigo Rudolph Steiner (?) e a Logosofia (??), além de Freud a ridicularizar o “sentimento oceânico”, e a lamentar o desvio de Jung com seus arquétipos e mitologias.)

    (O Valêncio quando leu as anotações, acrescentou: Spinoza reage a Descartes, Marx reage a Hegel (em um nível), Kierkegaard reage a Hegel (em outro nível), Nietzsche reage a Kant e Schopenhauer. E nada mais.)




(do diário de Stevam Lucena)

  abril 2000


    A Gestalt de grupo se resume a interação entre os indivíduos. Suas volições distintas sendo dirigidas, em coesão, para um objetivo comum. Seja este objetivo espontâneo ou dado exteriormente. Digamos que a presença de um líder, uma diretriz, norteia a somatória das volições do grupo.

    Mas qual será o nível de integração do grupo? Até onde os indivíduos se agregam em prol de comum objetivo? Não foi iniciativa do grupo. Foi sugerido e proposto, ou foi exigido e imposto, inserindo os indivíduos numa atividade, apresentados os meios de ação. São sugestionados a participarem, sem idéia previa, sem planejamento, apenas “são-jogados-na-situação’.

    O riso é um tipo de defesa? Se o indivíduo não se integra, ele pode flutuar sobre a situação e considerá-la ridícula. Se o indivíduo mergulha na situação, não pode ironiza-la, pois senão estaria se ironizando, pois o indivíduo e a situação são uma-coisa-só. O Ser É na Situação.

    Para haver o riso precisa-se de um deslocar. O Ser daria boas risadas se entendesse sua condição? Poderia rir do ridículo de ser-um-com-a-situação ?


    A defesa surge no inconsciente ou passa por instancias associativas de nível superior? Ou melhor, eu me entrego ao riso se percebo o ridículo, o diferente, o inusitado, o deslocamento, ou apenas por notar-se jogado-na-situação? Mas, de qualquer forma, preciso notar a situação! Preciso saber onde estou!

    Tenho outro ponto. O riso é contagiante. Um tem a percepção da incongruência e se entrega ao riso, e outro (que nada percebeu) pode rir igualmente.


    Quando num grupo surge uma nova proposta, há um súbito desequilíbrio, e as consciências (os conjuntos de percepções) assimilam e se adaptam – ou recusam. Assim é devido a proposta ser estranha ao momento-de-consciência de cada um, irrompendo na estrutura (Gestalt) até ser assimilada. Se o grupo (a entidade global) aceita, cada indivíduo se torna anônimo, imerso na estrutura, e aceita igualmente.

    Os indivíduos se anulam (numa volição coletiva) ao aceitarem a nova proposta e, enquanto grupo, se entregam aos ditames e as exigências desta, se dissolvendo na coletividade da ação, “Eu não faço, o grupo é que faz”. O grupo alça alturas jamais ousadas pelos indivíduos m si. O que importa não é a individualidade e sim a proposta, o propósito, a ordem soberana, a ser executada, visando cumprir a expectativa gerada. Daí a força (e o perigo) dos exércitos, das gangues, das torcidas organizadas, das manifestações de massa.

   Logo o trabalho grupal segue por si mesmo. Não são os indivíduos que trabalham, é o trabalho que se faz através dos indivíduos. A tarefa dada confere um significado de momento. A atividade cuja conclusão é esperada.

    Não havendo resistência, novidade, mas aceitação, o trabalho flui, a atividade é executada. Não há interiorização da proposta, mas aceitação grupal, “O Líder salvará a nação, devemos ajudar ao Líder em sua missão”.

    A questão aqui é: o que define o Grupo? A atividade, o propósito considerado comum. E o grupo deve estar à altura da atividade.



    Rir do absurdo. O que é rir? O que é absurdo? Uma situação nova? Se assim fosse o estar-no-mundo não seria risível? Mas a criança ri, espanta-se. Até a fase adulta, o Ser aprende a Aceitar, achando tudo NORMAL, socialmente dado, pronto.

    O risível, a comédia, é o esforço humano, a civilização, a sociedade. O trágico, o triste, é a condição humana.

    O riso é uma exteriorização do desconforto, é um pro-jetar-se. O riso nasce da percepção do descompasso entre o ideal e o vivencial.

    Assim, o riso não se distancia da angústia – o que explica o chamado ‘riso nervoso’, quando se ri, na mais abjeta miséria!

    Quando entro em uma biblioteca, ataca-me uma ânsia de riso, diante de miríades de títulos, tanto conhecimento pra quê? Para repetir os mesmos erros? É quando, em minha angústia, ataca-me a vontade de rir do esforço humano em chegar a lugar nenhum.



 
continua...


LdeM