domingo, 13 de fevereiro de 2011

mais Capítulo 1 da Parte 3

[...]





   Atento às várias escolas filosóficas, o professor era daqueles que muito prezavam os pensadores a ponto de não ousar supera-los. A Filosofia enquanto respeito à Autoridade. E ele nem era hegeliano.

   Sistemas filosóficos, dos pré-socráticos aos discípulos de Derrida. Escolásticos. Positivistas. Existencialistas. Uma galeria de belos quadros. Poses pomposas.

   Stevam Lucena se preocupava mais com o que Leila tinha a dizer. A autoridade dela ele acatava! Agora, por acaso, levaria alguém como Platão à sério? Convenhamos!

    Até porque naquela aula eram trechos de um livro que circulava. De um autor inglês disposto a escrever uma “distopia”, isto é, “utopia às avessas”. E o professor ouvia, atentamente, às indagações de Leila, sempre senhora de si e questionadora. Com toda aquela força que Stevam não tinha – e por isso invejava.

    Realmente o professor estava mais libero-pensatore e menos catedrático. Via-se que a aluna conseguia domesticar a sua cátedra. Engavetou suas tiradas academicistas de intelectualismo pedante. E talvez, no fundo, fosse um bom garoto, que outrora até ousara pensar.

    Leila mencionou o nome “Kafka”, e todos se voltaram. Mas não falavam sobre Huxley, e seu “Brave New World”, o “Admirável Mundo Novo”?

    - O Selvagem, o diferente, vira espetáculo, tração de circo. É perseguido, observado. Tipo o Joseph K, do “Processo” do Kafka. Não se admira que ele, o Selvagem, acabe se matando!

    Alguém concordava, Que ser diferente é difícil, que é mais fácil seguir o rebanho. “Ou o Rebanhão!”, ironiza Breno, ao lado de Leila.

    Ainda calado, Stevam observa o perfil da jovem. Também está incomodada. Com o tema, com o livro. Principalmente com a turma.

    As pessoas ou servem a algum propósito ou são descartáveis? – Leila provocava, faces coradas, afastando a franja. – se não se adaptam ao processo, devem ser eliminadas?

    Mas a ironia (que pretendia aliviar a tensão) deixou a discussão ainda mais áspera, e Leila, que tentou jogar limpo, acabou sufocada pelas tiradas irônicas. Os que ainda compreendem se calam diante da maré de mediocridade.

    Certamente por erguer a Leila a um pedestal por demais elevado, Stevam jamais tenha se aproximado.




    Dois ‘guarda-roupas’ na entrada. Intimidado. “Aberto para estudantes?”, ele pergunta. “Só para convidados”, responde o guarda à esquerda. O da direita acena, HD aproveita, “E a Biblioteca, ainda aberta?” Aí, o da esquerda resolve ser mais prestativo, “Vou perguntar” e mergulha na onda de cartolas e fraques, digo, de ternos e carecas. Volta logo, acena simplesmente. “Liberado?”, e HD entra, discretamente.

    Aproxima-se para assinar os livros de presença, junto as madames e conversas de comadres. O congresso da gerontocracia no judiciário. HD assina enfim, e desce ao auditório, lotado de grisalhos e cabeças brancas.

    Senta-se na segunda fila e logo o Presidente da sessão sobe à mesa e espera que os ânimos quase estudantis se acalmem. Pois poucos estudantes estão presentes, a maioria é advogado de carreira, desembargadores, professoras cobertas de maquilagem.

    HD, ali no extremo da fileira, incomodado à todo momento por um passante, e eis que um casal.... Olhem, é tão-somente um bem-trajado e aprumado advogado e a mulher, de vestido justo, saia anil e colete vermelho. Logo o noivo passa de novo. Sempre incomodando o HD, nauseado, “O que estou fazendo aqui?!”

    A dama agora lança um e outro olhar, tendo apenas três assentos entre ambos, mas ele disfarça bm, também não vai dar vexame diante de tal platéia.

    Hora do Hino Nacional, respeito e civismo. Aplausos. Ela senta-se e cruza as pernas, apesar do espaço exíguo, e ele entediado, ali cumprindo tabela, mostrando-se pessoa decente, a cultivar belas virtudes cívicas.

    O palestrante começa a sua fala, arriscando anedotas para quebrar o ‘espírito de gravidade’. Suas palavras ecoam enquanto HD dedica infinda atenção ao que parece divertir a dama, que vê no rapaz um exímio ator. Mostra à face reflexões ponderadas (ele que nem fez questão de balbuciar as palavras vãs do Hino), lábios cerrados em profundo meditar sobre a glória nacional, a lembrar que nossos campos têm mais flores, etc.

    A dama cruza novamente as pernas fenomenais, e ele sendo discreto. Ali, na fileira de trás, a família do noivo, a tia antes declamando um poema meio no deboche (Bocage?), depois se levantando para cumprimentar o sobrinho, com toda afetação, “Ei, me deixem! Que abraço! Hein!”, a mãe sorrindo, a saudar sem efusões a futura nora como boa sogra,o pai atento a careta suarenta do palestrante.

    “A justiça, gloriosa na defesa do cidadão frente a arrogância do Estado...” E ela tira o colete encarnado, joga-o aos braços da poltrona, num olhar sorridente para HD, o guru da discrição. A musa no seio da nata da jurisprudência mineira, em semelhantes trajes, certo que trata-se de alta costura, mas pouco pano, “...desde a sábia Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, sob a inspiração do genial Jefferson...” O noivo volta e novamente incomoda HD, “todo viscoso, esse sujeito”. Cochicham algo noivo e noiva, ele (o noivo) volta-se para trás, troca acenos com a mãe, recebe um livro, então desdobra o óculos e folheia. Ela (a noiva) faz de uma revista (jurídica!) um leque até eficiente. O noivo encobre a bela silhueta, mas (vejam!) ela tirou os saltos altos, ali os dedos encolhidos, enredados na meia-calça. “Teia de aranha!”

    Palavras, palavras. “O que, pelos raios, estou fazendo aqui!”, mas não se decidia a ir embora. Mas não era momento para abandonar o jogo, logo agora que o noivo passou de novo, “Não sossega, o infeliz!” Assim o olhar caiu sobre a musa. Ela não perdia uma oportunidade pra cruzar as pernas, exibindo a meia-calça, “Para que ilusão, se a realidade é melhor!” Ele queria ver os pêlos claros da pela sedosa. Adjetivos nem originais eram. E outra: ele se sentia invadido pelos tempos da opressão, a década de 60, por um mofo de ditadura, “Quantos ali colaboraram com o regime? Se não, o que fizeram? Boca calada!” Agora ali, o palestrante exortava a Justiça à justiça! E defendendo a separação dos poderes, execrando regimes totalitários que atrelam o Judiciário ao Executivo.


    E ele, o filho da contracultura, do tropicalismo, do peace and love, da cabeleira black power, do estilo flower power e dos seminários marxistas? Nada disso! Filho de um funcionário público vindo do interior, e criado nos subúrbios!

    O mofo dos conservadores e o ar jovem do olhar sorridente da dama. Ela que já deixara a revista de lado (talvez para não desagradar aos egos sensíveis, pois certamente o noivo devia ser um dos colaboradores, ou mesmo o editor) e continha uns bocejos (fingidos? O quê? O gesto um ou dois?) O palestrante levantava discretas advertências quanto ao estado da Suprema Corte Norte-Americana, devido as ditas (ou malditas?) ‘medidas de exceção’, contra o terrorismo (ou o ‘império do Mal’?), e que este poderia vencer, caso a América renunciasse ao secular apelo pela liberdade, e censurando manifestações, e cercando os cidadãos de olhos eletrônicos (“o Grande Irmão”?) e que a América lembre-se o quanto é grande sua influência no mundo, que em nome da democracia não acabem por sepultar a liberdade democrática..

    O bom discípulo de Montesquieu silencia, e aplausos ressoam. Dar o fora, e rápido! Anunciam um cocktail, é o sinal. A dama veste o seu colete, e seu perfume o guia quando segue corredor acima. Ele refugia-se no toalete, onde xinga sua imagem no espelho! Quando volta ao salão, ele finge procurar uma face conhecida. A noiva já desapareceu com o noivo.

    Tão discretamente quanto ao entrar, HD saiu. Nem sinal dos ‘guarda-roupas’. Somente os manobristas ocupados.




(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


(inverno de 2000)


    Voltando ao barzinho do Santa Efigênia, depois de dar um tempo, percebo a nossa velha mesa agora vazia.

    O bar está vazio. Hard Rock dos anos 80 e suas baladas e seus solos de guitarra ainda são o prato da casa. Já estou um tanto saudosista?

    Sentei-me cabisbaixo e fiquei lembrando um diálogo que muito me impressionou, a pouco mais de um ano atrás. Eu nessa mesma mesa, e ele, com uma amiga, naquela mesa junto a entrada. Concentrado em meu vinho, sem ter encontrado o Erik, que vez ou outra aparece, só notei uma voz entre confessional e petulante, como se confessasse por desfio, como se mostrasse disposta a fazer tudo de novo.

    - Pois é, foi um custo. Depois minha mãe me aceitando como mulher, entendendo que eu precisava seguir meu caminho, nem que fosse pra quebrar a cara...

    Eu não poderia esquecer aquela pele pálida e aqueles longos cabelos negros, toda de luto, com vestido e coturnos, sempre voltando aos olhos cobiçosos do Oto. Não sei se ainda saíam juntos, afinal a ‘oficial’ de Oto é Carol, igualmente pálida e cabelos de corvo.

    - Fui morar com uma amiga, a Raíssa, você sabe... Aprendi a tocar flauta, um pouco de teclado... cantei um pouco, aquela música bem deprê da banda do Oto. Mas eu pegava muito pesado. Eles tinham lá aquelas drogas. Muito pó, saca? Uma noite, cheirei muito, bebi muito, cheguei ao apê e quando Raíssa abriu, caí, caí assim pra frente, desmaiada, cara! Ela me contou depois. Até me deu banho... Não vi nada, não me lembro. Acho que acumulou tudo, não é? Mas não vou ficar aí marretando o passado.

    Era noite fria, talvez daí os arrepios. Paguei o vinho e saí.

    O mesmo fiz hoje, e ainda mais solitário.



Alfonso: O Oto comentou a sua desistência.

Stevam: Temporada de anistia na ditadura?

Alfonso: Depende das negociações.

Stevam (tenso): Eu? Dar a cara a tapa?

Alfonso: Ambos precisam ouvir, ouvir um ao outro.

Stevam: Acredito o suficiente em mim mesmo para não precisar ficar abaixando cabeça para um ditador cismado a músico.

Alfonso (incomodado com o papel de conciliador): Bem, é que...

Stevam: Eu perdi a paciência.

Alfonso: Na verdade, são os dois intolerantes.

Stevam: Assumo. Se precisa de um anjo decaído. Ele pode ser o deus tirano. Não, não podia continuar, tava engasgando. Não só a sonoridade (o que todo mundo comenta) mas as letras, o sentimento ali presente. É um lamento. Não faço música por diversão.

(Alfonso lembra-se dos exercícios de teclado do Stevam. A repetir melodias e acordes à exaustão. Bach, Mozart, Chopin...)

Stevam: Veja, essas bandas que são ícones. O que há? Imagens. Distorção. Pose de crueldade. “Ora, vejam, o quanto sou sádico!” E dizem ler clássicos da literatura...

Alfonso (diante da pausa reticente de Stevam): Sei, o sentimento se perde. Lamento para uns, divertimento para outros. Isso mesmo lendo as letras entre as músicas?

Stevam: Pois o problema não são as músicas, ou as bandas, e sim, você sabe, o público. Revolta vazia, estética vazia.

Alfonso: E Oto pensa diferente?

Stevam: Não, nisso até concordamos. O problema é conviver com o cara. Não desprezo, entende? Mas conviver é...

Alfonso: Todo mundo cansado? Depois que a garota...

Stevam (interrompendo): Vá ao ponto.

Alfonso: Que tal uma ressurreição? Divulgação por minha conta. Casa bem centrada. Boa segurança. Penso aqui no Matriz... Para os fãs, percebe?

Stevam: Não sei. Lembro do último show. O TH estava lá, em sua pose de aristocrata e tal. Mas o lance foi que quebraram o banheiro. É, quebram. Tudo! Pia e vaso. A grana nem deu para pagar os estragos. (pausa) sabe como é. Querem é descarregar a raiva, o estresse mesmo. ( e olhe que o nosso som é melancólico, não agressivo!) E quebram mesmo. Já paguei muito copo quebrado, garrafa de vinho caro, banheiro detonado! Isso nessas quadras esportivas e tal, imagine então numa casa de shows!

Alfonso: A gente faz um contrato. Um simples inciso muda tudo. Ou aumenta a segurança.

Stevam: Outra coisa. Isso de divulgação. Sabe que tocamos para um grupo muito seleto, é tudo fã, não queremos quantidade...

Alfonso: Sem divulgação?

Stevam: Atrair apenas quem possui o sentimento, entende? Senão fica vulgar, fica banalizado. Isso aí: Banalização. Se fizer sucesso a gente até muda de nome.

Alfonso: pense no contrato. Basta reanimar o cadáver. Muita gente viveu esta banda. A garota mesmo. Ficou tão abalada que... não falemos disso. Entende? Sentimentos em jogo. Na é para tapar o vazio?

Stevam: Tudo isso é muita pretensão. Caímos por sermos muito pretensiosos, o querer ser melhor, muito chio de frescuras. Veja essas bandinhas de três acordes. Elas é que aparecem, rolando uma grana.

Alfonso (percebendo que Stevam perdera o tom rancoroso): Então? Quando assinaremos o papel?





    E aquela noite em que o TH desapareceu? Todo mundo bêbado noite dentro. Como começou? No bar, o do Santa Efigênia. Stevam andando numa noite chuvosa, sem qualquer perspectiva, e tropeça, nas penumbras, em dois vultos. Ninguém menos que Erik, ao lado do novo baixista (via-se logo o instrumento). Ambos retornam de um ensaio pros lado do Alterosa. Resolveram parar no barzinho. Não demorou e o TH apareceu. O mesmo olhar opressivo – fleumático demais. “Saberá algo? Algo de que nem desconfio? Talvez até deve rir da minha ignorância... sim, deve saber muito, mas, claro, trata-se de um dissimulado, um ator na sutileza da encenação.”

    TH recusa comida, aquele caldo, por exemplo, e despreza a bebida. Limita-se a olhar atento. Mãos delicadas, com dedos nodosos, unhas longas, repousam sobre os joelhos. Vagas palavras sobre projetos musicais. Fracassados. “Veja bem, ó Stevam, a nossa banda era pretensiosa demais! Veja bem: dois guitar! Dois vocais masculinos! Além de tecladista e vocal feminino... Letras em inglês e latim – além do português. Recitações. Muita pretensão. Tudo muito custoso.” E Erik não poupava a análise fria dos audaciosos navegantes: “Fazer música é preciso. Viver não é preciso.”

    Depois foi Oto quem se materializou. Arrastava a pobre da Carol, a que vivia deprê, desde a morte da Sônia. Tempos depois, Carol finalmente provava sua sanidade ao abandonar o Oto, mas apenas para cometer a insanidade de ir morar com o Aléxis... Naquela noite, Oto chegou um tanto hostil, marcando a ferro em brasa o infeliz do Eirk. Todo um humor de ditador! Carol não menos, ainda mais com o TH – ela desvia o olhar. Que Carol não suportava o TH, todos sabem. Mas poucos sabem que ela culpava TH pela morte da ‘quase’ amiga, “Ele vivia atormentando ela...” Mas o caso é que Oto chegou com um humor de viking e esbravejou contra o Erik, o irônico – o Erik, cujo passatempo era folhear volumes de Medicina Legal, rindo-se das deformidades e aberrações, deliciando-se com corpos em vivissecções... – Mas e o porquê da discussão? É que o Erik tivera a audácia – para não dizer imprudência – de fazer o ditador nórdico esperar, sob a chuva fina, durante uma hora, lá no centro comercial, próximo do estúdio onde marcaram o ensaio – local tal, hora tal – e assim por diante. Mas é que Erik confundiu tudo – sabe-se lá se com algum propósito escuso...

    Daí aquelas asperidades. Nisso, o TH ergue a palma magistral de diplomata – no afã de apaziguar os ânimos. De repente, e o próprio Oto quem confundiu as coisas – e não assume o erro, jogando a culpa sobre o Erik, que tivera a infeliz idéia de convidar o inamistoso amigo.

    Em vão. Oto detesta ser advertido, aconselhado, coisas desse naipe. Olha direto para o TH com chamas violáceas. “Defensor público, agora? Acha que não assumo quando erro?”, e o olhar de Carol brilha afirmativo! Já Stevam manifesta-se contra o despejo de estresse cotidiano. Toda a fúria contra os insucessos, contra a prostituição artística, contra as gravadoras mercenárias, contra a mídia comprada. Abaixo os modismos da indústria fonográfica! Alguém ali vivia de música? Claro que não.


    Mas o Oto não deixa de proclamar seu anseio de ganhar dinheiro, que não vai sofrer sob as botas do sistema, as vai é lucrar com os “cânceres do Leviatã”, vivendo bem nas entranhas do monstro”, e não à margem. SE o mundo todo é injusto, ele, Oto, é pior! Nada de “autenticidade artística”, for com “complexos de consciência”! Alguém – algum insano! – insinua que Oto pouco entende de música. O insulto final! Mas Oto humilha o interlocutor com o mero olhar, “O que não me impede de montar minha própria gravadora.”

    E Oto se afasta, sempre arrastando a pobre da Carol. Os demais trocam olhares, suspiros de alívio. “O cara ‘tá um vulcão!”, comenta o baixista novato na roda. “E você ainda não viu nada”, sussurra o Erik. Decidem cair na noite e agarram as bebidas. Compram mais vinho – a marca econômica. Numa assembléia, querem saber: para onde? Para onde devem levar suas pobres existências? Ou “existências vãs” como diria um Hélio Lúcio – num claro anacronismo. Opções recaem sobre a coleção de CDs (célebre!) do novo baixista. Até convidam o TH – que excepcionalmente aceita! Rumam logo para a baixada do Santa Tereza. E até TH segue virando um gole de vinho barato.

    Uma presença de locomotiva estremece a noite, a escura, úmida e tropical. Todos comentam novidades de bandas, lançamentos de álbuns, letras blasfemas, detalhes dos músicos, qual o último a profanar um cemitério ou a incendiar uma igreja, ou os instrumentos que desejam comprar. Stevam, por exemplo, pensa num teclado novo, mais avançado. Outros lembram vultos de garotas desejadas – as garotas sempre falta... “Esse bando de lobos solitários e nenhuma ovelhinha pra devorar!”, o desabafo de um.

    Tudo para desabarem no quarto do baixista. Reunidos, congregados, ao redor do aparelho de som. Compartilham os goles de vinho e conhaque. Uma náusea coletiva. Mergulham em devaneios químicos e imagens fantásticas. Corpos desfalecidos, tremores em posições fetais, encolhidos. Outros se sufocam no próprio vômito.

    Certo lampejo e Stevam acorda. Ali está o TH à um canto. Cabisbaixo. Antes, quando chegou, deixou-se a folhear um volume – ricamente ilustrado – sobre a história da magia. As poções, os venenos, os feitiços, os filtros, as mandingas, o voodoo, as simpatias, as ervas do diabo, as curas milagrosas, os pactos de encruzilhadas, o demônio no meio do redemoinho... E depois, ébrio, cambaleou até a rodinha de agito, ali diante das caixas de som. Livrou-se do sobretudo, e da blusa funérea de malha negra. Alvo e pálido à luz. Um cadáver a agitar-se na penumbra. E Erik a erguer um enorme crucifixo, aquele surrupiado no Bonfim. E a névoa de haxixe tudo envolvendo, tudo encobrindo. Agora, um TH vulto cabisbaixo, mas ainda atento, engana-se quem o julga adormecido! Tem um olhar vigilante aquele vulto cabisbaixo. Olha para si mesmo!

    E o sono pesou. O verdadeiro Morpheus com sua manta sobre os corpos entorpecidos.

    E quando amanhece, as cabeças se equilibram, pesadas se erguem. Notam uma ausência. Onde o vulto cabisbaixo? TH não estava mais... Sumira. Evaporou.




  Europa, 11 de maio de 2002


    Meu caro amigo Hector, esta carta que por hora escrevo, é na verdade a reunião de várias, que me deixei esboçar.

    Que cena você escreveu! Essa da leitura da poesia do Drummond na praça, tendo como cenário a crua realidade de uma grande cidade. Eu já havia dito, Há pouca Poesia além dos olhos do Poeta.

    Mas devo admitir que minha situação por aqui não é muito diferente da sua, se for analisada friamente, pois dependo da Bolsa de Estudos, pois o custo de ida aqui é alo e só com o dinheiro do meu trabalho não daria para me manter. Seja como for, sei que se voltar agora para o Brasil, nada mudará na minha situação financeira.

    Nunca mais escrevi um verso! Nem sei quando voltarei a escrever. Isso tem me deixado muito estressado, aliás muitas coisas m estressam por aqui, às vezes dá uma vontade de falar Português, essa língua que adoro! Um dia gritei pela janela: “Minha Língua é minha Pátria! Chega de Chega de Saudade!” Depois ri de meu gesto desesperado, pois quem poderia me entender? Certamente apenas se ouviu alguém gritar palavras desconhecidas, ainda que alguém tenha ficado curioso ou confuso.

    Gostaria de criar Poemas numa linguagem contemporânea, não literária,mas sim publicitária. Na verdade, um grande pastiche que procurasse, com as regras, digamos, clichês de publicidade, fazer Poesia. Uma poesia produto de consumo, feita para ser vendida, lida, sentida e descartada como uma lata de refrigerante ou um jornal ou uma embalagem qualquer. Talvez você estranhe isso, não sei, mas pretendo representar a curiosa situação da Arte na cultura e na sociedade capitalista; pois se observarmos friamente as manifestações artísticas são também produtos de consumo, claro que possuem características distintas de uma lata de refri, mas basta olhar na prateleiras das livrarias, por aqui imensa lojas, onde se pode perceber quão imenso é o Mercado Editorial e os leilões que arrematam milhões por obras “consagradas”.

    Quanto à menção da TV, aqui estou protegido pela TV a cabo, incluída no aluguel, mas nem vou comentar a programação! E rádio é o mesmo, música pop em inglês, raras são as rádios que tocam outras músicas, por isso minha melhor companhia é o meu discman! Aliás, esse apartamento em que vivo, indicado por um colega virtual, é digno de ser descrito. Para começar, nada aqui é meu. Todos os móveis, eletrodomésticos, a decoração, tudo está incluído no aluguel e não posso mudar. Durmo numa cama de bambu, feita em Gana, aliás, toda a decoração é africana, com cortinas, móveis e esculturas, muitas, vindas da África; também há alguns quadros do Caribe, da Tailândia, e no teto da sala duas bandeiras, uma da África do Sul e outra, do gigante “deitado em berço esplêndido”, daí acordo todos os dias e ao abrir os olhos entrevejo as três palavrinhas: “Ordem e Progresso”. Parece provocação!

    Tenho discutido com os exilados do Borges da Costa, pois boa parte dos ex-moradores estão espalhados pela Europa. Tive uma grande surpresa quando recebi vários e-mails de boas-vindas ao exílio voluntário (?) de ex-colegas do Borges, e a partir daí iniciamos vários debates sobre Brasilidade, Nação, Nacionalidade, etc. tenho sustentado sempre que não sei o que é Brasil, nem o que é brasilidade. Seria isso gostar de samba, caipirinha, capoeira, futebol e carnaval? O que tem em comum um nordestino e um paulista? Um amazonense e um mineiro? Certamente a língua! O conceito Não é novo e sabemos que deve ser sempre alimentado, senão se desfaz diante das diferenças regionais. O típico brasileiro, o típico europeu,não passam de um estereótipo! O que é Nação? Antes, pergunto se não seria o Mito-Nação. Pura abstração instrumentalizada pelos donos do poder, através do Estado, pois o Mito-Nação garante a sobrevivência da instituição Estado.

    E assim caminha a Humanidade!

    Até mais.

                    Darío Sabine





(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


   23 setembro 2001


    Impressionante como dois anos passam depressa. E mais impressionante ainda o feito do Oto: nada menos que incentivar uma ressurreição da banda.

    Tenebrae. Trevas. Nome sugerido por TH. Sem saber se há ou havia banda com esse logo. Oto queria um nome em inglês. Eu e Erik também. Mas uma carga fúnebre que o latim carrega não seria facilmente desprezada.

    Ontem fui ao bar do Santa Efigênia. Melodias sombrias de bandas atuais que ouvem muito barroco alemão, Johann Sebastian Bach. E lá estavam Oto e Victor, rodeados de garotas sombrias e pálidas. Foi difícil raptar a atenção de ambos, mas o assunto foi abordado, enquanto um outro foi cuidadosamente evitado.

    Elias discutia novos RPGs com um vampiro-juvenil na mas ao lado. Conflito milenar entre vamps e werewolves? Lendas urbanas e mitos cinematográficos? Você já leu Mary Shelley?

    Impressionante foi a aparição de TH, justo quando Elias abordava sua conhecida tese a discutir se vampiros são cadáveres horrendos ou espectros de beleza funérea. Você já leu Bram Stoker?

    Pediu vinho e sentou-se entre nós. Ouvia silencioso as melodias estridentes de vocais chorosos e protestos guturais, e guitarras assassinas e violinos lutuosos.

    TH limitava-se a acompanhar as conversas, degustando o vinho aos acordes do violino. Na mesa ao lado, não aquela onde estava Elias, um noturno mais velho e experiente exorcizava as bandas modernas e seus modismos, lembrando saudoso os shows devastadores no bar do DCE, por exemplo. As bandas sombrias e autênticas de antigamente.

    - Tudo antigamente era melhor.

    Olhávamos o TH e não sabíamos se ele ironizava. Mas estava com um ar abatido. Disse ao poeta que poderia dormir lá em casa, caso quisesse ir ao ensaio, vista a proximidade do estúdio. Não precisei insistir, ele aceitou.

     Passei a noite fumando e relendo trechos de “Drácula” de Bram Stoker, onde o Conde, logo que ouvia o cantar do galo, pedia licença a Jonathan Haker para recolher-se aos seus aposentos. TH comparava trechos do livro de Stoker com o filme do Coppola.

    Aconteceu que hoje acordamos meio-dia, e graças ao telefonema do Oto, confirmamos o ensaio. Dia sombrio, meio chuvoso. Adequado. E ainda chegamos antes do Oto, na casa do Renan, o novo guitarra-solo a substituir Erik, ocupado com outra banda bem mais pesada. Não levei o teclado, apenas queria assistir. Sentir o clima. TH folheava uns jornais com mais notícias sobre os atentados às torres de Nova York.

    Em seguida, descemos à estação do metrô, para buscarmos o novo baterista, Élcio, que esperávamos menos temperamental que o Victor. Não encontramos ainda qualquer baixista animado. Na estaco, meio a multidão, eis o Élcio, também trajando luto. Todos prontos para o funeral. Élcio achou sensacional o ‘porta-aviões’ do Renan, assim referindo-se ao carro modelo dos anos 70, onde se amontoa músicos, instrumentos e ainda sobra espaço para os roadies!

    TH, em silêncio, folheia os jornais (que Renan usa para limpar o pára-brisas), mesmo quando o motorista refere-se a fatos políticos, guerras iminentes, ou manifesta dúvida quanto a certo termo em inglês.

    No estúdio, assim que cheguei, notei um livro sobre a mesinha da recepção, “O Nascimento da Tragédia”, de Nietzsche, mas uma edição em espanhol. Quando olhei novamente, TH já estava folheando o livro. Pensava comigo que seríamos ali o espírito apolíneo diante da arte dionisíaca.

    Enquanto lia, TH lançava olhares aos músicos, incentivando uma melodia ou outra. Eu fiquei namorando as guitarras. Uma delas afinada por Oto que agora arriscava o vocal, tirando a ferrugem. Diante de seu olhar interrogativo, revelei que não estava disposto a cantar. Todos esperavam, eu era a segunda voz. Mas sentia-me platéia, não artista. Oto tentava ressaltar o vocal, mas a bateria seguia pesadíssima!

    Ao crepúsculo, brindamos no bar do Coreto. Exceto TH que reclamava de sua famosa úlcera, que permitia apenas uma taça de vinho noturna e após farto jantar. E, enquanto Oto e Renan ocupavam a mesa do bilhar, escolhendo tacos e triangulando as bolinhas, TH despejava literatura sobre o baterista Élcio, comentando o conto “Mask of Red Death”, do Poe, onde a Morte Escarlate atravessa os aposentos festivos de variadas cores e nuances até exterminar os frívolos e cínicos cortesãos no banquete do Príncipe. Élcio estava visivelmente arrepiado de prazer macabro. Assim estão irmanados no culto aos clássicos do terror. Prefiro ficar calado.

    Andando pelo bairro, seguindo silhuetas femininas, paramos num trailler, e decidimos (não por unanimidade) um bom espaguete (quem não quis, comeu hamburguer) e Renan nos abandona (TH concedeu muita atenção). Élcio comentou superficialmente o fatídico 11 de setembro e as redes do terrorismo, e TH manifestou seu pesar.

    Oto não comentou, mas percebia que olhava o relógio. Alegou um compromisso, um encontro (com ares maliciosos) e seguiu sob a chuva.

    Ao TH sugeri temas para letras das canções ensaiadas, com paisagens outonais, cirandas de crianças perdidas, coros místicos, e percebi que ele anotava mentalmente as paisagens oníricas, com o olhar fico, pensamento longínquo.

    Depois seguimos rumo a praça e eu me despedi, pois descria a avenida. Lembrei que havíamos ouvido muitas promessas, e ele disse que não acreditava em nenhuma.




continua...


LdeM

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