segunda-feira, 24 de outubro de 2011

continuando o Capítulo 5 ...

[...]


    Lentamente, sob as goteiras do terminal turístico, Stevam Lucena alcança os portais ainda fechados do matriz, onde restam marcas de eventos passados, e cartazes povoam as paredes com tantas promessas de melodias, estilos e prazeres. Acompanhado por poemas ácidos e odes exaltadas, além de uma espera palpitante no peito, Stevam aguarda com expectativa a abertura dos portais.

    A distribuir saudações entre os convivas, Marco Aurélio, o 'Conde', encaminha-se de um grupo a outro, enquanto o 'Penseroso' chega preparado, com trajes fúnebres, trazendo desassossego e lirismo. À luz de velas, outros poetas se apresentam. Um militante da poesia, Roosevelt Augusto, expõe seus trabalhos, um livro e cartuchos artesanais com minúsculos canudos de poemas. E Stevam comenta com Túlio, o 'Penseroso', a ausência do 'Arcanjo', o poeta Miguel, mas Túlio não esclarece o enigma.

    Outros vultos adentram as masmorras, inclusive o barqueiro Caronte, "condutor dos mortos", a fantasia de Márcio, o 'Barão', e seu amigo, o 'Mephisto', apresentando um sombrio contrato, e também 'Mutante', o mil-caras, de pirata dos setes mares. Mas nenhum causa mais surpresa que a ausência do 'Arcanjo', mas o sarau precisa ter início.

    Com nobreza e presença, o 'Conde' dá início a sessão poética, e Stevam Lucena não hesita em ler uma ode de Ronald de Carvalho, "onde estão os teus poetas, América?", e em seguida, o 'Penseroso' apresenta versos de sua autoria, e também o visitante Roosevelt Augusto, e Stevam declama uma tradução de The Sisters of Mercy, lembrando a "dança sobre os cacos de vidro", e agora é o 'Barão' que surge das trevas, o vulto de Caronte, com uma letra grega marcada na fronte, para recitar "Je rame", de Henri Michaux, "estou remando, estou remando contra a tua vida", e Stevam não pode deixar de lembrar de canção do Sopor Aeternus, com a "dança da crueldade", depois da qual 'Penseroso' exibe mais lirismo atormentado, lembrando a inutilidade da cavalaria contra os blindados, e que "todos os gritos são a expressão do mesmo grito", mas é o 'Barão' que retorna, com versos de Rafael Santos, o 'Vampiro', recém-chegado, recém-defunto, com um obsceno tiro de .38 na fronte, mas vivo o suficiente para divulgar sua obra "Noite dos Vampiros", da qual já acompanhamos a noite de lançamento.



    Solicitando a palavra, e a atenção, dos convivas, Alan, o 'Espectro', lembra o sucesso do Leis da Noite e todo o esforço de produção do evento, agora referência entre os sombrios. E não pode deixar passar a oportunidade de expor em público os seus agradecimentos e anunciar o recente aniversário do 'Conde', que está de volta com seu lirismo sarcástico, mas deixa Stevam Lucena declamar o louco de Nietzsche, que acende uma lanterna em pleno dia, à procura de Deus, ainda que ele, Stevam, esteja à procura de Bianca Maria, que ainda não chegou, e possivelmente não participará do sarau, o que de fato ocorre, mas ele, resignado, ainda se entrega a acidez lírica de Augusto dos Anjos, "Há mais filosofia neste escarro, do que em toda a amoral do cristianismo!"

    Mas é 'Penseroso' quem encerra o sarau, com o poema dedicado ao salão da rainha, o tabuleiro de xadrez, que, estranhamente, ou não, traz à Stevam Lucena a lembrança de cenas do blockbuster "Harry Porter". Contudo, fantasias à parte, e muitas inusitadas, aqui piratas, espectros e bruxas se confraternizam, e, neste helloween, um vampiro é visto abraçando um lobisomem, enquanto Stevam está junto ao bar, em conversa muito literária com Davi, pois este é o nome real do 'Mutante', e esboçam enredos sobre vampiros em alto-mar, enquanto o vampiro-mor Rafael Santos afia os caninos no alvo pescoço de uma dama escarlate, e Márcio, o 'Barão', tece explicações sobre a letra grega, a marca sombria em sua fronte.

    E, enquanto em discussão com Túlio, o 'Penseroso', sobre as hierarquias do Umbral e do Empíreo, além do marketing dos romances espíritas, psicografias e outras viagens astrais, Stevam Lucena percebe a chegada do poeta Miguel, o 'Arcanjo', um tanto melancólico, com visível pesar, a lamentar a pouca produção poética e a criar certa expectativa quanto a performance da meia-noite.

    Mas, enquanto a masmorra vai sendo ocupada por mais condenados, Stevam Lucena, sozinho numa mesa de bar, apertando entre os dedos a garrafa de água mineral, ou o cartucho com poemas, o qual pretende presentear a Bianca Maria, vez ou outra levantando o olhar, num passeio meio a tantas faces, a sondar em outras presenças um alívio para uma atormentadora ausência.

    Contudo, momentos depois, de findo o sarau, em plena discotecagem, chega a esperada Bianca Maria, com trajes marroquinos em véus negros e com uma rosa em mãos. Ela oferta algumas saudações a alguns conhecidos, e senta-se diante de Stevam Lucena, que não pode mais se agüentar de apreensão, querendo saber qual é a decisão dela, visto que aquela noite pode ser o início, mas pode também ser o fim. E ela em sedução com aquele look das Arábias, ao estilo "Mil e Uma Noites", e ela parece mesmo uma semita, uma filha de emir ou sultão, advinda do crescente, com os olhos pintados, a lembrar aquelas estatuetas egípcias, e Stevam permite se lembrar de mulheres muçulmanas que tecem longos lamentos, e imagens de guerras, a invasão da Palestina, a conquista do Iraque, mas todas as dores são afastadas quando Bianca oferta um sorriso.

    Sentindo a fragrância da rosa oferecida, Stevam Lucena ouve pacientemente quando ela diz, "Até pensei em terminar, parar tudo por aqui mesmo. Mas depois de ver o seu sorriso... Você me ama, não é?", e ele sorri, "Mas que pergunta! Você sabe que sim, e o quanto eu te amo", e Bianca Maria abaixa o olhar, cheia de pudores, envolta em véus, deixando à mostra os olhos com mil sombras e enigmas. A imagem da mulher que se diz seduzida, mas que, em verdade, seduz.



Data: 30 oct 2005 - 18:21
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: decisão
Para: Valkyria [amanda.dark@X.com], bianca maria [abeatadanoite@XX.com.br]


minhas saudações!

não tenho palavras para expressar a minha admiração por ambas. E
não consigo comunicar o quanto estou confuso.
mas preciso ser sincero comigo mesmo.

quando a Amanda surgiu na minha vida, eu vivia, a muito tempo, sem
ligação afetiva com mulheres, e sem alguém que realmente me
dedicasse alguma atenção.

Amanda, surgiste elogiando meus poemas, oferecendo atenção - ou
seja, tudo o que eu mais queria - e começamos uma troca de
afetividade (e cumplicidade), ainda que doentia.

eu tenho problemas, a Amanda também, e a Bianca, idem. A
Bianca chamou minha atenção, com seus versos implorando
por amor, mas limitei-me a convidá-la (assim fiz com muitos
outro(a)s para o sarau do Leis da Noite.

mas, tempos depois, Bianca, tu elogiaste meus versos, e eu não
poderia mais ignorá-la. E era justamente em um momento em que
passavas por dificuldades. Precisavas também de atenção, muita
atenção.

porém, a diferença é que Bianca está próxima (ainda que moremos
a 30 km distantes) e a Amanda, distante.

no entanto, nada de comparações - quem sofre mais, quem briga
mais com a família, quem é mais desamparada, etc - não pretendia
fazer escolhas.

mas a escolha precisa ser feita. Esse jogo duplo precisa ter um
fim.

Se escolho A, ou B, estou comparando-as afinal, e ambas são
únicas e insubstituíveis, mas não posso, por outro lado,
dividir-me: dar, àquela distante, a alma, e, àquela próxima,
o corpo.

acrescente-se que escolhendo uma, faço a outra sofrer, e se
abro mão de ambas (para evitar a escolha) o sofrimento será triplo.
assim, não sei como sair dessa.

o enredo fugiu ao meu controle.

eu sempre ironizei esses 'affairs' à distância - um poeta amigo meu
deixou tudo em BH e foi morar dois meses no Nordeste, para
concretizar uma paixão à distância, mas pessoalmente o lance é
outro...

a Amanda acostumada á afeições distantes, a Bianca que acredita que
é preciso ser tête-à-tête, olho no olho, e eu totalmente sem rumo,
somente desejando atenção - e compreensão.

é certo que preciso escolher, mas não julgarei mérito, mas
praticidade. Não posso interferir na vida de alguém em outra
cidade, outro Estado, sem possibilidade de encontrá-la, de
protegê-la, de ser companheiro e apoio. Ainda mais, quando
alguém está próximo e precisa do meu apoio.

não está em jogo comparações, e muito menos compaixão.

Amanda, não posso prometer mais nada, e Bianca, não pretendo
quebrar promessas. Amanda, ofereço minha amizade e atenção,
e, Bianca, ofereço a minha paixão.

afetuosamente,

Stevam




    Dia de Finados. Data lúgubre, mas não se pode perder a oportunidade de visitar a amada.

    Assim se sentia Stevam Lucena, tal um fiel enamorado que se dirige a casa da dona de seu coração, pois assim se decidiram!, lembrando todos os momentos e carícias meio a penumbra da festa deprê-dançante, e todas as esperanças de ter, enfim, encontrado alguém.

    "Bianca, você quer namorar comigo?", e estalou um beijo, "Lembro que trata-se de um fardo um tanto pesado.", outro beijo, "Então fale agora, ou cale-se para sempre!", e ela, sorrindo, dissera, "Sim, Stevam, eu quero."

    E agora, com o mesmo sorriso, ela abria o portão azul encravado no muro branco, "Oi, meu bem! Entre, querido!", e ele entra todo realizado. E Dona Efigênia está assistindo a novela global, e no intervalo ela aparece para uma cordial troca de saudações.

    Uma névoa rubra se derrama no quarto de Bianca Maria, onde a banda Madredeus embala os sonhos líricos, e ela estava ao computador, o mesmo de onde envia as doces mensagens de amor e devoção, e agora o devoto é ele, a inclinar-se e beijar seus pés, "Ai, querido, o que é isso?", ela está arrepiada, e ele, em sussurro, "Estou beijando seus pés de bailarina", e ela gemia, consentindo, como ele agora dizia, "pés de bailarina, pernas de bailarina, corpo de bailarina", num elogio, ainda que a ferisse lá no íntimo, nela, nunca uma real bailarina.

                                                 "Haja o que houver
                                                 Eu estou aqui

                                                 Haja o que houver
                                                 Espero em ti"


    E a voz harmônica de Teresa Salgueiro continua a flutuar, e Stevam Lucena viaja na presença da amada, enquanto Bianca Maria troca 'messengers' com os amigos, dispersos por toda a Grande BH, "Quer enviar alguma mensagem também", ela pergunta, e ele agradece, em recusa, assim a máquina, o portal para o mundo, é logo desligada.

    "Ah, você demorou, querido. Fiquei entediada, por isso entrei na net", ela se desculpa, a levantar-se, a transmitir frêmitos por todo o vestido, cheios de estampas de flores e pétalas, e ela ainda diz, "Vou trocar o CD. Que tal algo mais animado?", e ela encontra uma coletânea dos The Smiths, que parece ser, segundo o gosto dela, um tanto 'animado', e uma canção invade o quarto.

                                   "the boy with the thorns in his side,
                                   behind the hatred there lies a murderous desire
                                   for love..."

e enquanto o Morrissey canta sobre o destino do "garoto com um espinho na carne", Stevam deixa-se lembrar das noites em que fugia das aulas para abrigar-se no quarto andar, na salinha de vidro, onde, às quartas, havia o programa "Brumas de Outono" na rádio Santê, que era comunitária de verdade, e tocavam muito som dos anos 80, Smiths, principalmente, e entrevistavam um músico, e ele dizia que nos melhores momentos da sua vida rolava a trilha sonora dos Smiths, e Stevam não entendera, pois para ele Smiths só significa letras cheias de melancolias e frustrações, e o músico a lembrar os 'melhores dias de minha vida' e só depois, algum tempo depois, é que Stevam entenderia.

                                   "how can they see the love in our eyes and
                                    still they don't believe us?"

    E Bianca já o convida para reclinar-se ao seu lado na cama, e trata-se de um convite irrecusável, e lábios logo deslizam sobre os seus, e línguas trabalham com ardor, e suspiros são mútuas testemunhas, e um dia ainda Stevam vai entender que os melhores momentos de sua vida se desenrolaram sob as melodias melancólicas dos Smiths.

    Ao seu lado, Bianca Maria está particularmente mais amorosa esta noite, não poupando carinhos, fonte de aromas e arrepios, e sussurros, "Você me ama de verdade?", "Sim, eu te amo, e você ainda duvida!", "É que já me magoaram muito, sabe, aquele que eu amo sempre me magoam", e os beijos pretendem fazer calar as dúvidas.

                                             "Well, I'm afraid
                                             It doesn't make me smile
                                             I wish I could laugh
                                             But that joke isn't funny anymore"

    A voz de Morrissey sobe e ocupa o quarto, em outra faixa, a lembrar que "esta piada já não é engraçada", e a pensar bem os traumas de relacionamentos do cantor inglês não é a trilha ideal para este casal que ainda se experimenta. Mas há toda uma doce melancolia naquela voz que seduz e relaxa, e Bianca está ardente do que nunca antes, com suas mãos delicadas percorrendo os pêlos do peito dele, acariciando o umbigo, descendo até a borda da calça jeans, hesitando. "Aquela noite, você ficou constrangida, mas você nada impede." e ele guiou a mão dela até dentro da calça e ela agarrou seu desejo pulsante com cuidado e ternura, e massageou, e apertou e sentiu todo o volume de um prometido prazer. mas ainda não seria aquela noite.


                                       "I've seen this happen in other people's lives
                                         and now it's happening in mine..."

ela se estendeu na cama e ele apossou-se dos seios arfantes, pinçando cada bico e comprimindo com certa ânsia, e à contra-luz, na névoa escarlate, viu o par de belezas se destacar, pequenas e redondas. Então seus lábios trabalham ali, sôfregos, aspirando e sugando. E gemidos e murmúrios e desculpas e pedidos e exigências encobrem, por vezes, a trilha sonora. E ela em medo, passa a hesitar, a recear deixar-se levar para longe, ou antes, para perto do prazer, "deixe eu mudar o CD", é uma desculpa e uma fuga.

    Stevam Lucena se recompõe enquanto Bianca Maria seleciona um outro álbum em sua discoteca, e não surpreende escolhendo uma coletânea do Cure, e logo deixa-se abraçar no centro do quarto, ele a dizer, "eu preciso ir embora, Bianca. Você me deixaria ir embora?", e ela suspirando, "oh não, não vá embora, ainda não! Você é cruel, você chegou tarde! Por que não chegou mais cedo?", e se abraçam e ela quase desfalece, e ele a segura na cintura, e as mãos dele escorregam saia adentro, nas curvas e na pele lisa, deslizam e encontram as colinas e a umidade dos recantos íntimos e um calor arde na ponta dos dedos que adentram e, girando, são prontamente seguros num aperto.

    "Esperei horas por isso, fiquei até doente, gostaria de ter ficado dormindo hoje", ele traduz ao ouvido dela, enquanto a canção "Close to me" circula pelo quarto e sobe na cama, onde se aninha ao lado da gata que se insinua silenciosa , e Bianca está de joelhos diante dele, "não me deixe ainda", e ele se ajoelha também, e estão ambos ajoelhados, um diante do outro, e ele ainda brinca dentro dela, com dedos ágeis, e é recompensado com suspiros e mordidas na orelha, "achei que este dia jamais terminaria, tão perto de mim", ele sussurra, o que Robert Smith canta, e é melancólico, mas é também sedutor.

    Oh, poderia tanto ser esta noite! Mas ainda não. A mãe está no quarto ao fim do corredor e já passam das vinte e três horas, e esta visita está se estendendo demais, e Dona Efigênia, mãe e pai, daqui a pouco estará exigindo prestações de contas, "o que significa isso?", e ele se levanta e ela vai junto, mas se joga na cama, e ele não pode negar outro beijo, e ela o enlaça, mãos firmes atrás da nuca, porque quando a mulher quer, ela consegue, e ele cai na cama, a amassar toda a roupa que alisara a pouco, e ela nunca antes estivera tão ardente, nem nas penumbras da boate, nem em seus sonhos mais lascivos, mas é preciso ir, existe uma coisa chamada "conveniência", o que outros chamam de "moral e bons costumes".

    "Tento enxergar na escuridão", ele diz, é um trecho da canção, e desliza pelo corredor rumo a porta, é preciso ir embora, mas daria todos os seus castelos no ar para ali se abrigar.




    Ao chegar ao parque ecológico, em outra tarde de sábado, HD encontra Alfonso Lucena em preparativos na 'sala dos literatos'.

    - Você sempre chega cedo, hein, meu caro!

    Alfonso aceita a saudação do recém-chegado e exibe, orgulhoso, o cartaz, inspirado em estéticas soviéticas, para marcar aqueles encontros entre velhos amigos. E a asperidade sonora de um Rage Against the Machine é o que HD escolhe entre os CDs disponíveis e começa, de imediato, a esboçar um conto raivoso, sobre infidelidades e traições.


    É quando materializa-se o terceiro ente da trindade, o poeta, contista, performancer, o multimídia Leir Macedo, sugerindo que saiam um pouco da toca e "desçamos para onde o povo está", e o povo está na arena do parque.

    O estudante Soares também aparece, com suas teses e volumes encadernados, transbordando versos. E HD deita-se na semi-lua do palco de cimento e enxerga lá em cima além das árvores o recorte do céu ainda azul, e restos de uma melodia (jazz? Björk?) chega e se dissolve, e ele quer compartilhar alguns versos de Bertolt Brecht, mas antes, ao som de Rage Against, como já deixara Alfonso sob aviso, um poema que escrevera para a falência do sistema carcerário,

                               "esses trancafiados no subsolo, esses degredados
                                da vida social,

                                esses humilhados e ofendidos, esses excluídos
                                do banquete social,

                                esses varridos para debaixo do tapete, essas faces
                                humanas amontoadas entre grades

                                esses restos de refugos das tramóias sociais
                                insistem em assombrar os donos do poder,"

e declama, antes grita, os versos, enquanto "They came around the family, and the pockets full with shell", esbraveja Andy La Roche, "Bulls on parade! Bulls on parade!", e todos devem se lembrar dos escombros do Carandiru, o que nada devia a um campo de concentração!

    Então, contra o nazismo nosso de cada dia, ergue-se a voz de um Brecht, "Gegen Verfuhrung", "Contra a Sedução",

                                                "Lasst Euch nicht verführen!
                                                 Não se deixem seduzir!"

    E o Soares e Alfonso se entreolham, "será que o HD não está um pouco exaltado?", mas exaltado é pouco, pois HD está é muito indignado!

                                              "Lasst Euch nicht verführen
                                               Zu Fron und Ausgezehr."

                                               Não se deixem seduzir
                                               Para o jugo e opressão.

    Mas a tarde de fúria ainda não terminou, pois HD tem fôlego para o longo e compungido "Operário em construção", de Vinícius de Moraes,

                                                 "Tudo, tudo o que existia
                                                 Era ele quem o fazia
                                                 Ele, humilde operário
                                                 Um operário que sabia
                                                 Exercer a profissão."

e o tom da voz se eleva a medida que o operário toma consciência de sua ação no mundo das coisas as quais ele cria e depois acabam por condicioná-lo, e a voz se estremece quando o operário enfrenta os delatores e sofre nas mãos dos agressores e não se acalma quando o operário está diante do patrão a prometer-lhe mundos e fundos, "Dar-te-ei todo esse poder", e o operário diz "Não!"

                                                "-Loucura - gritou o patrão
                                                 Não vês o que te dou eu?
                                               Mentira! - disse o operário
                                               Não podes dar-me o que é meu."

    E o poema finda numa apoteose de auto-consciência e de superação, quando o operário constrói a si mesmo! E depois HD está mais calmo, já tendo deixado vazar toda a sua fúria! Vez ou outra é preciso descarregar protestos líricos, senão pode-se não poupar orelhões e pára-brisas!

    E, mais relaxado, HD reclina para ouvir a leitura de "A Bomba", de Carlos Drummond de Andrade, feita por Alfonso, ao som de Mozart.

    A figura se destaca nos degraus da arena, recortada contra o quadro crepuscular de um sol a agonizar e mantém um silêncio, entre solene e teatral, enquanto os violinos e os violoncelos se arrebatam, na sinfonia de Amadeus Mozart, e aAlfonso abre a antologia na página exata.

                              "A bomba
                              é uma flor de pânico apavorando os floricultores (...)"

e ainda um vento sem escrúpulos vai rodeando por entre as vestes das garotas que brincam no playground, e ainda dispersando folhas secas de degrau a degrau, ainda desfazendo os penteados das senhoras que acompanham as filhas, ainda vasculhando os papéis, aquelas folhas com símbolos gráficos, que repousam aos pés de HD que, encolhido, ouve o poema e a sinfonia num enlace só.

                                  "A bomba
                                  é miséria confederando milhões de misérias (...)"

e a voz pausada e ressonante de Alfonso segue os compassos dos acordes sinfônicos, num contraponto de palavras, numa cadência de queda, a queda da bomba.

                                "A bomba
                                amanhã promete ser melhorzinha mas esquece (...)"

e a admiração pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, o autor deste poema "A Bomba", publicado em "Lição das Coisas", é o que brilha no olhar e nos gestos de Alfonso, segurando a antologia com a mão direita, enquanto a esquerda gesticula com anéis de fumaça, ao amparar entre os dedos o cigarro aceso.

                                                    "A bomba / é podre."

e Leir Macedo tem olhares presos aos degraus e suas folhas secas, e o Soares olha mais para dentro de si mesmo, e HD observa o poente às costas de Alfonso, daquele ângulo, imponente e no papel de maestro, da sinfonia e do fim da tarde, e o escritor M. mantém-se em estática e extática meditação, talvez a contabilizar os prejuízos da bomba.

                                                    "A bomba / fede."

observa-se a movimentação tardia de alguma perplexa sombra, a imaginar, consigo mesma, do que se trata, quem são aqueles tipos ali nos degraus da arena do parque ecológico, e a afastar-se, carregando seu casulo de timidez.

    E aplausos estremecem o fim do dia.





Noite de sábado, 05 novembro - lua crescente


  Olá Bianca, minha querida,

   Muitos abraços!

    Ah, Bianca, devíamos agora estar juntos, mas a tua indisposição... bem, então estou aqui lendo e relendo as tuas cartas, sentindo o perfume que me deixa excitado, e admirando a imagem poética das "borboletas no estômago".

    Admirável a tua carta! Finalmente estamos conseguindo nos entender - ainda que tu compliques demais as coisas. Sabias que eu te amava desde os e-mails, amava a tua pessoa - não me importava se encontraria uma morena ou ruiva, alta ou baixa, feia ou bonita... mas amei a tua simpatia desde o início! Gostei, não do teu físico, mas da tua presença e companhia. Hoje gosto de tudo: da amiga, da poesia e da mulher.

    Mas repito que complicas muito as coisas - tendes a superdimensionar os fatos, as falas. Claro que, ontem, achei muito pedante, de tua parte, ficar exigindo a ida ao cinema, mesmo eu dizendo que estava sem grana, mas entendi a tua vontade - ainda que em duas ocasiões tenhas recusado convites meus (para o lançamento do livro do Rafael e para a peça teatral) mas não me senti ofendido ou magoado, tu é que se sentiste culpada, por pressão da própria consciência (que, tal nas personagens de Dostoiévski, é o teu próprio carrasco)

    Fora isso, Bianca, tens a mania de te autodepreciar, ou superestimar os outros em qualidades que desejas para ti mesma.

    Bianca, não sei porque não confiaste em mim desde o início. Eu abri o jogo logo de imediato, expus minhas cartas na mesa, abri minhas defesas, fiquei todo vulnerável.

    Mas eu te amo, e quero estar ao teu lado.


                                                                              Do teu Stevam






    Stevam Lucena chega um tanto atrasado, afinal podia usar a desculpa de morar fora da capital, e eis que Bianca Maria está à mesa diante de Michael Bishop, acompanhado por sua Carolina, loira e sorridente, mas Bianca está toda concentrada num artigo do Suplemento Literário, e se arrepia quando Stevam se aproxima e sussurra em seu ouvido, "Oi, querida."

    Realmente trata-se de um banquete, oferecido por Michael e outros amigos, onde pretendem debater a Fidelidade, tema por demais polêmico, e Michael adora justamente isso: a polêmica.

    Confortável, ao lado de sua amada Carolina, Michael desculpa o atraso de Stevam, pois existem outros em semelhante falta, pois visto que HD, por exemplo, ainda não chegou. "Mas iniciaremos assim mesmo", e Dalton, no outro extremo da mesa, concorda. Ao lado de Bianca, que já concluíra a leitura do artigo, e agora se reclina sobre a sua mão, para beijá-la, e não apenas deposita em sua pele um beijo molhado, mas também se inclina sobre o braço dele, com olhares de devoção.

    É um casal apaixonado, o que todos vêem. E outras mulheres se aproximam, e ocupam as cadeiras ao lado, convidadas por Michael, e HD finalmente chega, distribui saudações e ocupa o outro extremo da mesa, e um garçom serve a água mineral que Stevam Lucena solicitou e todos aguardam o "boa noite a todos!" a ser proferido por Michael, a deslizar olhadelas para todos.

    E aquele banquete logo se torna uma verdadeira terapia em grupo, "há meia fidelidade?", e Dalton ergue a bandeira do homem fiel, atitude da qual muito se orgulha, e uma das mulheres começa, do nada, a narrar as infidelidades de seu ex-marido e logo está vertendo lágrimas para o assombro de todos, que perfeitamente entendem, "mas a mulher precisa é de um analista", sussurra alguém, mas tudo bem, apenas não podem haver exageros, e Michael acena a HD, com o seu 'olhar de esfinge', como insiste o próprio Michael, e o crítico começa a ler a carta de um traído e todos esperam a carta de um marido corneado, mas trata-se, muito surpreendentemente, da carta-testamento de Getúlio Vargas, que suicidou-se em agosto de cinqüenta e quatro, "e quem o terá traído? As forças nacionais? As superpotências? As classes dominantes?", HD insiste em levar a discussão para o lado político, a traição no jogo político, mas em vão, a terapia continua, e Bianca deseja ir embora, a alisar sutilmente o braço de Stevam, mas não sem antes de responder a uma pergunta de uma das convivas, "vocês de conheceram aqui nos banquetes?", e ela responde, "não, nos conhecemos na internet.", "oh, que interessante", "se fosse você eu tentava, é muito bom", Bianca arrisca-se até a um conselho, pois percebe-se que aquela ali não é mulher de ficar sozinha, numa noitada de quarta-feira.

    E, jurando fidelidade, Stevam Lucena e Bianca Maria atravessavam a Savassi e rumam direto para a Praça da Liberdade, ela a concordar que fidelidade é muito importante, que está feliz em estar ao lado dele, mas que tem receios, "acho que não ficaremos muito tempo juntos", ela diz, e ele estremece, "mas você já está prevendo a nossa separação?!", e passam diante do Palácio e se sentem pequenos diante da imponência das palmeiras e notam o banco onde se conheceram, e o Rainha da Sucata, e sentam-se no banco junto aos quatro amigos escritores. Bianca Maria senta-se entre Fernando Sabino e Otto Lara Resende, sentados, e Stevam Lucena permanece em pé, ao lado de Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino, ambos em pé, e temem voltar ao tópico 'separação', ainda mais porque acabaram de se encontrar e ainda nem se conhecem, "e quem se conhece? Você se conhece?", ela diz, "quanto tempo é necessário para se conhecer alguém? Seis meses? Um ano? Dez anos? A vida toda?", ela continua, e ele mantém um silêncio, petrificado, ao lado das estátuas, ao brilho do vulto envidraçado da Biblioteca Estadual.

    E descem a rua da Bahia, pesarosos, acompanhando as passadas de outros casais, os brilhos em outros olhares, os gestos de carinho e aproximação que todos ousam, e muitos se enganam e se perdem, quando o amor não é amor, mas exigências de um algo mais, e nunca estamos saciados.

    E é na rua Espírito Santo, após atravessarem as calçadas boêmias do Edifício Arcângelo Maletta é que o assunto surge, não se sabe como, e ela se agarra ao braço dele, e ela não quer que ele morra e diz que se ele morrer, ela se deitará junto ao cadáver dele, e ele então reprova estes exageros dela, "essa vontade que você tem de chocar as pessoas, Bianca! Essas roupas todas indiscretas, sei lá, querendo chamar a atenção dos outros, sem mais nem menos! Atitudes que eu não entendo", e é o que basta para faísca de incêndios e discussões, e ela, de início, se silencia, num amuo, mas ele diz, "igual aquela de mal eu chego à sua casa, você me levar para o seu quarto", e ela não agüenta, "mas é porque confio em você, ora! Acho que vou levando qualquer um para o meu quarto?!", e ele fica perdido, "ora, não é isso, não quis dizer isso, mas é como se você tivesse daquele jeito para a sua mãe, como um desafio diante de sua mãe, a dizer assim, 'mãe, eu levo para o meu quarto quem eu quiser', entende?", não, ela não entende, e ela está se sentindo uma rameira, ao lado dele, quando estão diante do vulto sombrio da igreja de São José, e aqueles conventos, sabe-se lá, e essa cena vai se repetir dali a um mês, mas por enquanto ela está a dizer, "é por isso que eu digo que nós vamos nos separar logo. Temos gênios muito fortes, não aceitamos a opinião do outro", e ele concorda e se desespera, e pensa consigo mesmo, "mas essa mulher já está pensando em me abandonar! E me agride justamente porque me ama, porque eu consegui, a duras penas, que ela me amasse! E ela se ressente disso, pois nos planos dela não havia nem uma menção a um súbito e ardente amor por minha pessoa!", ele deixa os passos seguirem e deixa-se levar pela noite amena, e ao seu lado um corpo de mulher, mas uma mente e um destino distantes.



 [...]



continua ...


LdeM

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