segunda-feira, 7 de novembro de 2011

... e MAIS Capítulo 5 ...

[...]


 

    Estavam nos portais da igreja, na observação elevada do perfil tentacular da cidade. A modesta igreja, patrimônio histórico, onde JB organizava saudosos saraus.

    - Nos conhecemos aqui, lembra?

    - Você achou que eu estava declamando em latim...

    - Quando? O sarau... Na época da invasão...

    - Invasão?

    - É, a invasão do Iraque. Abril de dois mil e três. Lembro que eu li um poema sobre a guerra. E também uma tradução da letra "Dogs Of War", do Pink Floyd. Soou como o clássico dos clássicos...

    - Enquanto isso a cidade...

    - É, a cidade se esparrama. A periferia é esse oceano cercando a ilha do centro histórico.

    - Vamos sentar... Ah, o seu rancor diante da periferia!

    - Não é rancor. É pesar. A periferia abriga a falta de, de qualquer coisa! Não tem nem agência de Correios!

    - Há esperança.




    - Enquanto houver esperança, não vai haver mudança. Cada um na sua, erguendo seu barraco, sofrendo a exploração imobiliária, adaptando-se a distância dos centros de poder, acostumando-se com a indignidade do transporte público, que você sabe bem, parece mais é uma carroça transportando gado...

    - Você fala da cidade como se fosse um inferno.

    - Nunca me acostumei. Minha família veio dos subúrbios, e foi caindo até a periferia. É algo de bucólica, tirando o apito do trem, que rasga o peito...

    - Pensam iguais a você. Não abraçam a periferia, não a transformam em outros centros.

    - Falar é fácil. Ou esperar a prefeitura distribuir regionais. Mas o povo é quietista mesmo. Ou fica xingando na fila do ponto de ônibus. Reclama dos itinerários e horários. Mas e daí? Xingar o motorista resolve? Cuspir na cara do cobrador muda alguma coisa? Não! Vamos fazer um abaixo-assinado e levar lá na empresa. Mas aí quem vai topar? Quem ousa? Se você conseguir cem assinaturas é muito! O pessoal não pensa em ação coletiva! Aceitam que um cara engravatado lá no escritório da empresa (um cara que certamente não usa ônibus) decida onde e quando vai passar os coletivos!

    - Fico pensando no que você faria se estivesse no poder...

    - Tá que você é um cara lírico, mas sabe bem do que eu estou falando. Do nosso realismo fantástico. Nem nos contos do Rubião!

    - Sei...

    - Sabe o que disse o Calvino lá nas suas "Cidades Invisíveis"? Que o inferno dos vivos é aqui mesmo. Podemos aceitar ser parte deste inferno, até ao ponto de esquecê-lo. Ou tentar achar alguém, ou algo, ou algum lugar, que, no inferno, não seja inferno e tentar preservá-lo e compartilhá-lo.

    - Espero que você encontre este "não-inferno no inferno".

    - Você é um cara que eu encontrei. Você e a sua poesia.

    - Muito agradecido.

    - É um aglomerado de existências pululantes. Esta cidade. O dia todo trabalhar, depois ônibus cheio, televisão vazia e dormir. Cidade-dormitório, como vive repetindo o Alfonso. Onde o espaço de socialização e memória? Os museus fecham nos fins de semana, então vamos assistir os programas dominicais de auditório. Ou quando não nos deparamos com um verdadeiro "dirigismo cultural". Os coordenadores dos centros culturais da periferia não são profissionais que se destacam na periferia! São indicações dos centros, por nomeação ou filiação política, por qualquer coisa, menos mérito.

    - Você seria um destes líderes por mérito?

    - Nunca me candidatei. (esboço de riso, em vão) mas sério, alguém há-de achar mérito em mim. Nem que seja depois de morto. Acho que o Michael confia em mim. Ou o Aurelius. Daí este convite.

    - Você é estranho. Sofre por não ser o messias.

    - Não entendi.

    - Você bem que gostaria de ser o interventor. O que guiaria as massas rumo ao novo mundo de transformações e igualdade social.

    - Não tenho ambições políticas.

    - Então, o quê?

    - Apenas não aceito o mundo tal como é. É um crime ao céu aberto! Nunca encontramos tanta gente doente, transtornada, enfartada, estressada, faminta, desesperada, desocupada, sei lá, desamparada...

    - Mais eis as portas da salvação. - e HL aponta o polegar por sobre o ombro.

    - Pois é. Aí todos correm para a arca de Noé. As igrejas ainda são restos de fraternidade-muleta e relicários de um Sentido-mor.

    - A fraternidade e o Sentido que os humanistas não encontraram.

    - E por isso estão errados? Por desejarem organizar a vida dos seres humanos por leis humanas, sem recorrer aos deuses hiperbóreos? Por quererem uma sociedade sem superstições e cultos a seres outros ou destino implacável? Por quererem que nós mesmos aceitemos nossas responsabilidades, sem se humilhar de joelhos?

    - Mas sem os deuses, os homens perderam os limites. Agora basta apertar um botão, e adeus planeta azul!

    - Mas aí, você me desculpe, mas há uma confusão. A ciência é que aproveitou para tirar a máscara. A ciência se aliou ao poder tal uma prestativa mercenária. Eu me desencantei da ciência há muito tempo. Queria estudar Química, não sei se já te contei isso. Mas estudando Humanas, pude entender. A ciência não é uma coisa imparcial, é um campo de conhecimentos que visa dominar. Pesquisar, rotular, catalogar e dominar. Pretende ter toda a existência em seus bancos de dados. Cada primata, inseto e ameba. Daí este furor louco de conhecer: porque conhecer é poder. E é poder pelo poder.

    - Você se esquece que sempre existiram cientistas com forte orientação humanista. Um Einstein, por exemplo. Que se preocupava...

    - Eu respeito um Einstein, por que não?

    - Você não deixa eu falar! Quero dizer que o Einstein sempre levou a ética em consideração. Veja as cartas que ele trocou com pensadores, com um Freud, por exemplo. Sempre a inquietação com o que o poder faria com as suas descobertas. Mesmo que o cientista seja isento, suas pesquisas podem servir para objetivos reprováveis...

    - E aí um Santos Dumont se mata, um Nobel fica com crise de consciência...

    - O cientista é um pensador, um pesquisador, mas alguém paga a conta. Alguma instituição, o governo, um ditador...




    - Você vê, Hélio, como é difícil ser lírico num mundo desses! Um mundo de especialistas. Especialistas em versos, especialistas em itinerário da linha Barreiro-Cidade Industrial. Sabendo cada vez mais sobre cada vez menos. Especialista em pulmão, nada sabe sobre coração. Especialista em software, nada entende de hardware...

    - Perde-se a visão de conjunto, não é? Daí a nossa preocupação com holística, com o compartilhar informações, com...

    - Com harmonia, sintonia, sinestesia!

    - Ah, você é difícil, Hector! Você e seus monólogos. Devia era escrever um livro e encher as páginas com tudo isso. Para não descarregar nos outros...

    - Mas eu vou escrever um livro. Mil páginas sobre o nada.

    - Taí um troço que eu queria ver.

    - Nada de nada. Nada daqueles enredos mirabolantes, nem coisa de dramalhão, e muito menos suspense de best-seller. Só as nossas vidinhas ridículas desfilando pelas ruas...

    - "Uma flor nasceu na rua!"

    - "Garanto que uma flor nasceu."

    - "É feia. Mas é realmente uma flor."



    No bar cultural, uma melodia popular, "a esperança equilibrista sabe que o show deve continuar", enquanto os garçons se preparam para a noite, e servindo, de início, sorrisos aos primeiros convidados, sim, estes dois poetas que chegam.

    - Ah, sim, claro, o Aurélio avisou. Podem ficar á vontade. Prato especial da noite, serviremos espaguete.

    Na segunda mesa à direita, duas mocinhas trocam olhares. Ao lado, acompanhado de um menu, junto ao corredor, um casal em sigilosas meias-palavras, e junto aos toaletes uma mesa esquecida, justo a que os bardos ocupam agora. Parece que o dono do bar é fã do Chico Buarque, pois a trilha sonora continua a mesma.

    Enquanto Hélio Lúcio cuida de ir logo ao lavabo, HD passeia os olhos pelo ambiente e deixa-se povoar de lembranças. Ali, ele conversara ao ouvido de Simone, "não a de Beauvoir", ah, como ele podia ouvir aquela voz! A voz quente da morena ambiciosa! E ali, naquelas mesas, ele, HD, rabiscara poemas para Elen, ao deixar-se embalar pelas canções que Edgar interpretava, ou ali em conversas com Aurelius, sobre platonismos e lendas.

    - A questão da aparência e da essência. Platão e Alberto Caeiro. "A vida é um jogo", se você já leu "Catcher in the Rye", onde o espaço da liberdade?

    - No próprio jogo está o espaço de liberdade. - respondia Aurelius.

    E HD não se sentia tão cínico a ponto de legitimar o jogo. - O problema é que eu sou obrigado a jogar.

    - Pode também se recusar.

    - E aí sou um marginal. Vivo dos restos que caem das mesas dos que jogam.

    E na mesa ao lado, um outro poeta troca considerações com uma professora de antropologia. Índios, cultura indígena, invasão cultural, Jean-Paul Sartre, a excursão de Sartre, a arte pela arte, em fragmentos que HD logo distraía, a perderem qualquer sentido. Sim, aquele falatório de intelectual e que não chega a lugar algum, coisa que outro pensador ironizava (quem mesmo? Heidegger?) e que Lênin odiava, "essa falação da inteligentsia".

    Mas, ora, a própria conversa entre HD e Aurelius não é também uma falação?

    Não importa. De repente estão falando sobre lendas e outras quimeras.

    - Já ouviu falar da lenda dos trinta e seis? Se não me engano é judaica. Coisa de Cabala. Que existem trinta e seis Eleitos, que são os tais. Tipo assim: Deus olha lá de cima e logo vê os Eleitos, e por amor aos tais, Ele, o Almighty, não destrói este pobre pardieiro.

    Aurelius não sabia. Daí, HD continuar. - É como se fossem os supra-sumos da humanidade. Os pilares do mundo. Deus pensa em destruir o mundo, então Ele olha e pensa, "se eu fizer isso eu perco também esses Sublimes, então por causa deles eu vou ficar na minha". Daí dependermos destes trinta e seis. Que estão lá se sabe onde! Cada um num canto, nos vários continentes. E nem se conhecem, e nem sabe que são tão especiais assim. Mas é de se pensar. Em Sodoma e Gomorra não tinham nem dez que valessem a pena!

    - E como Aurelius era todo atenção, HD passava para outras viagens. - Nem sempre a Terra, ou Gaia, se preferir, foi planeta-colônia-penal. Os humanos nativos viviam num certo comunitarismo, um "comunismo primitivo", tipo diria um Marx, devido a pouca técnica e a inexistência de excesso de produção e tal.

    - Sei.

    - Então houve uma interferência. Não terrestre. Tipo, os Deuses, os Anjos, os Sábios, não se sabe se matéria ou espíritos, que vieram preparar a Terra para receber os exilados de outras colônias da galáxia. Seriam exilados destinados a longa evolução, sei lá, por reencarnações sucessivas, imagine!

    - Sim.

    - Tal interferência gerou desequilíbrios e interpretações as mais variadas. Surgiram as crenças e as guerras, e as castas e os escravos. Assim dois planos de evolução, digamos assim, se encontram lado a lado - o dos nativos e dos exilados - entrelaçados.

    - Impressionante.

    - E sabe porque todas estas lendas persistem? Por que não temos todas as respostas! Pode somar todos os pensadores, de materialistas, humanistas a transcendentalistas! Pode somar Marx, Engels, Proudhon, Poe, Freud, Darwin, sei lá, Nietzsche, esse pessoal, também o Sartre, o Habermas, e quem mais for, pode somar que ainda não explica. É como se houvesse ainda algo mais, assim nos bastidores. Como se não construíssemos nossa história, mas como se fôssemos uns fantoches!

    - Percebo que a questão da liberdade realmente te atormenta.

    E agora é Hélio Lúcio quem retorna. Mais fisica e concretamente. Tem peso, cheiro e ocupa lugar no espaço.

    - Você disse alguma coisa?

    - Eu? Não.

    - Ah. Bem! Pensei que tivesse falado...

    - Vamos começar. Tenho aqui uma antologia do Pessoa.

    - É o guia necessário.

    Seguem-se declamações. Fremente, HL solta a voz. Exaltado, HD despeja versos. Depois estão até suados. Recebem aplausos, recebem tapinhas nas costas. Depois são servidos. Espaguete e molho.

    As mocinhas ali sozinhas na mesa. Refri e canudinhos. HD vai ousar uma aproximação. - Sou Hector, e esse é o poeta e meu amigo Hélio Lúcio. - e bate na testa - Mas infelicidade minha! Não sei o nome das senhoritas!





    Tratava-se de um convite duplo. Stevam Lucena assim convidado por Michael Bishop, pessoalmente, no banquete, mas também por Marco Aurélio, o "Conde", via e-mail, muito cordial, onde sua presença (a de Stevam) proclamada deveras 'essencial', e semelhante reconhecimento não podia ser ignorado.

    Uma noite poética no matriz, onde encontra Marco Aurélio e, ao seu lado, Márcio, o "Barão", em confabulações junto ao bar, lançando olhares aos poemas colados nas paredes de tom arroxeado. Vários textos de autores clássicos e alguns iniciantes. Mas os dois vultos sombrios conversavam sobre influências pagãs na liturgia católica, e depois de certa indagação de Stevam Lucena, já a discussão sobre a gramática do latim, no que Márcio, erudito lingüísta, aproveitou para considerações de fundo místico e sócio-cultural, até a chegada de Túlio, o "Penseroso". E eis os quatro cavaleiros do (sombrio) apocalipse!

    Resolvem acomodar-se no bar interno, junto a pista de dança, e planejam a participação do quarteto na noite poética, enquanto Stevam Lucena olha ao redor à procura do vulto familiar de Bianca Maria, visto terem combinado um encontro ali, em penumbroso sarau, antes de seguirem para uma festa promovida pelo "Taz", o fiel amigo Luiz Meira, num barzinho do Floresta. E realmente, meio a uma conversa sobre existências passadas, guiada por Túlio, o vulto esperado aparece, a deslizar no corredor. Sim, é ela! E quando, "Com licença, meu senhores", Stevam se levanta e segue a sua musa, encontra-se diante do Michael bishop, recém-chegado, "Olá, meu caro! Acabo de ver a tua donzela aí no corredor!"




    Bianca Maria está atenta aos poemas colados nas púrpuras paredes, especificamente um de Henriqueta Lisboa, e lendo com olhos e lábios, e Stevam Lucena se aproxima, assim um vampiro a espreitar sua vítima, "Oi! está perdida?", e ela é apresentada aos cavaleiros sombrios, "ora, mas a gente se conhece!", ela diz, e ele se desculpa, "Ah, mas é claro, que cabeça a minha! Claro que se conhecem, e eu é que sou o neófito aqui!", e Bianca Maria abraça os amigos, enquanto um acústico de música popular é anunciado.

    De fato, um cantor e seu violão ocupam o palco e as músicas se sucedem, mas Stevam Lucena verte toda atenção a cada inspiração e expiração de Bianca Maria, enquanto Marco Aurélio ocupa-se em definir como será a apresentação do "quarteto fantástico", "Meus caros, acho melhor alternarmos, com dois poemas para cada, e eu primeiramente, para anunciar nossa existência, e depois o Márcio, o Stevam e o Túlio. O que acham?", e eis a aprovação unânime.

    "Porcos!", é o grito de Conde ecoando por todo o palco, pista e bar, e seu poema visceral contra os acomodados, e Barão entrega-se a sua declamação de "Grito do Cego", com os olhos vedados e de joelhos, "Rubra, aberta à mostra A ferida está exposta" e "Perdoe-me gritar tão forte Senhor, contra a minha sorte", e Morpheus, o nosso Stevam, com o famoso poema de Hélio Lúcio, "Existências vãs!", e senta-se ao lado de Bianca Maria, naquele mesmo banco onde se declararam na noite de paixão, ela, a doce marroquina, ele, o sombrio poeta, enquanto Penseroso lê seu poema, já célebre, sobre a vida violentando a alma, e Stevam não pode conter os arrepios e algum êxtase com as performances do Conde e do Barão, em presenças imponentes, enquanto ele e Penseroso são figuras discretas, sem qualquer "imponência", assim magros, apagados, quase invisíveis, e diz ao ouvido dela, "o dia em que eu declamar meus poemas assim, eu me sentirei realizado! Quem me dera uma voz dessa, um gutural desse, olhe este gesto!", e sempre a invejarmos alguém, assim como ela demonstrará em futuros saraus, diante das mocinhas poetas que encantam e seduzem, mas agora ela está aconchegada ao corpo dele, quase abraçados, e é o momento de Morpheus novamente, quando ele mescla sonetos de Augusto dos anjos com sonetos de própria autoria, antes de Penseroso encerrar a participação do quarteto com versos de ser fragmentado e mutilado, "perdidos entre o pensar e o sentir!"

    É o momento de mergulharem na noite. Stevam Lucena oferta suas despedidas a Michael Bishop, que muito se perde em elogios, e encontra Márcio e seus toddinhos no bar, muito interessado em seguir para a festa anos 80 (exatamente a festa do Taz), o que não desagrada ao casal, visto Márcio morar no Floresta e conhecer os itinerários de coletivos para a região. Voltam à Augusto de Lima, agora uma avenida deserta e melancólica e o ônibus esperado não se atrasa, até porque comentam, principalmente Bianca Maria e Márcio, sobre bandas dos anos 80, as promessas para a festa, e continuam o assunto quando se acomodam na parte de trás do coletivo, ali Stevam, atento e de óculos escuros, ao lado de Bianca, animada e sonhadora, e Márcio diante do casal, costas voltadas para o corredor, onde desfilam garotas em trajes noturnos , após embarcarem à luz da Praça Sete.

    Stevam Lucena reconhece o bar, o famoso "Lobo Mau", onde já acompanhara partidas de bilhar entre Oto Marques e Erik, o "Ruivo", em tempos de outrora, ali no nível inferior, realmente 'underground', onde as mesas, com seus verdejantes panos, atraem os jovens às disputas ora amistosas ora bélicas, mas que até o momento não deixou nenhuma vítima, e estão diante da igreja e sua torre, depois de descerem na Chateubriand, nas imediações do teatro, e aspirarem o extasiante ar noturno, naquele bar que evoca subúrbios de uma Paris imaginária. O Taz é o anfitrião à porta, ao lado de Rafael Santos, o "Vampiro", a essa altura já um grande amigo de Márcio e logo se afastam, aos abraços, para as sombras da pista de dança, e Stevam Lucena ainda a conservar o óculos escuro, enquanto Bianca Maria vai abraçar amigos e beijar amigas.



    No bar, ele solicita as garrafas de água mineral, e retorna a mesa e ela o espera, enquanto a trilha sonora de saudosos anos 80 derrama-se sobre os jovens, a dançarem ao som de New Order, ou Depeche Mode, ou Cure, e ela está um tanto distante, a recusar os carinhos, "O que há, querida?", ele pergunta, língua dentro daquela orelha, onde oscila um brinco em formato de cruz negra, e ela, meio aos arrepios, "Estou de greve, querido!", e cruza os braços, com ar sarcástico, "Mas o que eu fiz?", ele em pleno assombro, "Você dizendo que eu sou fácil, que te levo pro meu quarto, e hoje nem beijo você vai ter!", "O que é isso, Bianca? Você está magoada? Não quis ofender, só entender as suas atitudes! Venha cá, sente-se junto de mim!", mas Bianca Maia prefere entregar-se a dança junto as amigas, e com que animação!, e com que sedução!, ao som de dançantes do Cure, e até o Taz já mergulhou no agito da pista, encharcado pelo delírio de "Lovecats".

    Solitário, diante de duas garrafas de água mineral, notando os vultos de Márcio, o Barão, e Rafael, o Vampiro, junto as mocinhas e os brilhos das taças no bar, Stevam Lucena se deixa seduzir pelo bailado de Bianca Maria junto as amigas e nada encontra naquela que se diverte, ou esforça-se por se divertir, daquela que sofre e almeja a auto-destruição, e ele pensa no que há de errado, no que há de contraditório, talvez uma peça a faltar no quebra-cabeças, não somos tão simples quanto pensamos.

    No entanto, finda a canção esfuziante, ela retorna para os seus braços e parece rir-se da atitude de minutos antes, pois acomoda-se em seu colo! Toda aquela doçura e maciez e euforia de corpo de mulher repousado sobre as suas pernas! Todos aqueles beijos e suores e aromas envolvendo seus lábios e pele e narinas num êxtase profundo num mergulho no prazer! e era tudo uma brincadeira, uma falsa resistência de mulher, um protesto de sua honra ferida! Tal aquelas mulheres de Atenas se recusando aos seus maridos! E agora ela voltou, a sua Bianca querida, que antes não passava de um nome e uma rosa rubra numa página de e-mail, agora a materializar-se em promessas de prazeres, com este fôlego que falta, com este suor que exala perfumes de roseirais, com este brilho no olhar que, ao contrário de Medusa, não petrifica mas derrete os corações.

    E uma noite plena, acompanhados por Smiths, Cure, Joy Division, Siouxsie and the Banshees, New Order, Depeche Mode, Biquini Cavadão, Sisters of Mercy, Legião Urbana, Talking Heads, Simple Minds, Chemical Brothers, Bauhaus, Dead Can Dance, Echo and the Bunnymen, Claire Voyant, Plebe Rude, e outras mais, tantas bandas que Stevam Lucena pouco conhecia, desde aquela tarde cinzenta em Tiradentes, cidade interiorana, onde em excursão com a turma do terceiro ano, todo aflito a espera do vestibular, em vão, pois Sônia Regina morrera e então, e ele ouvia Cure no walkman, e um grupo de jovens em vestes sombrias, ali três rapazes e uma mocinha, ouviam um som deprê, vazado de um aparelho igualmente soturno, que descobriria depois ser "Bela Lugosi is dead", do Bauhaus, mas naquele momento não dispensaram qualquer atenção, todos alheios, ou irônicos, com suas poses de "estou de luto, tudo está morto", e eram jovens da excursão, que freqüentavam as noitadas do Eldorado, mas não lhe deram atenção, e ele se isolou, e assim, nunca pôde imaginar que aquelas bandas animassem festas dançantes, visto carregarem tanta melancolia e até desconforto; mas ali todos parecem se divertir, e Bianca Maria, ao seu lado, é toda suor e ânimo, e aquela mocinha depressiva não existe mais, "eu te amo, cara!", ela grita ao seu ouvido, "obrigada por você ter vindo!", e Stevam Lucena se perdia numa alegria perplexa.

    E quando a festa acabou (the party is over...) é que desceu a depressão, sim, depois da euforia vem a melancolia, qualquer dignóstico de "distúrbio bi-polar" diz isso, e os jovens se jogam nos sofás, junto ao bar, e se amontoam, e Stevam Lucena tem ao seu lado, à esquerda, o corpo quente da melhor amiga de Bianca, a morena e sedutora Mônica, e diante dele, o poeta decadente, também amigo de Bianca, o Signore Fillippo Manzini, de clara ascendência italiana, e que Stevam já encontrara, em ocasiões de outrora, em eventos poéticos no matriz, ao lado de Miguel, o "Arcanjo", e do sonetista LL, um decadente muito cheio de si, aliás, com seus versos sobre "mergulhado no desprezo de si mesmo, ó glória do mundo!", esse Manzini, e Bianca sussurra o mesmo, ao aconchegar-se a Stevam, "Ele está querendo brilhar diante do sol", e quem poderia imaginar isso?, afinal Manzini nunca lhe concedera atenção!, mas ao voltarem, abraços dados, rumo a estação central do metrô, no que restou da Estação Ferroviária, Bianca Maria revela um "antigo affair" com o tal poeta decadente e finalmente é possível certa compreensão, "ele estava disputando contigo, e nem deste muita atenção! Ele não vai te perdoar!", ela tece semelhantes considerações, e está certa, pois Stevam Lucena será solenemente desprezado pelo italiano, mesmo diante de Miguel, o "Arcanjo", que, em vão, ainda há de arquitetar uma forma de apaziguar o mal-estar entre os literatos.

    As despedidas se mostram sem traumas, exceto pelo aviso, até sério, de Mônica, "Cuide bem da minha amiga, hein", o que deixa um fardo sobre os ombros de Stevam Lucena, mas logo amparado pelo abraço morno e sonolento de Bianca Maria, enquanto sobem a Chatteaubriand e descem rumo ao viaduto Santa Tereza, num desvio à direita, entrando na Sapucaí, a contemplarem o prédio da Estação e o "skyline" de Belô, "Parece um imenso cenário, uma paisagem daquelas de estúdios cinematográficos, não?", ele pergunta, enlaçado no calor do corpo de Bianca, que olha à distância um lento amanhecer, um brilho tímido se disseminando nas cúpulas do firmamento, "Parece um brinquedo daqueles de montar", ela diz, abraçada, unida a ele, e lá adiante os caules de concreto e aço, as janelas que se iluminam, o trânsito que vai brotando nas ruas, "É como se assistíssemos um filme, e tudo isso fosse o telão", e ele busca algo no olhar dela, o que será?, e ela observa a colina do Floresta, a igreja, o viaduto, o nascedouro da Amazonas, a promessa de um novo dia, "Vamos", ela sorri, adiantando os passos, às cinco e onze da manhã, rumo ao metrô, como já relatado.

    Aliás, até semelhante hora, na festa permaneceram, apesar de todo o sono, devido aos horários do metrô, cujo funcionamento se inicia às cinco horas, sejamos claros, e eis que já encontram-se acomodados, lado a lado, e as pálpebras se fecham, e se passa a Lagoinha, e depois o Carlos Prates e ela descerá no Calafate; e eis que ela se levanta, em triste despedida, e encaminha-se para a plataforma, e a porta se fecha, e ele a observa se distanciar e então parar e olhar para ele, e ele a sentir-se tal um daqueles soldados que seguiam para o front de guerra, observando suas mulheres que ficavam, e acenavam, e choravam na estação, e eles seguiam para a guerra, mas, para a sorte de Stevam, ele agora seguia para casa.




    Finalmente em cartaz a sombria animação que Bianca Maria tanto aguardava, desde aquele comentário lá na Praça, quando Stevam Lucena engolia em seco amedrontado diante da atroz cicatriz que ela exibia, e a tal animação assinada por Tim Burton, aquele mesmo do "Mãos de Tesoura", diretor do qual ela é fã confessa, pois vive citando cenas e falas dos filmes, onde fantasmas se divertem ou vivem em estranhos mundos soturnos, e agora eis uma noivinha pra lá de morta...

    Ali está Stevam Lucena ao pé das gigantescas chaminés da antiga fábrica de cimento, aquela há tempos implodida, a liberar espaço ao shopping e seu amplo estacionamento, com veículos regurgitando casais apressados e jovens de olhares brilhantes e ávidos, e também mães com bolsas trêmulas e pais com carteiras cheias de cartões, e Stevam ali espera a chegada de Bianca Maria, com suas vestes de luto, da última moda, com uma imensa cruz reluzente, além de brincos em forma de pequenos crucifixos e uma sombrinha negra, em sorriso irônico, e logo se abraçam, aquecidos, por um momento, no frio da noite.

    "Demorei, querido?", ela se aconchega a ele, a responder, "Cada momento sem você é um martírio", e ela esboça um sorriso, "Mas é esse trânsito horrível, sabe...", e ele a aperta e aperta, com os lábios sondando a nuca perfumada, "Que saudades, que saudades!", ele murmura, após quase trinta e seis horas desde a cena no metrô, quando ele, soldado seguindo para a guerra, recebe as despedidas dela, a
mulher a acenar na estação, e a saudade não se contabiliza nos mostradores digitais nem no lento mover dos ponteiros, mas no grau térmico de ânsias febris, "Então? Vamos entrar?", ela diz, depois do beijo, e ele a imaginar se não estaria sonhando...

    Mas é verdade! Lado a lado nos corredores do shopping e ela é um corpo desejado a ampará-lo e a ser amparado, e os passos procuram uma sincronia e as dúvidas parecem dissolver-se, pois "ela me ama", ele pensa, e sente, e "ele me quer bem, ele me ama", ela certamente murmura consigo mesma, mas Bianca está cantarolando a melodia de uma canção do Smiths, a qual Stevam não reconhece, mas jurava ser uma canção de amor, e compram os ingressos e encontram uma fila, "Tudo bem, tudo está bem, não é, querida?", e ela sorri.

    Uma tela e um volume sonoro assustador, mas estão abraçados e nada mais importa, quando o título surge e uma cançoneta inglesa e um ambiente a la era vitoriana, com aquelas ruas cheias de neve, descritas em algum romance de Dickens, e enquanto o enredo se desenrola, um casamento desigual, entre aristocratas arruinados e burgueses enriquecidos, e uma mocinha tímida e um mocinho ao piano, e, na verdade, Stevam Lucena atento às reações de Bianca Maria, a apertar e distender seus dedos, a acariciar sua mão, o filme pouco importa, nem quando o mocinho declara-se a uma mão descarnada, e é raptado para um divertido mundo dos mortos, como é comum nas obras de Burton, onde a morte é a verdadeira diversão, logo a real libertação, e ela, Bianca, se diverte, tudo é só diversão, mas ele é só desejo, só um incontido desejo, e o mundo dos mortos é um circo, um parque de diversões, e ela adora as aranhas - um coro de aranhas! - cantando enquanto tecem um vestido digno da jovem noiva que é um cadáver...

    Mas o coração do mocinho está tão indeciso! Tanto quanto antes o de Stevam, a guardar relíquias do romance com Sônia Regina, a abrigar esperanças de um encontro com a distante Amanda Lins, a acalentar desejos por uma Bianca Maria, agora real naquela noite de fantasias num baile de máscaras, num helloween urbano, ele, poeta sombrio, ela, a marroquina, a beata ardente, quando ele fez ansiosa pergunta, e ela respondeu com um abafado, pois beijava sua orelha, mas elétrico e afirmativo "sim!", e na animação o mocinho queria ver a mocinha tímida, por mais uma noite e a noiva já falecida é só ciúmes e esse triângulo amoroso ainda vai render enredo, e ele, Stevam, a lembrar-se dos e-mails e cartas irritadas da longínqua Amanda, sim, desde meados de setembro, quando ele anunciara sua paixão, brusca e louca, por Bianca, e a distante querida nada compreendera e ele não soubera ser paciente e tudo se desfez, traumático para todos, com também Bianca a sentir-se culpada, a dizer "Acho que destrui um amor tão lindo!", e ele a justificar-se, "Não era amor, era dependência, era doença! É você quem eu amo!", e agora ele sentia que o que dissera, há um mês, agora se fazia verdade e realidade.

    Ele não entendeu o fim do enredo, nem com quem o mocinho ficou, tão perdido em monólogos íntimos, ele que nada entende de cinema, muito menos de animações, e ela toda discursiva, e querendo patinar no gelo, pois havia à disposição uma pista a la Central Park, ou ela queria jogar aquelas batalhas eletrônicas, numa lan house, e ele sem grana, sem paciência, só deseja sair daquele mundo artificial, e fugir para a noite lá fora, noite de vento e estrelas pálidas, e ecos de buzinas e brilhos de faróis, e finalmente apertar e esmagar e absorver aquele corpo, aquela presença de mulher.

    E novamente juntos naquele banco diante das imensas chaminés, quatro foguetes a se elevarem para o céu, ou quatro obeliscos, ou quatro falos portentosos, intumescidos, e Stevam procura afastar tais imagens quando Bianca ainda narra trechos da animação, mas ele não sabe como dizer a ela que pouca atenção dedicara ao telão, e as imagens voltam, intumescidas e pulsantes, quando seus lábios alcançam os delas, e ele faz com que ela se acomode em suas pernas, e que peso bom!, e já se passaram cinco longos anos desde que sentira aquele peso sobre as pernas, um peso de corpo de mulher, macio e quente, perfumado e arfante, e se naquela noite, distante na bruma da memória, e le falhara, nessa, as
coisas mudaram, ele sente a excitação até a incomodar, e ela percebe também, e se afasta para o lado, mas a deixar as suas pernas sobre as dele, com a desculpa de ligar para a mãe.

    Sim, já passa das vinte e três horas, e Stevam sabe que não pode demorar em levar a mocinha para casa, que não pode mais minar a confiança que Dona Efigênia deposita em sua pessoa, que, só de uns tempos pra cá, se fizera respeitável, e é preciso levantar-se, entrar num daqueles 'balaios' e levar a amada até os umbrais daquele portão azul encravado naquele muro branco. Mas parece que os planos dela são bem outros! "Poso pedir a minha mãe para deixar você ficar lá em casa? assim podemos continuar... a conversar... Aqui está tão frio", e o que ele pode fazer senão concordar, e ansiar por aquela continuação, a noite de conversas e outras promessas?, e ela conversa com a mãe, ao celular, assim, "Mamãe, tudo bem? Já vou indo. O Stevam pode ficar aí em casa essa noite? O papo está tão bom! Claro, mãe, a gente tá só conversando!"

    A mãe, contudo, concorda e ela está feliz, e ele, idem, e ali mesmo diante do shopping encontram um ônibus, felizmente vazio, e não são incomodados quando se entregam aos beijos, e ao abrir o portão ela ainda sorri, um sorriso de quem não promete apenas uma conversa, e ele entende, dentro de si e na projeção do olhar dela, e é um arrepio, mas logo um "Boa noite! Como vai a senhora?", diante da mãe, em pronta recepção, a deixar a TV ligada lá no quarto, num filme de suspense do intercine e olha um tanto enigmática de um ao outro, mas Stevam não pretende dormir, sabe que vai desaparecer antes do amanhecer.

    O quarto já descrito, a névoa rubra, idem, poupa-se trabalho assim, e eis o casal, debaixo do edredom, a conversar sobre a possibilidade de beleza na morte, "Aquelas donzelas pálidas dos poemas românticos, mortas e cheias de divina beleza, belas e imaculadas, belas e vão apodrecer, mas ainda belas", "Há portanto beleza na morte", "Mas é toda uma idealização, pois já estamos morrendo, estamos apodrecendo, e vamos rir da morte? Pense bem", "E as donzelas pálidas e belas apodrecem, mas ainda pálidas e belas", "Vamos gargalhar na face da morte, quem aqui é romântico?", "A morte é divertida, eu queria morrer como um anjo, até calcei umas pantufas", e a trilha sonora é aquela já conhecida, ora melancólica, ora sedutora, mas sempre envolvente, e ela deixa tocar uma banda que ele adora, In The Woods, "Ninguém para tocar Ninguém para abraçar Estou solitário, lutando Contra esta doença"...

    E de súbito um solo de guitarra, e ela abre os olhos e percebe ter adormecido nos braços dele, e ele não dorme, atento ao abrir daqueles olhos, e é quando se beijam, e não há mais palavras, e as mãos dele libertam os seios dela, e as línguas se eletrizam enquanto pulsações se ouvem acima dos teclados wangerianos e os olhos dela dizem, "Eu te desejo", e os olhos dele dizem, "quero você toda!", e ele se ajoelha na cama, e ela se ajoelha diante e ela puxa a camisa dele e uma língua úmida e insinuante ali passeia em trilhas traçadas nos pêlos realçados na palidez logo rubra de pudor e desejo e ele se senta e puxa a calça jeans e ela encontra, sob a almofada, uma embalagem que brilha e estala, sim, ela sempre prevenida, ela pensava em tudo, arquitetava tudo, e o que ela exibe é um preservativo, que ela mesma desenrola sobre a excitação dele, e acomoda e aperta, e as calças afastadas e o vestido recolhido e ele agora dentro dela, acomodado e apertado, docemente, dentro dela, e é simples e é maravilhoso assim, estar dentro de uma mulher, a sentir um aperto, uma compressão, uma carícia íntima, e gemidos em seus ouvidos a todo mover-se para dentro e a todo mover-se para fora, e num ritmo, e num tremor de corpos e cama estreita, e é isso estar com uma mulher!

     E um ritmo, sim, e ela represa um gemido, um grito, um escândalo, e ela agora está por cima e sobe e desce sobre ele, e ele precisa se conter, não pode ser agora, deixá-la primeiro, que o êxtase dela venha primeiro, e é preciso, mas a cama não pode ranger assim, está proibida de ranger assim, e ela, toda apreensiva, quer parar, afinal prometera a mãe que só conversariam, q ue não quer fazer anda escondido da mãe, e é isso, e ele sai e ela aceita e se abraçam e se abraçam e de súbito o primeiro metrô passa, em abalos por toda a casa e corpos, e assim vai amanhecer e ele precisa se vestir e ir embora e ela precisa se vestir e conduzi-lo até a porta, onde os corpos ousam despedidas, mas os olhos vazam promessas.





    Flávio Toledo. O Grande Flávio! A quanto tempo HD não encontrava o amigo! Raramente trocavam e-mails ou conversas amenas ao telefone. Flávio é agora casado com Ariella Saraiva, decadente socialite, e só convivia com personagens ao estilo de Augusto, e a última visita de HD, que ele lembrava muito bem, foi em abril do ano anterior, quando notou a assinatura do casal no livro de presenças do evento do Alfonso Lucena, o episódico Show Literário, e foi até bem acolhido, mas um tanto de condescendência ele sentia, e um casório se armava nos bastidores...

    Sequer foi convidado o nosso HD. Talvez verbalmente, mas não recebeu convite impresso, ou algo semelhante, e assim afastou do amigo Flávio, e este assim permitira, convivendo junto a cúpula do funcionalismo público municipal, esquecendo tantos planos em comum, igual a um certo Darío Sabine que fizera suas malas e embarcara no primeiro vôo rumo a Europa. "Realmente bons amigos!", e HD suspira.

    Contudo HD não represa mágoas e agora sobe as escadas, após um "bom dia!" diante da senhora Toledo, em tom respeitoso, em conveniente diplomacia, assim rumo ao quarto de Flávio, o último a esquerda, no corredor.

    - Quanto tempo, hein, meu caro Hobsbawn!

    E unidos num abraço. E Flávio, claramente, não perdeu o velho costume de cognominar o nosso HD com o sobrenome do renomado historiador britânico, hábito desde os tempos de ciclo básico, e olham-se por mensurados instantes. Quem romperá o silêncio?

    - Então, você voltou pra casa?

    Acomoda-se na poltrona, sob a janela, o nosso HD. Semi-acordado, pois é feriado, Flávio se ocupa em escovar os dentes, mas o assunto não pode ser evitado.

    - É isso. De volta a vida de solteiro... agora no clube dos descasados...

    Um ano e meio. Eis o casamento de Flávio Toledo, administrador de empresas, com a socialite, ex-secretária de deputado estadual, a vaidosa Ariella Saraiva, quando acomodados em luxuoso condomínio na área nobre do Eldorado, em suposto idílio, afogados em afeto! Mas agora não se trata de uma separação amigável, explica-se assim HD ter insistido no vazio do presente dia e na gramática inglesa.

    - Pelo menos para alguma coisa serviu o desfile do Deodoro pelas ruas do Rio! Assim temos um feriado! (pausa) E você traduziu aquele artigo da revista? (pausa) Lembra-se que sugeri o cuidadoso grifar de cada adjetivo, e classificação do tempo e modo dos modal verbs?

    Depois de represar o jorro d'água e olhar-se ao espelho, Flávio voltou ao quarto e sentou-se na cama. - Olhe, Hector, você acha que eu tenho tempo pra isso? E ainda mais para aquele texto imenso que você enviou! Tenho mais de cinqüenta e-mails para ler! E onde o tempo?

    - E eu devo ter mais de cem. Um monte de literato enviando obras inéditas, todas obras-primas, segundo eles! E preciso ler e comentar. Fora os ensaios do Alfonso e os contos do Leir! De repente, percebo que sou um sujeito ocupado!

    Flávio notou o sorriso do amigo, a leve ironia. - Agora você entende.

    Sim, porque Flávio Toledo é um "sujeito muito ocupado", tem uma empresa onde administra a entrada de matérias-primas e a saída de manufaturas, tem curso de inglês na terça e na quinta à noite, e às vezes, quando há lacuna na agenda, também aos sábados de manhã, além de academia na segunda e na sexta, e um vôlei 'básico' nas tardes de sábado, pois a noite é dedicada aos embalos amorosos, visto que o domingo é dedicado ao sono e à missa.

    - Dormi ontem com aquelas fitas K-7 do curso de inglês. Mas aí baixou um sono... E sonhei que passeava no Central Park, e as torres, as gêmeas, ainda estavam lá!

    O olhar passeou janela a fora e HD encontrou a fuligem do horizonte, pros lados da Cidade Industrial, e lembrou-se de seu compromisso com Cibelle, "la belle Sibila!", após um telefonema tumultuado, quando mencionou o velho amigo, e a promessa de visita, e a amada prometia uma macarronada, lá no aprazível apê, sim, inteiramente possível - a amiga Tânia viajou, sim, là pros interior, em visita aos saudosos familiares - enquanto Cibele preferia ficar na Capital, a espera do seu 'love', isto é, o contente HD, e em semelhante tom como a dizer "escolha, querido!", e HD escolhera os dois, visitando agora o amigo pela manhã, e deixando a tarde livre para encontrar-se com a bela amada. E explica a tal agenda ao amigo Flávio, quando em comentários soltos à respeito de certo filme de Stanley Kubrick, "uma das obras-primas finais", logo após o almoço.

    - I'm sorry, my friend. Tenho compromisso...

    - Ah, é? Em pleno feriadão? Compromisso? Ah, esse brilho nos olhos! É encontro com mulher!

    E não se enganava o velho Flávio! Especialista em farejar presenças femininas, e até pensamentos e devaneios onde bailavam mulheres! E assim ele sorriu, não sem alguma melancolia ("ah, já comi todas as mulheres...!"), diante da ansiedade do amigo. - Sabe, Hector, é assim mesmo quando se está gamado. A gente corre atrás, estufados, nos bolsos toda a atenção do mundo, para colher imensos lucros após investimentos de tempo e devoção e um belo dia descobrimos que a conta está no vermelho.

    E Flávio, sem hesitares, tratou de compor-se para descer a sala de jantar, onde um farto desjejum o aguarda, e HD à sua sombra. O Sr. Toledo é aquela presença junto a escada e não poupa cordialidade, "O seu amigo foi reencontrado?", e ria assim de seu próprio humour. Depois desaparecia na imensidão dos espaços internos, onde em alguma parte, certamente na sala de TV, ouvia-se a sinfonia agitada de um filme de ação made in hollywood, e, por instantes, HD imagina um horrendo dinossauro a perseguir uma mocinha nauseada de terrores, ou um cinematográfico meteorito em sua rota de colisão na atmosfera azulada do planeta ("oh, pobre planeta!"), enquanto técnicos da agência espacial calculam probabilidades e possibilidades diante de eficientes cérebros-eletrônicos, mas Flávio oferece uma fatia de bolo com calda de caramelo e derrama um jorro leitoso e fervente, e descobre uma faca junto ao pote de manteiga, à direita do viscoso requeijão.

    - Então, o que vamos estudar? "Personal Pronouns" ou "Modal Verbs"?




    Na verdade, só depois de apertar o interfone, é que HD percebe sua chegada precoce, quando pouco passava de meio-dia, e Cibele sugeriu o almoço para uma hora. Assim, não se espanta que ela demorasse em atender! Coisa de uns três minutos, a desculpar-se com o volume detonador do som sepultando a casa em decibéis, enquanto o macarrão é manufaturado na cozinha, e os passos de lado para outro, ouvidos hipnotizados pelos acordes de um violão e a voz de Marisa Monte.

    Claro, HD nada sabe de Marisa Monte, por isso nem imagina de que canção se trata, e depois Cibele empilha CDs de Nando Reis, Cássia Eller, Chico Buarque, Ney Matogrosso, e o nosso HD, que não é exatamente um nacionalista em termos de gosto musical, resolve ocultar sua ignorância com toda a atenção possível e cabível e todo o seu estoque de sorrisos.

    - Eu sempre soube que, quando você chegasse, eu estaria ouvindo Marisa Monte.

    Ela em sorrisos, a voltear entre o quarto e a cozinha, colher gordurosa e avental de catchup, atenta aos comentários de HD, o neófito, sobre as canções populares brasileiras e o molho de tomate, naquele pequeno apê, imerso na fuligem da Cidade Industrial. Dois quartos, um para Cibele, e o outro para Tânia, a amiga, e a sala, o corredor, o banheiro, minúsculo, e a cozinha, onde um fervilhar agita as panelas e uma atmosfera impregnada de sardinha vem flutuar entre os vapores e atravessar corredores.

    - Acho que cheguei cedo. O Flávio foi compreensivo.

    - E como está o seu amigo? Você me disse que não se viam...

    - Está OK. Um tanto calado. Coisa de crise conjugal...

    - É sério? O cara está descasando?

   - Parece que é isso. - e HD acomodou-se na cadeira junto a porta, a observar o corredor e sentir as melodias que fugiam do quarto lá no outro extremo, a encherem todo o apê. - Mas não falemos disso. - e oferece a caixa de bombons.

    Realmente, convenhamos, não era um assunto aconselhado, esse de casamento, e muito menos o de separação, para duas pessoas que mal acabam de se conhecer, pois, afinal, o que significam dois meses?, e a considerar-se que não se encontraram mais do que três vezes! E HD não se sentia à vontade, supondo que Cibele vivia em reprovações devido ao notório fato de que ele não dedicava tempo para se conhecerem, "Não quero que você pense que estou colocando a vida profissional acima da afetiva", ele dissera ao telefone, quando ela o convidou para a "suculenta macarronada", e "para ficarmos à sós, querido", pois é óbvio que ela nada queria saber dos Valêncios e Bishops, seus amigos sempre inoportunos, ou de seus compromissos, sempre inadiáveis, ou de seus saraus, sempre inesquecíveis, e Cibele tinha lá seus direitos, pois ela é quem havia escolhido o seu "cara metade", sim, "eu escolho", ela dissera, toda altiva, feminina e poderosa, "eu escolho os homens", o que muito o envaidecia, aquela bela mulher, independente e, o mais importante, inteligente, que havia escolhido sua humilde pessoa, de poeta apagado e retórico falido, sim, a perceber a presença dele ali no seio da polvorosa multidão, o "mar de faces", e não hesitou em elogiar o poema, prolixo e verborrágico, pleonástico mesmo, em elogios a figura do amado e desde sempre idolatrado poeta!


    - Cerveja, querido?




    Mas, HD preferia uma limonada. Nada de bebidas, nada de álcool, apesar de um vinho não ser nada mal. Mas é que HD sabe ser necessário manter-se sabiamente, e sobriamente, sóbrio. E causa boa impressão, pois Cibele sorri, servindo a limonada, "estupidamente gelada", e ocupa-se do macarrão. A voz de Marisa Monte em doce canção, enquanto Arnaldo Antunes declama um poema com suas "sentimentalidades", e "amor, I love you, amor, I love you", e um sol intrometido precipita-se na janela da sala, atravessa o corredor e cai perpendicular sobre a cadeira, a mesa e o fogão, e também sobre a área de serviço, onde inunda um varal com roupas a secarem.

    - Ah, que bom! Estava um dia tão cinzento! Prefiro o sol, muito sol! E você, querido, está tão calado!

    - Estou aqui ouvindo as músicas.... Imagino que não é de bom-tom incomodar com palavras a melodia divina das canções...

    - Ai, ai, ai! Ah, querido, não venha com esses lirismos pra cima de mim! E não pense que coloquei a música para abafar as palavras! É que sou assim. Arrumo o apê ouvindo música, varrendo ou limpando, e também cozinhando, e até tomo banho ouvindo música! O som fica no volume máximo e vou me ensaboando e cantando!

    E HD realmente a imaginar a bela Cibele, no banho, envolta em vapor, a ensaboar-se, berrando contra o jorro d'água, aquele corpo todo branco de espumas, e os dedos a circularem sobre os seios, e uma nata de sabão a cair, sumindo ralo abaixo, e um corpo que ele já distinguia sobre aquele vestido em estilo indiano, do jeito que ela adora, de chinelos artesanais, pés e unhas sem ornamentos, e um aroma íntimo isento de cosméticos. (E ele não precisaria esperar muito para ter semelhante imagem diante dos olhos.)

    Por enquanto, Cibele está ocupadíssima com o molho de tomate, ao acrescentar a sardinha, e a mexer tudo, preparando-se para virar o macarrão e sua massa "al dente" e vai girando tudo junto, massa, molho, condimentos. Um novo aroma agora, indubitavelmente, de macarronada. E ela aquece o feijão branco, dispensa um sorriso, observa os copos de limonada, dispõe pratos e talheres na mesa, cuidado posterior, veja-se, a alisar e ajeitar o forro, onde cenouras, tomates e batatas sorridente brincam de ciranda-cirandinha, e acaba de servir o menu principal.

    E é verdade que comem a macarronada, trocando olhares, ao som de Marisa Monte. Não há pensamentos, nem ações, nem coisa alguma. Não há o que narrar. Um homem, vinte e sete anos, quase historiador, ex-funcionário público, almoça diante de uma mulher, vinte e um anos, estudante de Letras, estagiária em colégio público, ambos em um apartamento alugado, por ela, a estudante de Letras, e uma amiga, estudante de Química, ambas nascidas e criadas em cidades interioranas. Que mais?

    - Eu já te contei que o meu sonho é voltar pra terrinha, a cidadezinha-vida-besta, sabe? E ajudar a alfabetizar aquela gente sofrida, desamparada?

    - Sim, Cibele. E eu te admiro por isso.

    E ela serve mais limonada, com um sorriso no olhar, "vamos nos embebedar de limonada, ela deve estar pensando", é o que ele pensa, e a canção continua, mas as palavras e versos se sucedem e ele não consegue reter. Nada há de sensual neste almoço, nenhum clima erótico, não é um almoço para negócios ambíguos ou segundas intenções, não se destina, visivelmente, a seduções. Não se reproduz aqui cena de telenovela.


    - É ter uma missão, na vida, sabe?, é ajudar no crescimento dos outros, na vida das comunidades. Gente que até hoje não sabe ler! Imagine, em pleno século vinte e um! Com máquinas, computadores, naves espaciais e gente que não sabe ler! Não sabe assinar o nome!

    - Eu entendo. É complicado mesmo.

Mas HD, obviamente, não deseja cultivar semelhante assunto, isto é, não agora, isso de desigualdade, miséria, desamparo, analfabetismo, carências, não, esse não é o momento. "Desviemos o curso do ribeirão"

    - E sua família, Cibele? Você fala pouco da sua família.

    - Ah, é? Ah, Hector, você é que nem fala da sua!

    - Eu sei. Mas prometo que conto toda a minha história. Desde, claro, que você comece, falando da sua. (pausa) E está ótimo, este macarrão!

    - Ah, obrigada, querido! Não sou nada boa na cozinha, mas a gente sempre dá um jeito, não é?

    - Mas, vamos lá, não fuja do assunto!

    - Ora, mas foi você que falou do macarrão! Mas, está bem. Eu prometo e cumpro. Não tenho muito pra contar, mas vamos lá. Você sabe que sou de Raposos, não é? Nem é interior. Mas minha avó, chama-se Maria, veio de Barbacena, a mãe da minha mãe, sabe? A minha mãe chama-se Ângela. Já o meu pai, ele desceu de Montes Claros, e veio morar com um primo, ajudar num negócio de marcenaria, e o primo João veio de Teófilo Otoni, mas minha avó Maria tem parentes em Raposos e casou-se lá, com o meu avô Prudente, e nasceu minha mãe, antes da ditadura, na época da inauguração de Brasília, sabe?, e meu pai na marcenaria, na época da anistia, e conheceu minha mãe, costureira, bordadeira, ai!, ela faz coisas lindas, maravilhosas mesmo, ah!, mas é melhor eu mostrar as fotos, ah, tanta coisa!

    E não é preciso escrever que HD prestava mais atenção a Cibele do que ao macarrão, e ele se esquecia de comer, até que ela parava e fingia-se magoada, "Ah, eu sabia que você não ia gostar! Tá ruim, não tá?", e ele passa a engolir, sem mais hesitações, "O que é isso, Cibele?! Está ótimo! Palavra!"

    - É que eu estou prestando atenção. Cada um de um canto! Seu pai veio de Teófilo Otoni, e seu tio, não, quero dizer, seu tio é que veio de Teófilo Otoni...

    - Não, não é tio, é primo. O primo João. Mas, Hector, isso não importa. São detalhes, ora! O que quero dizer é que todo mundo se encontrou ali, às margens do Rio das Velhas, e eu nasci. É isso. É igual você disse, "cada um de um canto", mas se encontraram. E eu nasci!

    - Realmente! Tudo por causa da marcenaria.

    - E por causa dos parentes da minha avó Maria.

    - Ah, é. Por volta de 40, calculo. A Guerra...

    - Pôxa, você é bom de cálculo, hein! Minha avó nasceu nessa época!

    - Ah, sim. Ela nasceu em 40. Em Barbacena e conheceu seu avô, quando?

    - Ai, meu deus! Que interrogatório! Só podia ser um historiador, mesmo! Ah, querido, se conheceram na época do Juscelino, do JK... Acho melhor mostrar as fotos...

    Com certeza, haveria a sessão de "vendo as fotos da família", mas antes ela recolheu os pratos, limpou o forro, ajeitou o fogão e jogou o resto na pia. - Depois eu lavo. A Tânia é tão ordeira! Vive puxando a minha orelha. Sabe? Eu conheço ela desde o vestibular, dentro do ônibus! E a família dela é de Itabira. A cidade do seu poeta...

    Ah, é mesmo, o velho e bom Drummond. "Mas, meu poeta? Ah, se ela conhecesse o Alfonso!" e Cibele o guiou até o quarto, onde a luz corria farta e serena pela janela entreaberta, e, enquanto ela abaixa o volume do som, ele vê lá embaixo, a um quarto de quilômetro, o brilho dos trilhos da ferrovia, e a serpente metálica do metrô, mas ele se encosta na mesa, onde livros de Teoria da Literatura estão jogados junto a títulos de Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto e Mário de Andrade, "Ah, ela é fanática com literatura brasileira! Já me esquecia disso!", e anotou, mentalmente, ser necessário presenteá-la com a antologia de causos do Délcio Palma, mas já passeia o olhar pelo quarto e nota o aparelho de som sobre o armário, ao lado de livros e um computador e miríades de canetas, de todas as cores, e a cama, e ao lado desta um outro armário, com armação para cabides em cima e três gavetas embaixo, mas espécie de guarda-roupa, diga-se, e tudo muito simples, modesto, ainda mais aquelas almofadas sobre o carpete, apenas um tanto descuidado.

    - Desculpe a bagunça, querido. Mas não há tempo pra ficar arrumando, sabe? Vivo estudando e estudando! E mamãe cobrando notas e gloriosos "As"!

    Mas, obvia e visivelmente, não havia bagunça alguma. Tudo está bem e em seu devido lugar. E Cibele despeja uma valise, cheia de álbuns de fotos, sobre a cama, aquele imaculado lençol todo branco.

    - São os meus queridos, as minhas queridas! Passos horas, olhando e olhando, e de repente até choro!

    Mas HD olha ora para a janela, ora para a mesa e livros, ora para os pés desnudos a fundar no carpete, e não se decide. "Vem sentar ao meu lado", ela convida, e é um chamado de sereia, dessas que nem Odisseu, ou Ulisses, desprezaria, "ora se eu me deixaria amarrar a um mastro!", ele pensa.
     - Esta é a minha avó, e este o meu avô. - e o dedo, sem esmalte, vai deslizando de uma face a outra, um corpo a outro, um sorriso a outro, uma veste a outra, na sucessão das fotos, no escoar do tempo. - Esta é a mulher do meu primo, o primo João, aqui, com o meu pai, e aqui, com a marcenaria ao fundo, e olha o tamanho dessas toras de madeira, e eu ficava me equilibrando sobre as toras, e eu quase caía, e quase quebrei a perna, numa tarde, quando a minha perna deslizou e ficou presa entre duas toras, e imagine se elas deslizassem! Tchau perninhas fofinhas! - e ela simulou um gemido e uma careta, e HD sentiu no fundo do peito um reflexo de dor imaginária, "ora, o que é isso, essas belas pernas, esmagadas?!" - e este é o meu irmão, o Pedro, que o meu pai chama de Silas, pois era assim que o meu pai queria que ele se chamasse, mas minha mãe não deixou, e este é o primo João, sem barba, diferente, não?, e aqui a minha mãe trabalhando, na máquina, ai!, aqui, ah!, este aqui foi o primeiro menino do qual eu gostei, e chama-se Pedro, coincidência, não é?, não era amigo do meu irmão, nem nada. Era, na verdade, filho de uma bordadeira, colega da minha mãe, a colega é essa senhora aqui, muito brincalhona, ela, e toda sorridente, borda muito bem, e o levava o menino para o trabalho e nada hora do lanche, ele se sentava junto de mim, de propósito, claro, e tentava me beliscar, ou me abraçar, uma pestinha, não?, mas a gente tinha uns doze anos, já começa a gostar, eu adorava ele, e tal, mas deixa pra lá, esse aqui é o filho do primo João, e este é, não lembro, aqui eu pareço um espantalho, não é?, as perninhas são uns palitos!, sem brincadeira, Hector! E não ria de mim! E olhe, esses meninos, esses!, ficavam enterrando minhas coisas na areia, e eu nunca que encontrava, e que biquini, esse aqui, rosa, que horror, e eu usava isso!, e esse aqui era um amigo do meu pai, já morreu, num acidente de carro, e aqui a minha mãe, e que peitos, hein, minha mãe sempre foi bonita, e aqui...

    A voz de Cibele era uma doce canção de ninar, aos ouvidos de HD, e, assim, ele pouco observava as fotos, mais atento aos gestos lentos, ao tremor dos dedos a cada folha virada, ao gosto de limão que se desprendia daqueles lábios, toda aquela simplicidade, ausência de pose ou maquilagens, e, ele evitava, mas em vão, imagens de outrora, junto a Ellen Lauria, dois anos antes, quando ela mostrava os álbuns de fotos da família, e principalmente algumas fotos da praia, e um mar borbulhante, e Ellen era mais bonita que Cibele, aos doze anos, claro, mas hoje ambas são divinais, e ele se lembra que admirava mais as pernas encolhidas de Ellen, do que as fotos que ela mostrava e seu encanto foi rompido com a chegada a amiga Elisa, e ele não pode evitar um abraço apertado, naquele corpo escultural da Elisa!, e mais apertado do que o abraço em Ellen, e ambas percebem, e pronto, eis a confusão, mas HD jamais trocaria Ellen por Elisa, por mais que a segunda fosse encantadora, fisicamente dizendo, pois a primeira possuía um inigualável brilho no olhar, e nada disso interessa agora.

    Aqui o primo João, numa pescaria, e olhe o tamanho do peixe!, não é montagem, não! É sorte mesmo! E o meu pai na beira do rio, e olhe que a gente ainda vai lá, hein, escreve aí, e a minha mãe quase caiu no rio, e o primo tirou a foto, é hilário, não?, e depois, aqui, o filho dele pulou na água, e aqui...

    E não há maneira das pálpebras não pesarem, e aquela voz é convidativa ao repouso tranqüilo no Éden, no reino de Pasárgada, no jardim das delícias, e HD se lembra de sua mãe Hilda, quando mostrava os álbuns de família, e fotos de seu avô, de sua avó, de seus tios, a festinha de quinze anos, ela soprando o bolo, e aquela voz, aquela trilha de música popular brasileira de altíssimo teor romântico, era o cenário ideal para o repouso eterno nos braços da amada, e HD sorria, de olhos fechados, e quase ressonava, quando Cibele notou, "Hector! Você está dormindo!"

    Mas não havia mágoa ali, ainda que fingisse semelhante , tanto é assim que ela guardou os álbuns e se acomodou, ao lado dele, ou melhor, se enroscou nele, com aquelas pernas, afastando o vestido, se deixando à mostra, em constraste à calça jeans desbotada.

    E por momentos assim ei-los em doce enlace, e é possível que HD até pense em Macedo e Alencar, os escritores, e os casais apaixonados, em 'doce idílio', que brotaram de suas penas autorais, e ele se deixa flutuar, a completar a digestão da fina massa italiana, experimentando os bombons que ela distribui, a sentir a presença e o calor de Cibele, e o sol oscila, seu brilho oscila, já virando sobre o prédio, para o lado do poente, e a paz, o prazer, e passa-se um tempo indeterminado.

    Então, Cibele levanta-se para mudar os CDs no aparelho de som, e notando aquela falta, agora dolorosa ausência, HD abre os olhos e ela está a cinco passos, a selecionar CDs na estante, só se espera que não seja Erasmo e Roberto, "pois esses é do tempo da minha mãe", mas, por sorte, hoje temos Marina Lima, Zélia Duncan, Ana Carolina, Amaranto, Adriana Calcanhoto e outras beldades sonoras, e Cibele tem apurado bom gosto, disso não há reclamação. E eis que ela retorna aos seus braços, toda doce, toda ela mesma.

    - Com calma, Cibele! - ele arqueja, pois agora ela está sobre ele, assim, simplesmente a jogar-se sobre ele, corpo, vestido, pernas, sobre suas camisa, já amarrotada, sobre sua calça jeans desbotada.

    E um beijo estala, um beijo longo e arfante. É o sinal.





[...]





LdeM

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