sábado, 8 de outubro de 2011

mais Capítulo 5 ....

[...]



Quinta, 06 de outubro 2005


Querida Amada Bianca,

Sinta-se abraçada!

    Estou contente com nossas tentativas de compreensão mútua,
com nossa coragem de assumir nossas afetividades passionais,
mesmo que compartilhando desassossego.

    Pois não posso nem mencionar felicidade, em nosso caso,
pois somos nauseados de consciência, somos perturbados
(traumatizados) demais.

    Meus poemas são uma tentativa de comunicar, de saltar o
abismo entre as almas, de estender uma ponte. Os teus poemas,
imagino, são uma declaração desesperada de 'vejam, como eu
estou sozinha!', como se tivesse jogado uma garrafa ao mar,
com um manuscrito dentro (e eu encontrei a garrafa e li a
mensagem. Senti que as palavras foram escritas exatamente
para mim!)

Há uma canção do Moonspell, "A Poisoned Gift of Love", onde
o amor (mais apropriado seria 'paixão') é comparado a um
veneno, a uma maldição, onde os amantes tornam-se marionetes
sob os caprichos do sentimento. Os amantes prometem-se uma
felicidade que é irreal, pois a paixão é 'chama' que é "infinita enquanto
dure" (V. de Moraes). Se prometessem compreensão e respeito,
com equilíbrio e parcimônia, conseguiríamos estabilidade (e tédio),
porém, sendo afeto, logo irracional, a paixão quer "tudo ao mesmo
tempo agora."

Hoje falamos sobre o "sentimento doloroso da existência",
que é conceito do Schopenhauer - que está presente em teus
textos e tuas idéias, ainda que não tenhas lido o filósofo.
Eis uma amostra do drama generalizado da condição humana,
e a maldição da consciência: quanto mais sabemos, mais
traumatizados nós ficamos.

E por que são os geniais que se matam? Por sentirem o fardo
da gratuidade/efemeridade da existência: "Eu vivo por nada,
eu morro por nada" (Anathema). E isso eu aprendi a cada
vez que tentei adiantar o fim (e imaginar que assim jamais
nos encontraríamos!!), naquele quarto escuro em 2002, mas
aprendi que somente eu posso conferir significado à minha
existência, somente eu posso encontrar um sentido que a
justifique - diante de mim, não dos outros.

Assim, busquei na música e na poesia uma desculpa para
continuar a existir. Por isso eu sobrevivi, e continuarei
a sobreviver.

                                             Stevam Lucena





    - Quer dizer então que aquela reunião deu frutos?

    HD perguntou quando o garçom serviu outra cerveja, e Michael Bishop agradeceu, dispensando o rapaz de virar a bebida nos copos, gentileza da qual ele mesmo se encarregava.

    - Sim, com certeza. Talvez assim resolvamos o problema das finanças, pois estamos no vermelho.

Desde a conversa em maio, num bar do Edifício Arcângelo Maletta, diante de taças de vinho, quando mencionara o festival dedicado ao músico, e poeta, psicodélico, não haviam retornado ao assunto, o que confundira HD, depois daqueles shows de rock progressivo que Michael promovera no Matriz, lá no terminal turístico.

    - Podemos montar um cronograma para a captação de patrocínio. - HD sugeriu, enquanto erguiam os copos em um brinde.

    Mas Michael apresentou outros planos. - Talvez para o próximo, mas para o primeiro vamos ter que contar com nossa equipe e toda a boa vontade possível. Dinheiro do nosso bolso. Quando o primeiro for um sucesso, teremos voz diante dos patrocinadores, e o segundo será o maior, o real e mais lucrativo.

    E HD entregou-se a pensamentos, admirando os filtros dos sonhos que ainda continuavam ali, desde a festa do Óbvio, em agosto do ano anterior, em que sumira logo para não discutir novamente com o Alfonso, mas os filtros lembravam a pele de uma certa loira, mas o pensamento resvalou para um semblante desejado, e era o de Cibele Alvez, para quem ele ligara, antes de encontrar-se com Michael, e ela aceitou o convite para um passeio.

    Por isso, vez ou outra, HD olhava o visor do celular, exatamente como faz agora, quando Michael pergunta:

    - Algum compromisso, meu caro?

    - Marquei de encontrar a Cibele, às nove. E, permita-me, algum problema em trazê-la aqui?

    - Fique à vontade, Hector. Somos amigos.

    E HD levantou-se, para telefonar. Mas ninguém atendia, em casa dela, e nem ao celular, o que ocorrera? Então ele desceu até a pracinha, onde estudantes se reuniam, naquela noitada de sexta, nos bares e derramavam bebidas e gargalhadas, e HD notou afinal a presença de Cibele, junto a duas mulheres que brincavam com um minúsculo cãozinho, cheio de acrobacias, subindo e descendo dos bancos de tijolos.

    - Onde você estava? Você demorou. - ela diz, quando eles se abraçam.

    - Eu liguei para o seu celular, e nada!

    - Ficou no apê.

    - Ah, entendi. E então, vamos?

    A moça se despediu das mulheres que se divertiam com o simpático animalzinho e seguiram rumo ao bar, à uma esquina da universidade católica, mas por ruas mais vazias.

    Michael Bishop continua na mesma mesa, com o mesmo olhar, tudo igual, exceto um copo de cachaça, que ele pedira, na ausência de HD.

    - Ora, você demorou, meu caro. Boa noite, donzela.

    E HD se desculpou, explicou o que ocorrera, e notou o olhar que Michael dedicava ao decote da sua amiga, que aliás estava encantadora. Com seu jeito livre e solto de ser, era a simpatia dando volta pelo bar.

    - Precisamos marcar uma reunião, ainda neste mês, com os Diretores, principalmente com o Dalton, que cuida da grana. E a data será seis de janeiro. A data do evento, claro. Aceita?

    A cachaça brilhou contra a luz, branca, atraente e sobretudo mineira, destilada lá pros lado de Betim, naquele parque ecológico, e HD, pensando tudo isso, aceitou e bebeu, e distinguiu o olhar de Cibele através da transparência do copo. E sentiu que não estava tão apto a beber, mas a presença de 'poderoso chefão' de Michael Bishop não aceitava ser contrariada. Por isso só ficava bêbado em presença do mecenas.

    - Então vou deixá-los a sós, meus queridos. E enviarei um e-mail marcando a reunião com o pessoal todo. Até mais. Meu caro, Hector. Prezada donzela! Ah, sim, até mais Cibele. Obrigado.

    E HD levantou-se, e o que previra, agora acontecia, uma tonteira ébria, e as formas de Cibele brilhavam e flutuavam à luz do bar e ele foi ao toalete, e quase que o teto cai, literalmente, pois o local está em reformas e ele nem notou, e voltando, abraça a jovem toda encantos, e mostra segurança.

    - Que tal um passeio?

    É claro que ela já percebe o andar trôpego, e como se não fosse suficiente o nada perfurmado odor de álcool, mas ela acha tudo muito divertido.

    - Hector, você está bêbado, cara!

    - Ora, o que é isso? Mas eu não bebi nada. E foi só um dedo de boa cachaça mineira! É que eu estou feliz!

    E saiu distribuindo gargalhadas pelas ruas, vazias, de classe média, tendo ao fundo o perfil solene da arquitetura da universidade católica, e Cibele agarrada ao seu braço esquerdo, talvez pensasse em ampará-lo, se ele cambaleasse e caísse da calçada rumo às sarjetas.

    - Eu estou feliz! Não posso mais ficar feliz? É proibido? Todo mundo fica feliz, menos eu! Hoje é a minha vez, pô! Estou feliz porque você está ao meu lado! Muito feliz!

    E não consegue represar o riso, as risadas que brotam em cascata, ou anunciando tempestades, com trovões de gargalhadas, e ele podia se lembrar daquela crise na casa de Flávio Toledo, o velho amigo Flávio Toledo, que ainda voltará a sua vida, o bom amigo Flávio, e na casa de Flávio ele todo bêbado e rindo de quem?, ora, na cara, nas fuças daquele Augusto, o bom cunhado, que já até abandonou a mulher, a linda irmã do Flávio, como é mesmo o nome dela? Flávia? Fabiana?, e ele, o pobre HD rindo e rindo, e claro que foi o escândalo da temporada, e nunca deveria ter acontecido!

    - Mas eu não posso ser um cara feliz? Tenho que ficar só preocupado com o governo? Com os 'falcões' no poder? Com os invasores do Iraque? Com as demissões em massa? Como desemprego estrutural? Com Hitler invadindo a União Soviética de Stálin? Ora, que se exploda!

    E ele quase podia ouvir o Vladimir gritando, "Que se exploda!!" e continuava, portanto, a rir, e deixar-se ser amparado pela bela companheira, e que decote, deus meu!, e olhe que eu sou ateu!, mas eu poderia viajar eternamente nestes peitos, que delícia essa menina!

    E Cibele continua ali, agarrada ao seu braço, puxando-o para a calçada, quando ele ameaça resvalar para além do meio-fio, a cair de boca na sarjeta.

    - Cara, você está bêbado! Não acredito!

    E não demorou ela começa a rir também, e assim foi um estranho casal que cruzou a pracinha, onde tantos jovens se divertiam, se beijavam, se tocavam, se experimentavam, se gozavam, se conheciam... passos lentos a descerem as vazias ruas do bairro classe média, com seus prédios e muros, e suas casas e grades e seus barzinhos e lan houses e suas árvores, tal aquela dama-da-noite, que perfumava a rua inteira, e Cibele colheu um ramo e ficou esfregando entre os dedos, triturando o sumo e aspirando o aroma, enquanto os risos voltavam para de onde vieram, e HD se silenciava e se serenava.

    - É o Michael. Ele a dizer que precisamos conversar, e a gente senta para conversar e pronto, começamos a beber. É sempre assim. Mas eu disse a verdade. Eu estou feliz. Hoje é uma noite para ser feliz. - e olhou ao redor, voltava a racionalidade instrumental, e suas bússsolas voltam a marcar o norte, e ele diz - Por que não ficamos na praça?

    - Ora, Hector, estava tudo um tumulto só!

    E ela foi guiando ambos até a pista da via expressa e eis uma pracinha, só concreto, onde uns skatistas brincam, em disputas e acrobacias, em desafios entre os seus pares, e o casal adentra aquele reino de destemidos e sentam-se no bando junto a cerca de arame, bombardeados pelos faróis e buzinas, e ruídos e estridências de rodinhas, e gritos de meninos exaltados.

    Mas haveria de ser ali, e ela voltou, depois de refrescar-se no bebedouro.

    - Hector, você é um tipo de cara que sofre demais. Precisa se soltar às vezes.

    E HD mirou dentro dos olhos de Cibele, e achegou-se, agora até esquecendo o trânsito do outro lado da cerca, e nem pensou em campos de concentração, isso só surgiu depois, mas ali, enquanto ela se inclina para amarrar o all star surrado, e aquele decote, ele aproximou sua face, e sussurrando - Eu preciso de paz! - ousou deliciar-se naquele lábios.

    Beijaram-se, indiferentes ao que havia além, e ali os skatistas já desapareceram, "Ainda bem que sumiram", ele murmura, e Cibele, maliciosa, "Ora, por que?", e os lábios se sugavam e se mordiam, e línguas trabalham, conjuntamente, e HD quis beijar aquela orelha, e sua língua passeou ali, tal peregrina, em cada voltear e curva, e Cibele só sabia gemer.

    "Mas é tarde", ela lembra, e HD amaldiçoa a invenção do relógio. Contudo, é preciso ir, e seguem abraçados, agasalhados um no outro. E o trânsito em seu fluxo seguia, e leste-oeste em dois sentidos, e viam apenas luzes e velocidades, naquele enlace, despertando de uma embriaguez para outra, e escolheram a pista onde todo mundo seguia rumo a Cidade Industrial.




    Novamente, na estação do metrô, no Eldorado, Stevam Lucena espera a chegada de Bianca Maria, nauseado de ansiedade, após dez dias sem apertar o corpo macio em seus braços, contentando-se com telefonemas e cartas, derramando-se em papéis em e-mails o seu desassossego.

    Com uma saia indiana e sandálias, e um sorriso, Bianca Maria circula junto aos orelhões diante da pastelaria, e se jogam um nos braços do outro. "Vamos andar?", ele a convida, "A noite está ótima", e ela concorda, e realmente a noite não poderia ser mais agradável, nem quente nem fria, e ventos ausentes e uma bela lua crescente. Cenário romanesco.

    Seguem ao longo da ferrovia, e passam a um quarteirão da residência da família Lucena, mas não pretendem uma pausa ali, visto não terem qualquer privacidade. A Praça da Glória é preferível. E para alcançar suas alamedas vislumbram antes o Parque Ecológico e sua pracinha, onde garotas brincam de ciranda-cirandinha diante de uma imagem de santa. Bianca Maria está curiosa, e tendo o corpo enlaçado pelo braço de Stevam Lucena, lança um olhar para dentro do singelo altar, e ele se interessa, a lembrar que bastam subir a avenida e cruzar a João César, avenida de tumultos, e a Praça está logo ali à esquerda de quem se anima.

    Sobem de braços dados, e outros casais rumam igualmente para a avenida e suas diversões, ofertadas por bares, boates, casas de show, danceterias, hotéis, shopping center, lan houses, pizzarias, o mexidão popular, motéis, coretos com música ao vivo, e todos trocam olhares cúmplices de assassinos do tédio. E a Praça merece um parágrafo a parte.



    Chama-se Praça da Glória e já foi um oásis no cotidiano de concreto e asfalto. Mas hoje é um cemitério. É como os jovens, que ainda são ali freqüentes, com seus skates e roupas soturnas, a denominam, e não enganados, pois ali estão apenas as ruínas. Antes um filete de água descia sobre um monjolo e desaguava em dois laguinhos artificiais, separados por duas pontes, que conduziam os visitantes até uma roda d'água, de onde anteviam a cruz néon da igreja defronte.

    Hoje a roda d'água está quebrada, o monjolo virou brinquedo, um tanto perigoso, para os jovens, e os laguinhos secaram, e tornaram-se excelentes pista e rampa para skatistas audazes. E a decadência tornara-se um chamariz aos jovens com suas mentes inquietas e cheias de fantasias, encontrando ali um espaço para sonhos de eras bárbaras que não poderia viver dentro de seus quartos, diante dos monitores de seus PCs.

    A praça-cemitério. Foi assim que Stevam Lucena apresentou o local a curiosa Bianca Maria, que adorou. E encontraram um banco à sombra de uma árvore imensa, disposta contra um dos gigantescos postes de luz rubra que iluminam toda a praça. Num abraço de carinho, entregam-se a necessária prioridade de 'colocarem os assuntos em dia' e ele comenta que já escrevera um poema ali, em início de dois mil e dois, "andando sozinho consigo mesmo", e que TH era outro que muito freqüentava o local, quando rumava para a periferia, e mesmo o 'Conde' perambulara por ali, segundo dissera o Valêncio, certamente em visitas ao Rafael, o 'Vampiro', e todos os sombrios da região, depois de se encontrarem na feirinha da Portugal, sejam 'pesados' ou 'românticos', pois ambos os grupos ele conhecia, adoram passear pela praça, "ou o que sobrou da praça", como dizem.

    Mas ele não quer se entregar a recordações, quer viver o presente, e detestaria saber que ela está entediada, "ah, eu adoraria comer bombom", ela diz, e o desejo da amada é sempre uma ordem, "vamos ao shopping", ele decide. E o shopping justamente aquele no campo onde realizavam festivais, e onde o lembrado Rafael, que não era seu conhecido na época, apostava corridas de bicicleta com coleguinhas da vizinhança, todos da classe média em urbana decadência.

    O dia artificial do hipermercado atrai os jovens tal estas luzes da praça atraem as mariposas, e todos caminham juntos, mas com olhares dispersos nas vitrinas e suas promessas de felicidade em suaves prestações e paz à preços módicos e sossego em liquidação. Mas Stevam e Bianca procuram precisamente uma caixa de bombons, e ele escolhe um suco em lata, sabor manga, e água mineral, indispensável, e enfrentam a fila do caixa, com excelente humor, ali onde outros casais parecem que marcaram encontro, assim as mulheres atentas a preços, inclinadas sobre os homens, que conduzem, orgulhosos, os carrinhos com mercadorias.

    E voltam para a praça, para o mesmo banco, e abrem, com avidez, indisfarçada, a caixa de bombons e ela oferece um bombom que ele morde adiantando a face, quase engolindo junto os delicados dedos da jovem, e ela sussurra, sorrindo, "ai, que sexy!", e ele sorri em reflexo, e escolhe um bombom com recheio de amendoim, e outro de chocolate branco, e observam os jovens, e o brilho azul néon da cruz moderníssima da igreja, e um grupo de roqueiros evangélicos que entoam hinos ao cristo, e os vultos dos casais nas sombras dos arbustos, e a noite é ótima, realmente.

    É quando percebem seus lábios unidos. Ela oferece o bombom entre os dentes e ele dispôs-se a colher ali mesmo a doçura, e acabou por encontrar duas! E foi um beijo com gosto de chocolate e ela voltou a comentar uma certa torta de chocolate que ele presenteara a melhor amiga, e ela até promete aquela delícia, quando ele for em visita. E ela só reclama do gosto de manga, "ora, mas é o refresco...", ele lembra, "Mas eu não gosto de suco de manga", e ela finge um desgosto.



    Abraçados e perdidos em beijos, experimentam com ardor o estarem juntos, e ele tira dela as sandálias que abrigam os pés delicados, e massageia aqueles pezinhos, dedo por dedo, e a pressionar as solas um tanto ásperas, "eu gosto de andar descalça, lá em casa", ela comenta, e acaricia suas pernas, e ele aprecia o desenho das mesmas, a lembrar-se que ela já dissera ter sido bailarina, e que adora dançar, e ele realmente aprecia aquelas formas, mas ela diz, constrangida, "nem tanto, querido, pode ter gente olhando", e cisma que um cidadão, lá no outro banco, observa, com olhares de malícia, o jovem casal.

    Mas duas mocinhas se aproximam, e estendem um folheto de cunho religioso, e dizem, "viemos aqui por causa do seu sorriso" e Bianca Maria agradece, e as jovens angélicas retornam ao grupo que ainda entoa os hinos ao estilo rock'n'roll, mas sem atrair os demais jovens dispersos, de um lado os punks, do outro os pós-punks, e na zona neutra, os skatistas.

    E se a praça evocara versos de Charles Baudelaire ao inquieto Stevam Lucena, aquela aparição pós-neo-religiosa, ao estilo Jovem Guarda, muito destoa de seu lirismo decadentista, não por supor solução, mas devido ao ruído das vozes, nunca preferível ao silêncio, apenas rompido pelas folhas secas e o espocar dos beijos.

    E resolveram seguir até o coreto, passando pelas paradas de ônibus, diante da danceteria, fotografando mentalmente os sorrisos dos casais, e o perambular dos solitários, e o buzinar dos carros que conduzem patricinhas e princesas, e no coreto, seus corações estão mais próximos, e novas confidências vem à tona, e nenhum dos dois deseja ir embora, e já passa das dez horas. E ali, naquele coreto, Bianca Maria recorda cenas de família, e Stevam Lucena relembra os velhos shows, e que ali mesmo Valêncio conversara com TH, na noite em que seu irmão Alfonso viera procurá-lo, a ele, Stevam, época em que se perdiam em discussões depois do fim da banda, o fim definitivo, uma semana depois que as torres de Manhattan desabaram, "meu pai estava na minha festa de aniversário, e mamãe e ele pouco conversaram", ela diz, e "era para acabar mesmo, a banda não tinha mais futuro, nem sentido", ele diz, e prestam relatório de suas perdas, e uma não é menor que a outra, pois uma banda de música não é diferente de uma família.

    Na parada de ônibus, outros casais, e uma dama de vermelho, que prontamente atrai a atenção de Bianca, aconchegada a Stevam, e um tanto fremente, a perder fôlego como após uma corrida, e ele percebe que ela tem asma e respira pela boca!, mas ela atenta as curvas e toda a sensualidade da moça de vestido vermelho, uma morena realmente bela e atraente, mas ele não entende, ou só entenderá certo tempo depois, assim como só agora percebera a dificuldade respiratória dela!

    Não há ônibus, mas apenas aquelas kombis, em transporte dito 'alternativo,' mas ilegal, mas não há escolha, já passa de uma hora da madruga, e Dona Efigênia já ligou, e a jovem a se explicar, "mãe, aqui no Eldorado não tem ônibus, vamos ir de van mesmo!", e quando chegam ao Calafate, tudo às escuras. Uma árvore caíra, rompendo as linhas de transmissão.

    Encontraram Dona Efigênia diante de uma vela, e com péssimo humor, o que foi infinitamente desfavorável para Stevam Lucena, que pisava pela primeira vez na casa de Bianca Maria, e em semelhantes condições e circunstâncias!

    Mas ela, a jovem anfitriã, promete uma melhor recepção, no próximo sábado, até porque certamente sua mãe não deixaria, tão cedo, que a filha saísse de casa. afinal havia a promessa (quebrada!) de chegar antes de meia-noite!





Tópico: DEFESA PSÍQUICA

Ele: por que todo o sucesso de Harry Porter? Falta magia em nossas vidas?
E por que a busca por lugares ditos místicos? Vide o tal vale do amanhecer. Aqueles médiuns vestidos iguais a sacerdotes egípcios em pleno planalto central! Aquela mistura de indianismo, paganismo, espiritismo, haja sincretismo!
E os psicanalistas, imagine!, com todo aquele tom conciliatório de busca do Sagrado, do Divino. Coisa que Freud não hesitava em declarar Ilusão, necessidade de Defesa Psíquica, de dar um 'sentido' a nossa existência.

Ela: por falar em psicanalista, eu recebi um diagnóstico do psiquiatra..

Ele: os psicólogos, os psiquiatras classificam os humanos iguais os entomólogos classificam insetos, aracnídeos, colecionando borboletas por gênero, família... se você não é paranóico, é psicótico, senão é esquizofrênico. O próprio Freud era lá meio paranóico. Imagine: o pai da psicanálise!

Tópico: DEMOCRACIA

Ela: referendo é um tremendo mal-entendido.

Ele: igual a pensarem que vivemos numa democracia representativa liberal. Representativa, por que? Veja, os representantes do povo (assim se dizem!) apenas representam a si próprios, ou interesses de grupos econômicos ou políticos. O povo não tem representantes...

Ela: alienado, o povo vota em imagens.

Ele: este é um país sem revoluções - e quando ocorrem é de cima para baixo, vede 1930, ou 1964, que revolucionam apenas para continuar o mesmo, a mesma elite - não tivemos o abalo das revoluções russa, francesa, inglesa... e democracia liberal? Capitalismo democrático? Quer maior contradição que esta?


Tópico: ARTE

Ele: a Arte enquanto superação ou diversão? Veja aí as novelas 'globais', o trabalho de uma escritora como a Glória Peres (que literalmente escreve muito, umas doze horas por dia!) todo voltado para a alienação.

Ela: mas ainda é uma Arte...

Ele: eu vejo a Arte enquanto superação, despertar da alienação, mas o produto artístico televisivo é alienante, mantém a massa anestesiada. Despertar é perceber a tragédia das desigualdades sociais, e agir pela revolução.

Ela: arte revolucionária?

Ele: é como vejo. Ao estilo Maiakóvski. Arte ciando símbolos para a mudança. E não uma arte instrumentalizada, igual a esta da televisão.


Ela: pois é, mas o povo chega cansado, quer se divertir, relaxar...

Ele: daí eu não crer em revolução popular... mas, enquanto esquerdista, eu creio em mudanças, numa sociedade sem tantas desigualdades.


Tópico: LITERATURA NACIONAL


Ele: veja essa mania de ficar copiando europeu. Temos toda uma literatura aqui, desde Mário de Andrade, e ninguém valoriza. Veja que se Machado de Assis ainda segue padrões franceses, Mário de Andrade, que leu as novidades que Oswald de Andrade trouxe da Europa, digeriu as obras estrangeiras e pariu obras singulares. Não existe nenhum livro semelhante ao "Macunaíma", ninguém na Europa escreveu igual a Clarice Lispector, e no entanto, ela não foi reconhecida. Quantos prêmios nobel o Brasil já perdeu?

E outra: Mário de Andrade lutava por uma literatura nacional, um estilo nosso, e tentou unir os escritores, ninguém escreveu mais cartas do que ele...

Mas veja os hispânicos: famosos (desde Macedônio e Borges, e García Márquez), idolatrados na Europa, com realismo-fantástico, que explora o Absurdo, mas que teve doloroso parto nas entranhas da própria Europa, em Praha, nos pesadelos de Kafka. Os argentinos, e o colombiano, superaram o tcheco, melhoraram o original, entende? E mandaram de volta, e os europeus ficaram em êxtase!


Tópico: PADRÕES x LIBERDADE CRIADORA


Ele: há liberdade no ato criativo. O artista superando sua condição, coisa que já dizia Nietzsche.

Ela: mas há toda a influência que determina a criação...

Ele: você quer negar a liberdade? Mas, veja, pode-se criar a partir da influência, e superá-la, na forma de um estilo próprio. É, como diria Oswald de Andrade, antropofágico!

Veja bem, você lê Clarice Lispector, eu também leio Clarice Lispector, daí escrevemos com a mesma influência, o mesmo sentimento, no entanto temos estilos diferentes. É a singularidade do ato criativo. É desenvolver um estilo pessoal, singular, único.

Ela: tá certo, concordo que é possível ser livre ao criar...

Ele: e mais: negar até essa liberdade é aceitar a determinação, isto é, a repetição dos padrões. E a velha discussão: há uma ordem no Universo ou tudo é aleatório - Deus joga dados? Os padrões se repetem, nos gestos, falas, comportamentos, sem que tenhamos consciência. Uma dízima periódica tem uma ordem por mais que seja um amontoado de números. Matemática do caos: fractais: há ordem (padrão) na desordem (acaso). E os números refletindo a harmonia das esferas? Pitágoras! Está aí um autor que preciso reler. O matemático é o grande iluminado, não o filósofo, de Platão...


Tópico: COINCIDÊNCIAS E PADRÕES


Ele: às vezes, você passa junto a um telefone e este toca, ou então um carro vermelho passa todo dia, na sua rua, no mesmo horário. Fenômenos simultâneos... já viu o filme TRUMAN SHOW, onde o cara descobre que vive num mundo fake, falso, dadas as repetições, as mesmas pessoas, os mesmos acontecimentos... existem coincidências ou tudo está determinado, programado? Vivemos numa imensa MATRIX, onde repetimos, perpetuamos um programa, numa seqüência de padrões?
Eu detesto padrões, a pretensa normalidade...

Ela: então dizer que você é normal te ofende?

Ele: sim, me ofende. Eu detesto a normalpatia, o doente da normalidade, o cara enquadrado, todo formatado, padronizado, que segue todas as regras, normas, padrões, e se esforça para agradar gregos e troianos, e repete os chavões, os gestos, os preconceitos, as idiotices de um sistema de exclusão e alienação.

E, já aviso, você vai encontrar muitos assim, do seu lado, no trabalho, na sala de aula, nos corredores das faculdade, e vai morrer de tédio e raiva. Gente que é medíocre e se dá bem, sobe nos cargos, consegue promoções. Por que? Porque dança conforme a música, vão se adaptando ao ritmo e galgando posições, distribuindo sorrisos e gracejos, mestres na hipocrisia... enquanto isso, os gênios, os flutuantes, os criativos, ou se matam ou são crucificados...

Por que os gênios se matam? Ora, porque não querem ser cúmplices dessa palhaçada, dessa comédia que é trágica.

Desculpe-me, se eu vou falando muito, mas eu preciso argumentar, para não pensarem que é somente uma opinião minha, que não há todo um pensamento investido nisso...

Ah, querida, poso passar uma lista de autores de cada perspectiva, até porque estás muito conciliatória, mas preciso ir almoçar...






    Os convites de Leir Macedo e Alfonso Lucena chegaram por e-mails. Primeiramente o de Leir, desejando reunir os poetas, os velhos amigos, "que andam todos dispersos em seus logradouros" e depois, o de Alfonso, reforçando, e formalizando.

    Não só a curiosidade levou HD ao parque ecológico, mas também certa saudade. Principalmente de Leir, que se afastou para junto de seus contos, e sem apertar a mão de HD há quase um ano! E quanto a Alfonso, viviam uma amizade daquelas turbulentas, tão complicada quanto a de Goethe e Schiller, Byron e Shelley, Maiakóvski e Brik, Max Brod e Kafka, Lênin e Trótski, Sartre e Camus.

    Encontrou Alfonso em casa, logo no início do mês, sem mesmo avisar, e isso já bastou para irritar o amigo e literato, que detesta semelhante atitude. No entanto, se HD é formalista por um lado, e totalmente espontâneo em outro, por exemplo, a sua sem-cerimônia com os amigos, quando inoportuno, almoça e janta, dorme no quarto de hóspedes, e ainda pede um dinheiro emprestado! E como se não bastasse, depois foram visitar o escritor M., do qual Alfonso é fã confesso, e HD não poupou ironias, mesmo diante do literato, que vivia em sua ' torre de marfim'! E Alfonso ligou na mesmíssima tarde, dizendo, sério e lacônico, "não posso mais perder o meu tempo", recusando a amizade de HD, que entendera, "eu sei, não sou acadêmico e catedrático o suficiente para você", mas HD sabia que não era exatamente esse o problema.

    Mas isso era uma fase, outrora outras discussões. Mas sempre restavam a amizade, coisa de egocêntricos, que não podem viver sem os elogios do outro. E sempre surgia uma ocasião, tal a memorável tarde sob à sombra das chaminés do Itaú, no estacionamento do agora shopping, e andando depois junto as vitrines, discutindo o stalinismo, a ditadura do proletariado, os discursos de Fidel, recitando cartilhas políticas enquanto degustavam pastéis na praça de alimentação.

    Semanas depois resolvem participar de uma reunião dos marxistas, em plena Avenida Amazonas, numa tarde de sábado, e Alfonso perdera o endereço, e precisou fumar dois cigarros antes de lembrar-se, do edifício pelo menos, isso depois de entrarem em três outros! Depois a dificuldade foi lembrar-se do andar, e no elevador, subindo e descendo, parando de andar em andar, percorrendo os corredores até encontrarem vozes reunidas numa saleta discreta, onde o orador, um tipo boliviano, narrava as peripécias e vicissitudes de Che Guevara.

    E Alfonso incensava em comentários o seu faro de detetive de fazer inveja aos agentes do PIDE, da Gestapo e do CCC, em encontrar, isto é, rastrear e localizar os núcleos comunistas! Mas, durante a reunião, Alfonso ouvia atento, e cheio de respeitos e formalismos, o simpático orador e seu discurso sobre o necessário internacionalismo, e ainda mais quando HD solicita a palavra e denuncia a invasão cultural ianque e européia, enquanto os nacionais desconhecem a literatura hispano-americana, "riquíssima, em contextualizar, e denunciar, nossos problemas sociais, de longa data", e passa a citar Rulfo, Martí, Astúrias, Fuentes, García Márquez, paz, Arlt, Llosa, Onetti, Galeano, Allende, Sábato, Cortázar, Neruda, Mistral, Cardenas, Bastos, Carpenjier, Puig, Piglia, dentre outros, para a felicidade e contentamento do orador, que ali encontrava, diante de seus olhos incrédulos, um conhecedor de real literatura, "e não esses volumes ianques que descem, iguais as toras, Mississipi e Rio Grande abaixo."

    No entanto, nem HD nem Alfonso fizeram qualquer amizade no grupo, muito coeso e engajado, assim como nem HD nem Hélio Lúcio alçaram vozes entre os anarquistas, assim não mais voltaram, ou antes, Alfonso voltou sozinho uma ou duas vezes, segundo diria depois.


    E tudo isso HD pensa, relembra, rememora, sofre e deleta, enquanto folheia uma antologia de poemas de Maiakóvski, traduzidos pelos irmãos Campos e Boris Schnaiderman, volume este emprestado por Darío Sabine, e o qual HD nunca se animou a devolver.

    Alguém em passeio sob as árvores, observando as crianças em suas brincadeiras, certamente alguém que HD reconhece. E é Leir Macedo quem se aproxima, de óculos escuros, uma boina lembrando o Neruda, com sua pasta cheia de novidades literárias, e quer saber o que HD anda tramando.

    - Um romance de mil páginas sobre o nada.

    - Um novo "Ulisses"? Andanças de HD por Belô?

    - Você é um vidente, Leir! Estilo excessivo, labiríntico, fragmentado e estressado em pleno cotidiano, onde nada acontece. Nada de assalto, assassinato, crimes, a serem elucidados, ou conspirações a serem desmascaradas, e nada de adultérios, nem pactos suicidas, nem seitas esotéricas ou aliens que desejam dominar o mundo, muito menos jovens bruxos ou garotas com superpoderes! Quem quiser esse tipo de trama que compre o best-seller do mês! Há um excesso deles, um excesso de tudo aliás! Nisso penso ao contrário do Alfonso, que julga haver um vazio, um "vazio da época"! há um excesso e estamos todos desinformados devido a um excesso de informações, e nem temos certeza de coisa alguma devido a um excesso de ângulos, opiniões e perspectivas!

    E por falar em Alfonso, eis que o literato se aproxima. - Meus caros literatos! Aqui no refúgio dos bosques urbanos, à sombra das paineiras, em diálogos platônicos!

    E, após ligeira troca de abraços, convida: - Eu preparei para nós, os eleitos, uma sala ali junto a entrada. Espero que seja confortável.

    Realmente confortável, e o esforço era nesse sentido. Mas antes de adentrarem o recanto dos literatos, aproxima-se a figura de Dalton, o "Vladimir", com sua ciência de professor e cadência de boêmio, pronto a despejar lírico protesto sobre os alienados!

    Alfonso dispõe-se a relatar novidades, em concisos informes, enquanto HD vai colhendo jornais e zines, ali disponíveis, pousados sobre as cadeiras. O escritor M. está presente, e também o estudante Soares, ainda tecendo seus estudos sobre os poderes, e sobre os livros sagrados de todas as religiões, "que não passam de apenas um - os humanos que se deixam guiar pelo não-humano!", ele insiste.

    Seguem-se ora lacônicas, ora verborrágicas apresentações, além de poses para fotos, e declamações gestuais de Leir macedo, antes que HD leia o seu poema, ao estilo Maiakóvski, "A miséria ama companhia"

"miséria adora companhia
                                     para culpar dos infortúnio
                                                                           outros miseráveis"

E que conclui,

"se preza a companhia
                                é porque a miséria
                                                              jamais se cria sozinha.

Na periferia da periferia
                                    A periferia da cidadania."




    E Dalton não pode deixar de ler seu "Que se exploda!", poema visceral que ainda o deixará célebre, e mal-visto entre alguns,

                              "Que se exploda os intelectuais!
                               Que se exploda a academia burocrática dos letrados!"

    E o outro-Stevam chega quando Dalton já prepara-se para seguir rumo ao poente, para os braços da amada, que, todos sabem, não pode ser deixada à espera. Nota-se que HD acompanha Dalton até a saída, certamente a esperar um modesto empréstimo, mas desta vez Dalton não foi tão generoso.


    Mas Stevam Valêncio entrega-se ao seu poema sobre "o asfalto até nas almas", e nossas vidas meio aos monóxidos, no entanto, Leir distribui suas despedidas, e os amigos resolvem beber ali no barzinho diante do parque, convencidos pela generosidade de Alfonso e do Soares, que prometem pagar a conta, e o outro-Stevam aproveita para pedir uns cigarros avulsos, e pelo menos dois foram parar no cinzeiro de Alfonso, que discute a literatura local, com seus vultos e sombras, os escrevinhadores em gabinetes e masmorras.

    - O pessoal se esforça, rabisca umas frases, e revisam, cortam, reescrevem, se entregam a suores estéticos em noites de insônia, mas é de dar dó, meus caros, pois não chegam a lugar algum.

    E de súbito está abatido pelo peso das próprias declarações, e mais ninguém está animado a colóquios literários.

    - Eu trocaria a literatura, de bom grado, por uma loira peituda.

     Claro que ninguém acredita que HD acabou de dizer isso! "É só para relaxar um pouco!", ele em vão se explica.

    Alfonso e o Soares preferem continuar bebendo, mas HD e outro-Stevam concordam que o melhor a fazer é dar umas voltas e seguem a João César, repleta de vida noturna e mocinhas desfilando.

    - E aquela garota que te virou a cabeça?

    - A Cibele? Ótima coadjuvante para o nosso enredo.




    O bairro Calafate segue constrangido entre a via férrea, tendo por acréscimo a linha do metrô, e a Avenida Amazonas, que se derrama desde o hipercentro. Formado em torno da coluna vertebral da Rua Platina, onde comércio, polícia e religião se encontram, ainda que não se confraternizem, o bairro é uma amostra do casario das décadas de vinte e trinta, muitos ainda conservados, que abrigou os mestres de obra e os pedreiros que ergueram a capital de Minas.

    Se muitos dos funcionários habitavam o Prado, o Carlos Prates e o Alto Barroca, a maioria dos serventes e pequenos comerciantes, antigos mascates, se concentraram na faixa que vai do batalhão até as margens do ribeirão Arrudas, hoje uma avenida sanitária, a Teresa Cristina, atualmente a ligar o Gameleira ao Betânia, e região.

    Não foi por nenhuma das vias rodoviárias citadas que chegou o esperado Stevam Lucena. Aguardado em casa de Bianca Maria desde as 18 horas, só conseguiu chegar às dezenove, alegando ter perdido o metrô. A estação é ligada a Platina por uma passarela, a desembocar na área das agências bancárias, e Stevam ainda andou cento e poucos metros rumo a igreja matriz, a São José Calafate, de onde a rua desce e atravessa a avenida Silva Lobo, a subir, do outro lado, rumo a rua Campos Sales.

    No entanto, se Stevam Lucena percorre toda esta geografia, dedica pouca atenção, mais ocupado com seus monólogos interiores, daqueles que não levam a lugsr algum, do tipo 'agradarei minha sogra?' ou 'isso de encontrar mocinhas em casa de família é muito romântico' ou 'não devia ter me atrasado, visto que isso causa péssima impressão'.


    Abandonando o prosaico, tudo se torna lírico quando Bianca Maria abre aquele conhecido portão azul, recortado no muro alvo, que separa o sobrado do tumulto da rua. Um vestido simples, sem maquilagem ou outros enfeites, ela oferece um acolhedor sorriso de 'até que enfim você vai conhecer a minha casa'. E Dona Efigênia na cozinha, a preparar a sonhada torta de chocolate, o segundo motivo da visita.


    Uma atordoante melodia, um duelo de delicado soprano feminino e medonho gutural masculino, "a bela e a fera", vazava do quarto de Bianca Maria, para onde ela o conduziu, após alguns minutos de protocolar e salutar conversa com a mãe anfitriã. E, por segundos, Stevam Lucena lembrou de acordes de Theatre of Tragedy, banda que muito o agrada, e que ouvira muito, ao lado de Oto e TH, ou nas noites de RPG à luz de velas com Elias ou Erik, e pensou por um segundo, se ela colocara aquela trilha sonora para agradá-lo, porém distinguiu logo a sonoridade, quando o vocal feminino se elevou, e percebeu seu engano: é Within Temptation, banda que a agrada mais que a mencionada Theatre, "Que tal o meu quarto?"

    Uma penumbra, e uma luzinha rubra brilha num canto, e um guarda-roupa simples, e uma escrivaninha com o aparelho de som. Junto a porta, um armário, e atrás da porta, uma prateleira para calçados. Sob a janela, e ao lado da cama, um criado-mudo com um enorme sapo verde, além de figuras lendárias e míticas, além de uma pavorosa aranha negra de plástico, que por instantes parecia real!

    "Assustador", ele diz, e volta-se para a escrivaninha, onde agora repara, sob uma capa plástica, o formato do PC, de onde ela enviava aqueles e-mails adocicados. Na parede, entre o guarda-roupa e a escrivaninha, vê-se, um quadro: dois jovens arlequins em pranto. Abaixo, recortes e folders, bem visível, por exemplo, aquele mesmo folheto do "Leis da Noite", de meados de dois mil e três, o primeiro que ele presenciou, antes de insinuar-se no casarão do TH, e era de um quadro de Munch, uma mulher de cabeleira rubra, uma vampira fatal, e para completar todos os paralelos e coincidências (existem coincidências?), eis que Bianca Maria estende a Stevam Lucena uma folha datilografada, e trata-se de um dos poemas colados na parede do matriz, em fins daquele ano, é intitulado "Catarse" e plenamente escrito após aquele show sombrio e lírico no centro histórico, uma semana antes. E ela guardara a folha por todo esse tempo! "Achei lindo o poema, por isso guardei", e ele deixou-se a ler, lançando olhares de assombro místico, e diz "Acredita se eu te disser que nem eu tenho mais cópia deste poema?", e era verdade, ele não tinha muito cuidado com o que escrevia, a rabiscar em papéis avulsos, ou guardanapos, distribuía para os amigos, depois não se recordava mais.

                                             "Come into my world,
                                             See through my eyes.
                                             Try to understand,..."

    Ele ouve um trecho da canção que é despejada no quarto, e mentalmente, quase instintivo, pode traduzir, "venha para o meu mundo, veja através de meus olhos, tente entender...", e tudo parece ligado, igual ele lera naquele soneto do Baudelaire, sobre as "correspondências", realmente tudo é uma "floresta de símbolos", mas a voz dela o despertou do devaneio, "Quer ouvir um outro som? De repente você ficou abatido...", "É um tanto triste", ele diz ainda cabisbaixo.

    Então um silêncio , o girar do CD no equipamento, e outra melodia se eleva, e conhecida, de minissérie global, baseada em obra de Eça de Queirós, em acordes lusitanos, uma voz de ninfa,



                                             "Ai que ninguém volta
                                              ao que já deixou..."

    Sim, Madredeus, esse é o nome do grupo, em belíssima canção, e um nevoeiro de imagens de outrora ameaça tragar o ouvinte, um sorriso de Sônia Regina, uma palavra de advertência de TH, uma certa noite quando retornava para casa, e uma moça se debruça da varanda sob a luz mortiça do poste, e ela sorriu, e ele se afasta tímido, e nunca mais a viu, nem procurou saber quem era, o que fazia ali, àquelas horas adiantadas, mas ali no quarto a voz flutua na canção,

                                              "Ai que ninguém lembra
                                               nem o que sonhou..."


    E Bianca Maria o convida a se acomodar ao seu lado na cama, sobre a colcha com motivos infantis, fadas e anjos, e um gorducho gato branco aparece, com imponentes bigodes empinados, incomodado com a presença do estranho. Incomodado, corrigi-se, por tratar-se de uma fêmea, "É a Sherezade. Não parece uma princesa?", e Stevam Lucena só espera que a gata não comece com infindas histórias, e aquela cena desperta recordações de Sônia Regina meio aos gatos de Oto Marques, ou a brincar com os gatos de sua mãe Nádia, em distante e sepulto passado.

    Mas logo a mãe, Dona Efigênia, anuncia o jantar e a torta de chocolate, e degustam os pratos, pois a mãe é hábil cozinheira, enquanto as canções lusitanas se sucedem e os temas se alternam de gostos musicais a desejos artísticos, passando pela atual ocupação profissional de Stevam Lucena, que esclarece trabalhar com digitação, e não esclarece muito.

    De volta a penumbra do quarto, é de bom-tom alternar a trilha sonora, ainda que a música seja maravilhosa e ambos se sentam às margens do Tejo, ou um rio de longínqua aldeia, e se querem continuar viajando, Bianca Maria elege uma cantora de canções folclóricas, ou resgatadas de cancioneiros populares, ou recriações e composições próprias, inspiradas em semelhantes tradições, e exibe para Stevam Lucena o encarte do álbum, Loreena McKennitt, "The Mask And Mirror", e uma canção com algo de ibérico, de marroquino, passeia pelo quarto, e já ambos estão presos aos abraços, e a doçura da melodia embala um momento de sem-tempo, uma época a expandir do quarto, tirando a cama de um aqui e agora, além das turbulências do metrô que passa, aos fundos da casa, além do vulto da gata que se insinua no quarto, como se fosse um daqueles tapetes voadores das "Mil e Uma Noites', e além de Minas, e além de Bagdá, já flutuassem rumo às terras longínquas somente alcançadas nos sonhos, e os beijos são beijos de todas as fantasias acalentadas.

    Perfumes se mesclam, e dela os gemidos são aromas, "eu adoro o seu cheiro", ele sussurra, e uma canção em tradições árabes se deixa verter, em paisagens sonoras de um certo mercado noturno em Marrakesh, "onde vultos se aproximam em círculos, com tochas que iluminam suas faces", e ele vai traduzindo a canção, em lento sussurrar, e ela entrega-se a distante viagem, "a lua crescente agita-se no céu, e os poetas dos tambores mantém as pulsações suspensas, e a fumaça vai girando e sumindo..."

                                                 "Would you like my mask?
                                                  Would you like my mirror?"

e os olhos dela assim fechados, e os lábios dele se encontram em seus ouvidos, balbuciam sílabas arabescas no voltear das orelhas, "você pode olhar para si mesmo, você pode olhar um para o outro",


                                                 "You can look at yourself
                                                   You can look at each other"

e os vultos parecem estar todos ali, naquele quarto, olhos postos sobre aquela cama, todos em círculo, e com suas tochas, seus olhos em chamas, a refletirem as labaredas, todas aquelas chamas, de ardor, de devoção religiosa, de paixão, de reencontro.

                                                  "The stories are woven
                                                   And fortunes are told..."

e ele, em sussurros, "as estórias são tecidas e as fortunas são narradas", e os vultos olham para os horizontes da procura, e ele vê os vultos se afastarem, iguais aqueles monges do clipe do Joy Division, "Atmosphere", onde os monges na praia, mas não há monge algum, não há praia alguma, e ela abre os olhos, tão logo a canção finda, "Sabe que eu te amo? Eu te amo, meu poeta!", e parece que ele nunca se acostumará a esse 'poeta' vazado dos lábios dela. Ele, um poeta? Será realmente? Então, aquela, ao seu lado, é sua esperada musa, e ele diz, "eu te amo, minha marroquina", e uma nova canção se inicia.




Data: Sat, 29 Oct 2005 - 19:09
De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Assunto: eu confesso, sou injusto
Para: Valkyria [amanda.dark@XXX.com.br]
Cco: bianca maria [abeatadanoite@XX.com.br]


Olá Amanda,

Saudações.

Recebi a tua carta - e entendi. A mágoa, a raiva, a frustração.
e concordo, compreendo mesmo: eu não presto.

Estou sendo injusto com uma pessoa especial, surpreendente
mesmo. Por que vivemos tão distantes? Por que?


Eu tento encurtar as distâncias - tempo e espaço - mas
confesso que não consigo. Estou muito confuso.

Não consigo me decidir por qual amor. Eu te amo, mas
com algo de sublime, meio platônico.

E fico magoado quando insultas a Bianca. Sim, pois ela sabe
De tudo e compreende. Não, a Bianca não é bonita, é
Simpática.

Tem uma consciência impressionante - e sofre. Uma personagem
de Dostoiévski.

E não era um lance erótico. Ela parece uma beata - 'a beata da
noite' - toda reservada. Demoramos quinze dias para andarmos
de mãos dadas e quarenta dias para o primeiro beijo.

Então, Amanda, pela nossa velha cumplicidade, desejo solicitar
que não ofenda a imagem da Bianca. O errado aqui sou eu,
que não consigo me decidir.

E não é ela que me persegue, sou eu quem a persegue.

A Bianca também sofre, eu sofro, todos sofremos. Todos
precisamos de atenção e compreensão.

Eu entendo a tua ira - eu realmente estou sendo injusto.
preciso, então, escolher.



Stevam






 
[...]


LdeM

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