sábado, 9 de julho de 2011

... fim do Capítulo 3

[...]



    Quando HD chegou ao Festival, vindo das névoas frias da noite, logo encontrou Alfonso degustando uma taça de vinho.

    Um locutor frenético tentava animar a massa, e uma voz feminina reclamava a presença de Alfonso, mais preocupado com suas atividades clandestinas de contra-propaganda.

    “Isto é um poema ou um discurso?”, gritou um jovem alienado, estando Alfonso já ocupado na leitura declamatória de suas andanças.

    Mas HD trocava sigilosas informações com Hélio Lúcio e logo estavam diante de uma garrafa de vinho barato, o primeiro comentando seu propósito de realizar eventos sem envolver-se com política ou religião, “Coisa difícil, aliás”, e o segundo, pinçando da pasta um volume de crônicas de Rubem Alves, “Preciosidade, diga-se”, anunciava seus planos de intervenção poética.

                           “Pensares transitam entre leituras, lembranças e conversas.”

    Soa a voz drummondiana do Alfonso. Poucos se interessam. A garotada está é esperando os shows musicais – e esqueceram a sensibilidade em casa.

                               “Olhar para o céu alivia? Serei sugado pela lua?”

    HL aprecia o vinho gélido e os poemas começam a surgir da manga de seu smoking impecável. O povo lá embaixo se assusta com o enfático “lucro burro!” que o declamador, sob o onipresente adágio de Albioni, derrama sobre os indiferentes, “Tudo à venda, nenhum poema.”

    Alguém resiste... “Há resistência? Há ataques-bomba!

    As células anarquistas são reveladas, CPIs são convocadas para a sumária investigação de atos terroristas. Todos os sonetos, com temática considerada subversiva, são confiscados. Incinerados.

    HL ergue sua taça de vinho com toda a sua pose de cobrador do Imposto de Renda, confirmando o empolgado Alfonso, “Mas ainda sobra nossa groselha com cachaça”, confirmando o Drummond, “Meu verso é minha consolação. Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.”

    Saudações aos escritores e músicos, e depois se percebem declamando poemas na porta do W.C. Em seguida planejam uma operação de evasão no intuito de visitarem o primo Lúcio.

    Consta nos relatórios que eles conseguiram. Estabeleceram contato e arrastaram o primo – sem emprego de força física, apenas leve coação. Mas HD e HL seguem para a execução de importante tarefa: provisões. Acabam num trailler de sanduba e lembrando as últimas ações em prol do movimento poético.

    Enquanto isso, o grupo principal dos fuzileiros é surpreendido pela chegada do outro-Stevam, um tanto ‘alto’. Quando os dois desertores retornam, logo encontram o pensador suportando as bandas de rock gospel – opa! – o que só podia significar: a erva!

    Fumo ritual e poesia no ar. Augusto que fumou o próprio cérebro. Fumam até os poemas (literalmente!) pois na falta de papel fumam um poema rascunhado! E recital nas sombras dos muros musguentos!


    Delírios à parte, ainda tentaram voltar ao Festival – um porre total – mas feita a votação, ou a convocação, e todos conduzem o primo a seu QG e o restante deserta da formação, a perambular pelas ruas. É necessária a disciplina, e assim, em formação estratégica, Alfonso assume o comando da operação de retirada. “Infantaria, avançar!” Enquanto isso, HD, restabelecendo a rota, discute com JJ as táticas militares da cavalaria polonesa e as vanguardas suicidas nipônicas. De súbito, Alfonso e outro-Stevam são tragados pela terra. Atravessam uma jungle. Reaparecem meia milha depois. O pelotão já em descanso. Não reconhecem o uniforme. “Fogo amigo!”, “Permissão para contra-atacar, senhor!”

    Mapa aberto e o movimento da tropa é planejado. Duas trajetórias são traçadas. O Estado-Maior é a favor da invasão por cima, os graduados apóiam a invasão por baixo – já outrora bem sucedida. Mas o comandante em exercício, Alfonso, guia rumo ao ataque por cima. No último momento é obrigado a recuar devido as dificuldade apresentadas pelo terreno. A infantaria segue o asfalto e alcança a linha férrea em tempo hábil. Nenhuma baixa. Moral elevada.

    Logo alcançam a fortaleza assinalada e tomam posse do ponto estratégico. HD permanece de sentinela. Os outros cochilam. A noite está fria. O turno será árduo. Um quarto de hora depois, o Alfonso vem rendê-lo. Mas HD insiste em manter o posto. Conversam. A Revolução, a Guerrilha, a Indústria Cultural. A Contra-Revolução, a Contra-Cultura, a Contravenção.

    Alfonso retoma sua seriedade e HD insiste em sua posição, não é reacionário nem niilista. O Alfonso é capaz de passar de monarquista a socialista. E lembra TH, o aristocrata filantropo. O que incomoda não é o sistema – é estar SOB o sistema.

    Nisso até HL acorda e por pouco não despenca lá de cima da torre, arduamente conquistada. Vultos de inimigos deslizam diante do agora místico Alfonso. Até HL é contagiado. A temática agora é Os Espectros.

    Madrugada. Frio. Serenando. Descem da torre e seguem atravessando a solidão das ruas. Um batalhão em retirada, em frangalhos. Rumo ao porão do outro-Stevam. Baixas de cansaço ao longo do percurso. Alfonso desiste do abrigo no último momento. Bravo soldado cumpridor de seus deveres.


(o dia seguinte)


    HD só pode dizer que atracou seu vaso-de-guerra, após atravessar as brumas oníricas, no posto avançado das doze horas. Um rápido desjejum, uma anotação no diário de bordo e se reúne ao outro-Stevam e Hélio Lúcio, já animados quando surgem JJ e seu irmão KL, banda de violão e percussão.

    Após todos os acordes depressivos de seu despertar, HD (ao som de Ludwig van Beethoven) se anima a recitar uns versos, auxiliado nesta tarefa pelo oficial HL.

    Permissão para descansar. Vinho e músia ao vivo – improvisada – até que surge a fome. Os irmão se vão, ficam as melodias.

    Almoço e sono.


    Quase crepúsculo – despertar. E não é que surge o Alfonso! Conseguira a requisição do jipe militar do general (em código, o carro do pai) e uma missão de reconhecimento na cidade vizinha não estava descartada.

    Acordes de rock progressivo emolduram o poente e campinas inglesas chocam-se contra o pára-brisa e ovelhas pastando sobrevoam os cactos agrestes e solos de guitarra conciliam a máquina e o poema. Assim na estrada, on the road, os jovens beatniks alcançam as margens da metrópole, insistindo nas piadas de gênero.

    Na zona sul – hotéis de luxo, belas mulheres, bares e celebridades – procuram um vaga. Seguem até a Praça da Liberdade e eis um show de música brasileira com poemas musicados.

    A missão é ler os poemas grudados na grade, antes que os curiosos arranquem todos. Mas HL está ocupado em atender misteriosos telefonemas, e HD em missão de reconhecimento, e Alfonso preocupado com a propriedade paterna.

Alf: Por que a mente sempre em outro lugar? Por que não contentar-se com o aqui e agora? Mas sempre estando aqui querendo estar lá?

     “Now and here – ou seria Nowhere?”

      HD: Baudelaire morria de tédio em Paris, imagine!

    Assim, após lerem singelos versos, se deliciarem com harmônicos acordes, se enamorarem das lindas garotas em flor, voltam, os jovens, para os subúrbios, ouvindo brit pop, “Be Here Now”, do Oasis, melancolicamente.

    Tentam ocupar as ruínas, encontrar flores no asfalto, elevar versos contra a opressão, recepcionar os mendigos como se fossem irmãos, “Todas as criaturas que são inúteis e existem”, pobre Drummond.

     HD: Cara, Baudelaire aqui não durava uma semana!

    Depois apenas Alfonso acompanha HD até o metrô.



...



(do diário de HD)

(2004)

dom, 15 agosto

    Agendei um encontro com os amigos no 5o. Salão do Livro. Afinal a programação anuncia um sarau de poesia para às 18h30. Chacal, Carlos Ávila, Ricardo Aleixo, Ana Elisa Ribeiro e o pessoal do Estilingue, estudantes da FALE.

    Enquanto eu admirava a exposição de fotos e documentos sobre a ditadura militar, com tantas denúncias de ilegalidades e abusos, respirando aliviado por viver numa (dita) democracia, ainda que falha e imatura, aparece Alfonso Lucena e sua amiga (e literata) Meire. Vou logo sondar notícias sobre Hélio e Valêncio.

    Um estudante, com um megafone, causa alvoroço ao declamar um poema em formato protesto, ao estilo hip-hop, como se estivesse num show do Rage Against The Machine, mas é só o começo pois os manifestos, os libelos, os discursos líricos apenas começam.

    Chacal apresento sua poesia urbana e engajada, algo beatnik, que muito agradou a Alfonso, e Ricardo Aleixo mostrou seu intercâmbio poesia e música, a indagar “Você se julga humano? Ou demasiado humano?”, flertando com sonoridades de hip-hop, raps a la Racionais MC, e outras linguagens áudio-visuais, jogando com o corpo e com a imagem. Uma tecla reproduzia, em garrafais, trechos de seus textos.

    Já o poeta Carlos Ávila é o ‘anti-performático’, pois acomoda-se na cadeira, sob os holofotes, e lê seus poemas curtos, com toda a fleuma, com a sucessão de descrições, fotografias cotidianas, referências poéticas, menções a Baudelaire, muito didático, apresentando cada texto, no que foi muito aplaudido.

    A poeta Ana Elisa Ribeiro agradou muito a entusiasta Meire e não menos ao explosivo Alfonso, que não pouparam desfiles de elogios. Feminista irônica, Ana Elisa não hesitou em farpas líricas contra os machões de plantão, mas celebrando a sensualidade.

    Ao fim do empolgante sarau, encontramos Hélio, lá todo impecável em seu traje social, a trocar saudações com o poeta Ricardo Aleixo. Depois, muito cordial, Hélio acompanhou-nos até os stands onde outro poeta, o experiente Rogério Salgado, atento às canetas que se exibiam em bolsos alheios, passeia meio às miríades de livros, títulos, autores, editores...

    Alfonso logo se despede, pois promete levar Meire em casa, e são quase 21hs, ele diz, sorrindo. Não acusamos malícia alguma, mas pode-se esperar tudo do Sr. Lucena.

    Então ficamos eu e Hélio, num perambular de stand a stand, “Quantos livros você lê por mês, hein, Hélio? Uns dez? Menos? Ah, cinco. Assim, calculemos uns cinqüenta livros por ano. Muito? Certo, mas mesmo assim, em dez anos serão quinhentos. E, somente nesta prateleira aqui, devem ter mais de cem. E são (contemos) seis estantes, cada uma com sete prateleiras, assim temos uns quatro mil e duzentos livros. E assim você vai precisar de oitenta e quatro anos para ler só os livros deste stand!”

    - Nauseante!, ele diz.

    - Eu completo: “Não podemos mais dizer com aquele enfado do Mallarmé, “Ah, li todos os livros!”, e ele diz, “Sabe? Estou sufocado aqui.”

    - É, eu sei, concordo. Bibliotecas e livrarias também só me causam claustrofobia.


    é sábado, 04 setembro


    Depois de encontrarmos Leir Macedo no Centro de Cultura, onde ele é responsável pela exibição de filmes, e comentários posteriores, eu e Alfonso resolvemos visitar o poeta e professor Carlos Antônio.


    Em cena que me traz à lembrança aquela visita que eu e Darío Sabine fizemos à professora de História, a conscientizada e sempre simpática Lia, sentamos eu e Alfonso na sala de estar do professor de literatura, onde outro professor (de Antropologia, ênfase em indígenas) reside. (Semelhanças? Se não me engano, Lia compartilhava o apartamento com um professor de Geografia. República dos teachers?)

    Outra semelhança: ambos os professores são de orientação marxista, e já militavam na esquerda em tempos de fins da ditadura.

    Enquanto eu lembrava destes detalhes, a conversa entre Alfonso e Carlos Antônio segue regada à cerveja e intertextualidades, referências de parte a parte, citações de obras um do outro, intelectualidade e ação social, arte e engajamento político, a literatura não é panfleto, juventude e a apatia política, tropicalismo e utopia, jazz e geração beatnik, Caetano, o cooptado e Chico, o midiático, além de contextos históricos, Lênin e Maiakovski, Hitler e Brecht, Pinochet e Neruda, Você gosta deste disco da Violeta Parra?, Desculpem-me, mas estou com dor de cabeça.

     E ainda estou, mas escrevo.





...



    Início de primavera. Vento e poeira dançante.

    HD, mochila nas costas, rumo ao parque ecológico, lamenta sua ausência no lançamento do livro do Leir Macedo, na noite passada, no centro histórico. Recebera o convite de Alfonso, mas não se animou.

    Quando chega ao Parque Ecológico, após decorar poemas ao longo do caminho, HD telefona para Alfonso, que mora distantes três quarteirões. Enfim, materializa-se o anfitrião-mor. E entram na primeira lanchonete avistada, onde Alfonso desliza o dedo no cardápio e pede dois sanduíches, e um drink especial.

    - Para o meu amigo aqui. Que veio de San Francisco...

    - I don’t understood... – HD imita o sotaque gringo, que deixa a atendente confusa.

    É que ele não entende a gente. mas prepara aí um no capricho! – e apontava o Menu, fazendo questão do bacon e da batata-frita.

    - How do you do? – resmungava HD junto a garçonete, outra sem entender o que seja.

    Depois, quando findo o lanche, deram o fora, caíram na risada. “Você é impagável, Alfonso!”

    - Hey man, come on!

     - Então, as torres desabaram...

    Alfonso move a cerveja contra a luz lembrando o atentado contra as torres do World Trade Center e suas conseqüências econômicas, bélicas e simbólicas.

    - Veja as visões de Kerouac sobre árabes invadindo New York...

    Mas Leir Macedo surge detrás dos óculos escuros, a la Bono Vox, e o palco precisa ser montado, pois estão ali na arena das conflagrações poéticas. E Álvaro, o ator, vem carregando toda a sua curiosidade, lembrando a ode que Fernando Pessoa-Álvaro de Campos dedicara a Walt Whitman, e é justamente lendo Walt Whitman, “Starting from Paumanok”, “Saindo de Paumanok”, que HD invoca os espíritos de andarilhos poéticos.

    Imaginem Walt Whitman, jovem, saindo de casa, mochila nas costas, todo otimista, olhar sonhador, espírito atento, em andanças e ânsias, observando e anotando... “Eu conhecerei as terras contemporâneas, Eu vou trilhar a completa geografia do globo e vou saudar cortesmente cada cidade grande ou pequena...”

    Enquanto os olhares se dirigem às folhas que caem do alto, às nuvens que correm pachorrentas, aos acordes que desabam de um saxofone choroso.

    - “Eu sou o crédulo homem de qualidades, épocas, raças, Eu ultrapasso as pessoas no próprio espírito delas, Aqui está o que canta a irrestrita fé.”

    E ao som de jazz, Alfonso lê o longo “Eu canto o Corpo Elétrico”, em tradução de Ivo Barroso, “O corpo do homem é sagrado e sagrado é o corpo da mulher, Não importa quem seja, é sagrado ...”, enquanto olhar luminoso de Flávio Toledo encontra o grupo m seu piquenique lírico sob as árvores, e “Olá, Hector!”

    - “Cada homem ou mulher tem seu lugar na procissão. Tudo é procissão, O universo é um procissão com seu movimento perfeito e ritmado.”

    E HD, ao som de Björk, continua a invocação de Whitman, com leitura de trechos de “Song of Myself”, “Canto a Mim Mesmo”, “Eu sou o poeta do Corpo e sou o poeta da Alma, Os prazeres do Céu estão em mim e os sofrimentos do Inferno estão em mim, O primeiro eu enxerto e amplio ao meu redor, o segundo eu traduzo em nova língua.”

    - Não entendo todo esse saudosismo dos anos 50, 60... – sussurra Álvaro ao ouvido de Leir Macedo.

    - É porque não vivemos lá.

    - “Walt Whitman, um cosmos, de Manhattan o filho, Turbulento, carnudo, sensual, comendo, bebendo e procriando, Não sentimentalista, não estando acima dos homens e das mulheres, nem apartado deles, Não mais modesto que imodesto. Tirem as fechaduras das portas! Tirem as portas então das paredes!

    E eis que o bardo Hélio Lúcio precipita-se na arena, com sua alma simbolista e sua fala beatnik, quando, ao som de acid jazz, Leir Macedo inicia o longo e turbulento e visceral, “Howl”, “Uivo”, de Allen Ginsberg, “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,...”, saltitando e dançando em gestos em tremores nos degraus, sapateando nas folhas secas.

    Uivo que Hélio Lúcio continua, de “que exigiram exames de sanidade mental acusando o rádio de hipnotismo & foram deixados com sua loucura & suas mãos & um júri suspeito,...”, destilando a tradução de Cláudio Willer, enquanto seus óculos escuros a la “MIB – Homens de Preto”, rodopia junto ao rodopio das folhas secas, num bailado tosco sobre o concreto e a relva pisada, “e por isso correram pelas ruas geladas obcecados por um súbito clarão da alquimia do uso da elipse do catálogo do metrô & do plano vibratório”, enquanto Leir Macedo vibra, e Álvaro, o ator, arrepia-se, e o primo Lúcio deixa-se hipnotizar pela queda das folhas, e HD estende saudações a Flávio Toledo, velho amigo, que está impressionado (“Quem é aquele cara que ficou ali lendo durante uns vinte minutos?”, “É o Alfonso. Lendo um poema do Whitman.”), e Alfonso, o mencionado, está ao lado de A. G., o multi-instrumentista, a cuidar da trilha sonora, com aquele jazz psicodélico com saxofones uivantes, e “com o coração absoluto do poema da vida arrancado de seus corpos bom para comer por mais mil anos!”, em grande catarse, eu disse CATARSE!, mas para embebedar-se de vinho, na praça, depois que o Parque fecha, carregando o som portátil e ouvindo Massive Attack, Radiohead, Travis, The Doors, enquanto compartilham a garrafa, enquanto se deixam cegar pelo sol poente, quando A. M. Pena surge, ladeado pelo primo Lúcio, em seu carro, rodeando a praça de olho nas garotas, mas apenas abordando os poetas, que acabam por se amontoar na reclusão do carro enquanto viajam pelo bairro residencial, pelas avenidas comerciais, pelo complexo industrial, pelo novo conjunto habitacional, pelas ruas entulhadas de coisas e pessoas, assim amontoados, Alfonso pesando sobre HD, Hélio Lúcio e A. G. (“Que troço duro é esse nas minhas costas?”, grita Alfonso, “É o seu joelho, Hélio?”, “Não. É outra coisa.”, diz Hélio Lúcio, a sorrir malicioso.), e Lúcio, o primo, fala sem parar no ouvido de A. M. Pena, que recusa bebida, que recusa cigarro, que recusa baseado, que recusa fumaça, que recusa tanto falatório, que recusa simplesmente.

    Na casa do primo há um churrasco, mas A. M. Pena já chega com acentuado mal-estar, quase em desmaios diante de poetas tão febris, “Um bando de loucos, é o que digo!” e a família do primo não se importa, a mãe é até muito festiva, oferece asinhas, oferece cerveja, oferece lingüiças defumadas, oferece sal-de-frutas (para A. M. Pena), oferece atenção (para HD) e o primo quer conduzir os beatniks para a zona boêmia, mas acabam no centro histórico, e o primo volta para socorrer o A. M. Pena.

    No bar, “Onde estão as garotas?”, todos entediados, “O absurdo que é pensar no absurdo!”, onde o garçom se julga o fanático-mor do rock’n’roll, “Nossa banda toca Led Zeppelin e”, onde as mesas ocupadas por notívagos, desocupados por notívagos, desocupados, estudantes desempregados, atendentes de lojinhas do shopping, maridos traídos, donas de brechós nos subúrbios, balconistas de outros botecos, “Você se lembra do show do Deep Purple?”, e o garçom mostra-se uma enciclopédia do rock igual ao Adriano Falabela, enumerando listas de guitarristas, a repetir Jimi Hendrix a cada dois nomes citados, pois “ouviram Jimi Hendrix, e a influência de Jimi Hendrix, e a técnica de Jimi Hendrix”, etc, e o pensativo Hélio Lúcio presenteia Alfonso, já melancólico, com uma mão no ombro, “É. O mistério é haver quem pense no mistério.”, e HD acusa os versos de Alberto Caeiro, e Alfonso sorri melancólico, e o garçom serve a segunda cerveja, mas a terceira eles recusam, já estão embriagados de tédio, “Nem uma banda ao vivo para animar a gente!”, grita HD contra a noite ampla, onde mergulham, onde Hélio Lúcio e HD perambulam enquanto Alfonso volta pra casa.

    (o dia seguinte)

    Amanhecem no Parque Municipal, com o sol na cara (ou na moleira, depende da posição e incidência dos raios), ouvindo o Bolero de Ravel, que a Orquestra toca, refulgente ao brilho dos metais, esfuziante com o ímpeto do maestro, e a loira, ao lado, está encantada, e Hélio Lúcio está encantado, e HD descobre o vulto a la Poe, sim, Stevam Valêncio, que fuma distraído, que observa distraído e, distraidamente, convida os poetas para o almoço – na periferia!

    Assim, segue-se (na ordem) metrô, coletivo, sono no coletivo, almoço, rock progressivo, sono após o almoço e durante o rock progressivo, tédio, a chegada de JJ (desta vez sem o irmão KL) com velhas discussões sobre o sadismo dos HQs e dos desenhos animados, quando Stevam Valêncio acorda no porão e todos resolvem subir a colina ao crepúsculo, envoltos pela metafísica da poesia, “Estamos sós no universo?”, enquanto apontam para as primeiras estrelas e vislumbram o mar de luzes piscantes da cidade, néon, vapor de mercúrio, faróis insanos, e observa com pavor, a vida que os espera, ao dedilhar dos acordes e escoar dos versos, ensimesmados, e é quando Hélio Lúcio julga distinguir um vulto nas folhagens, tomados de exaltação, talvez observados por alienígenas, e debandada geral, mas é só miragem, mas há quem acredite em aliens e almas penadas.




     É de manhã, domingo, e HD resolve visitar Alfonso. Mas ainda vai providenciar o almoço, e telefona, para explicar o atraso.

     Duas da tarde. Sob um céu nublado, Alfonso recebe o amigo.

    - Hey mister. How do you do?

    Alfonso se surpreende, mas responde. – Hey man! I’m very fine, thanks.

    - Percebeu o clima londrino aqui fora?

    Sorridentes, britânicos, os amigos entram.

    Afoitos mostram suas aquisições literárias. HD lê seus poemas e suas traduções. Mostra, na pasta, os volumes de “On the Road” (de Kerouac) e “A Náusea” (de Sartre) e até pretende ler uns trechos, mas Alfonso menciona seus planos depara ocupação dos espaços culturais. Internet disponível, HD responde e envia e-mails.

    Nas páginas de literatura, descobrem poetas novatos e autores clássicos, e discutem as diversidades poéticas, mostrando que não engolem o neo-concretismo, que até parece piada de publicitário, ainda que respeitem o concretismo e os irmãos Campos.

    Mas HD não pode demorar muito – precisa pegar uma grana com sua tia, um empréstimo para sua mãe – e os amigos prometem se encontrar, mais tarde, no bar do Monte Castelo, onde A. G. vai tocar um rock’n’roll.


    Anoitece. HD segue a avenida central, observa as praças abandonadas, mas onde seria possível a realização de tantos eventos! Onde bandas podem se apresentar, ou malabaristas, ou atores em performances radicais, ou poetas em declamações surreais. Pensa assim nos eventos sugeridos – e planejados – por Alfonso.


    Ao chegar ao bar, HD encontra Dalton, o Vladimir, acompanhado por uma cerveja e duas garotas cheias de sorrisos. Saudações. Lá no palco, A. G. numa gesto de ‘bem-vindo’ e iniciam-se os acordes de “Stairway to Heaven”, do Led Zeppelin. HD sabe a tradução da canção e pretende até recitar para impressionar Dalton & Cia., mas surge Alfonso. Um tanto atrasado e abatido. “Fui expulso de casa”, ele diz. E parece que é sério.

    Assim, HD desiste de recitar “A Escada para o Céu” e acompanha Alfonso até ao outro lado da rua, ainda incrédulo. “Como é que isso aconteceu?”

    - Alguma vez eu te magoei?, Alfonso diz, cabisbaixo.

    - Não. Por que pergunta isso?

    Alfonso se limita a um olhar triste. HD eleva a voz, “É, esse romancista é muito sacana. Repete as situações”, e aponta para o vácuo, “Não é, seu romancista em crise de criação?”

    Alfonso não entende. HD lembra que ele mesmo, com a idade de Alfonso, também saiu de casa. Mochila nas costas e uns livros. Note chuvosa, abrigado na moradia estudantil invadida, depois uma pensão na Lagoinha, depois o apartamento de um amigo, etc.

    - Lembra-se de “O Encontro Marcado”, do Sabino? O protagonista conversa, num bar, altas horas, com um homem de smoking que diz ser a única ligação entre o protagonista e o romancista.

    - Pirandello.

    É o que o protagonista pensa. Mas agora me refiro a outro romance. Inclusive há uma cena neste romance, que é assim: Um amigo chega à casa de ouro e sob um céu nublado, ironiza, “Hey mister, how do you do?” e o outro responde, “Hey man. I’m very fine, thanks”, e o visitante comenta, “Percebeu o clima londrino aqui fora?”. Este trecho, a duas páginas atrás, não te lembra algo?

    Alfonso demora um segundo para perceber, e esboça um sorriso forçado. E silencia. Ele, o irônico, não aceita agora as ironias. E HD volta ao bar, pois decidira recitar um poema depois das músicas, “Tudo Ok”, diz A. G. Então HD abre o “On the Road” e pergunta a Alfonso se ele quer escolher um trecho. O outro sugere uma cena na estrada, mas HD lembra-se de uma cena de descrição de personagens, “Como o romancista nos teria descrito?”

    Mas HD desiste do livro e, dedicando a leitura ao seu amigo Alfonso, inicia “Howl”, “Uivo”, de Ginsberg, “Eu vi as melhores mentes da minha geração...”

    A leitura, longa e enfática, logo conquista a atenção do público, em sua maioria composto de jovens, e é até aplaudido e elogiado por Dalton, que, ausente no sarau dedicado aos beatniks, não sentira ainda a força do poema.

    Mas Alfonso quer ir embora. Agradece a dedicação da leitura, agradece o apoio de amigo, mas quer seguir para pernoitar na casa do primo. Mas HD insiste em acompanhar o amigo, ao qual nunca vira tão abatido.

    Ao percorrerem as ruas, em noite amena, rubras de mercúrio e exibindo vultos entre os cestos de lixo, HD narra suas aventuras no Borges da Costa, a tal moradia que os estudantes invadiram, onde passara em fins de 97, ao visitar Darío Sabine, aquele seu amigo que agora está na Europa, estudando idiomas e culturas, mas além do amigo encontrara as pessoas mais inusitadas, as cenas mais bizarras, pois se tratava de jovens que ali buscavam refúgio, cansados de esperarem providências do governo, muitos vindos do interior do Estado, outros abandonando as famílias. Mas foram todos expulsos em 98, e dispersos, em diáspora.


    O primo Lúcio é acordado. Quase meia-noite. Diante de bocejos, Alfonso explica o caso sem preâmbulos. É claro que o primo é hospitaleiro, sem foi!, mas não quer se envolver em crises de família. Alfonso é todo agradecimento.

    Envolto no ressonar de seus passos, HD volta para casa.




BH, 21 de setembro de 2004


Caro artista e amigo Michael Bishop,

Saudações.

Gostaria de parabenizá-lo. A muito tempo que não encontro alguém realmente envolvido com realizações e promoções culturais alternativas, e agregando tantos interessados e de diversas áreas – geográficas e profissionais.

Explicito aqui os meus votos de apoio, seja no sentido de divulgação, seja no auxílio de promoção.

Ultimamente tenho encontrado estudantes e artistas interessados em eventos onde possam compartilhar seus talentos e dispostos a investimentos de tempo e valores.

E, com a realização de festas e eventos, o nome da Óbvio só tem a crescer.

A festa de 13 de agosto – se bem que eu não esperava uma festa exatamente, e sim um evento mais artístico, mais literário e performático – já representou uma amostra de como a Óbvio consegue congregar talentos.

Presencio a vertiginosa expansão de muitos grupos artísticos. E é muitas vezes temendo esta expansão – que para os primeiros é invasão ou até mesmo usurpação – que os fundadores passam a limitar as áreas de influência, dominando a coordenação e acumulando tarefas.

Espero que a Óbvio supere esta fase, lembrando de meu interesse e votos de sucesso.

Cordialmente,

Hector Dias




(do diário de HD)

(2004)

03 outubro, domingo


Dia de eleição. Tédio. Política para mim só se dor a 'República' de Platão.

Perdi a paciência com política pragmática.

Mas é sobre ontem as notas que me interessam.

Contava com a amizade de Alfonso, mas ontem ele conseguiu me irritar. Convidados para um banquete oferecido por Michael Bishop, aceitamos. E quando seguíamos, eu, Alfonso, seu primo Lúcio e Stevam Valêncio, rumo ao Carlos Prates, após trocarmos olhares com belas donzelas no metrô, o sr. Alfonso inicia uma campanha terrorista de ironias a meu respeito, acusando-me de 'idolatrar' o sr. Michael Bishop.

Antes de chegarmos ao banquete, as discussões. Stevam Valêncio tentou acalmar os ânimos, mas em vão. Alfonso pode ser um gênio, mas seu sarcasmo iconoclasta me incomoda. Reintero que minha admiração pelo Sr. Michael Bishop se resume ao seu talento.

O banquete nada teve da atmosfera solene do anterior. Tornou-se uma festinha para amigos, com salgadinhos e bebidas, com música pop de fundo. Em dado momento até insisti, convidando Lúcio para dedilhar o seu violão, enquanto eu declamava alguns poemas próprios, onde lamento a alienação dos jovens. Ninguém se interessou, e Alfonso foi o primeiro a desviar a atenção geral, indo acender seu cigarro no candelabro da mesa. Enquanto isso, Valencio preocupa-se com uma loira, na penumbra do ambiente. Seduzia-a, em sussurros, e nem se moveu, enquanto eu me despedia.

Não acreditaram. Eu acabei de escrever um poema, ali, na hora e recusava comes e bebes que Michael oferecia cordial, e Nélida estendia hospitaleira, e Alfonso estava sarcástico, depois de trocar risadas com as garotas.

Encontrei Michael no portão e ele não acreditou, “Preocupa-me a tua partida. Mostra-me que algo não o agradou.”

Pois fico perturbado diante de tanta gentileza. Explico que alguém, a quem julgava um amigo, muito me decepciona. Apesar de elogiar sua hospitalidade, ressalto que o banquete anterior foi mais 'sedutor'. Ele sorri e não hesita em acompanhar-me até a calçada, mesmo sob a chuva fina.

Voltei pra casa muito magoado, mas nova poética nos bolsos.




...





De repente, do nada, sem explicação, Edgar surgiu na biblioteca. - Vamos sair?

HD levantou os olhos. Um sorriso e um convite, enquanto Edgar girava as chaves do carro? - Estudando o quê? Gramática hispânica?

- Estou traduzindo o Neruda.

- Meu velho, eu te admiro! Sério. Mas você exagera. Que tal uma pausa? Vamos lá!

E entraram no carro, aquele 'porta-aviões' do Edgar, com espaço para a banda, os roadies e as fãs ardorosas. A idéia: uma festinha da elite. Figuras de terno e gravata manobrando nos carros. Realmente high society. Edgar entregou o 'porta-aviões' ao manobrista e entrou na boate. Trilha sonora: dances dos anos 80, ou baladas sertanejas. “breganejas”, Edgar corrigia.

Garotas altivas e sedutoras, com seus vestidos de brilhos e decotes, dançando sozinhas, ou com amigoas de bocas borradas, ou esfregando-se nos rapazes, com seus cabelos espetados e seus olhos arrogantes. Certamente universitários. Certamente endinheirados.

- Reconheceu alguém? - HD, ao lado de Edgar, a pedir um vinho.

- Meu velho! A Cidinha prometeu não faltar!

Que Cidinha? Essa agora! Pares escorregam da pista de dança para os sofás junto as paredes, carregadas de boquitas pintadas. E se Edgar começa a beber, HD mantém-se sóbrio, servindo-se com cautela. Claro que se preocupa, afinal Edgar é quem dirige! O Edgar, todo euforia, sussurrando ao ouvido de uma loirinha, enquanto na pista toca Pet Shop Boys, com certo ritmo latino.


Atravessando o ambiente, HD reconhece um fotógrafo amigo da poeta amiga de Aurelius. O fotógrafo desvia o olhar, está ocupado em braços outros. Acaba de beijar seu charmoso par. Na mesa, ao lado, um estudante de Direito, futuro advogado, amigo de Simone. Reconhece HD? Não parece. É noivo, que HD saiba. Mas aquela morena, de cabelos rubros, em seus braços, não é exatamente sua noiva.

Sob a manta de som, casais se esfregam junto as paredes, sob o globo de luz e uma garota beija um grisalho que poderia ser seu pai. HD não pode deixar de notar a embriaguez dos futuros advogados, com suas gravatas-coleiras, com seus colarinhos manchados de vinho, ou a volúpia dos administradores, os gerentes do sistema, todos desvairados, descabelados, dançando ao ritmo caribenho, bolinando as garotas a arrotarem vodka.

Todos aqueles senhores e damas esqueceram suas poses! E o prazer que HD sente em perceber-se o único sóbrio, e a observar tudo. Quando pensam, sevem ao sistema. E quando se esforçam para não pensarem, servem também. A maré de irracionalidade segue.

A loirinha concede atenção e algo mais ao afoito Edgar e logo estão aos beijos junto ao bar. Não querendo ser inoportuno, HD se afasta rumo ao segundo ambiente, onde garçons atendem entre as mesas, atentos às exigências, confiantes nas gorjetas. Uma moça se destaca. Vestido noturno, que ressalta sua palidez, e longos cabelos negros. Uma mulher! Lembra-me alguém! Não dessa meninas, uma Elen. Mas uma mulher, senhora de si, tal uma Simone. Que joga com sua presença, sua beleza, lembra-me Sônia Regina! Deve ser esta beleza hoje em dia!

Mas uma garota na pista de dança insinua um striptease e uma alvoroço, uma febre lasciva, percorre o ambiente. Risos histéricos e alguma ausência de auto-pudor. Ela gira a camiseta acima da cabeça e seus peitos brilham em frêmitos. Amassa os mamilos com os dedos longos de unhas pintadas. Aplausos ecoam.


A maré de irracionalidade segue. Bagdá é bombardeada, neonazistas espancam turcos nas ruas de Dresden e Berlin, vultos matam mendigos nas madrugadas paulistanas, os mexicanos continuam atravessando a fronteira à nado, nossos honrados cidadãos votam nos governistas.

E HD sabe quem são estas pessoas. A ruiva não será a filha do juiz ou promotor, sei lá, basta ler as colunas sociais! E aquele moreno nos braços do fotógrafo não será o locutor de certa rádio popular? E o colega do Edgar, que chega e interrompe os beijos afoitos, não é o filho do deputado em segundo mandato? Basta ler as colunas sociais!

Quanto conhecimento diante de seus olhos! Uma boate é um tablóide! Uma enciclopédia britânica em 3-D! Nossos bons burgueses, nossas sacro-santas autoridades.

Alegando dor de cabeça, HD se despede. Edgar fica magoado, mas fazer o quê?



    Muito cordial, o Conde. Saudações calorosas ainda que apresente um visual um tanto fúnebre. ‘Conde’ é o seu título e alcunha, nas penumbras da internet. Nobre e cordial, não hesita em convidar Stevam Lucena para participar de uma discussão sobre cinema e literatura.

    Não apenas estende o convite, quanto o apresenta a outros noctívagos. Na escadaria está o soturno ‘Penseroso’, que o ‘Conde’ esclarece ser exímio desenhista. Mas ‘Penseroso’ também escreve e apresenta seus poemas no sarau.

    Sarau este em que a figura de ‘Arcanjo’ se destaca. Magro, alo, moreno, parece um príncipe indiano, amável e sociável, mesmo trajando luto, com apurada elegância. Aliás, se vestem muito bem todas as sombrias personagens.

    Artistas plásticos, certamente inspirados em Goya e Beardsley, expõem seus trabalhos nas paredes internas, onde também poemas podem ser lidos, por jovens pesaroso e poses ‘blasé’, de supremo spleen du Paris, trocando suspiros, lendo fanzines alternativos e obscuros, ali generosamente distribuídos, ou colhendo os poemas que se desprendem das paredes.

    Toda a côrte noturna ocupa o calabouço, aos compassos de soturnas melodias. Outros vultos deslizam sob as goteiras do terminal turístico. ‘Conde’ apresenta o ‘Espectro’, elegante, estilo Fantasma da Ópera, ou ‘Espinho’, magro, alto, olhar febril, ou ‘Cavaleiro’, fiel leitor de sagas medievais e leitor de Fernando Pessoa, mas é com maior ardor que o anfitrião apresenta a ‘Rainha’, sua consorte, que mesmo fúnebre não perde simpatia.

    E outros nobres soturnos, toda a aristocracia noturna, a convidar os sombrios súditos a um momento de celebração meio às trevas e aos gemidos.

    Enquanto outros vultos noturnos descem as escadas, ou desfilam entre os pilares, uma melodia pesarosa vaza por entre as frestas, ao longo das paredes em vermelho-sangue, nas vampíricas performances de um Type O’Negative ou epiléticas contorções de um Joy Division.

    Mas é o momento. ‘Arcanjo’ convida para o recital. Ele, o príncipe indiano, o próprio Baudelaire em novo avatar, e Stevam Lucena não recusa o convite, pesaroso ao lembrar-se de TH, que freqüentava ambientes semelhantes, mas quando as recepções soturnas se faziam na Contorno, pros lados do Santa Efigênia, batizadas de Nocturnal.

    Stevam podia se lembrar, pois desprezava as aulas, para acomodar-se no quarto andar, e ouvir The Smiths no programa de quarta à noite na Rádio Santê, a comunitária do Santa Tereza, a mesma que Sônia Regina ouvia, a mesma que agora anunciava a festa Nocturnal, onde exumavam a elegante e misteriosa década de 80.

    É declamando Charles Baudelaire que o ‘Arcanjo’ congrega os jovens no momento de pesar e poesia. Outros poetas noturnos se aproximam, e ‘Arcanjo’ em apoteose com sua declamação de “Uma Carniça”, onde a declaração lírica de amor se nutre das imagens grotescas da morte, Stevam não pode deixar de ler versos de TH, “Exóticas flores florescem em pungentes exéquias Cerimônias destinadas ao desassossego das almas...”

    Mas um vulto se destaca. É o célebre ‘Barão’, a declamar outro poema soturno de Baudelaire, o poeta maldito, o católico atormentado, num recitar violento de “Carrasco de si mesmo”, “Eu sou a ferida e o punhal! Eu sou o rosto e a bofetada!” e aplausos irrompem no seio das lânguidas senhoritas, trajadas à moda vitoriana, no agito dos leques, inclinadas em sinal de admiração.

    Stevam acompanha os jovens poetas e seus versos e seus desabafos, e ainda declama sua tradução de “Abysmo” da banda lusitana Moonspell, “Homens com raízes e asas Eles nos prendem e nos convidam a ir embora...” antes que o sonetista, tão ativo no carnaval dos anarquistas, revestindo de poemas as paredes do hotel, agora apresente seus tão elogiados sonetos. E ‘Arcanjo’ encerra o sarau com versos de Cruz e Sousa, até porque, aos primeiros acordes de The Cure ou Rammstein, os jovens se perdem na pista de dança, onde a imagem apocalíptica do DJ, o próprio ‘Conde’, se destaca no palco, e, sob a lua fatal, ressoam as melodias funéreas de um Nick Cave, as dançantes de um Depeche Mode, as líricas de um Theatre of Tragedy, as profanas de um Marylin Manson.

    Sondando as sombras ou conduzindo os convivas, o ‘Conde’ está em todos os lugares ao mesmo tempo. Acompanhado por seus súditos, atravessa os salões, colhendo saudações e distribuindo gentilezas, enquanto, nas masmorras da melodia, muitos escorregam no sangue na pista de dança, pois sempre há alguém que sapateia sobre os cacos de vidro.

    Ouvindo The Sisters of Mercy, Stevam lembrou-se da sua promessa de encontrar Erik no outro extremo da cidade, na saída de um show de black metal. Talvez até o Oto Marques lá estivesse. Afinal, fora em casa do Oto que Stevam ouvira aquela banda polonesa. E a lembrança dos velhos amigos fora um encontro casual com Aléxis, na portaria do show do Nightwish, na Savassi, uma semana antes. Pois Valêncio, após sua recepção de aniversário, não se animara a acompanhar o amigo, ainda mais diante das ironias de Alfonso, que andava impossível desde os desentendimentos com Hector Dias, o HD, a sempre dizer que essas bandas européias monarquistas de salão com baladas medievais eram “o supra-sumo da alienação dos jovens latinos incapazes de resistirem a invasão cultural”, etc, “mas você bem que ouve estas bandinhas pop inglesas, hein, Alf?”

    Não que Stevam não ouvisse um Radiohead vez ou outra, mas o fato é que resolveu ir ao show do Nightwish e só desistiu diante do valor exorbitante do ingresso, que o permitia ir a nada menos que seis shows de bandas locais, ele que já labutou no meio musical e sabia das dificuldades das bandas iniciantes, com seus shows a dez reais só para pagarem o transporte da bateria e a cerveja do fim de noite.

    Na portaria encontrou Aléxis a oferecer um gole de vinho e a panfletar. Finalmente abriria a sua loja de discos e roupas, onde “os noturnos se sentiriam em casa.” E panfletava anunciando a inauguração, na qual, inclusive, o ‘Conde’ encontraria “a trilha sonora de seus piores pesadelos”. E Aléxis falou a noite toda sobre os projetos e delírios, e queria que Stevam escrevesse as letras para a sua nova banda, mas isso era tarefa para o TH, “que Deus o tenha!”

    - Você está irônico está noite, hein, Stevam?

    Não, não estava. Estava amargurado e sabia disso. E via as obras de TH encaixotadas, ou em mãos erradas, e mesmo muito satisfeito que o ‘Conde’ tenha aceito o presente, de cinco livros de TH, lacrados, a serem sorteados no Leis da Noite, não podia ficar contente diante da ignorância de todas as mentes em desassossego quanto aos versos de seu finado amigo e mestre.

    - Você está muito obcecado com o Henrique. – Aléxis dizia, e talvez com alguma razão.

    E aquele reencontro com Aléxis reabrira velhas inquietações, seu tormento em saber onde andavam, e em que estado andavam, aqueles que viveram ao seu lado, ao lado de TH e ao lado de Sônia Regina. E assim decidira sair mais cedo da festa gótica e encontrar os amigos de outrora.

    ‘Conde’ lamentou sua saída precoce e reiterou convites para outros eventos, e anunciou novidades obscuras que, por enquanto, “germinavam no pântano de minha mente”. E Stevam saiu, e assim não ficou sabendo que Aléxis chegara logo depois, não tendo aparecido no outro show, e que ao organizar seu stand interno com discos, CDs, raridades, roupas, apetrechos, Aléxis atraíra a atenção de uma jovem soturna, atormentada e passional, chamada Bianca Maria. Mas não adiantemos.

    Na saída do show, Stevam Lucena ficou, apesar de toda a sua anterior experiência, surpreendido com o número de vultos exóticos e bizarros, na maré de faces febris e gestos bruscos. Logo Erik foi vomitado junto com a multidão.

    - Quem é vivo-morto ainda aparece! – gritou Erik, e até parecia contente em rever Stevam, afinal não se encontravam desde o woodstock no asfalto.

    - E o Aléxis? - Stevam perguntou, afastando o colega da saída, onde os exaltados grunhiam em imprecações inúteis.

    - Ora, mas ele não foi ao Leis da Noite?

    - Não apareceu. Ou pelo menos, não vi o cara...

    - Não apareceu por aqui.

    - Estranho...

    E logo, Oto Marques surgiu. Pouco amistoso. Mas isso não é novidade. Claro que mais amadurecido e, logo, mais senhor de si, mais impiedoso, com toda aquela presença que Stevam nunca ostentou, e sempre invejou.

    Oto foi enfático. – Aléxis está no Leis da Noite.

    E não voltou ao assunto. O espinho na carne que o afasta de Aléxis é ainda Carol, mesmo que Carol nem mais seja a mulher de Aléxis, novidade que Erik enquanto caminham retornando.

    - Por isso Aléxis estava sozinho no show do Nightwish, e por isso não mencionou Carol uma só vez. (pausa) Dois amigos antes tão chegados...

    - Ora, Carol não suportava mais. E Aléxis é muito gentil, o tipo compreensivo. Aquilo de amedrontador, de sádico, no cara é só estilo.

    - Você tem visto a Carol? - Stevam curioso. – Ela costuma falar sobre a Sônia?

    - Não. Nunca. É tabu. E nem mencione o Henrique. Ela não suporta nem se lembrar do cara!

    - É uma fobia. E um engano. Henrique não o culpado pela morte da Sônia. E nem ela mesma. Foi um acidente...

    - Acha que foi um acidente? – Erik, agora interessado.

    - E não é?

    Duas mocinhas se aproximam do grupo, e Stevam reconhece uma delas, com longos cabelos ruivos. É a namorada do Erik. Assim o amigo se afasta, e eis que Oto se aproxima. A vontade única de Stevam e que faz aumentar sua aflição é a de lembrar Sônia Regina, mas ele e Oto jamais abordam semelhante lembrança, ainda mais que se revelaram rivais.

    - Novos ensaios da banda? – Stevam resolve puxar assunto,e aquele tema é o ideal, sempre.

    - Não existe mais. – Oto responde com amargura. – Às vezes penso que a única banda que poderia ter futuro era a nossa, o Tenebrae. Mas tudo uns exaltados.

    - Muita vaidade. Nenhum ‘espírito de equipe’.

    - Nem me lembre! Mas e os vocais, as guitarras, teclado, violino, vocal feminino, todo um investimento...

    - Imagine a nossa banda de abertura para o show do Moonspell, em maio...

    - A única banda capaz, e com ousadia! Nem se lembraria dessas bandas inferiores! – e Oto Marques falava como se decretasse a ‘solução final’ para as bandas de caráter comercial, mercenário. – Então no topo, a elite do som obscuro, com centenas de seguidores fiéis e dezenas de discípulos fanáticos. – e falava como num púlpito, num discurso de Nuremberg – Algum som mais áspero que o nosso? Com letras mais sombrias que as nossas?

    - As do TH. – Stevam corrigia. E Oto olhava contrafeito. Guardava silêncio, quando era interrompido.

    Nisso atravessavam a área hospitalar, divisavam o contorno do teatro e sentiram o aroma bucólico do Parque.    - Por que não reconhecem o gênio do Henrique?

    - Ah, muito boa, essa! Por que ele não reconheceu o NOSSO gênio?

    - Ele não ? É que achava tudo inútil. Coisa que o meu irmão chama de ‘indústria cultural’. – mas Stevam afasta-se dos ‘conceitos’ – Quero dizer, acha que música é só diversão, e os jovens não se preocupam com o que ouvem, não se importam se a banda canta em inglês, alemão ou latim, querem ouvir ‘o som da guitarra’ e alguém esbravejando amargura ou lamentando perdas e desilusões.

    - Não se importava? E não lemos as poesias do cara?

    - Aquelas que ele entregou a um amigo ou outro. Mas nunca revelou tudo. No mais, vocês nem devolviam os livros que ele emprestava...

    Ao longo das grades do Parque Municipal, naquela madrugada, os amigos de outrora, pesarosos quanto ao passado sepulto, agora exumado, olhavam para a paisagem verde lá embaixo e não viam um bosque urbano, um Bois de Boulogne ou uma jungle, mas um cemitério sem cuidados. E o odor forte e opressor das flores noturnas incentivava esta pesarosa impressão.

    Stevam segue adiante. Oto, à distância, observa os jovens bêbados, com seu olhar de desprezo, “é constrangedor”, e vira as costas quando eles caem na sarjeta.




(do diário de HD)

  (2004)

   dez, 18


    De repente passaram-se dois meses.

    Preciso parodiar o Sabino. Para ilustrar o tédio desde outubro.

    Michael recebeu as minhas cartas e enviou votos de consideração e amizade. Convidou-me para o banquete natalino. Sugeriu que o tema seja A Infância.

    Fui sozinho, não pretendia arriscar-me às contrariedades anteriores.

    Na vitrola muito rock inglês, principalmente o estilo progressivo. Outros artistas, literatos e músicos de sua banda, a viajante Névoa. Servido o banquete, muito farto e convidativo, sou convidado a ler. Escolho trecho de Nietzsche, em “Assim disse Zarathustra”, onde a criança é o ser que confia, e presenteia, mas se vê ingratidão, torna-se ressentida. A criança está além do camelo e do leão.

    E Michael faz um contraponto, ao lembrar um versículo bíblico, “Deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”, ou seja, o crente, o fiel, é um ser confiante.

    Surgem questões. Ivan e suas provocações. Há ruptura entre as fases infantil e adulta? Se há, quais os aspectos da diferenciação? Será a capacidade de mentir? O fim da fantasia? O despertar da sexualidade? A aceitação da sociedade adulta e das responsabilidades? Tudo junto? E geralmente quando?

    E a aceitação do Outro? Se a criança é sincera, não deixa de ser cruel, e Michael comenta o menino cruel que, quando cresceu, tornou-se Mussolini. Então levantei a questão de que ‘toda criança é fascista’, o que causou visível mal-estar à mesa, onde sobrava muita idealização da infância, aquela criança pura e inocente. Reforço minha argumentação com passagens do livro “Meninos da Rua Paulo”, do húngaro Mólnar, pois a criança escolhe aqueles aos quais dedica afeto e atenção, e despreza os demais. Se pudesse, os eliminaria.

    Ivan não silencia. A criança é cruel e sincera, e o adulto é cruel e hipócrita? Eu lembro da socialização primária, a internalização da Lei Moral, citando Kant, “A lei moral dentro de mim e o céu estrelado sobre mim”, há traição ao primeiro caráter (se for fascista mesmo?) E se não há ruptura (entre infante e adulto), somos versões de nós mesmos que narramos a nós mesmos desde a infância?

    A discussão passa a questão Rousseau versus Freud. Nascemos bons e a sociedade nos perverte, OU nascemos maus e a sociedade nos domestica?

    Michael refere-se à leituras de Machiavelli, o clássico “O Príncipe” e a peça “Madrágora”, a indagar, Traz benefícios ser sincero? Num jogo convém ser sincero? Imaginem dois jogadores de xadrez filosofando...

    Pergunto, O que é um ator? É se adaptar a uma situação. Jogar com as regras do jogo, ‘sacar’ as carta marcadas. Não é isso que o pessoal bem sucedido é, um elenco de atores sociais? Se dando bem, seja qual for a situação, dançando conforme a música. “A vida é um jogo”, diz o professor em “Catcher in the rye”. Nada de atitude ou postura moral ou ideológica, o lance é ser adaptável, ser flexível.

    E depois a discussão continua entre mim e o Michael, empolgado mesmo, diante dos convivas remanescentes, se apenas os ‘canalhas’ vencem na vida.






    Quem sugeriu a taverna foi o próprio Alfonso. Uma saleta nos fundos do barzinho, com a porta para o anexo da adega. Reservada para os amigos e pré-paga. Sem incluir o vinho branco, de safra e caro. Mas não adiantemos.

    Na verdade haviam se encontrado na palestra do Hotel. O palestrante muito amável a tecer considerações sobre a escrita de Fernando Pessoa, enquanto os amigos se reclinavam nas poltronas macias, e Alfonso sussurra algo ao ouvido de Isabelle, sua acompanhante, ou HD se levanta para saudar WS, ali materializado enquanto assessor do palestrante, e o momento merece fotos e mais fotos, que deixam um brilho de espocares insaciáveis, conservando sorrisos e poses, registrando gestos e presenças.

    - Hoje vamos afogar as mágoas.

    E nisso Alfonso piscava para HD, que era o responsável pelas fotos, ao lado de uma outra amiga (apenas amiga, desta vez) de Alfonso, que deixou brotar a excelente idéia de sugerir o Hotel como espaço ideal para a palestra. Lamenta-se o reduzido público, mas importa a qualidade do mesmo.

    - Os ‘heterônimos’ eram vividos com realismo. Tinham biografia, além de estilos. Representavam anseios e perspectivas. A necessidade de se multiplicar para sentir de todas as formas. Um que vive no sossego dos campos, outros que se refugia num passado idealizado, outro ainda a mergulhar nas sensações múltiplas do estresse moderno, entre multidões e máquinas, e todos querem testemunhar um desassossego, não apenas o Soares, autor do comentado livro, que nós lança nos labirintos da consciência, que, para lembrar Dostoievski, pode ser uma ‘doença’, e assim...


    Eis, para registro, um trecho da palestra, que ainda ecoa nos ouvidos dos amigos, quando, após a tradicional cena do aperta-mãos, saem para a taverna reservada pelo generoso Alfonso. Que pouco digeria as infidelidades de HD, em reuniões com Michael. Não que Alfonso tenha o dom de sondar as consciências, mas é exatamente isso que órbita na de HD, aceitando uma travessa com patê de frango e um cálice de vinho branco.

    A pressão de Michael sobre os publicitários e a busca de parceria para as divulgações de eventos, além do calendário operacional para o ano de dois mil e cinco, eis o que constou na pauta da reunião daquela manhã de domingo. Ao seu lado, Nélida anotava cada detalhe para uma longa ata, a ser enviada por e-mails para os demais diretores, enquanto Dalton, o ‘Vladimir’, citava os trâmites burocráticos para a prestação de contas das leis de incentivo à cultura, já decepcionado por não ter previsto que “a arte dá tanta dor de cabeça!”

    Mas tempestade cerebral, com direito a dor de cabeça, é o que se promete nos fundos daquele bar. A garçonete se retira, deixando uma torta salgada sobre o bufê e Alfonso levanta-se para servir Isabelle com mais uma dose de fino vinho branco. Ao lado de HD, ainda pensativo, está A. G., aquele que se jogara na piscina de Alfonso em remota ocasião. Hoje o músico está sozinho.

    - Ó HD, um caro, hoje não teremos Baudelaire?

    E HD acorda de suas contemplações interiores, à evocação de Alfonso, que vai abrindo uma bolsinha com CDs a escolher uma trilha sonora. “Jazz? Ou brit pop? A trilha sonora de Blade Runner? Prefiro blues.” E foi blues mesmo.

    Enquanto isso (enquanto Alfonso escolhe a trilha sonora e insinua algo aos ouvidos de Isabelle) HD encontra em sua pasta um volume de poesias de Pessoa, que foi academicamente esclarecido e explicado na palestra daquela tarde.

    - E o poema que o Pessoa fez para o Whitman?

    É uma curiosidade de Alfonso, de volta ao lado de Isabelle, mas também de A. G., com olhares hiperbólicos no anoitecer, isto é, para as altas prateleiras da adega, que ele aprecia diante da porta entreaberta.

    - “É preciso ficar bêbado” – o músico se manifesta, trocando uma taça de tinto suave por uma de branco seco. – “para suportar o fardo do tempo.”

    Nisso, pela porta atravessa a figura solene de Stevam Valêncio, que estava silente e discreto na palestra, a ponto de ser esquecido. Agora é que os amigos o percebem, quando ele entra formal em saudações silenciosas, reclinando-se em pose fidalga, aceitando a taça a ele estendida por Alfonso, mas próximo à entrada, por onde o corpo esguio da garçonete surge diante dos amigos, com uma bandeja de empadas e bolinhos de carne. Com direito a molho de salsa e patê de camarão. Contudo, a cartilha de vinhos continua em separado.

    Algo com o que A. G. não concorda. Namorava ainda um vinho da safra de 54 quando Stevam Valêncio vem acomodar-se na poltrona ao seu lado, juntamente quando HD começa, não precisa dizr que com exagerada empolgação, a leitura do longo poema “Saudação a Walt Whitman”, “Saúdo-te Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo...”, e em gestos modestos, Stevam Valêncio reclina nos lábios a taça com translúcido vinho branco seco, enquanto a garçonete se retira, e Alfonso deixa uma língua acariciar os volteios do pavilhão auricular de Isabelle.

                         “Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
                          Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...”

    E a voz de lamento do blues fica abafada, coisa que Alfonso percebe, e prefere colocar algo mais rock’n’roll, um The Who, talvez. Rolling Stones é possível, na falta de um Bob Dylan, um Hendrix. Antes que a noite finde em Oasis, Massive Attack, Björk.


                  “Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
                   Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,...”

    E a voz de HD ainda em contenda com os solos de guitarra, em turbilhões de sílabas que A. G. procura sorver com os olhos, em giros a cada gesto brusco do declamador, já sem o blusão, sem os sapatos, a deslizar somente de meias pela lacuna das poltronas, insensível ao frio dos ladrilhos, sem perceber a mão direita de Alfonso no seio direito de Isabelle, da qual devemos uma descrição.

    Mas a voz do poeta sobe até os tijolos expostos do teto, de onde tal um bumerangue vem de volta sobre os ouvidos,

                     “Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
                       Concubina fogosa do universo disperso,
                     Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas,...”

    E os cabelos negros e cacheados de Isabelle caem sobre a mão e braço de Alfonso, a ocultarem assim a carícia que faz brotar suspiros abafados, sua face com olhos semi-cerrados, voltados para um delírio íntimo, devolve um brilho pálido à luz fraca que se precipita da lâmpada sobre a porta da adega, e agora num espasmo, ela estende as pernas, aconchega-se no sofá, sobre as pernas de Alfonso, mais apoiado na almofada sobre o espaldar, quando um solo triste de guitarra gemente vem emoldurar as palavras de louvor,

                   “Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
                    Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
                    Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,...”

    E o poema segue, em euforia que percebem, e A . G. tem os olhos divididos entre os gestos de HD e os rótulos dos vinhos, e Stevam Valêncio mergulha os olhares na transparência da taça, ouvindo o longo elogio entusiasta, com total indiferença ao casal na poltrona defronte, que HD também somente há-de perceber quando findar sua performance, e cair praticamente sem sentidos e fôlego, na poltrona ao lado, sob as caixas de som, onde um acid jazz agita o fino cristal das taças, enquanto A. G. narra suas homéricas bebedeiras, num longo prólogo para a bebedeira desta noite, antes que adentre aquela adega e atire uma mancha não sobre a sua imagem, mas sobre a de Alfonso, que se delicia, esquecido de si, ao lado da bela Isabelle, a despertar em HD, ali naquela taverna saída de romances de Dostoievski, uma etílica inveja.







[fim do Capítulo 3 da Parte 3]





LdeM

Nenhum comentário:

Postar um comentário