quarta-feira, 22 de junho de 2011

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  Do diário de HD



   dom, 13 de junho


    Ontem, um banquete digno de nota. Convite do Sr. Michel Bishop, para um encontro filosófico em seu casarão do Carlos Prates, nas cercanias do aeroporto.

    Alfonso julgou de bom tom aceitar o convite e lá encontramos um banquete à luz de velas, gótico e socrático, com a temática Sedução.

    Na mesa vejo volumes de Jean Baudrillard, Sade, Nietzsche (“A Genealogia da Moral”), Kierkegaard (“Diário de um Sedutor”), Machiavelli (“O Príncipe”), Oscar Wilde (“Retrato de Dorian Gray”), no buffet, um strogonoff de primeira classe, arroz à grega, e outros pratos de fina culinária.

    Descendentes de ingleses, Bishop é um verdadeiro gentleman, tendo à sua direita o administrador Ivan, com seus olhares perfurantes, e, à sua esquerda, a secretária Nélida, cuja beleza seduz e cuja presença intimida.

    Acomodados ao lado de Dalton, o Vladimir, nossa ponte até o castelo, aquele que ousou apresentar-nos ao lorde, cuja hospitalidade atrai tantos literatos e pensadores. E ali estão estudantes de política e filosofia, um casal de poetas, um casal de vestes sombrias, outro casal de pose burocrática. Umas vinte pessoas à mesa, sob a luz dos candelabros de três braços, ao som de clássicos e rocks sinfônicos.

    E Michael Bishop cita o exemplo de Napoleão e sua sedução sobre os soldados. Aliás, antes ele lê um trecho de “Diário de um Sedutor”. Ivan defendia que a sedução é uma forma suave de dominação e eu lembrei que a sedução envolve o uso de máscaras. É quando o Alfonso defende uma distinção entre sedutor e cínico, pois “Hitler era sedutor por acreditar em si mesmo”, no que recebe meu apoio. Cínico é aquele que manipula as máscaras, sem acreditar nas próprias. Então Ivan distingue ‘sedução’ de ‘carisma’, e Dalton leva o assunto para topos político, ao lembrar o conceito de Gramsci para “hegemonia” e o papel dos líderes, sejam fascistas ou comunistas, na condução dos povos. Preciso lembrar que Dalton é socialista? A alcunha “Vladimir” já o retrata, imagino, com sua barbicha de Lênin e sua ênfase a la Maiakovski.

    Então Alfonso explica o problema do culto a personalidade, e cita os exemplos de Hitler, Stálin, Mao, dentre outros ‘condutores dos povos’, que dominam o imaginário por concentrarem poderes político e simbólico. Mas eu lembro que na sedução há a má-fé dos seduzidos, tipo as mulheres que aceitam um convite e fingem não saber as intenções do autor do convite. E acabei incomodando as mocinhas ali presentes, e aceitando as várias provocações, quando acuso as mulheres de jogo-duplo e interesse, despejando um pouco da minha frustração, e o aspecto erótico da sedução acaba predominando.

    A discussão se torna passional, e o banquete acaba num mal-estar geral, o que é lamentável. Julgo necessário proclamar minhas desculpas.

    Ao som de rock progressivo, ainda avançamos noite adentro, diante dos restos do banquete, eu, Alfonso, Dalton e um amigo de Bishop, pois o anfitrião se retirara para os seus aposentos, acompanhado pela bela secretária, o que não me admira.

    Anoto aqui um comentário de Alfonso, e lamento ter esquecido o contexto. Menciona uma curiosa opinião comum entre mim e H, o poeta póstumo, pois admiramos (em comum) o movimento ludista do século 19. No caso (ele diz) eu admiro por motivações ‘proletárias’, enquanto TH concorda com Lord Byron, que defendeu, em 1812, os operários como “revolucionários da liberdade”, pois TH é um aristocrata liberal, a defender uma monarquia constitucional, o que é uma excessiva leitura de Nabuco e Ricardo Reis, eu digo.

    E Alfonso, então, se posiciona a favor da classe média?




    qua, 16 de junho


    Hoje é Bloomsday. Faz cem anos, Leopold Bloom em andanças no labirinto das ruas de Dublin nas páginas de Ulysses de James Joyce, literato mais que irlandês, europeu.

    E o Centro de Cultura recebeu toda uma programação destinada à literatura, à música e ao teatro com a temática céltica-grega-mítica. Não podia participar devido a compromissos, mas agendei com Hélio Lúcio nossa visita às exposições e palestras, além de mostra de vídeos.

    Hélio não apareceu, mas o evento consumiu toda a minha atenção. Irlanda de Joyce, A cara de Joyce, Introdução à Joyce, Estátuas vivas de Joyce, Livros de Joyce, O Retrato do Artista quando Jovem, Ulisses, Finnegans Wake, Música de Câmara, objetos de curiosidade e devoção de tantos fãs e neófitos.

    Historicamente, críticos literários e psicanalistas discutem “a violência e política na literatura irlandesa”, “linguagem de Joyce” e “visão psicanalítica de Joyce”, onde entrelaçam nacionalistas e seus dialetos, a subversão do idioma inglês até os seus limites lingüísticos, a presença dos sonhos na redação polifôrmica e polisemântica de Finnegans Wake, e não entendo muito bem, mas penso numa questão para englobar toda esta fragmentação.

    “Sabemos que Joyce não se envolveu com a política, ou o radicalismo terrorista de um IRA, mas sempre se preocupou com a condição da Irlanda, ainda que a considerasse “uma porca que devora os próprios filhotes”. Pergunto, então, se não terá sido na literatura o seu protesto? Num terrorismo lingüístico contra o inglês, o idioma do dominador?”

    Acho que não entenderam a minha proposição. Não chegaram a lugar algum. E até insisto, para a analista, “Joyce, afinal mais europeu que irlandês, apesar de carregar Dublin na mente, amava ou odiava a Irlanda?”, e ela se limitou a ambigüidade do afeto, do auto-exílio, e lembrou de Dante.

    Em seguida, um lanchinho, enquanto aguardamos o “monólogo de Molly Bloom”, o derradeiro episódio, Penélope tecendo pensamentos, interpretada por uma atriz. Uma tentativa de desvelar as sombras da imagética e sensitiva mente feminina, perdida em recordações e afetividades, entre a fidelidade e o desejo.

    Nos corredores, um senhor descontente acusa o evento de ser “invasão cultural”, e a perguntar se na Irlanda dedicam algum evento a Érico Veríssimo ou a Guimarães Rosa, e que os brasileiros são todos uns deslumbrados com essas coisas internacionais, isso de Dia de Bloom, e fiquei a matutar se não estaria eu diante de um Policarpo Quaresma!

    Esperei alguma inscrição prévia para as “leituras abertas de Joyce” pois pretendia ler um trecho de Finnegans Wake e um poema meu ao estilo joyceano, mas em vão. A programação já previa performances e atuações teatrais com trechos e colagens, com a presença das noivas de Finnegans Wake, as fluências de Anne Lívia Plurabelle, e a palavra gigantesca representando o trovão em extensão plurilingüística, e outras surrealidades.

    Quando eu já me retirava, um senhor me aborda, sorridente. “Muito a propósito a tua intervenção, lá no debate.”, então agradeço. Ele pergunta, “O sr. é estudante?” E voltando-me, noto seu olhar curioso. “Sou escritor”, respondo e vou embora.




    sáb, 19 junho


    Atrasado, mas nem tanto, cheguei ao Museu Municipal no entardecer e formalizei a contratação do segurança, o vulto de smoking e presença intimidadora a permitir apenas a entrada dos convidados.

    Dentro do Museu, a Exposição já montada – desde ontem – com os poemas em belíssimas molduras italianas, e ilustrações de Inácio, inspirado pelas metamorfoses de Ovídio ou pela Metamorfose de Kafka.

    Tudo organizado, o som enchendo o ar de melodias jazzísticas e nem sinal dos músicos. Descubro – após um telefonema estratégico – que Edgar não vem e o Délcio Palma aparece, mas sem seu violão. E Victor-Hugo também chega como visitante, não músico, e circula meio aos poemas, enquanto trocamos impressões, quando chegam os convidados.

    Inicio o sarau, lendo um trecho de “O Guardador de Rebanhos”, “Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo?”, poema de Alberto Caeiro, e Alfonso lê um poema próprio, longo e discursivo sobre suas andanças, e nisso um contador de causos narra uma peripécia, e uma poeta lê um do Fernando Pessoa ele-mesmo, o Délcio declama um poema de própria lavra, e JB faz o mesmo, e o outro causo, e em seguida Dalton, o Vladimir, lê um texto de Michael Bishop, e o ator Álvaro declama justamente Álvaro de Campos, “Não, não quero nada. Já disse que não quero nada.

    Aurelius é convidado, e relembra Vinícius de Moraes, com sonetos amorosos, mas também com sonetos sombrios de Augusto dos Anjos, além de Pessoa, “O poeta é um fingidor”, e Hélio – já empolgado – desabafa seus versos simbolistas-catárticos, “Existências vãs!”, poema vômitos que desorientou os desavisados.

    No clima, Alfonso lê Georg Trakl, “Lamento cego no vento”, eu leio outro do mesmo autor, “Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer...”, e, em seguida, bem a propósito, o meu “Mentardecer”, o mesmo poema que não li no Bloomsday, mas apresentei aos amigos de JB. E ele mesmo foi o próximo a declamar, com emocionados sonetos de Florbela Espanca, e as poetas ficam coradas quando o contador de causos declama poema de Drummond, do livro “Amor Natural”, onde abundam erotismos e lascívias. E já nos términos – o Museu fecha às 21 horas – JB declama um possível poema de cordel, Álvaro declama Vinícius de Moraes e Aurelius encerra com Drummond: “Sejamos pornográficos, docemente pornográficos”, para escândalo de algumas.



    Segunda, 21 de junho


    Ao chegar, nove da manhã, colei os cartazes com poemas concretistas, dos irmãos Campos, de Pignatari e Grünewald, e outros modernos modernistas.

    De súbito, eis a Imprensa. De que se trata? Exponho a Exposição e a jornalista se extasia diante da lupa para poemas fonte 8 (poetas inspirados é isso aí!) e o câmera sai gravando tudo, inclusive uma breve entrevista (vinte e nove poemas, selecionados de uns sessenta, vinte poetas, betim, contagem, belô, neves, divulgar, lembrar que existem, segue o texto, etc)

    De tardinha, chegam os colegas do Alberto, da escola de teatro, e exatamente às quatro, perante umas vinte (calculo) pessoas, o artista declama, dança, desenvolve performances e canta “Eu caçador de mim...”

    A TV grava tudo.

    Convido todos a lerem os poemas, e adieu.


    Terça, 22


    Hoje a inusitada performance dos representantes da Óbvio, com a chegada de Nélida, enquanto eu preparo a aparelhagem de som. Logo, Michael Bishop e Ivan adentram e trocamos saudações.

    A trilha sonora é o álbum “the final cut” da banda inglesa Pink Floyd, quando a figura de um caixeiro-viajante, com a maleta cheia de livros, deseja vender a um arruinado gentleman, a preços exorbitantes, alguns volumes, os mais exóticos, os mais diminutos, de “A Metamorfose”, de Kafka. Ou então Napoleão Bonaparte, o colete aberto, diante das tropas francesas, “Não reconhecem o vosso imperador?” E em sua apoteose enfia na cabeça o chapéu cheio de chá. Alice In the Wonderworld? E eleva-se um aroma cálido do chá-com-limão que o Chapeleiro Louco entorna no chapéu...

    Assim, performance teatral, declamações, desnudamento em protesto lírico, tudo espontâneo! Eis a Óbvio!

    Poetas participam enquanto Alberto se apronta, e lá está JB marcando presença. O sol já declina quando o ator sobe ao palco e se entrega a monólogos e lamenta o fim da infância. E todos, hipnotizados, se entregam ao crepúsculo.


    Quarta, 23


    Hoje esperamos a chegada de Makely e sua turma. Ele ligara pela manhã e tudo confirmado. Agora a pouco ainda tentava se localizar. Está a caminho. (O caso é que ele entendera que o evento seria às seis) Bem, enquanto isso converso aqui com o Moretti, o mestre do reggae, e ouvimos faixas de seu álbum, e, justamente quando ouvimos uma música em parceria com o Délcio Palma, este aparece.

    A prosa vai de música a literatura e volta, e depois de reggae ouvimos os poemas declamados por Makely, estrategicamente gravados num CD que acompanha o livro.


    Estamos todos em expectativa. Mais de quatro e meia!

    Ainda folheando os ensaios de Alfonso Lucena, quando percebo a movimentação: é o Makely em pessoa! Ele, Maísa e Bruno Brum. Os artistas tão esperados! É mais de cinco horas!

    Assim dou pouca atenção ao artista, tenho que desmontar o cenário de um espetáculo que não aconteceu. Apresento à comitiva a Exposição, que inclui um poema de Makely. Ele deixa uns livros, e some na noite, abduzido pelo Moretti.

    Depois – museu fechado, etc. – ainda garimpo ânimo para ir à Biblioteca, passar uns e-mails.


    Quinta, 24 de junho


     Anoto a presença de dois interessados em poesia: como ler a tal ‘poesia concretista’? O que é poesia, afinal? “Se isso é poesia, eu também sou poeta!”, diz um. (Revelou ser publicitário!) O que é, antes, por que, escrever? O que é literatura?

(acrescentar à nota de quinta: sarau na lagoa do nado)

    Não pude reprimir meu espanto ao encontrar todos ao redor das velas, parecendo uma roda de ciganos uivando para a lua, que aliás está crescente

    Lá estavam os amigos. Alfonso, Hélio Lúcio, Stevam Valêncio e a sua amiga Sandra, e o tal ‘teatro de bolso’, meio às árvores do parque, é mais uma arena, ou agora, um palco de desafio de cantadores de viola, onde os poetas, os arautos, os bardos soltavam a voz cada vez mais exaltados.

    Percebi quando o WS chegou, mas sua atenção foi atraída para o Alfonso, a declamar seu longo (e já famoso) poema sobre as suas andanças, não antes de exaltar os símbolos nacionais.

    Ao estilo sulista, chapéu e poncho, o poeta Llobus declama em alta voz (não sem antes convidar os presentes a calarem as bocas) os seus versos sobre o poeta preso no cotidiano nefasto e banal.

    Surpresa mesmo foi o Hélio Lúcio a saltar meio as velas, a despejar seu virulento “Existências vãs!” que manda aos ‘paredón’ os fracassados na vida.

    Animado pelos amigos, desci à arena para ler trechos de “Ode Triunfal”, de Álvares de Campos. Mas logo, WS canalizou as atenções, ao declamar “Cântico Negro” de José Régio, “Não, não vou por aí...”

    Finalmente consegui abordar WS assim que Llobus desceu à arena, e confirmei meu convite, lembrando da presença de um poema de sua autoria na Exposição, etc. Isso enquanto Stevam Valêncio lia os seus versos, tal um monólogo de Hamlet, mas todo a la Byron, pisando nas velas e aumentando as trevas do universo. E nem todos se recuperam pois Hélio desceu (caiu?) até (sobre?) as velas e (arriscando-se a se tornar uma tocha humana) foi declamando (berrando?) seus versos que confundimos com latim (ou árabe?)

    Em dado momento, o poeta Evangelista recebeu uma entidade em plena conflagração do conflito agônico e liberou todo o seu pathos helênico na forma de cabloco tartamudeante a narrar seus causos destilando sua sabedoria milenar. Alguém, sem necessária iniciação, tentava acompanhá-lo o que aumentou a confuso reinante.


    JB se destaca do grupo soturno (quem diria!) e arranca das fossas cardíacas um poema de Florbela Espanca. Relativa calma antes da tormenta. É impressionante, mas as meigas garotas se transmudavam em joanas d’arc quando pediam aos berros que todos ouvissem seus versos chorosos e tudo se assemelhava a um psicodrama coletivo com todo o mundo desabafando seus espinhos na carne. Enfim, muito berro e pouca arte.

    Depois tudo virou mesmo uma arena e roda de candomblé.


    25 de junho


Sexta. JB apareceu por aqui, atento a mesa de livros.
Li “Tabacaria” na íntegra, sem cortes.
E nada mais a dizer. Não houve público.

    (Agora à noitinha)

    Encontrei Alberto, o ator. Fomos visitar uma poeta amiga do Aurelius. Deliciados com amendoim canjica caldo quentão ouvimos opiniões sobre o que fazer em termos de iniciativa cultural na cidade. A outra visita, uma jornalista, se mostrou muito bem informada sobre a lei de incentivo à cultura.


    Dom, 27

    Ontem, quando Alfonso mencionou o desejo de cair na noite, enfrentamos o frio, ao orelhão, tentando encontrar a garota e o acontecimento, e esperançosos folheamos a lista de eventos, e Alfonso a reclamar que há eventos demais. Mas ontem não havia!

    O tédio era incômoda visita e Alfonso passava a mão no rosto, desconfortado. Acabamos saindo. Simplesmente. Sem rumos. Nos bares nada havia. Ou melhor: o de sempre havia. O mesmo programa em sua enésima edição.

    - Não há um bar rock’n’roll em Contagem?

    Sentados diante do shopping, o templo pós-moderno, ocupamos um território já demarcado pelas forças de ocupação. Antevíamos uma noite de grande tédio. Então resolvemos andar. Andar simplesmente.

    Enquanto comentava a solidão dos vigias noite adentro, Alfonso tenta conciliar o horror industrial com a alma dos bairros e fazer um poema. Lembro aqui o meu poema que, work in progress, quer sair de mim tal um Alien, Oitavo Passageiro, rasgando-me as entranhas.

    Mas o som de uma guitarra elétrica nos alcançou meio a imensidão dos galpões e um lirismo com cheiro de graxa se impôs. Mas o nosso ânimo não estava à altura do preço do ingresso.

    - Lá no Eldorado a coisa ‘tá bombando!

    Esse era o Alfonso querendo ir à pé todo o caminho. “Só se for sozinho”, eu respondia. E assim voltamos, no coletivo noturno, até onde tudo começou. E o bar? Que rock’n’roll nem nada! Mais ainda assim o Alfonso tomou sua cerveja gelada e eu rabisquei o poema que brotava do meu umbigo.



    Segunda, 28 de junho

    Conversei com o Benito, acompanhado pela filha e uma cerveja, a esperar o Aurelius e o sarau. O professor tenta me explicar a ausência de seu grupo de crianças na Exposição. Em vão. Mas sou gentil.

    Ele e a filha seguem, e eu espero o poeta. Que não demora. Aurelius chega acompanhado por Wagner, e este por sua flauta. O tema da noite é Amor e Morte. E Aurelius inicia com o Eros. Vinicius de Moraes, Camões, Neruda, Pessoa. Eu recito Pessoa, mas versos de Reis e Caeiro. Alguém mais chegou. O irmão do Alfonso, o Stevam. Todo soturno. E Aurelius já iniciara a parte Thânatos, com poemas de Augusto dos Anjos, Castro Alves e Baudelaire. Os malditos. Stevam vem encerrar no clima gótico. À luz de velas, com um longo poema de Edgar Allan Poe, “Annabel Lee”, e surpreendidos, ao se acenderem as luzes, com as ausências no ambiente.

    Mas encontro o olhar de Simone. E ela sorriu pra mim.


    29 de junho, uma terça-feira


    Todo evento para dar certo precisa de três fatores: o clima, a presença do artista e a presença do público.

    Hoje veio a platéia, mas não apareceu o ator convidado.

    Ontem não apareceram nem platéia nem escritora nem palestrante.

    Apareceu um repórter. Ocupei-me em apresentar-lhe a Exposição.



    Hoje, dia 30, passei a manhã esperando que alguém da XX Editorial entrasse em contato, confirmando a presença. Em vão.

    Antes de chegar ao Museu, passei na Prefeitura. Precisava de um contato no setor de comunicação social. Mas encontrei um conhecido de Aurelius, um funcionário, e descobri que a mulher de tal secretário é a diretora de tal setor, e julgo interessante a informação.

    Mas não parei por aí. Há outras conexões. Na referida Secretaria, descobre-se que o diretor do departamento é afilhado de importante deputado estadual. O cidadão não soube me explicar um item básico como divulgação de eventos.

    No orçamento participativo, encontrei o eleitorado do deputado. Grupos que se julgam representantes dos anseios populares. Um rapaz, ostentando uma camiseta vermelha, integrava a comissão do bairro. Um olhar atento, perseguindo o assessor. Talvez não saiba que joga no time dos perdedores.

    Seguirei garimpando nomes.


(anotação noite adentro)


    WS lançou seu livro Cachaprego nos jardins do Palácio das Artes e pude reencontrar os amigos.

    Os poetas da lagoa do nado. O Evangelista, o Llobus, o Daniel, declamadores e seresteiros. Alfonso também apareceu, além de Stevam Valêncio e um colega.

    Degustando um vinho comentamos os devaneios kafkanianos junto a Michael Bishop, Ivan e Nélida, a lembrarmos o memorável banquete, além da performance na Exposição, que já causa polêmica.

    Aí um poeta-performancer sai declamando e, literalmente, lançando os livros, subindo pela escada lateral do Grande Teatro, se despindo, e, dramático em quase-nudez, desmaia. (E eu troco olhares com o Ivan, autor de façanhas semelhantes.) O ator é efusivamente aplaudido.

    De súbito todo percebem MC abraçado a uma árvore a declamar seus poemas-fluxos, ribeirões de denso desabafo. Enquanto isso, conversamos sobre adaptações cinematográficas de clássicos da literatura.

    O anfitrião WS abre espaço para os poetas presentes e Luiz Edmundo Alves declama “Senhas” de Adriana Calcanhoto, “Eu não gosto do bom gosto...”, além de um poema próprio. E segue-se Llobus, e até sua amiga Nélia, com seus depoimentos líricos.

    Era o momento de seguir na noite, perambular pela cidade, pois “minha vida é descer Bahia e subir floresta”, enquanto os amigos se reúnem no Maletta, onde Ivan bebe um vinho, e ao seu lado os incorrigíveis anarquistas de salão. Em plena Cantina do Lucas discutindo Artaud, Rimbaud, Bukowski e outros delírios.

    Após deixarmos as célebres dependências do Edifício Arcângelo Maletta, descemos a Avenida Augusto de Lima, lamentando mais uma noite abortada por morarmos nos subúrbios.

    Enquanto morríamos de tédio, em plena praça Raul Soares distribuíamos moedas entre os pedintes.


1o. julho, quinta


    Alberto chegou três em ponto. Espetáculo intenso. Música e dança. Silêncio. Performances poéticas.

    No intervalo li um poema de Ricardo Reis.

    WS não apareceu. A poeta amiga de Aurelius embarcou numa viagem metalingüística. Multiculturalismo. Descrição semântica da realidade. Cubismo. Palavra-força.

    Muito produtivo o encontro – ainda que sem público.


Contabilidade:


50 reais para o transporte, paguei um lanche (R$ 4,50), paguei passagens (3,50), e em Belo, passei dois reais para o Alfonso, e gastei cinco reais de xerox e gastei outros 50 centavos (WC). Sobra R$ 4,50.




Sexta-feira, 02 de julho


    Não houve o grande encerramento.

    Conversei com a Simone, no shopping. Ela não confirma a palestra. Sabe que não há público.

    Procurei o amigo de Aurelius na Prefeitura. Inútil. Em procissão pelos corredores ouço uma ópera alemã. Surreal.

    Realmente sem público, concedi toda a atenção ao Délcio, com os seus projetos literários, sua obsessão além das modinhas de viola.

    Encerramento monótono.
    Igual a este diário.

    E quem é o último a (quase) visitar a Exposição? O Stevam Valêncio, que chega tarde demais. Fecho a porta e entrego a chave.

    Conversamos na praça, bebemos num bar, onde até recebemos as saudações de Victor-Hugo, preparando-se para tocar na noite.

    Por sorte não perguntou-me nada referente ao sucesso da Exposição.




    Por descuido Simone esquece o seu convite? O que tortura HD é o caráter proposital de tal esquecimento. Desculparia se fosse mero capricho.

    E HD não fazia muita questão de aparecer, mas Edgar insistira, “Hector, você está me abandonando!”. Assim, após uns poemas e umas canções, não muito original, sem aquela euforia inicial.

    Seguiram para a festa de formatura do pessoal das Letras, numa badalada boate da cidade. E Edgar tem um plano para que HD entre.

    - Simples, meu nobre. O Oswaldo, não o Montenegro!, disse que tem compromisso. Assim você passa a se chamar Oswaldo, e resolveu-se! Vamos, meu velho!

    Mas o mundo é mesmo pequeno! Um dos seguranças que estão ali é justamente aquele contratado para a noite de abertura da Exposição, e o cidadão sabe que o Oswaldo ali é o senhor Hector Dias, funcionário público, promotor cultural e outros dados curriculares.

    É preciso Simone, com feminina intervenção, chegar até a portaria, sondar os prós e os contra e permitir a entrada dos dois rapazes. Edgar sempre bem rajado, ainda que não em traje a rigor. Ms HD! Hector Dias está uma lástima, com sua calça jeans desbotada, camisa de flanela, olhar blasé e nada apresentável.

    Quando HD entra, Simone horrorizada, não disfarça o constrangimento, e se apressada para apresentar o artista Edgar às amigas, arruma um jeito de conduzir HD, à distância segura, até a mesa de Aurelius.



    Sim! O próprio Aurelius que, em companhia de Wagner, folheia uma antologia de Fernando Pessoa. Aurelius de gravata e suspensórios, e Wagner de traje completo, todo fineza aristocrata. A gravata amarela de Aurelius faz nascer um sorriso nos lábios trêmulos de HD. Mas aqueles dois ali destoam do ambiente, onde atores se esmeram para produzir boa impressão, exibindo vestidos alugados e penteados que duram até meia-noite. O livro sobre a mesa de Aurelius é o único em todo o recinto. E deve causar espanto. Mas não estamos numa formatura da turma de letras?

    - Oitenta por cento estudou licenciatura e vai ser professora.

    É Aurelius. E em tom didático. E aquela gravata amarela impagável! Edgar logo se junta aos amigos. Todo sorrisos. As amigas de Simone são belíssimas, mas HD não trocara três beijinhos com nenhuma delas. Edgar tem marcas de batom na face esquerda.

    O quarteto, não muito fantástico, fica discutindo poesia e poetas, folheando a antologia de Fernando Pessoa, “Como estou farto de semideuses!”, enquanto HD oculta sua inveja no segundo bolso da camisa.

    - E as “criaturas que são inúteis e existem”?

    A voz de Wagner atravessa o fumo do ambiente, a valsa mal-tocada, a encenação social, o despropósito de tudo, todos os belos projetos de existência, naquela banalidade do momento, o tédio e a náusea de falsos músicos, falsas canções, falsos sorrisos, falsas vedetes, belas professorinhas que se aquecem para as greves de amanhã.

    - A inutilidade de todas as coisas.

    - O quê ele disse? – Wagner inclina-se para Aurelius.

    - A inutilidade de todas as coisas.

    - A inutilidade de todas as coisas?

    - A inutilidade de...

    - Ah, por favor, parem de repetir esta frase!

    - Mas foi você mesmo quem disse!

    - Inútil ficar repetindo...

    - O inútil?

    - Vocês precisam agarrar uma dessas professorinhas, isso sim! – diz Edgar, e abre-se num sorriso manchado de batom.

    - Continua sendo inútil.

    - Mas, confesse, Hector, você está louco para beijar a Simone!

    HD observava a moça se esquivando entre os parentes, enquanto a voz de Edgar ecoava dentro de seu vazio.

    - Uma alegria que não convence. A inutilidade de...

    - Todas as coisas?





 [...]




LdeM

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