sábado, 4 de junho de 2011

... o capítulo 3 continua...

[...]




Percebo hoje o quão desamparado sou, aqui sentado nesse banco de praça, livro no colo, o LIVRO DO DESASSOSSEGO, Bernardo Soares, ninguém menos que Fernando Pessoa, envolto pela sombra das árvores, que ocultam a torre da igreja. Isso porque também percebo ao eu redor incontáveis tipos a lembrarem-me o Victor ou o Erik, seres inquietos, desajeitados, em roupas rasgadas, cabelos revoltos, velhas mochilas nas costas. Eu na praça, que se existe é por existir ali a igreja, o badalar do sino, cinco vezes. Praça que já foi beleza de cartão-postal, mas agora destina-se à ruína, lenta e dominante. Antes isso aqui lembrava ares de cidadezinha européia, uma filial de pracinha de igreja de vila portuguesa, mas os maltrapilhos, os velhos mendigos conversam, ou tentam, grunhem, gaguejam, expõem obscenidades, o lixo da vida. Sujeitos sujos e descalços perambulam m busca de espaço e latinhas de bebidas. E dormem por aí, em bancos, sob as marquises, e defecam nos canteiros das alamedas, das praças, banham-se nas torneiras dos jardins.

Eu aqui, com o livro, “Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida.”, assim aberto, sob as árvores, lendo absorto, trajado decentemente, sou um intruso. Eu que posso entendê-los, que pouco falta para que me iguale a eles, a possuir-me a mesma miséria, pois o desamparo, o deslocamento, já estão comigo, a perambular por aí, à pé, de carona, ‘on the road’, com roupa amarrotada, úmida de orvalho, suja de pó da estrada, sapatos furados, jeans rasgados, mas sem perder essa pose de intelectual, em busca de uma pracinha que me pareça européia, com certa nostalgia de London, Paris, Praha, San Peterburg, que já visitei, na companhia de Woolf, Sartre, Kundera, Dostoiévski, e só esse livro, só esse livro, aqui aberto, é que me contrasta, me afasta.

Irrita-me a fatalidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.”, esse livro é que me diferencia, a deformar-me aos olhos deles, a rasgar a decrepitude desta praça, e não estivesse o livro aqui e eu já estaria com eles? Pelo menos em espírito? Hoje, sou Stevam, o penseroso, com um livro, lendo na praça arruinada, e ali o casalzinho se funde, se amassa, ofertam-se um ao outro, entregam-se às carícias e mágoas, quando a manobra de um garoto num skate quebra o tédio do entardecer, e um senhor idoso, de aspecto respeitável, de ar saudável, bermuda, camiseta, tênis, tal um garoto envelhecido, a observar os pássaros que volteiam no lago modesto, de águas turvas, o que pensa, o que vive, terá me notado a observa-lo? Como carregou a existência sobre os ombros até se curvarem? Agora com suas seis décadas vividas a que conclusão ele terá chegado? Afinal o que aprendeu? O que aprendemos afinal? Que vivemos pouco? Que vivemos muito? E se aprendemos, qual o valor, de que adianta, se morreremos? Ele agora um sábio, um homem experiente, em breve de bengala, aposentado, inválido, inútil para a vida, enfim sábio, e pronto para morrer! Lembro de Harry, do “Lobo da Estepe”, o lobo solitário, mas agora o garoto-idoso se vai, com sua velhice em traje esportivo, sua alma saudosista da juventude, enquanto volto a mergulhar no livro, “pedi tão pouco a vida e esse mesmo pouco a vida me negou.





[Sábado à noite. Bar cultural. Três ambientes. Palco, sala ampla e bar. Espera-se a presença de VÍCTOR-HUGO, músico e cantor, amigo de EDGAR. Programa da noite: música ao vivo e poesia no ar. A TV ligada, ao lado do bar, exibe cenas de show do Pink Floyd, “The Wall – Live in Berlin” com Roger Waters, num segundo momento,cenas do acústico de Cássia Eller. No terceiro ambiente, à primeira mesa à entrada, com vista privilegiada do palco, estão acomodados HD e AURELIUS MAGNUS.]

HD: [Estilo rocker, camisa de flanela, calça jeans, cabelo preso, a esperar o conhaque com chocolate] Imaginar que não encontro o Víctor-Hugo há sete anos!

AURELIUS: [Bem vestido, estilo social, com boina francesa] Ah, vocês se conhecem? [Atento ao garçom que serve a cerveja] Obrigado.

HD: Estudamos junto no colégio. E a última vez que nos encontramos foi numa festa, e discutimos algumas obras do Saramago. O Victor-Hugo já mergulhava nessa paixão pela MPB, por Chico Buarque, enfim, deixava o rock pauleira meio de lado...

AURELIUS: [Consumindo em goles fartos a cerveja] O Victor-Hugo tocando rock pauleira? É difícil de acreditar! I don’t believe it!

HD: [Parodiando o inglês] Believe it or not! Acredite se quiser. Mas hoje ele tem estilo próprio. Acompanho a carreira do moço pela mídia. Fora o seu visual Lenine...

[Movimento à entrada. Do segundo ambiente desloca-se um vulto. WAGNER entra no terceiro ambiente. AURELIUS levanta-se para as cordiais saudações. WAGNER muito sorridente, amistoso. Bem vestido, à maneira social, terninho e gravata. AURELIUS conduz WAGNER até a mesa, onde HD seleciona papéis.]

AURELIUS: [estilo anfitrião] Eis o esperado Wagner! E este é o poeta Hector Dias, colega nosso aqui nas noitadas! Imagino que os senhores se sentirão à vontade, visto ambos serem ávidos leitores. [para HD] Já disse ao Wagner sobre seus estudos de História. E sabe com o que o nosso amigo aqui queima as pestanas? Geopolítica! Sonha com a Diplomacia!

[Quando o garçom retorna, WAGNER pede uísque, e mantém-se em silêncio, com um sorriso superior, ajeitando os óculos. Movimento à entrada. Dois rapazes em estilo neo-hippie-rastafari-urbano, com cabelos soltos e sandálias de missionário. Um deles é o desenhista que HD saudou em noites anteriores, ao elogiar os desenhos distribuídos nas amplas paredes do bar cultural.]

AURELIUS: [receptivo] Hoje apareceu a turma toda! Meu bom Inácio! Sente-se! Vamos pedir cerveja, ok? Para brindar! Ei, o ressuscitado Borges, não o argentino, claro! Of course! Muito bom ver vocês! Este é o HD, poeta, escritor, tradutor, e sei lá mais o que! Sentem-se aí e deixem de cerimônias!

[Mesa completa. Em sentido anti-horário, à direita de AURELIUS, estão INÁCIO, BORGES e HD. Diante de HD e à esquerda de AURELIUS, WAGNER. O garçom serve a cerveja. O silêncio pesa. INÁCIO e WAGNER em sorrisos superiores. BORGES todo sério, não exatamente formal. HD e AURELIUS trocam livros de poemas.]

AURELIUS: Continuarei a minha campanha em prol do Sr. Pablo Neruda para a Presidência, e do Sr. Fernando Pessoa, para o Ministério da Cultura!

[Movimento à entrada. Entram VÍCTOR-HUGO e GUILHERME. Ambos carregam instrumentos, violões em cases. Um dos garçons ajuda no transporte do pedestal para o terceiro microfone. Os músicos vão até o palco, depositam os instrumentos e voltam a mesa junto à entrada. Cordiais, trocam saudações.]

VÍCTOR-HUGO: [olhar de surpresa] Hector! Hector Dias! Quanto tempo, hein, rapaz! Venha cá, guri, me dê um abraço! O Edgar me avisou, mas eu não acreditei! O Hector, aquele que colecionava recortes de jornal, o que queria ser jornalista, agora é poeta!

HD: [sorrindo] E maldito! Não consegui fugir a minha sina!

VÍCTOR-HUGO: [alegre] Ao teu honrado Fado! Como bom filho de lusitano que é! [para AURELIUS] E em companhia de quem você tem andado! Não vai gritar um HOW DO YOU DO! nos meus pobres ouvidos! [E aperta a mão de AURELIUS] E um monte de gente à-toa! Wagner, quanto tempo! Gostei dos seus desenhos, Inácio. E o bom, old fellow!, Borges, “mas não o argentino!”, e não estamos falando sobre o Maradona!

[VÍCTOR-HUGO segue para o palco. E agora é a vez de GUILHERME distribuir saudações, cordialidades e gentilezas, a começar por HD]

GUILHERME: Estou começando a gostar dos seus poemas! Vou virar fã! Ei, Aurelius, grande presença! Caros amigos! Ah, você é o Borges? Prazer! Guilherme-nos-dedilhados, a teu dispor! Mas, só tem ‘cueca’ aqui?! E as meninas? Espero que o visual do Victor-Hugo arraste as fãs, as jovens em flor, para que se joguem aos nossos pés, aqui diante do palco!

AURELIUS: [rindo] O visual do VÍCTOR-HUGO? Mas eu pensei que era o Lenine! Com esse cabelo solto, cavanhaque! É o próprio! “O verbo saiu com os amigos...”

[GUILHERME segue para o palco. Prepara-se à direita de VÍCTOR-HUGO, afinando o violão e ajustando o microfone. Um garçom serve a cerveja à um casal, na segunda mesa. O casal entrava no momento das saudações. À beira do palco, o garçom deposita uma cerveja e um cocktail.]

HD: [Folheando uma antologia de Baudelaire] Mas é a filosofia do poema. A morte confere sentido à vida. Valorizamos a vida porque sabemos de nossa finitude. Hoje estou aqui, amanhã pode ser que não. É uma perspectiva diferente daquela de Sartre, para quem a morte é um absurdo. A morte não justifica nada. Não passa de um corte em nosso projeto de existência...

WAGNER: [Degustando o uísque, diante do menu] Qual o poema? “Morte dos Pobres?” Quanta filosofia num poema. Pode-se fazer uma monografia.

AURELIUS: [Erguendo um brinde, atento] Monografias? Nem comentem! E o Borges aqui que não deixa passar uma frase do Homero...

BORGES: [pausado] Uma palavra, “Homologia”. Repetição de estruturas, de elementos dentro de um discurso, uma narrativa. “Palavras aladas”, “vontade dos deuses”, essas coisas. Posso explicar com exemplos, de onde vem o termo, seu parentesco com o verbo ‘homologar’...

HD: [fascinado] Vejam aí. A imensidão do termo. A dificuldade de conceitua-lo mostra o quanto é rico. É caso de “Liberdade”. Qualquer definição a pode limitar. A Liberdade não pode ser cerceada nem por um conceito.

AURELIUS: [atencioso] Definir Liberdade é, portanto, aprisiona-la. Todo conceito assim limita o objeto. Entendo. Lembro agora do conto do Borges, o argentino, agora, meus senhores! “Funes, El Memorioso”. A questão dos conceitos. Pois bem. A idéia ‘cão’, ‘dog’, ‘perro’, e a ‘coisa’ que tal palavra representa. Pois o Funes era um cara de memória surreal! Relembra todos os momentos, e gasta um dia para lembrar um dia! E não aceita que um cão, ressalto, às duas horas da tarde, seja também chamado CÃO às seis horas, ao crepúsculo! De onde vem o ‘conceito’? isso até me faz lembrar de Platão...

WAGNER: [atento] Mas qual CÃO existe? Aliás, por que o CÃO de quatorze horas NÃO É o CÃO de dezoito horas?

INÁCIO: [até então em atencioso silêncio meditativo] Uma catedral pintada ao amanhecer é a mesma pintada ao crepúsculo? Imagino que os senhores já apreciaram a arte de Monet...

AURELIUS: Impressionismo à parte, o CÃO deve ter mudado muito em poucas horas, para a memória prodigiosa do Funes, por exemplo, com pulgas a mais ou a menos...

BORGES: Mas a conceituação lingüística é limitada, como dizia Wittgenstein... [Primeiros acordes cortam o ar que começa a se enfumaçar. O ventilador do segundo ambiente é então ligado.]

BORGES: O que confere a linguagem a produção do Sentido? O meio cultural! E que não passa de uma repetição de padrões, que cada um absorve como pode! E tais padrões se alternam, se transformam e outras estruturas determinam...

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Boa noite a todos! É muito bom rever os amigos, reencontrar velhos camaradas! Espero que a noite seja realmente inesquecível e vamos cantar um repertório seleto e poemas, aqui com os nossos poetas, o Hector, o Aurelius, enfim, sintam-se em casa.

BORGES: [impassível] ... assim o que há de incomunicável de um padrão cultural ao outro...

HD: [Inclinando-se para AURELIUS] A poesia é incomunicável?

AURELIUS: [Entre sério e irônico] Tudo é incomunicável.

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Lembrando o grande Cazuza, “Blues da Piedade”. [cantando] “Agora eu vou cantar pros miseráveis Que vagam pelo mundo, derrotados Dessas sementes mal plantadas...”

BORGES: [cantando] Estão vendo? Vocês são céticos. Eu, que traduzo Paul Celan, não sou tanto...

AURELIUS: [surpreso] Paul Celan? Você me surpreende, Borges! Como anda o seu ‘deutsch’?

BORGES: Não tão afiado quanto o seu ‘english’, mas vamos tentando...

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Pra quem não sabe amar, fica esperando Alguém que caiba no seu sonho...”

[HD em silêncio, olha ao redor, recolhe fragmentos de conversas alheias. Poucos casais no terceiro ambiente. Movimento maior junto ao bar. Garçons transitam pelo segundo ambiente. HD rabisca um ‘S’ no guardanapo.]

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Quero cantar só para as pessoas fracas Que ‘tão no mundo e perderam a viagem...”

[Close no guardanapo de HD. Em garrafais, S – I – M – O – N – E ]

WAGNER: [Em conversa paralela com BORGES]... a guerra como destruição do excedente populacional – quem merece o ‘cartão-azul’? a guerra é um salve-se quem puder! Não tem aquela ordem, ORDNUNG, que imagina o Clausewitz... Que critérios existem para a eliminação daqueles excedentes? Resistência física, Q.I., posição social, diplomas? Ou inaptidão, espírito contemplativo, vidência?

BORGES: Eis o absurdo! Não se devia deixar nascer! E assim não precisaria começar a destruir! Igual aquele livro, “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, que reforça alguns versos de Celan, onde a indiferença individual causa um crime coletivo, assim o Holocausto...

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Permitam-me que eu me apresente. Sou o Victor-Hugo, conhecido aí na noite, nos bares, com releituras e canções próprias. Ao meu lado, o grande Gui, o Guilherme, nosso solista, guitarrista, arranjador, pau-pra-toda-obra! E é sso. Vamos de Lenine. Aliás, algum poeta se habilita? Ah, o Aurelius! Fique à vontade.

AURELIUS: [levanta-se] Valeu. [ao microfone] um pouco de Neruda pra os amigos. [recitando] “De noche, amada, amarra tu corazón al mío....” [volta à mesa]

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Hoje eu encontrei a lua Antes dela me encontrar Me lancei pelas estrelas E brilhei no seu lugar...”

WAGNER: [para BORGES] ... mas todos insistem na culpa coletiva,o que é exagero! É querer culpar os islâmicos por crimes de fanáticos terroristas! Vou culpar os muçulmanos pela tragédia nos metrôs de Madrid...

AURELIUS: [cortando] Aquele asno...

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Hoje eu acordei o dia Antes dele te acordar...”

WAGNER: [irritado] Quem? O que é?

AURELIUS: O Aznar e aquele governo pró-imperialista. Apoiar a invasão da Mesopotâmia...

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Quem poderia imaginar Que o amor fosse um delírio seu...”

[Close no guardanapo diante de HD. Em garrafais, S – I – M – O – N – E ]

BORGES: ... mas isso de terroristas, por favor, vocês confundem...

WAGNER: [ignorando] ... imagino os executivos, as secretárias, os office-boys dentro dos mega-edifícios obscenamente altos, e sobreviventes meio aos tremores, fumaça, cinza, e fuligem, a descobrirem a fragilidade dos edifícios. Suspeita de um ato terrorista? Sabe-se lá qual o responsável... Fundamentalismo cristão ou islâmico, atentado anarquista ou de extrema-direita, sabe-se lá... [empolgado] Morrerei vítima de fanáticos suicidas? Eu que pago meus impostos, tirei meu diploma, consegui as melhores notas, passei no exame psicotécnico do RH, eu que sou patriota, honesto, bom cidadão, tendo votado nos republicanos! Prometeram segurança, sucesso e conforto se fôssemos boas crianças, e confiássemos no papai e na mamãe, não ofendêssemos as autoridades, e agora isso! Será que somos culpados? Quem nos odeia tanto?

AURELIUS: [para HD] Ele é assim. Às vezes empolga, vai falando... Igual ao Fidel...

BORGES: Acho que o prédio se implodiu... Teorias conspiratórias não faltam...

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Atendendo a pedidos, mais uma canção do genial Cazuza, “Um trem para as estrelas”. [primeiros acordes]

WAGNER: ... eu conheço várias. Muitas vazam dos próprios serviços secretos de espionagem. Lembram do caso daquele direitista que dinamitou um prédio nos States? Surgiu ali toda uma literatura sobre conspiradores, e tanto que gente como o 007, James Bond e companhia, foi arquivada, muito singelo. O serviço de Sua Majestade é muito pueril diante do FBI [pronuncia a inglesa] E a audácia dos terroristas vem bem a servir...

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “São todos seus cicerones Correm pra não desistir Dos seus salários de fome E a esperança que eles têm...”

BORGES: Vivemos um estado de medo, de insegurança, e assim melhor terreno para a semente do fascismo não há.

WAGNER: Sabe que eu concordo com você! E os fascistas não brincam em serviço. Chegam com jeito de exagerados, verdadeiros salvadores, e arrebatam o rebanho inteiro. Hoje aparecem com visíveis crachás, onde se lê: Democratas Cristãos.

BORGES: Aí verticalizam tudo, e eis o peso da hierarquia, seja de direita ou de esquerda, com Gestapo ou KGB...

HD: [amassando o guardanapo]: Mas a horizontalidade funciona? Eu passei três dias numa hotel, cercado de anarquistas, e confesso minha decepção. Não havendo um responsável, um líder, um passa o problema para o outro, sem compromisso e sem responder perante uma autoridade. Por outro lado, num sistema hierárquico, um manda e os outros obedecem...

[VÍCTOR-HUGO agradece, e GUILHERME concentra-se num solo. HD levanta-se e vai ao microfone. VÍCTOR-HUGO serve-se do cocktail, folheando a pasta com o repertório.]

HD: [ao microfone] Estamos assustados com o absurdo cotidiano. Mas Drummond já estava. Esperemos que o século 21 não seja pior que o 20. [recitando] “Em verdade temos medo. Nascemos escuro. As existências são poucas: Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto...

[HD recita “O Medo”, poema de Carlos Drummond de Andrade. Atenções se voltam. Movimento à entrada. No segundo ambiente entram GABRIELLE e SIMONE. Garçons se movem. GABRIELLE, sorridente, acena para AURELIUS. SIMONE, fumando, sorri igualmente. Ultrapassa GABRIELLE e abraça AURELIUS.]

AURELIUS: Já estava ficando magoado com você! [para GABRIELLE] E com você também! [abraça GABRIELLE] Perguntava-me agora mesmo: onde andam as nossas fãs?

[HD termina a recitação. VÍCTOR-HUGO agradece, e troca sorrisos com as recém chegadas.]

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Ora, vejo que as sereias emergem de seus reinos, para seduzirem os pobres navegantes! Bem, meus queridos, vamos agora... Agora, o mestre, o grande Chico Buarque. [primeiro acordes] “Beatriz” [cantando] “Olha / será que ela é moça / será que ela é triste...”

[GABRIELLE e SIMONE sentam-se na mesa ao lado. SIMONE está de perfil à visão de HD, e GABRIELLE acena primeiro. SIMONE percebe e acena. HD responde com um sorriso amplo.]

VÍCTOR-HUGO [cantando] “Será que é pintura / o rosto de atriz / se ela dança no sétimo céu...

WAGNER: [para BORGES] Arte enquanto superação? Ora, nós já discutimos isso antes! É outra concessão: os artistas servem apenas para a diverso.

BORGES: Discordo. Os artistas podem dizer certas verdades, alertar o povo, incomodar os donos do poder. Não é assim? Toda vez que vem uma ditadura, os artistas, os literatos, são os primeiros a fazerem as malas! Ou exílio ou ‘el paredón’!

AURELIUS: Concordo com o Borges. É o exemplo de um Chico Buarque. Ou de um Caetano. Ou então a influência de um Geraldo Vandré...

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Agora, poesia! Meu prezado Aurelius...

AURELIUS: [ao microfone] Um áspero poema de Álvaro de Campos, isto é, Fernando Pessoa. [recitando] “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” [recita “Poema em linha reta”]

[Após o poema, HD levanta-se, cumprimenta GABRIELLE e SIMONE, troca gentilezas formais e vai ao toalete. VÍCTOR-HUGO interpreta uma canção do Beto Guedes, “Amor de Índio”. Casais trocam carícias, olhares cruzam entre as mesas, copos erguidos m brindes. Garçons em prontidão. Espumar de cerveja, brilho escarlate das taças de vinho, o ouro derramado nos copos de uísque. Gargalhadas se elevam sobre a disfonia de vozes, gracejos masculinos e risinhos femininos.]

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Tudo que move é sagrado E remove as montanhas...”

HD: [ao lado de SIMONE] Pensei que você gostasse de poesia.

SIMONE: Gente, mas eu gosto! Ah, você está me acusando, por eu ter demorado, não é? Olha só, Gabrielle, como ele é cruel!

GABRIELLE: [rindo] Ah, o senhor não sabe como está lotada a agenda desta donzela!

SIMONE: Não esquenta não! Ela anda lendo muito o Macedo, o Alencar.

GABRIELLE: Engano seu! Eu leio muito a Clarice, o Rosa, o Veríssimo...

SIMONE: O pai ou o filho? [solta a fumaça com estilo] espero que seja o pai, pois o filho anda ‘pop’ demais... Eu me empolgo mais com a Ana Terra do que com o Analista de Bagé...

GABRIELLE: Ah, por favor, Simone. Papo-cabeça, não! Deixa isso para a sua tese de mestrado. [olhando para HD] O rapaz aqui deve estar abismado com a sua demora...

VÍCTOR-HUGO [cantando] “Sim todo amor é sagrado E o fruto do trabalho...”

SIMONE: Ah, deve ser mesmo. Aquele projeto foi arquivado, não conseguimos patrocínio. Um dos convidados seria o WS, mas... Mas, não foi no Janela do Caos que eu vi você da última vez?

HD: [sentando-se] Sim, você estava boquiaberta com a performance dos poetas. Eu nem tanto. Vi os caras na Feira do Livro...

[VÍCTOR-HUGO agradece. O solo de guitarra flutua.]

SIMONE: [empolgada] Gente, mas os poetas são loucos! Se jogam no chão, em convulsões, gemendo, rasgando as roupas [solta a fumaça] tudo muito louco...! Mas você saiu antes. Não vi você depois.

HD: [diplomático] É que essas performances me deprimem. [ambíguo] E também você não podia me dar atenção.

VÍCTOR-HUGO: Agora uma canção da Cássia Eller, “Palavras ao Vento”. [primeiros acordes] [cantando] “Ando por aí querendo te encontrar...”

SIMONE: [rindo] Uh! Que direto! Eu só disse que ‘se você quisesse’ a gente poderia reescrever o projeto, ‘se você quisesse’. Aí você sumiu...

HD: [diplomático] Compromissos. Uma semana de curso em Contagem... Justamente sobre Produção Cultural. Depois cuidando do lançamento de obra póstuma de um poeta obscuro, para os Lucena, que são do meio artístico. A procura, que se revelou infrutífera, por editores...

GABRIELLE: [surpresa] Não publicou seu livro até hoje? Pensei que.

HD: Infelizmente não. Fui em cinco editores (WS foi apenas o primeiro), sofri sob a ironia e a ignorância de todos, e desisti. Ao último editor eu precisei até explicar o meu estilo e tal... Daí eu preferir distribuir os poemas para os amigos e literatos...

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Palavras apenas Palavras pequenas Palavras momento...”

GABRIELLE: É uma pena! Ah, se vivêssemos na França! Recitando nos boulevards! Lendo Simone... de Beauvoir! [risos]

HD: [rindo] Eu é que preciso de uma Simone de Beauvoir...

SIMONE: [rindo] Serve outra Simone, que não a ‘de Beauvoir’?

HD: [rindo] Ora, por que não? Eu não sou exatamente Jean-Paul Sartre...

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Saudades de Cássia Eller! Permitam-me um breve intervalo. Obrigado.
 [Som ambiente. Junto ao bar, a TV exibe o final do Acústico de Cássia Eller. Num segundo momento, show da carreira solo de David Gilmour, vocalista do Pink Floyd.]

[VICTOR-HUGO abraça GABRIELLE e SIMONE, com certa intimidade. Simpático, senta-se à mesa.]

VÍCTOR-HUGO: Hector agora poeta! Me surpreende! Ele era o melhor aluno de Ciências! Quanto a mim, não posso dizer o mesmo...

HD: [rindo] As preocupações do Victor-Hugo eram bem outras...!

VÍCTOR-HUO: Eram? Não! Continuam sendo, meu caro! [E alisa o negro cabelo longo soltos de SIMONE]

GABRIELLE: E nem casado ele sossega! [acena ao garçom] Vodka e cigarros, sim? [Volta-se para o VÍCTOR-HUGO] E a madame, onde está?

VÍCTOR-HUGO: A madame? Ah, ela está recolhida aos seus aposentos. Está cansada de me ouvir cantar. A enxaqueca crônica, sabe...

GABRIELLE: Mas é muito cínico, mesmo!

SIMONE: [atenta a TV. Cenas do acústico de Cássia Eller] Gente, vocês não me deixam prestar atenção!

[Aproxima-se GUILHERME e distribui saudações. Em seguida, serve-se no bar, atento as cenas na TV. Logo, VÍCTOR-HUGO está ao seu lado. Conversa animada na mesa de AURELIUS. WAGNER em vívida discussão com BORGES. INÁCIO mantém o silêncio. HD se aproxima.]

AURELIUS: [Ao notar o olhar de HD] Esse Wagner fala demais. Em compensação, o Inácio é um monge tibetano.

INÁCIO: [tom filosófico] O que há para ser dito? É melhor ficar calado.

WAGNER: [irônico] Tudo já foi dito, tudo já foi escrito?

[Risinhos femininos. Todos se voltam. GABRIELLE sussurrando ao ouvido de SIMONE. VÍCTOR-HUGO e GUILHERME retornam ao palco. GUILHERME inicia um solo.]

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Atendendo às aclamações, voltamos! Agora uma canção do Clube da Esquina. (“Nada será como antes”, do Lô Borges) [cantando] “Eu já estou com o pé na estrada Qualquer dia a gente se vê Sei que nada será como antes, amanhã...”

HD: [Voltando-se para SIMONE] Gostaria muito que você participasse da Exposição.

SIMONE: [surpresa] Que Exposição? Obras de arte? Gado Zebu? [risos] Ah, eu sei! A Exposição de poemas! Inusitado é o mínimo! Expor poemas!

HD: [sério] Com direito a moldura e iluminações especiais. Estamos em plena seleção. Devo lembrar que conto com a colaboração do Délcio Palma. Impossível fazer tudo sozinho. Eu cuido da captação de recursos e o Délcio da impressão e decoração.

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Que notícias me dão dos amigos Que notícias me dão de você?

SIMONE: [curiosa] E os convidados? Aposto que o WS...

HD: Muitos convidados. WS, inclusive. Mas convites não faltam. Personalizados para Alfonso Lucena, Leir Macedo, MC, Makely, o poeta-cantor, Alberto Stevam, o ator, também o Victor-Hugo, o Edgar, o Beto, o Benito, o Aurelius, enfim, a nata literária.

SIMONE: Quer dizer, a nata artística. E entro nessa, como?

HD: Pensei numa palestra sobre a Literatura Brasileira. Modernismo. Mário de Andrade. Ou tropicalismo.

SIMONE: É possível. Preciso de um data show. Mas com uma condição.

HD: Diga.

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Sei que nada será como está Amanhã ou depois de amanhã Resistindo na boca da noite um gosto de sol.”

SIMONE: Quero que você recite no meu evento sobre Literatura Africana. Estude, pesquise, vire-se! Quero poesias de autores africanos. E vou até facilitar! Dê preferência aos de países de colonização portuguesa, tipo Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. Gosto muito de Agostinho Neto, de Angola, e de Mia Couto, de Moçambique! Adoro! Veja que já passei dicas demais!

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. A próxima canção é para os fãs de tropicalismo. Caetano Veloso com “Tropicália”. Bem-vindos aos anos 60. [cantando] “Sobre a cabeça os aviões / sob os meus pés os caminhões...”

SIMONE: Vejo que chegamos a um acordo. O que mais há nesta cabeça fervilhante?

HD: [sorrindo malicioso] Ah, coisas inconfessáveis...

SIMONE: Não imagino o que seja...

HD: Não imagine. É para sentir somente.

[O garçom se aproxima e serve outra cerveja. GABRIELLE, que conversa com AURELIUS, espera o garçom servir e ergue o copo. HD está reclinado sobre o cabelo de SIMONE, atento às curvas de seus seios]

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Eu organizo o movimento / eu oriento o carnaval...”

WAGNER: [empolgado] ... mas os bombardeios sobre a Alemanha visavam desviar os aviões da frente russa, e Churchill não teria permitido...

BORGES: [empolgado] Mas você defende demais os ingleses...!

WAGNER: [mais empolgado] Mas eu conheço as táticas inglesas, o serviço secreto! Não pense que sou algum fã deslumbrado de James Bond! Eu pesquiso muito, señior Borges...

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Essa foi para os saudosistas. Agora, para os moderninhos, Tom Zé! “Se o caso é chorar” [cantando] “Se o caso é chorar / te faço chorar / se o caso é sofrer...”

SIMONE: Ele tem bom-gosto, o Victor-Hugo! Conhece tudo de MPB. Tem futuro, o rapaz.

HD: Acredita que estudamos juntos? Conheço o Victor-Hugo desde os quinze anos! Ele matava aula para agarras as meninas na quadra de esportes ou para ensaiar com uma bandinha! Uma que fazia covers dos Titãs e do Ultraje a Rigor. Impagável!

GABRIELLE: [para SIMONE] Empreste-me seu celular, querida. O meu está sem créditos. Uma vergonha, não é? Também eu vivo usando o do Jorge! Assim eu aproveito e leio as mensagens, para ver se ele não recebeu nada de algum amante por aí... Com licença, gente. [Sai]

HD: [Próximo a SIMONE] E se ela ler as SUAS mensagens?

SIMONE: Gente, o que é que tem?! Ou você enviou alguma ‘indecorosa’?

HD: Não sei como! Você nunca me passou o seu número!

SIMONE: Verdade? ‘Tá certo. Não somos assim tão íntimos. Deve ser a terceira vez que conversamos. E eu não gosto de pegajosos. O Bruno então, era terrível. Era só me ver para chegar com aqueles abraços de urso...

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Amor deixei sangrar meu peito...”

SIMONE: Você é mais na sua. Gosto da sua inteligência.

[HD a observa. Leve, a fumaça se eleva. HD, que não fuma, é tolerante.]

HD: Gostaria muito que pudéssemos sair um dia...

SIMONE: [SURPRESA] Está me chamando para sair? Oh, meu querido Hector, será um prazer! Mas não confunda as coisas, sim? Somos bons amigos, não é?

HD: [amuado] Como quiser. Importa a sua companhia.

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Agora cantaremos para os corações enlaçados que adoram o doce cativeiro a paixão. Djavan, “Faltando um pedaço” [cantando] “O Amor é um grande laço. Um passo pr’uma armadilha...”

HD: [sedutor] Está ouvindo? Uma trilha sonora inspiradora...

SIMONE: Ai, ai, ai! Corta essa, Hector! Estamos entre amigos e não quero o meu nome no jornalzinho da faculdade...

HD: [amuado] Depois eu sou o cruel...

GABRIELLE: [voltando] Não, não. Realmente ela é cruel. E com uma mixaria de créditos... Acho que nem consegui acordar o Jorge! Isso se ele não estiver muito ocupado com outra...

SIMONE: [aceitando o celular] Ah, amiga, que desconfianças são essas? O que seria do Jorge sem você?

GABRIELLE: [irritada] Ah, homem não presta mesmo! [sentando] Ah, desculpe-me, Hector. Problemas domésticos. Coisa de recém-casados. [E ajeita o cabelo com aquelas mechas rubras] A gente depois se entende...

SIMONE: [compreensiva] Assim espero. Ouça que linda canção!

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “E o coração de quem ama / fica faltando um pedaço...”

GABRIELLE: Espero não ter ‘quebrado’ o clima de vocês!

SIMONE: Ah, não brinca. O Hector é um bom amigo. Não é, Hector?

HD: Sim. E quem ousou pensar diferente?

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Obrigado. Agora continua o solo do Gui...

[Solo nasce da melodia da canção, com improvisações jazzísticas, impetuosas, como a ilustrar o conflito de dois amantes presos por sentimentos e exigências, num quarto diminuto diante de semelhante duelo de corpos e fantasias.]

SIMONE: É a literatura que nos uniu. Nas Letras, unidos os nossos destinos.

GABRIELLE: Romântico, isso! Depois eu é que sou leitora fanática de Macedo, Alencar e outros afetados!

HD: Só precisamos saber quantos leitores celebrarão nossa união

SIMONE: Ah, eu mereço! Com licença. [Sai]

HD: [surpreso] Ora, aonde ela vai?

GABRIELLE: [entediada] Não se preocupe. Ela só vai ao toalete.

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Poetas, caros poetas! Venha, Aurelius!

AURELIUS: [ao microfone] Um poema do Affonso Romano de Sant’anna, “A arte de Sonhar”. [recitando] “Dizem os antigos: - é preciso sonhar / para que o real se realize...”

GABRIELLE: Simone fica assim toda animada diante de um poeta vivo, afinal ela só estuda poetas mortos...!

HD: Mas eu não sou aquele que habita os sonhos dela...

AURELIUS: [recitando] “Sonhar é ciência que requer estudo.”

GABRIELLE: E você por acaso é romântico, hein?

HD: E o que é ser romântico? Sonhar com mademoiselles e oferecer flores ao crepúsculo?

AURELIUS: [recitando] “É o sonho um palco improvisado / com cenário e atores convidados?”

GABRIELLE: O problema é que a gente lê demais. É curioso. Tem gente que não lê, e nós, por profissão, precisamos ler até a indigestão!

SIMONE: [voltando] O que vocês estão falando de mim?

GABRIELLE: Você está louca, amiga! Vê se pode! E somos desse tipo de gente que ataca pelas costas?

SIMONE: [Senta-se, acende outro cigarro] Ainda bem, querida! Eu desconfio de vocês, leitores de Lacan! Ficam analisando, “desconstruindo” a gente!

GABRIELLE: [entediada] Se eu leio Lacan? Sou obrigada, querida! Está na grade curricular! O nome já diz tudo: “grade”!

AURELIUS: [acaba de recitar] Obrigado. [Volta à mesa, onde senta-se entre WAGNER e INÁCIO. Volta-se para HD] Então, Hector, estamos esperando a participação de Vossa Senhoria.

VÍCTOR-HUGO: [ao microfone] Grandes poetas! Vamos fechar a noite, em homenagem ao Cazuza, em homenagem à Cássia Eller, com o clássico “Malandragem”. [cantando] “Quem sabe eu ainda sou uma garotinha...”

SIMONE: Então você entendeu, não é, querido? Em maio, jogaremos holofotes sobre os poetas africanos. E não vai sumir não!

HD: [sorrindo] Estou a vossa disposição, mademoiselle! Sou o vosso humilde servo!

SIMONE: É bom mesmo.

VÍCTOR-HUGO: [cantando] “Pois sou criança E não conheço a verdade/ Eu sou poeta e não aprendi a amar...”

SIMONE: Pensativo, Hector?

HD: Às vezes, ouvimos algumas verdades...

SIMONE: Ainda não aprendeu a amar?

HD: [olhos nos olhos] O que é ‘amar’?

[Olham-se em silêncio. Solo de GUILHERME. Os casais se beijam. Um garçom limpa uma mesa recém-desocupada. WAGNER levanta-se, ajeitando a gravata. AURELIUS graceja junto a INÁCIO. BORGES observa os músicos. GABRIELLE, idem.]

HD: [levanta-se] Deixe-me ler algo do Mário de Andrade. [ao fim do solo, HD aproxima-se do microfone, e recita] “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso,...”

[GABRIELLE e SIMONE se entreolham e observam HD. WAGNER volta e sussurra ao ouvido de AURELIUS. BORGES e INÁCIO ostentam sorrisos. GUILHERME mantém um ‘fundo musical’. O garçom serve outro cocktail à VÍCTOR-HUGO.]

HD: [recitando] “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo...

[GUILHERME deixa o solo apagar-se. HD recita e agradece. VÍCTOR-HUGO agradece a presença de todos. AURELIUS levanta-se e aborda GABRIELLE e SIMONE. WAGNER levanta-se sorridente. INÁCIO e BORGES levantam-se e seguem rumo ao bar. AURELIUS conduz GABRIELLE e SIMONE ao segundo ambiente. Despedidas. HD entre sério e emocionado. Saem AURELIUS, GABRIELLE, SIMONE e WAGNER.]

GUILHERME: [para HD] Hoje o carro do Aurelius vai recheado. [Oferece a cerveja] Aceita?

HD: Não, obrigado. E se pedíssemos um espaguete?

GUILHERME: [Seguindo para a mesa junto ao palco] O Victor-Hugo já pediu.

[Aparece VÍCTOR-HUGO às costas de HD]

VÍCTOR-HUGO: Valeu, poeta! [Senta-se, prende os cabelos] E o seu livro? Já lançou?

HD: Incrivelmente, mas ainda não. Eis o ‘projeto’. [Estende uma encadernação artesanal] Muitos poemas já divulguei para os amigos, já declamei aqui nas noitadas... E assim vai. Vivo ouvindo que poesia não vende...

VÍCTOR-HUGO: E música vende? Digo, música realmente artística. Porque lixo sonoro não falta! Não falta o ‘jabá’, a grana da gravadora pra tocar as mesmas músicas ao infinito! Até hoje não gravei o meu álbum.

HD: [senta-se] Nós, os artistas, vivemos de concessões. Seremos notados quando dermos lucro a alguém, a uma editora, a uma gravadora... Afinal, temos (lutamos por) um estilo, mas somos periféricos.

[O garçom serve as porções de espaguete. Os rapazes comentam o David Gilmour na tela, onde canta “Wish You Were Here”. Apreciam o menu e a canção. O bar se esvazia. Visão do ambiente. Palco com instrumentos. Casal numa mesa à direita. E a mesa com os três artistas. Um solo de guitarra.]



(notas de Stevam Lucena)(folha solta dentro do diário)
 (sem data)

Andando pelas ruas noite adentro eis os vultos suspeitos. Um encostado a um poste, a fingir a espera do próximo ônibus? Ali alguém apoiado ao muro do museu histórico, procura um maço de cigarros na jaqueta – ou será um punhal? Quando você anda os outros solitários se afastam, movem-se em cena, mudam de posição, alguns até de calçada. Homens com mãos vermelhas?(*) Suspeito é aquele que vem em sua direção, como quem não teme nada, e até vai lhe perguntar as horas, ou um certo endereço – e puxar a arma!

Ando afastado de todos, jamais junto aos muros, mas em plena rua, sobre as bocas dos bueiros, cegado pelos faróis, e com as mãos nos bolsos e olhos baixos. Se vejo alguém, finjo esperar o coletivo, sob a luz baça do poste, sempre com as mãos nos bolsos, e como se segurasse algo – pronto a sacar. Um falo ou uma navalha.



(*) Segundo apurou Alfonso Lucena, trata-se de uma referência indireta à canção “Red Right Hand”, do Nick Cave.





[Bandejão da Universidade Católica. Duas mesas unidas. Três copos. Uma latinha de coca-cola. Uma garrafa pequena de água mineral. Um garçom se aproxima e serve salada à concentrada GABRIELLE, sob os olhares de SIMONE e HD.]

GABRIELLE: Estão servidos.

SIMONE: [inclina-se curiosa] Só tem salada!

GABRIELLE: É o meu regime, filha!

SIMONE: [olhar de entendimento] Ah! A sua gastrite! [Num olhar em ondas] Pois a minha eu vou iludindo...

HD: [sorriso de cumplicidade] Então somos três.

SIMONE: [Volta-se, agitando o guardanapo] O quê? Vai dizer que você também tem gastrite?!

HD: [Tom médico de consultório] Digamos que sim. É só o estômago em processo de digerir a si mesmo... Mas sob controle.

SIMONE: [perplexa] Auto-canibalismo...

GABRIELLE: É, filha! Nunca vi tanta gente com problema de estômago, de digestão. [Revira a salada de alface, couve, agrião com molho e queijo ralado] É que a gente não sossega, não come direito...

HD: É a vida moderna. O império do estresse. Sem tempo nem pra comer.

GABRIELLE: Eu nem almocei. Agora é que vou jantar!

HD: Pois é. Quando a gente está em casa é almoço e janta na hora certa. Mas aí entramos no mercado de trabalho e é um sufoco só! É engolir tudo olhando pro relógio...

Simone: [Olhos abertos. Ah! os olhos verdes!] Que horror!

HD: No dia-a-dia nada de refeições regulares. Um dia eu almoço às 11 horas, outro dia é às 3 da tarde! Adeus biorritmo!

GABRIELLE: E não é? O estômago endoida. Nunca sabe a hora que vem o rango...

HD: E não se pode comer muito e nem comer pouco. Mas aí o que a gente faz? Fica comendo estes fast-foods, esses hot-dogs assassinos! [Vira a água mineral no copo] Eu fico até umas dez horas sem comer. Mas sem comer mesmo! Se eu chupar uma bala eu vou querer o menu completo!

SIMONE: [Rindo-se, mas alarmada] Estômago exigente...

GABRIELLE: Difícil é seguir as dietas. Cortar o café, o refri, os chicletes, os doces, até o leite!

SIMONE: [Mais alarmada ainda com seus olhos marinhos] Até o leite?!

HD: [num eco] Até o leite?! [Bebe sua água mineral] Café e refri eu até entendo – mas o leite? O meu médico até que proíbe o leite quente, ou com café. Mas liberou o leite frio... O que ele cortou é o refri! Na primeira consulta já perguntava: “O Sr. bebe detergente?”, e eu entendi nada de nada, e ele, “O Sr. bebe refrigerante? Que é coisa de desentupir pia.”, e na mesa o que eu vejo? Um copo com um dente mergulhado em coca-cola! E cada vez que vou às consultas, vejo logo que o dente está cada vez menor!

GABRIELLE: Sério?! [E olha para a latinha de coca-cola ao lado do guardanapo]

SIMONE: [num eco] Sério?! [Olha a latinha de coca-cola que GABRIELLE desafia]

HD: [para GABRIELLE] Você não passa mal com coca-cola?

GABRIELLE: [Ainda encarando a coca-cola] O pior é que passo mal. Na hora, não. Parece até que desce limpando...

HD: [interrompendo] Desentupindo, na verdade...

GABRIELLE: [continuando] Depois é que parece que vai explodir! Um peso dentro...

HD: Pois é. Refri – OUT! Só bebo água mineral – sem gás! [E vira mais água no copo] Na verdade, eu nem estou autorizado a beber água durante as refeições... The doctor avisou: só uma hora antes, ou duas horas depois...

SIMONE: Já ouvi essa. É pra não atrapalhar a digestão.

HD: [rindo] É pra não afogar a digestão!

GABRIELLE: [afasta a salada e empunha a coca-cola] Pra mim chega. Hora de desentupir, então. [aponta a salada] Então, quem aceita?

HD: [Olhar de salvador-da-pátria] Passapracá! A gente reparte. Não é, Simone?

SIMONE: Pois é. Deixa eu experimentar.[Ergue o garfo e experimenta] Hum. Muito bom!

HD: Não é pra menos. Recomendado por nutricionistas! [Ergue o garfo e experimenta] Hum. Muito bom!

GABRIELLE: [bebe a coca-cola] É pra desentupir... [um gole] O que não me destrói, me... [outro gole]

SIMONE: [devora a salada] Boa!

HD: [devora a salada] De primeira!

SIMONE: Ah, que saudade da comida da minha mãe!

GABRIELLE: É só aos domingos e feriados, querida!

HD: A minha mãe faz um strogonoff magistral...

SIMONE: A minha é a rainha da feijoada!

GABRIELLE: [Depois de um minuto de meditação, um tanto alheia] Pois eu nunca vi tanta gente... [um gole] com esses lances de problema de estômago [outro gole] na minha família então...

HD: É como eu disse. O estresse. Coisa pra médico, ou pra analista. Freud bem que previa. “O Mal-Estar na Civilização”. Já leu?

GABRIELLE: Não. Só uns trechos. Mas concordo. Gente, a nossa vida vai totalmente contra a fisiologia! Não tem existência mais antibiológica que a nossa...

SIMONE: [ainda diante da salada] E mais anti-ecológica!

[O garçom recolhe os pratos de HD e GABRIELLE. Joga um olhar como a espera de pedidos. GABRIELLE aponta uma sobremesa no menu. O moço anota e se afasta.]

GABRIELLE: Você e esse lance de Freud, de análise! Nem me fale!

HD: Mas é mesmo. A que ponto chegamos. Pagamos alguém para ouvir pérolas do nosso mal-estar, a nossa falação...

GABRIELLE: Mas o analista não é só para ficar ali e ouvir!

SIMONE: É pra aconselhar?

HD: É pra te ouvir. Se o cara segue Freud. Mas tem uns junguianos que começam uns papos esotéricos... [Volta-se para GABRIELLE] Você gosta do seu analista?

GABRIELLE: Da MINHA analista? Não sei. Acho que sim. Não como uma amiga, ou uma parente...

HD: Algum afeto?

SIMONE: Mas e a tal “transferência”?

HD: Pois é. Você não pode amar nem odiar o seu analista. Ele é um profissional. E profissional é profissional. É como se você se apaixonasse pelo porteiro do seu prédio, ou pelo padeiro...!

SIMONE: [Com os transbordantes olhos verdes] Nada a ver!

GABRIELLE: Mas a análise não acaba quando tem justamente o lance da “transferência”?

HD: Depende. A questão é: sua vida melhorou? Você foi “curada”, digamos...?

GABRIELLE: Acho que sim... de certo modo... Não sou tão tímida. O lance da depressão já passou. Ainda que eu não confie nas pessoas...

[O garçom reaparece com o sorvete apontado por GABRIELLE. A cobertura de cereja reluz aos golpes da colher. O olhar de GABRIELLE faz os oferecimentos que a boca não tem tempo de fazer, “Querem, crianças?”, e ocupada entrega-se ao seu minuto de delícias]

HD: [Olhar malicioso, mais para SIMONE] E quem confia...



 [...]



LdeM

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário