sábado, 7 de maio de 2011

Início do Capítulo 3


Parte 3 – Flores no Asfalto


Capítulo 3



    Encontramos HD na fila do banco, daquelas de virar esquina, mas concentrado numa antologia de contos russos, pouco preocupado se alguém oferece mapas do Brasil e Atlas mundial, ou se uma senhora negra e idosa apregoa pé-de-moleque e biscoito caseiro, ou se um gordo cego promete prosperidade e riqueza na simples aquisição de um bilhete da lotérica estadual.

    Uma sexta-feira abafada, é o que encontramos. E pouca promissora. Logo de manhã, o músico e escritor Délcio Palma, para o qual HD realiza periódicos serviços de revisão e crítica, telefonou desmarcando uma entrevista, onde encontrariam o novo editor.

    É certo que aquela fila consumirá hora e meia de sua breve vida. Certamente as estepes russas são menos tediosas. Um campônio dos contos de Tchecov pode fazer boa companhia. Um senhor de terras pode ser um bom bode expiatório para os nossos rancores.

    No shopping, ele devora um lanche e mais uma revista literária, além de rascunhar um poema sobre a insegurança. Assim, o pensativo HD em busca de um oásis de ar-condicionado, folhear páginas carregadas de informação, metáforas, pleonasmos, paródias, aliterações, oxímoros, assonâncias, trocadilhos, gráficos, inversões, fotos, autógrafos, endereços e telefones de editores, críticas, mais pleonasmos, hipérboles, desaforos, críticas ferinas, amadores nada amados, mais metáforas.

    Mas às treze horas, ele tem agendada uma visita ao locutor e jornalista JC, referente ao projeto da adaptação de Othelo. Afinal, não só de Elen Lauria viverás! O que HD espera de JC? Contatos, principalmente. Nomes de figurões do mainstream da produção cultural. Alguma Fundação Clóvis Salgado da vida.

    Deslizam as notícias do telejornal. Ao convite para o almoço, HD agradece, “Eu almocei no shopping

    - Do que você precisa, Hector? Divulgação na mídia? Na Rádio podemos inserir pequenas chamadas nas quartas e no sábado. Uma campanha ficaria um tanto custosa.

    Mas HD quer levar o assunto par o lado da produção, com um respaldo técnico, um bom contra-regra, um cenografista decente. JC anota e anota, mas nomes são coisas delicadas, não vai se listando assim, os donos podem não gostar.

    Acabado o telejornal, HD se levanta em despedidas, mas JC faz questão em acompanhar o jovem. Caminham juntos até a praça do bairro e HD desce para a estação do metrô, mas apenas para atravessar a passarela para o hipercentro.




    Na Prefeitura, HD, às quatorze horas e dezessete minutos, é atendido por funcionários mal-informados, mas pelo menos é atendido.

    - O Sr. marcou horário com o Secretário?


    Não, não se trata disso. Contatos, apenas contatos. Por exemplo, na Secretaria de Cultura. Meu reino por um único nome – um bom contato! Aliás, somente posso dispor de meu mega-dicionário inglês-português. Mas de nada adianta, os caminhos até os bastidores do poder inda serão muito pedregosos, e HD precisará desenhar um mapa assinalando áreas instáveis e areis movediças.

    Seguindo para a Biblioteca Municipal, HD encontra meio ao atropelo dos transeuntes o sorriso conhecido do jovem acadêmico Beto, também apressado, pois está voltando do horário do almoço.

    - Sabe quem está a sua procura? A Simone.

    “Simone, não a de Beauvoir”. Oh, sim, Simone Queiroz. Eis um nome a trazer doces recordações. Promessas.

    - Alguma idéia do que seja?

    - Sei não. Pode ser sobre a Exposição...

    “Ótimo! Se a peça não sair, pelo menos a Exposição continua na pauta.”

    - Agradeço. Teria, por gentileza, algum contato dela?

    E Beto passa o telefone da loja onde Simone atualmente trabalha. Com promessas de entrar logo em contato, HD lembra o lançamento do CD do Délcio Palma, que sabe, como poucos, unir música e poesia. Seguem-se despedidas quase formais.

    Continuando sua caminhada até a Biblioteca, HD descobre ser 23 de janeiro, e que a temperatura no centro é de vinte e cinco graus além de ser informado que são quatorze horas e quarenta e quatro minutos, mas é abordado por uma buzina. Eis o veículo-gota-rubra do escritor AF, que publica contos e crônicas no jornal estadual. O literato convida HD a entrar, “Que tal uma caroninha?” Passam pela portaria do jornal e HD, atendendo a gentil solicitação do gentil AF, entrega um envelope com textos. De volta ao carro, HD não hesita em indagar sobre os contatos de AF no jornal. Mas AF revela não contar com tal ‘técnica’, apenas deixa os textos na portaria e pronto: eles publicam! Óbvio que HD não acredita! Diz ter deixado uns poemas e nunca recebeu qualquer apoio.

    - Ah, poemas eles não publicam! Experimente prosa.

    Muito gentil, AF deixa HD diante da Biblioteca, e HD promete desengavetar uns contos. “Você é um sujeito prosaico, Hector.”

    Biblioteca. Quatorze horas e cinqüenta e cinco minutos. HD em saudações, “Boa tarde, como vai? Boa tarde, JB!” Mas quem ele encontra? Alberto Stevam, o ator. E, discutindo as possibilidades e viabilidades da peça, a percorrerem as estantes até os volumes dedicados ao teatro, Shakespeare, Suassuna, Beckett, Ionesco, Miller, Dias Gomes, Sartre, Camus, Peter Weiss, Brecht, Williams, Molière, Racine, Cocteau, Yeats, Goethe, Zé Celso.

    - Gostaria tanto que você fosse o Cassius. E sabe quem poderia ser o Otelo, o ciumento? O Hélio Lúcio! Não conhece? Ah, preciso urgentemente apresentar vocês!

    - E a diretora? Aceitou? Sabe que a gente poderia visitar as oficinas da companhia do EG?

    - Do EG? Sério? Mas precisamos esperar. A diretora não combinou ainda. E falta elenco.



    Na saleta dos computadores, JB conserva sobre divulgação de poemas na internet. Quem é seu interlocutor? Um jovem de vestes soturnas e olhar fixo. Stevam Lucena. Saudações de parte a parte. E HD apresenta o “amigo do TH” ao ator Alberto Stevam. “Quase xarás!”

    Comentários sobre o Carnaval Revolução circulam. Intervenção e debates num hotel ali da Paraná. Coisa da GATO NEGRO. Quem anda traficando informação? Hélio Lúcio? Pudera!

    Alberto puxa a conversa novamente para o teatro e HD volta a expor as possíveis alternativas para o texto já escrito, que Elen ainda considera muito ‘caretas’, “Mas Elen está fora do jogo.” Então JB menciona os projetos de incentivo, ao que HD declara seu libelo contra a burocracia. Lei estadual, fomento municipal, lei Rouanet, captação de recursos, campanha de divulgação, ocupação do espaço público.

    Acesso irrestrito à internet! E vamos bisbilhotar portais de poesia. TANTO, LIVRO ABERTO, JORNAL DE POESIA, JOVENS ESCRITORES.

    Textos de Hélio Lúcio. E de JB. Muitos de WS e MC. Inéditos do Affonso Romano. E autores portugueses. José Luís Peixoto. Valter Hugo-Mãe.

    Ao lado, JB folheando revistas, enquanto Stevam Lucena acessa sítios de cultura obscura e páginas dedicadas a bandas sombrias. Alberto mostra-se surpreendido com a quantidade de novos autores, enquanto HD empilha sobre a mesa os títulos dos clássicos, “Ode ao Burguês”, “Estou farto do lirismo comedido!”, “O preço do feijão no cabe no poema”, “O operário em construção”, “Não serei o poeta de um mundo caduco”. E tão concentrado ficou que, por fim, nem se despediu de Alberto.

    Encontra é um livreto de Caio Prado Jr. Sobre liberdade. Existente no capitalismo (dito liberal) ou no socialismo? Qual socialismo? Aquele de “Animal Farm” de George Orwell? “A Revolução dos Bichos”, como traduzem. E de como os porcos traíram a revolução, “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.

    “Por que somente agora tal livrinho cai em minhas mãos? Por que não em noventa e nove, épocas daquelas intermináveis discussões?”

    O estudante precisa de material sobre a Guerra Fria, Macartismo, essas coisas. Vamos ao arquivo. Baía dos Porcos, Crise dos Mísseis, Guerra da Coréia, Guerra do Vietnã, Kennedy e Kruschov. Manifestos, Manifestações, Narcotráfico (fora do tema?), Nixon, Operação Bandeirantes, Operação Condor, Revolução Cultural, Seqüestro do Embaixador, Torturas. Varsóvia, Pacto de.

    Voltemos aos poemas. “Abaixo os puristas”, “Então o herói negro saiu da senzala”, “Mundo mundo vasto mundo”, “Lá vem o acendedor de lampiões da rua!”, “Eu canto porque o instante existe”.

    E outro estudante estorvado pela busca infrutífera de informações sobre os conflitos de terra no Brasil, com seus inúmeros massacres, invasões, depredações, ocupações, processos, deturpações, falsos testemunhos, mútuas acusações, testemunhas compradas, mulheres violadas, cercas rompidas, propriedades invadidas, reforma agrária sempre prometida, fotos de Eldorado dos Carajás.

    Depois dessa, ele até vai pra casa. Encerra-se a penúltima semana de férias, dezoito horas é hora de bater o ponto.

    Ao sair, aquele sombrio Stevam, irmão do Alfonso, ainda estava ao computador.





    Imagens de cemitérios nunca são agradáveis, mesmo aquelas digitalizadas e disponíveis ao um clique do mouse. Ilustrando páginas principais de sítios na rede mundial, os túmulos têm todo um ar démodé a destoar dos modernos campos de extermínio com suas chaminés hercúleas e fornos industriais que apresentam uma morte volátil.

    Relvados cobertos de lápides e inscrições tumulares nos levam a difícil tarefa das lembranças, quando o melhor seria esquecer de uma vez por todas e transformar nossos mortos em fumaça. “Pelo menos haveria mais espaço para bosques ou conjuntos habitacionais.”

Ainda na Biblioteca Municipal, Stevam nota o vulto soturno e perfumado de uma jovem adentrando a sala de leitura. Camisa branca, sai a preta com cinto de tachinhas, braceletes, longas unhas negras, com uma enorme cruz anseata (daquelas egípcias) tatuada nas nuca, exprimindo todo o enigma que toda mulher encerra, num olhar distante, mas sem nunca sair de si mesma. A tatuagem sob o longo cabelo negro, a tatuagem na pele pálida, sinalizando uma presença que a si mesma se interroga. Lendo poemas.

    Ela está próxima a estante de poesia, ele, junto a de literatura inglesa. Quando Stevam cai em si e pensa em puxar assunto, “Você lê poesia? Gosta de tal autor? Eu escrevo, sabe...”, aí aparece outro vulto, cabelo loiros presos, camiseta escura, olhar pouco amistoso. O partner da garota. Abraçados se beijam. Nisso Stevam sente o coração trincar.

    Stevam Lucena já não é mais aquele que entrou. Até já desistiu de ler. Vai ao Edifício Maletta esperar faces conhecidas de outrora. Mas espera em vão, como muitos outros gestos seus. Ninguém para beber um vinho, a conversar sobre os velhos tempos. A nova geração, como sempre dizia o TH, é a “da imagem, não do conteúdo. Aparência demais, essência de menos.”

    Vai perambular rua da Bahia acima, até animar-se a entrar à sala de leitura da Biblioteca Estadual. Vai ler trechos de Friedrich Nietzsche, para erguer a auto-estima.

    Sua atenção, tal uma borboleta que busca pouso em uma flor eleita, vem pousar sobre três jovens numa mesa. Um rapaz diante de duas grotas. Semblantes pesarosos de quem acabou de comparecer a alguma cerimônia fúnebre. Solenes em um sentimento de luto que inclui (e igualmente exclui) toda a humanidade.

    Pálidos, semblantes tensos – o coração de Stevam derrete: seus iguais! Folheiam volumes da prateleira de filosofia, diante de seus olhos, que fingem atenção aos símbolos gráficos no papel, mas degustando cada gesto do trio. Não mais que dezoito anos, seus modos revelam. Um deslocamento próprio, um não-situar-se no mundo, como se patinando sobre uma fina camada de gelo. O jovem ajuda a garota mais alta (e pálida) a tirar o sobretudo. Em seguida, retira o próprio, em movimentos graves e harmônicos. Parece mais um padre a retirar os paramentos após a liturgia. O que realça o silêncio da Biblioteca com gravidade.


    É o momento de Stevam entregar-se a arquitetar frases e possíveis diálogos, para atrair com filosófica sedução aquelas almas juvenis. Mas estão incomodados os jovens de olhares tristes! Pela presença de Stevam? Notariam os brilhos de interesse em cada olhadela? O fato de estar ali é desagradável em si mesmo? Haverá no mundo um lugar para o nosso bem-estar? algum lugar que me pertença e que eu queira abandonar?



    O jovem veste o sobretudo, altivo diante das meninas. Elas erguem olhares de mal-estar, mas é ele que dá sinal de evasão. E ele mesmo guarda os livros na estante. Stevam atento a cada movimento. O jovem, de súbito tomado de um profundo enternecimento, abraça afetuoso uma das garotas, a mais baixa e menos pálida, com um indiscreto batom vermelho, e um olhar de desgosto infindo. E ela parece fraquejar, e o rapaz até a sustenta, como se a qualquer momento ela fosse cair! Depois ele oferece o braço direito a mais alta, e seguem ao longo do corredor.

    Stevam Lucena observa, enquanto se afastam. Fecha o volume de Nietzsche, onde lera sobre o Eterno Retorno do Mesmo. E como ele deseja estes instantes de novo e de novo! E observa nas estantes os volumes pesquisados. Algo deslocados. Esoterismo, filosofia, ocultismo, maçonaria. Interessante e, sobretudo, significativo.

    Recolhe seus pertences no guarda-volume e alcança os jovens no banco ao lado da Secretaria de Educação. O jovem e a moça mais alta estão reclinados junto a mocinha de lábios rubros, prostrada no centro do banco. Parecem prestar pronta assistência a uma enferma, num retrato vivo da fraternidade humana!

    - Boa noite! (Eles mal respondem) Ela está passando mal? (Recebe o olhar hostil do rapaz) Deve ser pressão baixa...

    Os jovens se surpreendem, e não disfarçam a desconfiança. Mas por uma borbulhante fonte interior Stevam é impulsionado.

    - Vocês lêem filosofia? Observei na biblioteca...

    - Sim. Lemos. – diz o rapaz, mas seu olhar Expressa um arrogante, “E daí?”

    - É. Eu leio também. Também psicologia.

    Todos o observam. Ele começa a sentir-se ridículo.

    - Algum evento por estes dias? Algum show?

    - Não estou sabendo. – diz o rapaz, pois as garotas permanecem mudas.

    - Alguma festa sombria no Matriz?

    Então a garota mais pálida (ela é linda!) fixa o olhar. – Só no início de fevereiro.

    - Eu fui lá em dezembro, mas cancelaram. Havia um show gótico na mesma semana. E no show eu não fui... (pausa) Vocês gostam de poesia?

    Só o rapaz. – Gostamos.

    - É, eu escrevo. Até divulguei poemas lá em novembro. Lá na entrada. Colei na parede.

    - Poesia?

    - Sim. E pretendo publicar. Um volume meu. Mas na época eu publiquei o livro de um amigo. Um amigo já falecido.



    O rapaz foi simpático ao tom de infinita perda. – Você têm poemas seus aí?

    Mas quando Stevam abre a pasta para tirar as folhas, as garotas se levantam bruscas e se afastam para o banco ao lado. O rapaz fica num dilema. Segue as garotas ou a sua curiosidade? Então, do lado da Biblioteca, surge outro rapaz soturno, não mais que dezoito, porém mais amistoso. É a desculpa para o primeiro rapaz se afastar, e sem cumprimentos finais, segue as sombras das mocinhas.

    O interlocutor agora é que insiste para ver os poemas. – Você escreve poesias? Está sabendo de algum sarau?

    E Stevam percebe ali um interesse. – E você escreve?

    - Escrevo uns versos...

    Vê-se que o rapaz é tímido, nada semelhante à altivez do primeiro, como se defendendo sua posição junto às meninas. A timidez pelo menos mostra-se uma barreira mais flexível.

    - É mesmo? Está com tempo agora? Quer conversar? Os outros... – E aponta o trio se afastando.

    - Tenho tempo. – E espera Stevam separar os poemas.

    - Eu fiz uma divulgação na festa Leis da Noite, em novembro. Mas não consegui contato com os produtores. O Conde parece ser um sujeito muito ocupado...

    - O Conde? Ora, ele está logo ali, proseando com um colega nosso! Quer falar com ele?

    Por um momento, Stevam vê abertas as portas da oportunidade na expectativa da redenção! O profeta que guia as multidões de jovens soturnos. A sombria presença do mestre espiritual dos adolescentes descontentes. Ele, o Conde, está distante à cem passos de sua humilde pessoa!

    Mas quando chegam a escadaria da Secretaria da Fazenda, onde dezenas de vultos jovens e sombrios se acomodam e trocam desgostos e bebem vinho e difamam as famílias, não encontram o nobre mestre, mesmo se misturando aqueles pouco amigáveis punks, pós-punks, góticos, roqueiros a la Seattle, satanistas, pseudo-satanistas, fãs de vampirismo, supostos adeptos de necrofilia, editores de fanzines com poemas macabros, além de videomakers aficcionados em sexo sadomasô.

    Stevam Lucena e Fabrício, o jovem colega que agora finalmente se apresenta, acomodam-se igualmente nas escadarias da Secretária e observam o movimento da noite de sexta-feira, com os corredores se exercitando nos jardins da Praça, os casais se esfregando junto às fontes luminosas, as famílias trocando saudações e afetos nas alamedas. Stevam continua com seus poemas em mãos e observa o trio de outrora que passeia de um grupinho a outro. Alguns seguem para a Praça da Savassi, onde não só os fãs de música obscura se reúnem, mas também os fãs de RPG ou outros jogos eletrônicos não só obscuros, mas cruéis e de violência exemplar! Quando não os neo-hippies ou neo-rastafáris com suas indumentárias peculiares e certo aroma característico...

    - Eu prefiro Edgar Allan Poe. – diz Fabrício ao seu lado, interrompendo cascatas de pensamentos.

    - Mas Baudelaire é mais elegante.

    - E vai dizer que Lovecraft é mais labiríntico? Influenciou muitos autores de contos de terror.



    - Você se refere a técnica, não? Mas Stoker tinha outras fontes, o que foi parcialmente aproveitado pela Rice.

    Mas uma mocinha com uma camiseta do The Sisters of Mercy levanta a mão num gesto de saudação, e Fabrício respondeu com um sorriso. De cabelos curtos e óculos discreto, a mocinha passou ao largo até um grupinho sob o poste. Dois rapazes chegaram, ostentando seus skates.

    Descia um frio de suave brisa na Praça e os grupos se desfaziam apenas para se refazerem adiante em novas configurações, mas Stevam não se animou a acompanhar as ondas em seus fluxos e refluxos, queria se despedir de Fabrício, ou “Andarilho Noturno”, seu apelido nas turminhas de RPG ou nos grupos de discussão na internet, segundo revelou. Haviam de se separar, mas não antes de ler sua tradução para “Annabel Lee”, de Poe, que muito significativo era ao seu repertório sentimental evocando a imagem de Sônia Regina.

    Enquanto o “Andarilho Noturno” segue os outros vultos rumo a Savassi, Stevam desce a rua da Bahia rumo ao metrô.

    Na escadaria, voa enrolada uma folha do poema que Fabrício esqueceu.





    O panfleto que HD recebera dizia “Gato Negro – Autonomia e Auto-gestão” e após breve texto indicava o endereço no Edifício Maletta, o que não era de se espantar!

    Palestras, oficinas, debates, biblioteca, café vegetariano eram prometidos e Hélio Lúcio também ficou curioso. E igualmente o Professor Antunes, o filósofo político, que HD esperava reencontrar. Além dos seus estudantes. No entanto, HD só conseguira (via intervenção de Alfonso) localizar o estudante Soares, que não premiou os esforços, dizendo ter a agenda cheia.

    Depois de passar a manhã mergulhado nos estudos sobre os fascismos, HD almoçou na rua da Bahia e chega ao Maletta pontualmente às quatorze horas. Diante do espaço (anti)cultural, estavam o bardo Hélio Lúcio e o nobre Professor Antunes, mas sem se conhecerem. HD cuida das apresentações e eles muito se admiram, após passarem cinco minutos olhando um para a cara do outro e sem trocarem palavras.

    - Lamentemos a ausência do estudante Soares, mas o que pretendo com este encontro é organizar um grupo de discussão política.

    Parecem interessados, principalmente o Professor Antunes, filósofo de pé no chão, mas que não dispensa temas metafísicos. E HD não poderia prever o quanto o intelectual mostrava-se existencialista. Uma mistura de Kierkegaard (mas negando a Subjetividade) e Sartre, passando por Heidegger e Bérgson (ao valorizar a Intuição), se perdendo em brumas abstratas de singular, particular, universal.

    Hélio Lúcio está atento e admirado, e antes que o diálogo torne-se um monólogo do Professor, HD esforça-se por encaminhar a conversa para um viés mais político, assim quando o Professor Antunes diz “particularidade”, HD menciona “multiculturalismo”. Nisso o Professor desconversa, diante de conceituações “politicamente corretas”. Quando a obra de Karl Marx é mencionada, o Professor fala em “modelo soviético”, o que causa o protesto de HD.



    - Mas, caro Professor, penso já ter manifestado minha opinião quanto a semelhante pensamento reacionário. Trata-se de uma ditadura, não ‘socialismo’. Estatismo, ditadura da burocracia. “Socialismo real” só o democrático, tanto que “democracia socialista” é pleonasmo. E “democracia liberal” é sofisma. A revolução morreu com Maiakovski. Seguiu-se um Capitalismo de Estado, um ‘mercantilismo’ de século 20...

    Mas o Professor Antunes, com toda a gentileza sua peculiar, insiste que a mencionada experiência russa foi a primeira tentativa em grande escala após a Comuna de Paris em 1871 e que o grande poeta russo se matou por desilusão amorosa! É quando HD precisa ser mais direto colocando em pauta a Guerra Civil Espanhola, e HL pode se situar melhor, vislumbrando o vulto de Garcia Lorca.

    - Stálin apoiou os ditos comunistas, ferozes, que exterminaram anarquistas, não mais que falangistas. O que causou uma união falangista-monarquista-católica que levava diante de si a tríade tradição, hierarquia e o Sagrado Coração.

    - Vejo que o senhor é muito dado a rótulos. Centralismo, conservadorismo, fanatismo. Mas não sabe o senhor que o que une semelhantes grupinhos é a intolerância? Que a intolerância nasce da não-aceitação do Outro, de sua diversidade?

    - Mas eu concordo com o senhor, Professor Antunes! Já escrevi sobre isso. Mas o senhor é que sai pela tangente quando abordo o multiculturalismo...

    - Onde tudo é válido, não é? – corta o Professor. – Onde tudo é permitido, certo? Trata-se d gosto ‘pessoal’, ok? Respeitemos os necrófilos e os que se divertem queimando índios?

    - Professor, o senhor está exagerando! Concordo que há muita coisa por aí que deveria ser proibida. Veja, existem sites de pedofilia na internet, existem anúncio de motéis em outdoors, mas não é disso que desejo falar. Interessa o olhar múltiplo, para iniciar um diálogo sem rotular, entende? Um olhar universal.

    Enquanto o Professor Antunes continua com pluralismos e particularismos, HD vai nessa de insistir no “universal”, algo de tolerância ‘iluminista’, não deixando de crer que o bom Professor, com toda a sua pose de ‘progressista’ não passa de um conscencioso ‘direitista’.

    - Concordo, Professor. Mas essa preocupação de ‘particulares’ (que não são indivíduos), isso é até ‘etnocentrismo’, o famoso “somos melhores que os outros”, coisa que os fascismos adoram. Já o multiculturalismo é ‘universalista’, vide o velho internacionalismo proletário. Concordo com a sua visão ‘historista’, certamente, mas vale o ‘método’, muito útil para evitar as ‘generalizações’ e identificar as ‘diferenças’...


    Mas o Professor desconversa, jamais abordaria uma questão que se resumisse a “Cristianismo e Fascismo” ou “Pós-Modernidade e Tolerância”, “Tudo rótulos! Tolera-se por compreender ou por dar lucro?” e entrega-se às visões pluralistas, budismo, Vedas, o pessimismo e o budismo de Schopenhauer, protestantismo relendo a Escolástica, o pessimismo irmana-se com o niilismo, a loucura de Nietzsche, o particularismo etnocentrista dos terroristas islâmicos.


    O que HD temia já acontecia – o diálogo já se tornava um monólogo do Professor, mas são finalmente salvos pela reunião dos anti-culturais. Só não se sabe contra qual ‘cultura’.



    “Anti-globalistas”, esclarece o jovem nipônico que atende os poetas. E ali estão duas meninas grafiteiras, meia dúzia de skatistas, dois técnicos em computação (nem pense em chamá-los de ‘hackers’!), três músicos de hardcore, uma neo-hippie com seu vestido com motivos florais, um jovem com indiscretos piercings e camiseta de banda pesada norte-americana, que jurava ser ‘anti-americana’!, além de outros, todos congregados pelo pensamento anti-capitalista, anti-imperialista, anti-fascista.

    O que o grupo discute? O grupo discute as estratégias de intervenção na sociedade, a saber, pichações, inclusive de outdoors, invasão de homepages, criação de blogs subversivos, desfile de bloco próprio (no carnaval, claro), oficinas de pintura e grafite, ou de reciclagem de papel, além de boicote a lojas e empresas que servem ao imperialismo das corporações, e não está descartada a depredação de seus símbolos e espaços físicos.

    Em seu momento de apresentação e proposta, HD, o lado de HL, se oferece para organizar um sarau com poemas e performances, onde a poesia social e alternativa terá espaço e voz, e citemos alguns expoentes que serão lembrados, a saber, Ferreira Gullar, Waly Salomão, Cacaso, Paulo Leminski, Chacal, Arnaldo Antunes, Makely Ka, dentre outros, e contando com a participação daqui do meu amigo Hélio Lúcio que declama sobretudo poemas de lavra própria. HL se apresenta, e HD lê um poema sobre BH, em seu centenário, e que certo editor achara um tanto depreciativo à imagem da metrópole, “Ele era a favor de um longo poema descritivo dos roseirais da Praça da Liberdade!”, mas aqui todos ouvem, porém sem polêmicas. Dois neo-hippies, com cabelos e barbas longas, ao estilo Allen Ginsberg, e que chegaram momentos antes, elogiam o longo poema de HD ressaltando traços beatniks. Os punks não se manifestam. As pichadoras criticam a censura dos editores. Uma delas, cabelo curto, sainha e tênis poído, mais atenta, lembra a lei municipal de incentivo à cultura, mas HD não julga ter tamanha ‘cara-de-pau’, “Como vou conseguir? Pois não estou exatamente elogiando a cidade! Dizem que só mostro o lado podre. Porém mostro aquilo que vejo!”. “Tudo está podre, meu chegado!”, desabafa um punk.

    Assim, HD e HL confirmam o sarau “Intervenção Poética” e ficam na micro-biblioteca, a comentar Ginsberg, a folhear “A Laranja Mecânica”, a poesia de Rimbaud, a náusea de Dostoievski e seu ‘homem do subterrâneo’, o desconforto em Artaud, a imagem maquiavélica de Maquiavel (Quem é o príncipe? O poder sem máscaras?), até que decidem bebericar algo lá no Café do Castelo.


    Hélio Lúcio quer saber mais sobre os planos de HD para a produção cultural, “O que andas arquitetando, meu velho?”, enquanto bebem chocolate quente e trocam folhas com poemas, “Meu caro Hélio, você está cada dia mais simbolista! Preciso de um dicionário!”, “Hector, meu velho, você anda lendo muito Maiakovski, não?”, e fica marretando a figura do Professor Antunes que criou um rótulo para acabar com todos os rótulos! “Acha que ele trabalha para a Vozes?”, “Pois eu acho que ele é um provocador infiltrado!”

    - Meu prezado, ‘produção cultural’ dá grana?

    - Claro! E tem gente ganhando muito com isso. Se a minha peça estivesse pronta, digo a nossa peça, estaria gerando não apenas grana, mas prestígio.

    - Meu caro, e o meu papel de Otelo?

    - Sabia que você e o Alberto são os únicos confirmados? Uma peça não se faz sem elenco, meu caríssimo bardo!

    - Estamos condenados a nossa vida de funcionários públicos? Eu sempre me imaginei atuando na área cultural.


    - Hélio, este é o meu ideal também. Você sabe! Gostaria muito que você levasse sua experiência de paco para a peça. Cuidar da expressão corporal ou dicção, ensinar umas dicas aos amadores.

    - E amadoras...

    - Claro!

    Risos.

    Mas HD sabe muito bem que se encontra diante de um dilema. Continuar a elaboração da peça e procurar um elenco sério (e bem remunerado) ou vender a idéia para alguma companhia teatral, como aquela do EG, amigo do Alberto Stevam, e, se não me engano, do Délcio Palma. Gente que vive disso a mais de duas décadas e para quem a arte é negócio dos grandes!

    - Hélio, nós estamos vivendo de migalhas. Precisamos subir até a mesa do banquete.






     A cinzenta Cidade Industrial é cortada por um extenso elevado que recebe o trânsito da periferia oeste e despeja no anel rodoviário e Avenida Amazonas, rumo à área central, e sob o ciclópico viaduto encontramos, em meio as cercas elétricas das indústrias e os estacionamentos das agências bancárias, e da fábrica de biscoitos, a portinha da casa de shows com paredes cobertas de grafites e fuligens.

    Meio aos faróis cegantes, na penumbra do viaduto, Stevam Lucena espera o seu amigo e homônimo Stevam Valêncio, que o convidou para o show da nova banda do Erik, o guitarrista da finada Tenebrae. Mas naquela penumbra, onde se insinuam trajes soturnos e cabelos esvoaçantes, a desfilarem meio à fumaça cáustica, Stevam não reconhece qualquer conhecido de outrora. Aquelas faces no cinzento da noite de lua pálida, uma lua fatiada por fios de alta tensão, aquelas faces são todas desconhecidas, e exibem brilhos hostis.

    Rastejam num anoitecer selvagem, sob o brilho de luzes metálicas protegidos na escuridão de couro, quando as botas e os coturnos marcam o asfalto com peso e arrogância, e quando o desconhecer o perdão pesa nas consciências em tormentos, com suas vontades arregimentadas pela ignorância, a desejarem apenas o esquecimento.


    Ali, na Cidade Industrial, onde o capital polui os pulmões, uma resistência vazia se aglomera nas sombras, se insinua nas frestas de concreto e ferrugem, quando os vultos jovens desafiam audazes a insânia do trânsito, em trágico espetáculo, onde Stevam, o único a observar, sofre o ruído insano de máquinas e humanos.

    Todo um caos aparado pela ordem oculta e sem face? Desconhecidos os eventos se sucedem, desencadeados sobre os olhos cegados, as pupilas cauterizadas, na luxúria da existência num orgasmo golpeante, quando um casal passa trocando carícias, ele com camiseta de banda satânica e ela com vestido ao estilo vitoriano, ambos em exagerada maquilagem, meio aos ruídos, rumores, estrondos, vômitos de escapamentos e latrinas mentais, afundando a pobre consciência em trágico nada, quando não passam de novos fantoches para a encenação febril, sem dizer o que quer que seja.



A primeira banda se apresenta, possivelmente a de Erik, afinal aqueles solos de guitarra são de mesmo estilo e asperidade, e evocam lembranças de antigos ensaios, onde Victor esmurrava a bateria e Adelfo dedilhava o baixo e Sônia ousava um vocal soprano e Oto na guitarra base e seus guturais e ele mesmo, Stevam, no vocal deprê em melodias tristonhas no teclado, todos muito pretensiosos, a ousarem vôos altíssimos com asas curtas...

Todos iguais no fascismo estético, onde a originalidade? A singularidade? Estão afogados na nova, e bárbara, tribo, no exotismo de uma perda – “existências vãs”, como clamava Hélio Lúcio, o bardo – e vazios os olhares sob um luar de fuligens.

A audácia de ser único – e quantos únicos existem? – e encontrar-se, no outro, tão atordoante quanto o amor que se transmuta em ódio. O desprezo da insignificância na qual afundamos. Assim criando a própria destruição, ao saber que seremos pisados como se fôssemos insetos, inúteis, enquanto os úteis agradecem. Poderia haver transcendência, mas há aparência, poderia haver superação, mas há um imenso vazio.


    A aparição de Stevam Valêncio vem interromper os pensamentos de Stevam Lucena, já temoroso de novo desencontro, lembrando aquela sexta-feira no Maletta, quando desistiu, e depois subiu até a Praça da Liberdade, e Biblioteca, até conhecer aquele Fabrício, e mergulhar na onda de jovens soturnos, e por pouco não apertou as mãos do ilustre Conde, quando agora suspira aliviado, o-outro-Stevam ali é quem estende a mão e em saudações solenes, econômico em sorrisos.

    - Ó Steve, onde estão os velhos camaradas?

    - Não encontrei. Devem estar no show. A banda do Erik acaba de tocar...

    Um solo de guitarra morre no ar de fuligens, e Stevam Valêncio senta-se ao lado do amigo, no meio-fio, sufocados por tóxico e atormentados por barulhos mil e cegados por faróis, com olhares famintos sobre as garotas de tenra idade fantasiadas de vamps fatais, mas cheias de desprezo, diante das seduções dos rapazes com poses de guerreiros medievais ou príncipes soturnos.

    - Stevam, é você? – uma voz feminina cai sobre os amigos, que olham ao mesmo tempo! Qual Stevam?

    - Ei, Sandra. Tá perdida?

    - Eu é que pergunto. E quem é esse seu amigo aí? Tá rabiscando papel?

    - É o Stevam. É Stevam também! É o Lucena.

    - Você escreve, Lucena? Eu escrevo! Tenho uma pasta cheia de papel, com diálogos, idéias para cenas, um diário, ah, tanta coisa!


     Muito vivaz, esta Sandra! Olhar sorridente, aperta a minha mão com paixão e inclina-se diante de mim! Não sabendo se está exatamente com a auto-estima baixa, Stevam Lucena se sente lisonjeado com a atenção da mocinha, que discretamente se despede, pois estava no show, mas é hora de seguir rumo home sweet home, se não mamãe, ah, vocês sabem!

     Stevam Lucena acompanha o vulto de Sandra se afastando e o amigo, ao lado, percebe, “Depois, a gente visita a menina!” e outro vulto passa diante dos faróis.


     -Ei, Oto, não reconhece mais os amigos?

    Alto, atlético, longos cabelos com toques rubros, Oto Marques volta-se e encara o interlocutor, com sua face antes hermética, agora a abrir-se, não em um sorriso, mas numa fala irônica: - Ora, Stevam, pensei que você estava em Londres!

    - Quem me dera! Seria uma viagem e tanto! Mas meu pai resolveu cortar os custos... E o que anda fazendo, “Profano”?

    Oto agora sorriu. “Profano” era seu nickname na banda, enquanto o Stevam era “Morpheus” e Erik era “O Ruivo”. - Estou com pressa agora, “Morpheus”, há uma garota à minha espera, sacou? Mas venham ao ensaio da minha banda, amanhã à tarde.

    E desapareceu meio a fumaça e a escuridão. Os Stevams se entreolharam e agora Erik é quem ali estava. – Pô! Mas vocês são foda! Nem entra para aplaudir o show da melhor banda...!

    - Queisso, Erik, que ataque de modéstia!...

    - Ele é discípulo do Oto, não se esqueça...

    E também Victor, todo grogue, com palavras de saudações enroladas entre guturais gemidos de êxtase com overdosadas doses de bebidas as mais diversas, sem se importar com o trânsito, tracejando entre os veículos indiferentes, “Merda de lugar pra montar show de podreira!”

    E a presença do Erik indica ausências, outras faces que o tempo levou, outras mentes que o tempo dispersou, e a banda de Erik, em seu primeiro ensaio, ainda paralelo a Tenebrae, sim, ele se lembra, véspera de natal de dois mil, na cidade histórica, ele sobre o muro do cemitério local, a namorar uma imensa cruz de mármore, sem ousar pular para o campo santo, temendo a intromissão de algum zelador ou a reclamação de alguma alma perdida, e voltando a casa do baterista da banda, que hospedou todo mundo, Stevam, e o TH, e encontram a casa cheia, e Erik nos vocais e guitarra, e o, não se lembra do nome, no baixo, e o baterista, esquecido também, e ninguém o notou, enquanto TH era quase apedrejado no portão, isso quando saía de óculos escuros ao anoitecer, pois ficava o dia inteiro dormindo ou lendo os manais dos inquisidores medievais, malleus maleficarum e outras sandices, caindo nos bancos da praça, bebericando vinho, blasfemando contra os cultos, assustando a garota de Erik, ao dizer estar interessado em passar no cemitério e “levar um souvenir” e ela não percebeu a ironia, e ele, Stevam, não estava legal, meio deprê mesmo, e na noite de natal, perambulando pela cidadezina, e quando começou a chover, ele sentou-se sob uma marquise de uma porta de venda, daquelas típicas de português, e abrigando a cabeça entre os braços cruzados sobre os joelhos unidos entregou-se a um choro até então recolhido e nisso passou um casal e a mocinha gritou “Hoje é natal! Noite feliz!”

    - Aceita um?

    A voz de Victor era o presente com seus golpes de dura realidade e o rapaz estende um ‘baseado’, ao qual Stevam Lucena logo recusou, pois mesmo não sendo geração-saúde, não pretendia ser da geração entorpecida, e assim agradeceu e recusou.

    Ao seu lado, materializou-se PJ, leitor culto de esoterismos soturnos, a lembrar velhas noitadas com o rememorado TH e, por falar em mortos, cita o nome de Sônia Regina, mas o assunto sendo ‘tabu’, ninguém do grupo demonstra atenção, com Victor incomodando a loirinha ao lado do Erik, e Erik puxando a alça do case da guitarra, e o baixista da banda enrolando um segundo ‘baseado’, e Stevam Valêncio queimando o primeiro.


    Seguem à pé sob o viaduto até a passarela e esperam o ônibus noturno, enquanto Erik beija a loirinha, Víctor fica quieto junto ao poste, Stevam Lucena e PJ discutem eventos sobrenaturais envolvendo garotinhas histéricas, Stevam Valêncio conversa com o baixista. No primeiro ônibus embarcam todos, mas os Stevams descem no bairro do Oto, sem qualquer aviso ou despedida, e dormem nos bancos da praça da matriz, a um quarteirão do teatro, ali Stevam Lucena sonhando com um abraço de Sandra e Stevam Valêncio sonhando com Lucy no céu com diamantes...


    O frio é mais intenso momentos antes do sol surgir, e assim não há como dormir, assim assistem o nascer do sol em discussões algo filosóficas, enquanto Valêncio fuma um cigarro dos ‘caretas’ e Lucena recusa.

    - Desistiu de viver a vida como um lento suicídio?

    - Não sou adepto do suicídio lento. Queria morrer de uma vez, mas conseguem me salvar...

    Para quebrar o constrangimento, Valêncio sugere que comprem pão e pudim na padaria da Contorno, aquela que acaba de abrir. Descem e bebem café. De volta a praça, comentam a lenta afluência dos fiéis que começam a chegar para a missa das sete horas. O sacristão varre a porta com esmero e infindos bocejos, em saudações para as beatas, algumas com seus maridos idosos que se arrastam para a celebração.

    - É impressionante a força da fé! Levantam cedinho assim para não perderem a hóstia da semana! – diz Lucena em sincera perplexidade.

    - Ou não será o medo da morte? – diz, com sorriso irônico, o calmo Valêncio.

    - Espero que você não inicie outra conversa do tipo “religião é ópio do povo”! Já basta o meu irmão com aquele manual marxista...

    - Acha o Alf radical? Vê-se logo que ainda não passou quinze minutos com o Hector.

    - Imagine os dois juntos! Mas acho que amizade assim é difícil, são um tanto quanto dogmáticos, daqui a pouco um vai acusar o outro de “revisionista”.

    - Não imagino. Ei, Steve, e se a gente acordar o Oto?

     Devoram os pudins e seguem rumo a praça do Comendador, dispostos a acordarem o irascível Oto Marques naquela manhã de domingo, mas desta vez o irascível até agradece, pois senão chegaria atrasado ao ensaio. “Na casa do baterista”, ele informa, “Lá no Batista, descendo pra Cristiano. Vamos antes que o sol nos reduza à cinzas!” e vai se vestir, arrumar o caos doméstico, separar a guitarra-com-estilo-macabro, enquanto os amigos ouvem a mais vampírica das bandas, Type O’Negative, em suas performances sadomasô, enquanto deixam-se folhear revistas de RPG, com técnicas para duendes e elfos, e poderes especiais para lobisomens. Valêncio até cochila, mas Lucena perde-se em lembranças, jogos pela madrugada, “Vampiro – a Máscara”, ouvindo Theatre of Tragedy à luz de velas, a última visita de TH, quando ouviam Moonspell, ou quando visitaram Oto, e o TH derruba as peças do tabuleiro de xadrez e, enquanto Valêncio ressona literalmente, Lucena vai encontrando, em cada ângulo daquela casa, tal um baú de ossos, um fragmento, um recorte, não podendo esquecer que exatamente ali, numa festinha pra-lá de dark, conheceu ele a marcante Sônia Regina, assustada com grosserias de rapazes exaltados pelos vapores do vinho, invejando a Carol, sentada no colo do Oto, e ele não menos deslocado meio às estranhas personagens, os amigos do irascível.


    Ainda mais quando caminham sob as árvores mirradas ou descobrem velha roseira no jardim, agora com muros altos, a casa que unira atenções e gostos dos mais excêntricos visitantes, onde ele, Stevam, revê o tronco de árvore onde o TH se sentou pensativo e até a marca da fogueira, em torno da qual os convivas se reuniram a compartilharem contos de terror.


    O baterista recebeu os visitantes, enquanto Oto Marques tecia apresentações, acrescentando a presença do Erik, que apareceu na praça do Comendador, farejando ensaio no ar, pois na verdade ele adorava duelar com o Oto nas seis cordas. E uma amiga do baixista assistia ao ensaio, com seu olhar frio e traje noturno de vamp, com vestido rendado e tatuagem à mostra, no amplo decote às avessas. Sim, uma rosa roxa.

    Acomodando-se junto às caixas, Stevam Valêncio descansa, enquanto Erik fuma na varanda, e Oto liga cabos e mesa de som. A amiga do baixista, Lane, como se apresenta, bebe um refri, e logo Stevam Lucena descobre uma outra tatuagem, desta vez no tornozelo esquerdo, uma aranha envolta por suas teias. Ah, o encanto destas mocinhas soturnas, mas tão distantes e de olhares gélidos!




[...]


continua...


LdeM



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