domingo, 15 de maio de 2011

continua o capítulo 3 ...

[...]

 

[Sábado à noite. Ambiente de bar cultural. Quadros e desenhos nas paredes. Três ambientes. Bar, mesas, palco. Em cada um gira um ventilador. Duas janelas em cada ambiente. Dono do Bar recebe à porta. Um garçom e uma garçonete servem os fregueses, em sua maioria estudantes.]

EDGAR: [Conectando cabos, ao perceber a chegada de HD] Então, Príncipe, você apareceu?! Fico feliz que tenha aceitado o convite.

HD: [Apresentável, pasta com poemas, atento ao ambiente] Eu que agradeço o convite. Mas onde está o pessoal?

EDGAR: Convidei o Aurelius. Espero que ele apareça. Também o Beto, a Simone, a Gabrielle, o Benito, quem mais? O Victor-Hugo, dos que eu ‘tô lembrando...

HD: [Acomodando-se à mesa junto ao palco] Também um saxofonista?

EDGAR: O Tony, músico iniciante. Amigo meu. Filho de político. A gente ensaia na casa dele.

[EDGAR cuida do palco, instala microfones, enquanto HD seleciona umas folhas com poemas. Chegam clientes, um rapaz, um casal, duas moças, e acomodam-se no primeiro e segundo ambientes. Mesas disponíveis no corredor de entrada. BETO entra e encaminha-se para o palco.]

BETO: Saudações aos bardos!

EDGAR: Salute, grande Beto! Mas está sozinho, meu velho?

BETO: É assim. Mas o bom Leminski me faz companhia [e exibe volume de poemas de Paulo Leminski] E aposto que o Hector arrastou o Maiakovski!

[BETO abraça EDGAR e aperta, caloroso, a mão de HD. Acomoda-se à mesa diante do palco. Logo o garçom aparece com uma cerveja. Enquanto isso, movimento junto a entrada. Entra TONY, e depois BENITO. Saudações. TONY abraça EDGAR, acena à HD, e tira notas em escala no saxofone. BENITO senta-se à mesa de BETO e comenta algo sobre o livro do Leminski, mas HD não ouviu.]

EDGAR: [aproximando-se dos poetas] Somos democratas aqui, meu poetas. Assim vocês escolhem as declamações. Podem ser entre as músicas, ou com acompanhamento musical. O Hector mesmo, se quiser, pode declamar sonetos de Vinicius de Moraes. Vocês sabem, as mulheres se derretem, “De tudo ao meu amor serei atento...”

[Movimento à entrada. Outro casal, que acomoda-se no segundo ambiente, e duas mocinhas, que se sentam à mesa diante do palco, ao lado da mesa de HD. Jovens e muito sedutoras, acenam para EDGAR que retribui a distribuir sorrisos e piscadelas.]

HD: [Pensando, a dobrar o guardanapo, rabiscando versos soltos] O que elas querem é música, e caem de amores por esses músicos, igual a Elen, que nada entendem de poesias, mas se um cantor qualquer se apresenta, ficam logo derretidas...

[Soam acordes. O saxofone domina o ambiente, flertando com os corações jovens. Em seguida, o violão de EDGAR acompanha e inicia o show. Uma releitura de bossa nova.]

BENITO: [Sorrindo a uma moça que se aproxima, de boina e botinas] Olhem quem chegou! Sente-se aí, Carmen! Este é o Beto, amigo nosso. Sabe, Beto, a Carmen é pintora! [diz outros comentários que HD, no entanto, não pode entender]

[Agora um sucesso, com roupagem nova, da Jovem Guarda. TONY ao saxofone, diverte as mocinhas com seus bruscos andamentos e solos jazzísticos, enquanto EDGAR canta “É preciso saber viver...”, e entram AURELIUS e acompanhante.]

AURELIUS: Senhores! Meu boa-noite! A Arcádia reunida! Senhor Hector Dias, prazer em revê-lo! Preparado, Benito? E já capturou o Leminski, hein, Senhor Roberto, que não é o Campos? Edgar, meu velho, quero apresentar-te a Lílian, my partner! Vamos ler Fernando Pessoa, nesta noite maravilhosa! Mas estou na dúvida... Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro? Ah, não importa, “o Poeta é um fingidor”...

[EDGAR responde a saudação sem parar de tocar e assume o vocal para interpretar um sucesso de Cazuza, “Eu sou o poeta e não aprendi a amar” e AURELIUS observa HD, por instantes que permanece à parte, meditativo.]

HD: [Pensando, ainda rabiscando o guardanapo] Elas querem músicos, pois música tem mis glamour, exposição na mídia, e ficam assim todas sorrisos quando aquele idiota do Jaime chegava. Eu podia convidar para vinte saraus ou recitais que ela não aceitava, mas bastava ele convidar uma vez, para um simples ensaio, e ela não faltava!

EDGAR: [ao microfone] É muito bom ver os amigos reunidos! É m prazer cantar para os apreciadores da boa música. Agora, para os fãs de Milton Nascimento, o excelso Bituca, uma canção da qual eu gosto muito, “Caçador de Mim” [primeiros acordes] E gostaria de convidar o meu amigo Beto, declamador, para que recitasse um poema do Leminski. [cantando] “Por tanto amor, por tanta emoção, A vida me fez assim, Manso ou feroz, eu caçador de mim...”

[Aplausos dispersos, inclusive os de HD, atento aos movimentos ao redor, aos gestos de euforia das mocinhas que passeiam pelos ambientes, pouco importando com a presença dos poetas, pouco entendendo poesia, acostumadas às conversas soltas enquanto o músico canta, até mais para si mesmo, visto sua percepção do pouco interesse dos que pousam de bar em bar, tal um colibri de flor em flor.]

EDGAR: [cantando] “Nada a temer a não ser o medo...”



[Solo de saxofone a prolongar-se. BETO se levanta e vai ao microfone diante do palco.]

BETO: [recitando] “Um homem com uma dor / andasse mais adiante / carrega o peso da dor / como se portasse medalhas...”

[O solo de saxofone se destaca ao fim da recitação.]

BETO: [recitando] “... um milhão de dólares ou coisas que os valhas”. De Paulo Leminski. Obrigado.

[AURELIUS brinda, a levantar a taça de vinho tinto e folheia a antologia de Fernando Pessoa, e Lílian, a sua frente, sorri cheia de satisfação. BETO levanta-se para receber GABRIELLE, e BENITO, em seguida, faz o mesmo.]

BENITO: Gabrielle! E onde está o Cravo e a Canela? [todos em risadas] Não arrastou o noivo? Ora! E a Si, onde ela se enterrou?

GABRIELLE: Olha, gente, eu não sou babá do Jorge, não! Nem da Simone! E o Jorge não é tão ‘amado’ assim não! Que eu não sou dessas não!

[Acomodam-se, e AURELIUS levanta-se para ler um poema, justamente “O Poeta é um fingidor, etc”, com um sorriso irônico para HD, que espera o solo de violão terminar, para ler um soneto próprio, “Juntos, nos espocares de beijos úmidos...”]

AURELIUS: Nada pessoal, caro Hector, mas que “o poeta é um fingidor”, isso é! [E, a oferecer vinho, convida HD para a sua mesa, mas HD agradece, não quer ser incômodo, etc. AURELIUS compreende e se afasta. EDGAR convida um músico que acaba de chegar e cede o violão e o microfone ao colega, que se entrega a uma interpretação emocionada de “Wish You Were Here”, sucesso do Pink Floyd.]

HD: [Cabisbaixo, a rasgar o guardanapo cheio de rabiscos, lutando contra as imagens de Elen, ao lembrar de seu sorriso aquela tarde, diante do teatro] “Como eu gostaria, como eu gostaria, que você estivesse aqui...” [HD suspira, em inveja dos casais que se abraçam no segundo ambiente]


[EDGAR agradece ao amigo e reassume o posto, “e já que estamos em ondas internacionais” anuncia uma música que é da trilha sonora do filme “Cidade dos Anjos”, da banda Goo Goo Dolls, “Iris”, “I’ve give up forever to touch you...”]


HD: [Atento a melodia, e evitando os olhares de AURELIUS, enquanto se afoga em imagens de Elen, quando a visitava na Rádio, quando a visitou antes do natal, e ela mostrava as pastas com fotos de músicos e artistas televisivos, e ela cruzava as pernas com os pés desnudos, e fingia não perceber as reações dele, quase se atirando sobre ela] “Quando tudo é feito para se quebrar, Apenas quero que você saiba quem eu sou!”

[A melodia repousa, desperta de súbito e ergue-se, o saxofone num delírio final, e as mocinhas apresentam suas faces rubras, seus fôlegos alterados e mãos com as palmas suadas e aplausos, muitos aplausos pegajosos.]

EDGAR: [ao microfone] Atendendo a pedidos, aqui da nossa amiga Cidinha [troca sorrisos com uma mocinha diante do palco], vamos tocar “Cigano”, do Djavan. [cantando] “Te querer / Viver mais para ser exato / Te seguir / E poder chegar / Onde tudo é só meu...”


AURELIUS: [para BENITO] Perceba o olhar perdido do poeta...

BENITO: [sussurrando] No passado ou no futuro?

AURELIUS: [mesmo tom] Talvez nas perdas do passado, talvez nas promessas do futuro...

EDGAR: [cantando] “Olha lá / As gaivotas já / Vão deixar suas ilhas / Veja o sol / É demais esta cidade!

[Gaivotas se elevam na mente de HD. Atravessam os ares os vultos branquialados em manobras aeronáuticas radicais, guiados por um líder com ares de Fernão Capelo. Do sorriso branco de Elen brota um par de asas branquíssimas que desdobram em prismas nos reflexos do sol e do mar em rasantes sob as ondulações quando se ergue vapores ainda mais brancos alvuras vaporosas que ofuscam a visão]

[EDGAR agradece e anuncia um intervalo. Senta-se ao lado de HD, enquanto TONY dá um descanso ao saxofone.]

HD: Você parece um tanto cansado, Edgar!

EDGAR: Está notando? Pois é, as mulheres...

HD: Será? Você, também? Sem sorte com as mulheres...?

EDGAR: Não, ao contrário. Elas não me dão sossego. Agarrei um fã, ontem, e ela exigiu, não me deixou, enquanto não conseguiu os seus três orgasmos!

HD: Veja você! Enquanto você lida com o excesso, eu me conformo com a falta!

EDGAR: [Aceitando o chope que o garçom oferece] Gasto muita energia com essas meninas... mas não me envolvo... e quem eu quero realmente não me quer!

TONY: [Aproxima-se, sempre simpático, atraindo logo a atenção das mocinhas da mesa ao lado] Vamos levar mais nacional no próximo bloco? Bossa Nova eu sei que o Aurelius gosta. [Responde ao sorriso de AURELIUS, que acena levantando a taça]


[HD desliza o olhar ao redor, gravando o sorriso de GABRIELLE mesclado ao to arroxeado da gravata vangoghiana ao seu lado, enquanto BENITO e BETO discutem o surrealismo e a pintura febril, e a fumaça sobe em volteios de névoa cálida, a ocultar os beijos úmidos nas penumbras, notadamente no segundo ambiente, a meia-luz e ventilador imóvel, onde um desenho desbotado de Andy Warhol recebe os casais e dialoga com uma charge obscena de Glauco Mattoso, sob o brilho refletido das garrafas de vodka e das suspensas taças de vinho]


EDGAR: Hector, vou iniciar um solo, para você declamar o poetinha, com aqueles sonetos de amor...

AURELIUS: [Intervindo em voz alta] Então, se é assim, eu vou ler Pablo Neruda, “Cem Sonetos de Amor” ao som do sax!



EDGAR: Vocês, poetas, que cheguem num acordo. Pronto, Tony? E daqui a pouco o Gui aparece e com um violão elétrico... [EDGAR toca uma melodia Bossa Nova]

[Solo de violão. HD declama “De todo ao meu amor serei atento...” e o solo e a declamação finda em aplausos. Solo de saxofone e AURELIUS declama “De noche, amada, amarra tu corazón al mío...” e solo e declamação findam em aplausos. Sorrisos de todos. Close na satisfação de AURELIUS. GUILHERME entra quando os aplausos fenecem. Recebe saudações de EDGAR e TONY. GUILHERME tira o violão do case e se prepara para a participação. O palco é suficiente para os três músicos. Os poetas recitam no microfone diante do palco.]

HD: [Selecionando um poema próprio] Gostaria de dedicar a um amor inspirador e ausente...

                                                       Se arrancar eu pudesse
                                                       o coração e te desse
                                                       ainda não me entenderias
                                                       e louco me julgarias!

AURELIUS: [Irônico, junto de BENITO e BETO, despeitado com a atenção de GABRIELLE e LÍLIA] Vejam como uma paixão transtorna um poeta engajado!

BENITO: [no mesmo tom] Eu realmente não sabia que o Hector fazia poemas de amor!

[EDGAR acena à GUILHERME e inicia um intro de blues. Ondas do Mississipi invadem o ambiente. Casais se aconchegam e as mocinhas, diante de HD, se entregam a sorrisos sonhadores.]

HD: [Aproveita o clima e declama, ao fim do solo] “Amor ávido busca consolo de estertores febris...”

[Aplausos, e AURELIUS abre sua maleta, tal uma ostra, a extrair pérolas, no caso, outros livros, com poemas de Carlos Drummond de Andrade, enquanto EDGAR inicia um clássico de Djavan, “Nem um Dia”, “Um dia frio, Um bom lugar pra ler um livro E o pensamento lá em você...”, atento ao solo prolongado, quando AURELIUS se levanta.]

AURELIUS: [Ainda folheando e todo sério quando encontra o poema, numa pose de espera, oscilando com os compassos enquanto LÍLIA sorri] Bom.

BETO: Olha só o olhar da Gabrielle! Ah, se o noivo...

BENITO: Não, olha só o olhar do Hector! Como se estivesse num teatro! Para ele somos os atores...

AURELIUS: “É sempre no passado aquele orgasmo...”

[EDGAR canta “Um dia triste Toda fragilidade incide...” e viaja no solo de saxofone, enquanto GUILHERME fecha os olhos aos dedilhados.]

AURELIUS: “Sempre no meu amor a noite rompe...”

[Aplausos fecham a declamação de AURELIUS.]

EDGAR: [cantando] “Longe da felicidade e todas as suas luzes Te desejo como ao ar Mais que tudo...”


[Solo de saxofone. HD levanta-se e lentamente encaminha-se ao microfone. HD e Edgar trocam sorrisos.]

HD: [recitando]                          estrada noite adentro
                                                 sinuosa sob as estrelas
                                                 faróis flamejantes olhos
                                                           seguíamos
                                                    um solo de guitarra

[Estrondo de aplausos. EDGAR inicia os acordes de “Fake Plastic Trees” do Radiohead, “The green plastic watering can...”]

HD: [Recitando quando a melodia repete, sem o vocal de EDGAR]

                                                   Ela procura o autêntico
                                                  Ela degusta o autêntico
                                                  Meu falso amor de plástico

GABRIELLE: [Olhos brilhando] Ele está traduzindo! Não imaginava que fosse tão poético...

BENITO: [Bebericando o chope] Mas não se esqueça que o Edgar é ‘pop’, de popular, logo alterna Chico Buarque com baladas inglesas.

BETO: O que não vemos num ‘cult’ como é o caso do Victor-Hugo...

BENITO: Também, com um nome desses, já nasceu clássico!

GABRIELLE: Vocês, fanáticos de música brasileira!

BENITO: A melhor do mundo. E Aurelius, professor de idiomas, não discorda. Não ouve outra coisa...

AURELIUS: [Aproximando-se com uma taça de vinho] Já estão me caluniando?

BENITO: Estamos falando a verdade e nada mais que a verdade.

AURELIUS: [sentando-se] O que aconteceu com a Simone? Não é uma das fãs do Edgar?

BETO: E do poeta, também. [Olha para GABRIELLE]

AURELIUS: [Degustando o vinho] Do Hector? Ele tem talento.

BENITO: Mas a Simone é ambiciosa.

AURELIUS: Logo, os poetas estão fora da lista de pretendentes.

BENITO: De onde surgiu esse Hector Dias? Tem grana?

BETO: Ah, eis o Benito, que não é o Mussolini! [risos]

BENITO: E quanto a Simone, que não é a De Beauvoir?

GABRIELLE: Vocês são chegados a uma fofoca, hein! Depois são as mulheres que...

[Fim da releitura personalíssima de EDGAR para o sucesso “Fake Plastic Trees” do Radiohead, e HD volta a mesa, onde reúne folhas dispersas, e lança um olhar à mesa onde estão AURELIUS e os demais, onde julga ouvir seu nome.]

AURELIUS: O Hector trabalha na Biblioteca, e pretende atuar na área cultural. Imagino que a Simone deseje o mesmo. A Exposição que ele planeja para junho talvez seja uma oportunidade...

BETO: Vamos fazer nossa Amostra de Literatura Africana antes.

AURELIUS: Ele pode ajudar. Na divulgação, por exemplo.

GABRIELLE: Já até marcamos um reunião. Se o Hector participar...

BETO: Só por que ele é do setor público? Não tem experiência.

[EDGAR inicia uma balada do Skank, “Tanto”, versão de Chico Amaral para “I Want You”, de Bob Dylan]

EDGAR: [cantando] “Coveiros gemem tristes ais E realejos juram que Eu não devia mais querer você...”

GABRIELLE: Não importa. Ele conhece os artistas, enquanto nós só conhecemos o Edgar. E claro, o Aurelius aqui!

AURELIUS: [rindo] Não se preocupe, sou um cara modesto. Permitam-me, vou ler Álvaro de Campos. [Levanta-se, olha ao redor]

EDGAR: [cantando] “É tanto, é tanto Se ao menos você soubesse Te quero tanto...”

AURELIUS: [ao microfone] “Todas as cartas de amor são ridículas...”

[Enquanto AURELIUS recita, GABRIELLE chama o garçom para fechar a conta. BENITO vira o resto de chope para BETO e GABRIELLE. HD ouve o poema e fecha a sua pasta cheia a de textos. GUILHERME faz o ‘fundo musical’ para a declamação. EDGAR prepara-se para concluir a canção do Skank.]

EDGAR: [cantando] “Ela é suave assim E sabe quase tudo de mim...”

AURELIUS: [voltando à mesa] “Por hoje é só, pessoal!” Há uma noite de promessas lá fora! Quem me acompanha?

GABRIELLE: Eu estou de saída. E não recuso uma carona.

AURELIUS: Será um prazer. Vou pagar a conta. [Sai.]

BETO: Coitado do Aurelius! Se ele conhecesse o Jorge...

GABRIELLE: O que está insinuando, hein, Robert??

BENITO: Nada demais, apenas um ataque de ciúmes.

[GABRIELLE sorri, desdenhosa, e acompanha AURELIUS que vai saindo. EDGAR, ao microfone, finda a canção e agradece ao público. GUILHERME continua o solo que vai se apagando. BENITO e BETO se levantam. HD espera EDGAR, que guarda o violão e o convida para jantar.]




    “As buzinas dos carros são trombetas anunciando a batalha, onde os mercadores estão entrincheirados atrás de seus balcões, erguendo barricadas de mercadorias, sob o bombardeamento dos carros de som, e os discursos dos oficiais em cada esquina, além da infantaria inimiga em trapos...” rabiscava HD enquanto Edgar pagava o estacionamento.


    Depois de entulhar o ‘porta-aviões’ com instrumentos, pedestais e caixas de som, Edgar esmurrou a coxa esquerda de HD, confortável no ar morno do carro e gritou “Vamos lá, meu velho!” e acelerou. O sucesso do evento merecia uma noitada para comemorar, e quem, além do velho Ed, conhecia os ‘points’. “Vamos subir para o ‘seis pistas’”, e pegava a BR rumo Nova Lima, enquanto Edgar comenta os casos com mulheres e o desassossego que as garotas provocam no cidadão que já tem agenda cheia, shows pra todo lado!, mas a mulher não pode ver um violão e já avança, pede autógrafo, foto, beijo, beijo na bunda, desse jeito!

    “Mas não comenta isso lá em casa, hein, meu velho!”, claro está que Edgar tem lá suas façanhas, mas morre de medo de que a família saiba. Aliás, família muito religiosa, de tradição luterana, a irmã é esposa de pastor evangélico e por aí vai. E HD vai pensando em sua própria família, tradicional família mineira, católica, pai funcionário público e mãe pedagoga, irmãs que namoram em casa, família com raízes no interior, Diamantina, terra do Presidente JK, e também em Itabira, terra do poeta Drummond, só para citar os medalhões!, onde a tradição ressoa toda tarde com as badaladas e as ave-maria.

    - Sorte não estarmos na Irlanda...

    - Ora, mas por que? Não entendi, meu velho...

    E HD explica o caso da Irlanda, ou se aqui fosse a Irlanda, não poderiam ser amigos, uma vez que tal aproximação seria dificultada pela ‘questão religiosa’, sendo um de família católica e o outro, de protestante, e lembre-se daquela canção do U2, “Sunday Bloody Sunday”, “Eles lutam pela glória que Jesus conquistou.”


    Mas Edgar pouco se importa com tais questões, afinal aqui não é a Irlanda, e nós não somos fanáticos religiosos e, qualquer dia, desses eu vou à missa, e você vai a um culto, ah, você não é religioso, ah, eu também não. E os faróis ora iluminam um muro onde lê-se a inscrição JESUS TE AMA ora golpeiam um casal se amassando sob um árvore ora vai cegando os jovens solitários em andanças pela zona sul, indiferentes aos assaltos, aos ‘rachas’, às seduções, às violações, às buzinas e os gemidos que compõem a sinfonia desarmônica da noitada de sábado.



    E param num posto de conveniência, onde Edgar faz amizade rápida com dois rapazes que oferecem logo um cigarro suspeito, enquanto HD, pensativo, arquiteta um poema, enquanto ao lado um carro aberto deixa vazar uma batida eletrônica qualquer, e um casal se aperta nos bancos da frente, e dos garotos com seus skates arriscam manobras, enquanto a garota de um deles, ou dos dois, ou de nenhum, compra batatas fritas, refrigerante e chicletes.

    Edgar já desapareceu, meio aos embalos psicodélicos do sábado à noite. Golpeado por risadas histéricas e gritos sem rumo, a cada batida altissonante de um pulso eletrônico, ali oscila um HD pregado ao chão por toda a fadiga do mundo! E quase nem percebe quando se materializa ao seu lado um febril “Hey, um velho!”, um Edgar um tanto esfumaçado, em gestos dispersos, “Vamos nessa, meu velho!”, mas a deixar-se encostado no carro, na fria lataria, sonâmbulo, frenético, em fragmentos, sorrindo para si mesmo.





    - Gostei muito das suas traduções do Baudelaire.

    E Alfonso Lucena indica ao visitante HD uma cadeira diante da mesa da sala de jantar. Mesa agora ocupada por livros que Alfonso consulta, enquanto se ocupa da escrita de um ensaio. E realmente HD agora se lembra das traduções que entregou a Alfonso, ainda em outubro, por ocasião daquele curso de Produção Cultural.

    Contudo Alfonso é um espírito inquieto, logo abandona a redação do ensaio e se apodera de uma antologia sobre a mesa, convidando HD para uma confortável leitura na varanda. Assim, acomodados nas cadeiras diante de uma sólida mesa, em torno da qual HD e o Professor Antunes discutiram sobre os sistemas políticos, agora HD e Alfonso discutem a presença do prosaico na obra poética, onde Alfonso cita exemplos nos poemas de Carlos Drummond de Andrade, abrindo aquela antologia tão folheada e afagada, apresentando a presença do cotidiano, seus transeuntes e suas mercadorias, em versos de “Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin”, de “Elegia 1938”, de “Nosso Tempo”,

             “Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
               ó surdo mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,”

de “Desaparecimento de Luísa Porto”, de “A um hotel em demolição”,

                   “Por favor, senhor poeta Martins Fontes, recite mais
                    baixo suas odes enquanto minha senhora acaba de
                    parir no quarto de cima, e o poeta velou a voz,...”

onde Alfonso, não ocultando emoção conjuga a exercitada razão, nota que o cotidiano pode sim habitar a poesia.

    - Mas podem coabitar, digo, o prosaico e o lírico, sem que a poética se vulgarize? – preocupa-se HD. – Explico. Convencionou-se uma espécie de ‘torre de marfim’ para a boa poesia, aquela lírica, metrificada, rimada e ritmada feita por neo-nefelibatas, literatos aéreos, a la parnasianismo, vide, você, o Bilac, formalista, e neurótico, como ressalta o Hélio Lúcio... que não sei porque ainda não chegou, pois o Bilac, que você respeita, e eu admiro também, mas voltemos ao meu raciocínio, onde digo que se mistura-se o prosaico e o lírico, pode haver uma agressão a estética, à beleza sonora e imagética do texto, e assim te um par de sílabas neo-concretistas seria um poema, coisa que eu já discutia com o Darío, nos tempos da faculdade...

    - Com quem?

    - Darío Sabine, antropólogo, lingüista, filólogo, poliglota, amigo meu, que hoje estuda na Europa, ora em Barcelona, ora em Lisboa, ora em Berlim...


    - Sim, sim, acho que você já o mencionou antes. E quando ao prosaico?

    - Certo. Eu respeito o prosaico no lírico, mas não sei ainda como fazer, como manter o lírico intacto, sem cair no irônico, como faz o Drummond, o Bandeira, o Moacyr Félix, o Leminski, o Chacal, o Makely, entre outros...

    - E diga-lá! E a leitura de Whitman feita pelos beatniks? Por exemplo, o Ginsberg...?

    - Comecei a ler o Whitman, e no original, pois não me agradam as traduções, mas ainda não digo que o entendo, há ali todo um palpitar, um excesso, um transbordar em enumerações, uma vontade de estar em todas os lugares, em todas as mentes e em todos os corpos, ao mesmo tempo...

    - É justamente o que emocionou o Álvaro de Campos, do Pessoa, quando se dispôs a escrever aquelas Odes gigantescas, ciclópicas, transbordantes em labirintos, em redemoinhos...

    - Concordo. Mas chegar a Ginsberg, onde marcas e fatos são citados sem metáforas e o cotidiano é listado e catalogado entre as estrofes, onde as notas de rodapé são maiores que o próprio poema! Isso me lembra o “Ulisses”, de James Joyce, pois precisei ler um livro sobre História da Irlanda, além de outros estudos, para me aventurar a acompanhar Leopold Bloom pelas ruas de Dublin...

    - Mas, ó HD, você não acha que estamos caminhando para este tipo de poema?

    - Anda então flertando com os beatniks? E o Bilac? E os surrealistas?

    - O mundo pós-moderno já digeriu tudo, é um caldeirão, mistura lirismo e prosa, música tribal e óperas de Mozart, poesia romântica e vampiros high-tech, tudo numa babel pra-lá de midiática.

    Folheando a antologia, HD confere os poemas que Alfonso citou minutos antes. Há um poeta lírico angustiado com o que há de prosaico em sua vida, onde não encontra o poético que idealiza. Onde a beleza se encontramos apenas refugos de um dia-a-dia que serve ao lucro de outrem?

    - Vamos ao lírico, HD. Leia para nós a bela peça poética, “O Mito”, onde mostra o quanto idealizamos a mulher amada!


    E realmente, o visitante percebia um ânimo abatido no anfitrião, quando muito cerebral tentava sufocar o emocional que sofria então sísmico abalo com os caprichos de sua querida Glória, que parecia ambicionar fortunas outras, flertando com bolsos mais endinheirados, assim HD não hesitou em fazer a vontade do outro, modulando a voz em declamação:

                                           “Sequer conheço Fulana,
                                            vejo Fulana tão curto,
                                           Fulana jamais me vê,
                                           Mas como eu amo Fulana.”


    Reclinado em almofadas, roxas, em cadeira de espaldar heráldico, com floreios e arabescos, Alfonso Lucena deixa que a voz, a ofertar o poema, insinue a usurpação de suas resistências racionais, abrindo espaço ao borbulhar passional de seus temores onde desassossegos mil o torturam com a imagem da desejada Glória em outros braços,



                                         “... Fulana me bombardeia,
                                           no entanto sequer me vê.
                                          E sequer nos compreendemos.
                                                                                  ...”

    E as imagens afetivas de outrora são agora despidas do prazer e revestidas de amarguras, como se nada mais houvesse além de encantos perdidos, cenas vistas em tela de cinema como acontecidas a outrem.

                                           “Mas Fulana será gente?
                                           Estará somente em ópera?”

    Olhos fechados e relaxado, não há maior prazer além da dispersão em si mesmo quando não somos mais do que sílabas dançantes, átonas e tônicas, em redondilhas maiores, a ressuscitarem pensamentos de falecido poeta a reevocarem nele, Alfonso, dramas sentidos, ou fingidos, em outro, o poeta.

                                             “Fulana, como é sadia!
                                           Os enfermos somos nós.

                                            Sou eu, o poeta precário
                                            que faz de Fulana um mito,”

    Traz cada verso a expressão carregada de auto-ironia, onde o amor-próprio do eu-lírico rasteja aos pés da musa amada, inspiradora de tais enlevos, onde o lírico nasce da confissão de suas frustrações, ignorado pela amada de suas pretensões. E quando o poema finda, um vazio de significações pesa sobre os ouvidos agraciados pelo prazeroso ritmo ainda que a transmitir perturbações. A Beleza do ritmo cede lugar ao sossego do Silêncio.

    - Obrigado, HD. De emocionar...


    Diante de si, HD tem um jovem de olhar grato, um jovem de fino trato, que nunca incomodado por ambições vulgares, entrega sua juventude ao cultivo da arte literária, promovendo, junto aos artistas, eventos de reconhecida qualidade estética e retórica. Não aparenta tr vinte anos em seu semblante envelhecido por pensamentos obsessivos jamais perdoados pela ironia.

    - Leia mais. O que mais temos aí? Leia as traduções...

    - “Epígrafe a um livro Condenado”, “Leitor plácido...”

    - Leia com o espírito de Baudelaire, com requinte, és maldito, mas clássico! Descreves o medonho, o repugnante, mas o fino lirismo dos bardos!


                                         “Leitor plácido e bucólico,
                                      sóbrio e puro homem de moral,
                                       jogue fora este livro saturnal,
                                       de tanta orgia e melancólico”



    Ressoa a campainha, incomodando a leitura do poema. Gentilmente, solicitando licença, Alfonso desce para atender o visitante, enquanto HD termina de ler para si mesmo. Uma voz imponente e cordial se eleva deste o portão. Ninguém menos que o Grande Bardo!

    - Fiquei em dúvidas quanto ao número da residência, mas quando passei aqui na calçada e ouvi alguém declamando Baudelaire, não hesitei! Só podia ser o Hector!

    E os passos ecoam enquanto sobem os degraus, e logo a figura austera, e não menos sensual, cheia de si, em si mesma se incensando, de Hélio Lúcio quebra um raio de sol crepuscular que aquecia a cabeleira das samambaias.

    - O avatar! A grande ressurreição do bardo! Como vai a vida, Hector?

    Tendo os dedos esmagados por semelhante mão e semelhante ânimo, HD responde um “Vou bem, obrigado!”, enquanto HL se acomoda, “Não continua a leitura?”

     - Estávamos esperando a tua chegada. E também a de Stevam...

    - O seu irmão? – HD, ainda a reunir as folhas sobre a mesa.

    - Não, o outro-Stevam. Claro, meu irmão sabe, mas duvido que apareça.

    -Espero encontra-lo. Tenho aqui trechos da minha adaptação de “Macário”, do Álvares de Azevedo, e gostaria das considerações dele. Além de convida-lo, junto com o Alberto Stevam, também!, para o elenco. Acho que ficaria perfeito no papel de Penseroso, com aquele jeito melancólico...

    - Alberto não está no elenco de sua adaptação de “Othelo”?

    - Sim, ele será o Cássio. E também o Hélio foi convidado, e para ser o enciumado Mouro! Mas o projeto está engavetado. E quanto ao Alberto, ele não hesitou em ser o Satã, com jeitos de malandro! Até porque ele não dispensa papéis polêmicos.

    - Realmente, o nosso HD aqui sempre tem uma idéia na cabeça, mas nunca uma câmera na mão!

    Ressoa a campainha, e Alfonso pede licença. Nisso, HL folheia os livros diante de si e elogia ora um verso de Augusto dos Anjos, ora um soneto de Cruz e Sousa. Esperam os visitantes, mas Alfonso retorna sozinho.

    - Os dois Stevams. E folheando os nossos papéis lá sobre a mesa.

    Escurecia e um vento intrometido anuncia uma noite fria. Alfonso recolheu os livros sobre a mesinha e convidou os visitantes para uma ‘caipirinha’. Até o momento, HL guardava ponderado silêncio.

    Encontram Stevam Valêncio junto à porta, fumando e folheando um catálogo de fotos dos eventos do Alfonso, e Stevam, o irmão, ocupado com o aparelho de som, selecionando uma trilha sonora. Trocam saudações e aclamações. Stevam, o irmão, encontrou a adaptação de “Macário” sobre a mesa e parece interessado. Mas Alfonso arrastou HD e HL para a cozinha e cortava os limões enquanto tecia comentários sobre o tal Carnaval Revolução, no qual os poetas organizariam um sarau. “Será amanhã à noite”, esclareceu HD. Na sala se elevava uma sinfonia, possivelmente Beethoven e o vulto do outro-Stevam se destacava junto a porta externa, ali envolto em fumaça, recortado do céu azul-anil que escurecia, em tons roxos e alaranjados.

    Beethoven, certamente. Algo de eufórico, militarista e grandioso. A Marcha que seria dedicada a Napoleão Bonaparte? Enquanto isso, Alfonso preparava a caipirinha e HL observa, em silêncio, mas seus olhos a dizerem tudo, “O que pretendem?”, isso porque os únicos assuntos, capazes de fazer soltar a oratória de HL, são a Poesia e as Mulheres, e ambas ausentes. Mas, esperemos, não por muito tempo, uma vez que Alfonso convidou o primo Lúcio, e este convidaria as mocinhas, e quanto a Poesia, parece-me que Stevam Lucena se interessou mesmo por minha adaptação de Macário...

    De fato, Stevam lia concentrado, todo lutuoso, enquanto o outro-Stevam, ide, idem, folheava o catálogo de fotos, ambos pouco amistosos, aliás, nada festivos, aqueles dois!, e distribuindo as caipirinhas, Alfonso é o diplomata a negociar integrações, o Eros a unificar partículas díspares...

    HD aproxima-se de Stevam e comenta a Primeira Parte, no entanto, interessa a Stevam justamente a Segunda, “Macário desmaia diante de Penseroso. Satã entra.”

    - “Porque amou, quer morrer! Vamos... E como é belo, pálido assim!” É, eis o Satã. Agora o Penseroso, “Quem é você, desconhecido, que sabe o meu nome?”

    - Que tal uma leitura coletiva? E assim sentir o texto...

    Mas nisso, Alfonso já está junto ao som, escolhendo algo mais barroco, e elege Johann Sebastian Bach. Em seguida, apaga a luz da sala, conservando a do corredor. – Eu serei o Macário. – e solta a fumaça – “Morro de tédio, Satã! Me entendia igual às amantes esquecidas.”

    Nisso, Stevam é agora Satã, ao estilo Mephisto, “Tem cartas aí? Vamos jogar. O que quer? Truco, buraco, vinte e um?”

    E degustando a caipirinha, HD percebe que Stevam seria um melhor Satã do que um pesaroso Penseroso. E HL, que também é leitor de Álvares de Azevedo, é todo atenção.

    E agora Alfonso, o Macário. – “Sou infeliz no jogo. Fico irritado e perco. Me dá vontade de matar o apostador.”

    E responde Satã, isto é, Stevam. – “Pois eu jogo, perco e gosto de jogar. (pausa) E que tal ouvir uma história?”

    Então Macário, isto é, Alfonso, responde: - “Real ou fábulas?”


    E ressoa a campainha numa cacofonia para o solene Johann Sebastian Bach, e Alfonso vai atender. Entusiasmo. É o primo Lúcio e seus amigos, o multi-instrumentista AG, sua garota, e uma amiga, e são conduzidos à sala de estar, mas não dispensam a curiosidade de saber O QUE HÁ na sala de jantar.

    Johann Sebastian Bach impera novamente, e ecoando tal numa catedral, a voz mefistofélica de Stevam, interpretando Satã: - “E o que importa? Nem mais nem menos que as Mil e Uma Noites. Um dia deu-me a lua para virar a cabeça de uma moça. Vesti um paletó de moço, pálido, em seus sonhos de poeta, todo orgulhosos: nem feio nem bonito, tinha olhos prdos, cabelo longo e barba brilhante. E tinha uma amante. Moça morena, olhos muito lânguidos, uma boca delicada e mãozinhas as mais suaves do mundo.”

    Macário, na pele de um esfumaçado Alfonso, todo blasé, enfadado. – “Cara, essa história é mais velha que o dilúvio! E confusa igual a uma novela.”


    Stevam prepara-se para ler sua fala de Satã, ao altissonante sustenido da sinfonia, “Está hoje chato de um jeito! Não me importa. Quero te alegrar. A história é...” e Alfonso desligou o som!

    - Tédio, tédio. O pior dos pecados! Deixemos disso, vamos nos divertir.

    E apagou o cigarro no pé da mesa e desplugou o aparelho. Claro que o clima tornara-se sombrio, o que incomodava ao espírito irônico que pretendia, e também a fala de Satã seria muito longa, um porre!, e a turma alheia, embasbacada, mas o certo é que Stevam, o irmão, não gostou.



    Servindo bebidas, caipirinha à fartura, Alfonso conduzia os desgarrados à sala de estar, ode um DVD estratégico esbanjava imagens de uma jam session de jazz, enquanto todos se acomodavam, ao solo de saxofone, ou se excitavam na orgia do bebop, mesmerizados sob a luz derramada além até as bordas da piscina, onde olhos cobiçosos boiavam com o sutil ondular das águas. Era AG que se achegara à porta e pensava seriamente em ousar em mergulho.

    De início, não notaram a ausência de Stevam, o Lucena, até porque o outro-Stevam discutia pérolas da filosofia ali com o HL, e HD travava amizade com o primo Lúcio, e a amiga da partner de AG reclinava-se sensual no sofá junto à porta, e AG aperta a mencionada partner, encostados na porta. Um piano em alucinados altos e baixos, perseguido por um baixo pegajoso é a trilha sonora, e alguém tenta identificar Charlie Parker? Art Blakey? Duke Ellington?, meio a fumaça densa dos ‘caretas’ acrescida de outros papelotes que os rapazes vão queimando...

    - Então a razão causa congestão?

    Isso HD ouvia da boca de HL, ao seu lado, a dialogar com o outro-Stevam, que respondia, olhar irônico. – Experimente pensar em sua existência após o jantar...

    - Só porque não tem sentido? Arranje um...

    - E o que eu vou ter que pensar para arranjar um?! É mais difícil que arrumar mulher...

    - Pois tem gente que não pensa, sente.

    - Sentir, não pensar. Eis o lírico. – em Alfonso entrando na conversa, já rasgando uma folha de bloco de anotações. – Vamos fazer um poema em que cada um escreve o que vier à cabeça, sem parar pra pensar!

    Todos acham no mínimo inusitado e o primo começa a rabiscar, isso quando passa o vulto de AG de roupão e cigarro aceso, rumando direto para as águas azuladas da convidativa, e permissiva, piscina. Claro que ele não conseguiu aliciar sua partner, e nem a amiga, então mergulha prazerosamente só. Um murmurar de águas se mescla a trilha sonora e um saxofone é incapaz de subir ais alto que um grito de A.G.
     Agora é HL quem escreve, febril, alucinado, em dueto com John Coltrane, e HD vê o momento exato em que o Primo, em infeliz movimento, senta-se sobre a mesinha da sala, para melhor enrolar um papelote, e esquece que sob o pano, com margaridas bordadas, há tão-somente uma fina lâmina de vidro. É óbvio que esta torna-se em mil estilhaços, para o tormento de Alfonso, que já prevê densas nuvens, e já pensa que dirá aos pais, o que escreverá para Glória, sobre uma recepção para os amigos, um monte de ‘porras-loucas, caídos de ébrios, boiando na piscina ou navegando nos céus dos ácidos e alucinações jazzísticas.

    Foi quando pensou no ‘dedo-duro’ de Stevam, seu irmão, que Alfonso notou a ausência do mesmo, e não só sentiu-se aliviado, como buscou logo desculpar a si mesmo por ter magoado o tão sensível brother, que não podia aceitar um tão sociável irmão a ousar recepções para os artistas, enquanto Stevam, o mais velho, era afastado de seus amigos, logo rotulados de ‘má influência’, mas Alfonso nem poderia imaginar que o mesmo castigo e penitência lhe seria imputado, ainda demais depois de certa carta indiscreta e devassada, mas não adiantemos, e ele ainda está deveras chio de si, até a transbordar, quase pulou na piscina também!

    Mas a folha com rabiscos passou por Stevam, isto é, o outro-Stevam, e chegou às mãos de Alfonso que se viu de cara com algo como “poentes cobertos de hemorragias mentais” e diagnosticou logo, na letra que era de HL, resquícios de Augusto dos Anjos, e não pensou muito, NÃO SE PERMITIDO PENSAR, e esboçou surrealisticamente, incorporando André Breton.

    HD seria o próximo e observa o Alfonso dado ao transe, enquanto uma voz feminina de negra sulista duelava com uma guitarra chorosa, e o primo achou aquilo tão triste que sentou-se no chão e ficou pitando, caladão. Nisso, o outro-Strevam já viajava e HL olhava as pernas da amiga da partner de AG, que não se enturmava, aquela morena que devia é se jogar nos braços daquele moreno, negro sulista, do bardo HL, que muito se deixava ficar despeitado.

    E quando HD recebeu a folha, esta já se encontrava em estado lamentável, coberta de rabiscos, gotas de bebidas, manchas de nicotina, nódoas de gordura, pois a caipirinha era farta e havia torradas com manteiga, e sanduíches de pernil, e pasteizinhos de queijo, mas HD reconheceu um “um vazio que o vazio em si mesmo habita”, obviamente rabiscado por Alfonso em suas obsessões, e HD rabiscou meia dúzia de linhas sobre o nada, tipo “costurando desvios nas linhas da existência na palma da mão” e entregou o papel a Alfonso, que fez sinceros esforços no intuito de ler os hieróglifos, mas desistiu e queimou ritualisticamente a folha sobre o jarro de flores, enquanto o primo se deixava semi-adormecido e o outro-Stevam se despede, cedendo lugar a HD que se reclina no carpete e aprecia a escuridão do sono.





    Quem despertou HD e HL, os bardos adormecidos, na manhã de domingo, foi o primo Lúcio que ligou a TV. No momento sacro de “A Santa Missa em seu lar” ambos abriram os olhos. “Que sacanagem é essa?”, gritou logo o HD, que disfarçava as dores agudas de uma súbita câimbra. Afinal, dormira no tapete da sala, sem mais cuidados, e agora o corpo cobrava, com suas dores nas costas, com seus espasmos musculares, com seus olhos inchados.

    - Podemos almoçar lá em casa.

    Eis o plano de HL, rapidamente apresentável, enquanto HD dobrava ainda as cobertas. “E o Alfonso?” O primo Lúcio logo esclareceu, sufocando mil bocejos, “Esse Alf só vai acordar na hora do almoço. E o primo zapiou para o canal de esportes e permitiu-se comentar o shortinho das meninas do vôlei.

    E assim, sunday morning, HD encaminhava-se, lado a lado com HL, nas ladeiras marginais da Via Expressa, rumo ao nascente, pois HL morava ali pros lados da Gameleira, e da varanda da casa podia-se ver o Edifício JK, aquele da praça Raul Soares, e isso não era evidente, HL teve que apontar na direção correta, sem binóculos, mas isso agora não importa.



    Segundo andar, cama, guarda-roupa, cômoda, mesa com máquina de escrever e toneladas de folhas manuscritas, rascunhadas, rasgadas, dobradas, datilografadas, mimeografadas, digitadas, enfim, compõe o quarto e a obra de HL, poeta e ator, que transborda em versos desde os treze anos e agora tem vinte e dois.

    Um volume, muito manuseado, de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, é parte integrante de seu lanche matinal, visto as manchas de manteiga na folha do prefácio e outras mais internas, mas isso não importa. Afinal, Kierkegaard, Husserl, Heidegger e Sartre fazem igualmente parte do cardápio. Ou se quiserem, um ‘cogito, ergo sum’ de Descartes, uma ‘ética geométrica’ de Espinosa, um ‘imperativo categórico’ de Kant, um “humano demasiado humano” de Nietzsche, estão na lista de aperitivos. Eis a razão da amizade instantânea de HL e o outro-Stevam, ambos obcecados por filosofia e que encontrarão em Michael Bishop uma imagem de mestre, mais do que a de um interlocutor que, muito precariamente, viam no Professor Antunes, por exemplo. Mas não adiantemos.

    O que importa é a nossa crônica do Carnaval Revolução 2004, no qual o nosso HD passaria três dias meio às provações que se encontram reservadas à todo jovem alternativo e utopista.

    Almoçam juntos e chegam à Avenida Paraná, Hotel Bragança ou o que sobrou de um esplendor antigo, a tropeçarem em “oito pilhas por um real” ou ‘caixa de uvas selecionadas à dois reais” ou “sena acumulada e aqui o seu bilhete da sorte” ou “venha, freguesa, conhecer a nova tecnologia em ralador de legumes” e rasgando o tédio do domingo, na nossa metrópole cinzenta, os primeiros acordes da disfonia anunciam o despertar do entorpecido sono midiático. Ali no fibrosado coração da cidade, cheirando a gasolina e fruta podre, onde os gritos por piedade e uma-esmola-pelo-amor-de-deus ressoam em vão.

    Invadindo escadarias, halls, sala de café, terraço, até lavanderia, todos querem seu espaço, sua oportunidade de fala e protesto, e buscam, enfrentando a desilusão do cotidiano de asfalto, as vozes dissidentes, em debates, em palestras, em oficinas. Denunciando a carnificina, o extermínio de animais, enquanto os corredores são invadidos por relampejos de olhares e mentes famintas de idéias. O almoço vegetariano já acalmara a fome do corpo, deixando a fome da mente a ser saciada por palestras denunciando a conspiração dos transgênicos e a perda autonomia no campo.

    Denunciando a cidade obscena, n pornografia da poluição visual, onde as idéias definham em frases plastificadas. Por corredores e escadarias, os passos céleres, as calças rasgadas emergindo dos porões, onde labuta a produção alternativa, a mídia independente, o carnaval anti-carnavalesco e seus bonecos-monstros-gigantes. E a Resistência Negra continua, e continua a viva lembrança de Baader-Meinhof seja com blues ou grindcore, continua a cultura libertária com sua imprensa alternativa, a contra-cultura (contra qual cultura?), a contra-academia (qual academia?), o cara declamando poesia na lavanderia... Um momento!



 ... continua...



LdeM


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