sábado, 16 de abril de 2011

... completando o capítulo 2

...



    Segundo os dígitos no celular, elas estavam atrasadas. Meia hora, aliás. E aquele ali, na portaria deve ser o Jaime. Alto, olhar fixo atrás dos óculos, dedos entrelaçados, calça jeans e tênis. Uma camisa pólo qualquer. Deve ser o tal.

    É realmente. Elisa, a alta e loira, e boca sedutora, logo apresenta os rapazes, a esclarecer que Elen vai se atrasar. Mais? 

    Abraçada lascivamente ao tal Jaime, Elisa adentra os estúdios, enquanto HD observa as estantes com vinis e compact discs, entre pop australiano, música folclórica irlandesa, timbres tibetanos, punk-rock nova-iorquino, música popular brasileira, violeiros caipiras, sambas populares, reis do reggae, heavy metal norueguês, rock independente francês, canções de protesto italianas, música instrumental indiana, clássicos russos e alemães, mantras e místicas de world music, reis do baião, bossa nova, tropicalismo, rock progressivo húngaro, rock pesado argentino, hinos sacros de tribos amazônicas, entre outros. Mas está atento quando surge o esperado vulto de Elen Lauria.

    Elen chega ao estúdio um tanto apressada, a voz embargada. E nada de esclarecer o porquê de tanto atraso. Exceto para Elisa que já assumira o controle das mesas e botões, fones no ouvido e microfone à disposição.

    Claro que depois, Elen alega a existência de certas visitas inoportunas, mas nada muito esclarecedor. E no mais, ela dá mais atenção ali ao prezado Jaime, enquanto ele pede (solicita gentilmente) um rock made in USA, de preferência de Seattle. HD prefere um pop inglês (só para ser do contra), mas Elisa toca o que quer.

                          “Ei, não consigo encontrar nada no rádio
                           Yo! Mude pra aquela estação...”

                          O mundo está em colapso
                          Ao redor de nossos ouvidos...

    R.E.M. com “Radio Song”, claro. Tratando-se de uma de suas canções prediletas, não é de se espantar. Mas Elen em sussurros com Jaime a um canto não deixa de ser incômodo. Para ambos. E HD não é capaz de entender que as amigas não podem negar atenção a um velho amigo. E fã declarado. E ambas sabem muito bem. No entanto, Elisa não pode negar igualmente o pop inglês, Oasis, com “Stand by Me”,

                               “É difícil quando as coisas não tem sentido”

    Apesar de que há certo sentido no olhar de Elisa, detrás daquele vidro,

                              “Confie em mim – ninguém sabe como será”

e a estrofe se repete, em si mesma à exaustão, mas o olhar de alguém exige atenção,

                                    “Estou cansado de falar ao telefone
                                     Há uma coisa que jamais te darei
                                    Meu coração jamais será seu lar.”

    Talvez seja apenas uma impressão, um curto-circuito no córtex. Afinal, amigos não se encontram todos os dias e outras considerações que visam salvar a auto-estima, ainda mais quando tocam Radiohead, “Creep”,

                                        “E eu gostaria de ser especial
                                         Você é tão especial, ora!”

    Pois é patente e constrangedor a indiferença das garotas quanto a sua presença,

                                      “Que droga estou fazendo aqui?
                                        Não pertenço a este lugar.”

    Ele até sugere que Elisa leia a tradução das canções, mas as meninas acham que seria brega demais, além de assemelhar a certa rádio comercial muito piegas. E tocam um rock pesado do qual ele nada entende, exceto que o vocalista não pretende mudar o mundo. E o silêncio, o seu silêncio, diante do grupo ébrio de gargalhadas. Ele que imaginava ser surpreendido, à portaria, lendo poemas ou encartes de CDs, com viva emoção feminina, depois sugerindo parte da trilha sonora do programa, lendo traduções de clássicos do rock’n’roll, tipo Doors ou Led Zeppelin, comentando o decote de Elisa ou a calça rasgada de Elen, tudo muito empolgante, mas apenas para se afundar em frustrações, como um pobre adolescente.

                            “Pois é uma sinfonia doce e amarga, esta vida
                             Viver com poucos recursos
                             Ser um escravo do dinheiro até morrer”

    Ouvindo The Verve, “Bittersweet Symphony”, Elisa convida os rapazes para continuarem o som em seu apartamento.

                                 “Nenhuma mudança
                                 Eu não posso mudar, não posso mudar,
                                 Aqui estou em meu molde,
                                 Aqui estou em meu molde,
                                 Sou um milhão de pessoas diferentes
                                 de um dia para o outro
                                 Eu não consigo mudar meu molde, não não”


    No caminho, HD seguia silencioso ao lado de Elisa, enquanto Elen seguia abraçada com Jaime, sempre em sussurros. O que tanto comentavam entre risos? Eram assim tão íntimos? Apenas amizade?

    - E esse silêncio todo, Hector!

    Elisa realmente preocupada? Mas por que ele nada sentia por ela? Limitou-se a: - Estou em surto criativo, estou compondo um poema que escreverei daqui a pouco.

    Seu humor sombrio não combina com as gargalhadas dos amigos, mas inegavelmente nasce diante delas. E se pretende presentear as garotas com livros e lapiseiras estilizadas, sua intenção desceu para segundo plano. Pobres garotas fúteis! E ele que já esnobou universitárias!


    No apartamento da Elisa, a TV continua ligada, enquanto HD folheia revistas, ou traduz mentalmente encartes de bandas pop. Jaime apresentou-se para levar Elen em casa, visto ela alegar certa indisposição, “Essa vida corrida, gente!”. E agora HD contava cada minuto, mas o rapaz voltou logo. Elen morava a dois quarteirões e HD poderia até calcular o número de passos. Ela apoiada no amigo, em miríades de futilidades.

    Elisa reaparece na sala, com refrigerantes, e abre a porta para Jaime. Muito falante, o rapaz entra. Sua condição de músico (exímio guitarrista) assim o permite. É um artista, e sua cotação é alta entre as garotas locais.

    Mas Elisa está mais atenta aos gestos de HD, que a surpreende com o livreto do falecido TH, recém-lançado. Jovem poeta que morrera sem divulgar seus versos, mas os amigos não esquecem os seres especiais e providenciaram uma homenagem póstuma, inclusive bancando a pequena edição. E ela pra-lá-de-atenta.

    Enquanto Jaime vai ao banheiro, ela se inclina sobre HD, que respira fundo perfume. Mas não há nada se movendo nele, nem física nem emocionalmente. O que seria totalmente diferente se Elen estivesse ali.


    Para o cúmulo das ironias, quem oferece carona é o tal Jaime. Ser gentil é uma de suas manias.

    - Então você é um cara otimista?

    - Sim, é preciso ser.

    - Concordo, mas em seu otimismo há um tanto de cegueira.

    - E eu acho você um cara estranho.

    - Ainda bem. Imagine se fôssemos todos iguais! E previsíveis! Mas talvez me ache ainda mais estranho, depois da minha próxima pergunta.

    Jaime olha o acompanhante em silêncio. A luz vermelha surge e ele pode voltar o olhar curioso. – Vamos lá, diga.

    - Por que gostamos de X, se nosso sucesso vem de Y? Por que amamos quem não nos ama?

    O rapaz já não disfarça um certo desconforto, um olhar de “Que louco é esse?”. Mas HD não vai parar agora.

    - Mas aí habita a angústia: escolher um caminho e abandonar outros infinitos. Em qual está o sucesso? Quantas oportunidades perdidas! Tanto sofrimento inútil! Eu seria outro hoje se... Amando, sendo amado, com um bom trabalho, talvez casado, abrigando um filho, ou uma filha, seria um outro. E que escolha fiz? Mas será que eu realmente fiz uma escolha? O quanto sou senhor de mim mesmo?

    Cuidadoso no trânsito, Jaime não se voltou. Seus olhos passeavam lá fora, onde talvez houvesse uma ordem. Somente o seu passageiro é que era estranho. Como Elen podia dar atenção a um sujeito desses? Estranho, muito estranho.

    - Não acha esse mundo muito estranho?

    O outro teve um sobressalto. Mas HD não queria que o rapaz se desse ao trabalho de responder. Nem esperou.

    - Moro no próximo quarteirão. Se puder me deixar na esquina, eu agradeço.

    O veículo demorou-se ainda um minuto e depois seguiu. “Quem seria esse Jaime e quem continuaria sendo?”




(Onde se narra o encontro de HD e HL com o editor EP nas noitadas de BH)


    Foi somente uma semana antes do natal que HD e HL reencontraram o poeta e editor que sobrevivera ao assédio da multidão lá na Feira do Livro. EP, Hélio Lúcio conseguiu identificar o vulto.

    Uma noite poética no Matriz, o que não é raro, mas sempre atrai pouquíssimos interessados. Entre eles o poeta e editor que pedia um pouco de atenção enquanto declamava literatura de cordel, não só Patativa do Assaré, mas outros autores, e obras próprias. E era mesmo preciso pedir silêncio. O público nada apresentava do perfil de amante da poesia. HD logo percebeu e desistiu de se apresentar, enquanto Hélio Lúcio já era arrastado por uma fã calorosa, para lançar suas odes simbolistas-expressionistas-pós-modernistas sobre os desavisados.

    É de reconhecimento o mérito de EP em laçar doze minutos da atenção daquele público indiferente, mas Hélio Lúcio surgiu do nada, invocou a presença de um explícito poema erótico e domou a audiência (deixando-a em gozo orgiástico) em cinco minutos e vinte segundos.

    Num canto, HD realmente desistiu de intervir. Suas odes também eram boas, mas ele não estava disposto a desperdiçar voz com ouvidos alheios. Preferia muito mais observar os movimentos táticos de EP que “vendia seu peixe”. Aproximava-se das mesas, recitava m curto poema, ou um trecho de cordel, e estendia o livro para que o cavalheiro presenteasse a encantada dama. Sim, muito grato pela atenção. São apenas dez notinhas, Me agrada muito que a senhora tenha gostado. Mas às vezes, EP “pegava pesado”, Como é, o senhor se esquiva de presentear sua agradável esposa alegando não possuir certo valor, que cada entre nós, é mixaria!? Não seja por isso, eu lhe empresto a mísera quantia! E realmente, “unindo o gesto a palavras”, ele tirava do bolso duas notas de cinco reais e estendia ao cidadão. Um constrangimento. Ou o sujeito sorria ou partia para o tapa. Mas geralmente compravam. Par se livrarem logo do inconveniente vate. Marketing agressivo!

    Bardo discreto, mas não menos esquentado, Hélio Lúcio encerra sua apresentação e vem acomodar-se ao lado de HD e da cerveja. Mas não demora muito e ele se levanta, olhar fixo e vai conferenciar com o poeta e editor à uma mesa de distância. Não demora. Volta e acomoda-se, fazendo suspeita. Prometeu conversar com a gente. Meus amigos poetas, ele disse.

    O jeito é esperar. Sondar o ambiente, comentar o decote da loira da segunda mesa à esquerda, discutir a situação política, um ano de trabalhistas no poder, e daí?, citar o último livro do Chomsky, apresentar-se enquanto defensor das Letras nacionais.

    No meio da segunda cerveja o esperado EP aproximou-se, e pediu outra. Que desculpassem a demora, mas uma agradável (adjetivo de sua predileção!) senhora mostrou-se deveras interessada em suas posições (termo ambíguo, não?) líricas diante da miríade de escrevinhadores (foi este mesmo o termo que ele usou!) modernos numa geração (ambos os significados do termo) de medíocres (dos quais ele mantinha distância, convenhamos) numa terra pobre de mentes esclarecidas (o que não era o seu modesto exemplo), em suma, eis-me aqui para bem servi-los (um tremendo FDP este EP!)

    Quem mais se ocupou de EP foi Hélio Lúcio, preocupadíssimo com as edições hodiernas cheias de mesmices e “dores-de-cotovelo”. HD limitava-se a comentários pouco comprometedores e observar o poeta e editor. Negro, alto, bem vestido, com gosto e modesta discrição, sorridente quando queria, com a mão sempre no lugar certo (e não do jeito HD, a rabiscar guardanapos, rasgar as pontas do menu, despetalar a plantinha no jarro central da mesa) e parando para ouvir (o que muito agrada ao HL, que detesta ser interrompido).

    Até o fim da terceira cerveja discutem a produção editorial e seus mistérios. E EP mostra-se entediado, Que tal uma volta noite a dentro? Acreditam que eu nem jantei?

    Ali mesmo na Praça Raul Soares encontram um restaurante, aliás, um bar modesto, onde, quase meia-noite, podem encontrar um PF. Os amigos agradecem, mas recusam, assim somente EP faz o pedido. Enquanto ele elimina rapidamente o arroz, o feijão, a salada e a coxa de galinha, conversam sobre poesia. Hélio Lúcio recita (mais discretamente devido ao local e horário) suas odes eróticas, e espera comentários de EP, que tem a fama de não fazer rodeios, não ter “travas na língua”.

    - Vocês têm um dicionário aí? Isso de “venusta”, o que é?

    “Ó pobre Hélio Lúcio, ele estará ironizando o teu farto vocabulário, adquirindo por noites inteiras de insônia, lendo poesia simbolista?”

    Hélio Lúcio não exatamente despreza quem tece críticas, mas desde que acrescentem algo. Caso contrário seu desprezo é expressado por seu silêncio. E ele silencia.

    Comendo tranqüilo, EP não faz caso do silencio que se seguiu ao infeliz comentário. HD, que já tirara seus poemas da pasta ao lado, não desiste de apresentá-los. Vejamos o que o juiz tem a dizer diante do corpo em delito.

    Enquanto degusta uma cachaça, EP folheia as folhas xerocadas de HD, que finge meticulosa atenção ao jogo de luzes no espelho do corredor.

    - Este poema é, digamos, gaguejante. – diz EP, a apontar um poema, justamente o primeiro, na primeira folha.


                                       Um suspiro
                                                     rasga
                                                             a noite,
                                      dispersa
                                                   a fumaça do cigarro,
                                      torna audível o silêncio.


    E dedica-se a rabiscar no verso da folha, uma solução para a gagueira.


                                      Um suspiro rasga noite,
                                        Dispersa a fumaça do cigarro,
                                      Torna audível o silêncio.

    E de nada adiantou HD explicar seu processo de composição, ou suas influências de Vladimir Maiakovksi, pois o orgulhoso EP achava que era “gaguejante” e pronto.

    Nada de discussões, meus bons poetas. Que a poesia não vale tanto. Somos três perdidos na noite. Um editor poeta, ou poeta editor, que pensa entender de poesia. Um poeta, ator e performance em busca de um editor, que já gastou todas as suas economias com literatura. Um formado historiador que nunca historiou nada, vive a imaginar-se escritor, nunca concluindo um romance, nunca editando seus contos, distribuindo poemas para os amigos, ciente de que está jogando pérolas aos porcos.

    E assim saem os três frustrados. As coisas não são como relatam os romances. Amizades eternas (e literárias) após uma conversa de bar. Este editor sai sem clientes e estes poetas saem sem um editor. “Da próxima vez que eu precisar ensinar um cara a ler os meus poemas eu prometo que.”





Noites sem Sono


      Foi-lhe dado Tempo para parir o Absurdo, extravagante novo Senso para situar-se num Mundo hostil e hostilizado. Conceber Vida no Seio da Impureza, dar de si o Sentido do qual a Existência carece, o Fôlego de Comoção que removerá as Vestes de prudente Resignação, rasgadas de alto a baixo, deixando entrever Perspectivas na Fenda ferida, entreaberta, gangrenada. Pois os Portais hão de ser franqueados ao acesso dos que procuram, num transbordar de si, num emergir de dentro dos próprios Pesadelos, trançados em embaraçosa Gratuidade, espinhosa Noção de si, perfurando uma fresta no instante de um Cosmos sempre adiante, frenético a criar Ordem nas Entranhas do Caos, que é crescer e definhar, de onde precipita a Consciência a olhar uma mão estéril, dedos ressequidos, a tatearem aflitos pelas Trevas de derramada Noite findante, em falanges esqueléticas como Sombras dançantes, Silhuetas esvoaçantes, remexendo Cicatrizes, num pútrido Charco de Comodidade, enterradas no solo morto da Letargia alérgica a Vórtices de Mudanças, que prefere - incauta - o Senso vulgar, pedra onde se firma o Insensato, Rocha que esmaga o audaz. Tatear, sim, não sem fadiga, não sem Frenesi, não sem sentir-se abandonado num espectral Nada, sepulto num Vale solitário de Dúvidas, a remoer Pesadelos, a remendar Sonhos, especulando Imagens sem corpo nem Alma, Dualidade inútil num cesto de Incertezas, Possibilidades enredadas, Dádivas de finados ideais.


      Quando a Lua fenecer, ele saberá que chorou, que tudo perdeu-se, num êxtase de Tédio consentido, eis agora presa do Desdém, servo da Impossibilidade de aceitar-se, re-situar-se no Borbulhar que brota do sentir-se, Eu e Ele/Ela, distancia regurgitando do Âmago da Indiferença. Eu aqui, Ele/Ela, lá. Amar o Eu que Ele/Ela é. Todos criamos Idéias, e não as negamos, antes para não as perdermos, Fragmentos são compartilhados, em Pensamentos mutilados, e Frases rebuscadas, Gestos desesperados, no lançar-se angustiado rumo ao outro, ouro Pedaço perdido de nós, Ele/Ela, que é nossa Criação, nós que somos Obra dEle, dEla. E assim ainda prosseguir, cúmplice, envergonhado, curvado sob atroz Culpa, ocupado em aliviar sua pobre Consciência, degustando amargo Suor, perpetuando imperdoáveis Crimes, legislando em causa-própria, sustentando corruptos advogados da Auto-indulgência, cicatrizando as Feridas salgadas, cauterizando o Remorso com Penitências. Julgando os Outros pelas suas próprias Renúncias, a confundir Alívio com soníferos, Paz com analgésicos.



(Manuscrito de Thales Henrique, datado de abril de 2002, encontrado por Stevam Lucena. Atualmente integra o espólio do Autor, com a publicação da obra póstuma “Vivendo Ainda...”, em novembro de 2003.)





Na véspera de Natal, HD visitou Elen, desta vez tendo o cuidado e gentileza de avisar antes. Seu presente foi um calendário temático, ainda que ao estender um envelope com poemas próprios ele tenha dito com um sorriso, “Eis o meu verdadeiro presente!”

    Foi a tarde em que ele ousou a leitura de sua adaptação de “Othelo”, de Shakespeare. Estava trabalhando no projeto desde fim de outubro, e somente se aconselhou com o genioso Crânio, a recomendar uma atenta leitura dos originais. Mas a preocupação de HD não era exatamente o texto (ao qual pretendia ‘modernizar’) mas o interesse de sua amada atriz amadora no projeto.

    De início, pode-se dizer que Elen sorriu à proposta (e não havia sorrido a tantas outras?) e deixou-se a ficar a ouvir a leitura e penitente paciência e olhar vazio. Ao fim do segundo Ato é que ousou um comentário de que aquela Desdêmona estava muito “patricinha”. HD até concordou mas esperava algo mais. Ela não tinha sugestões para o cenário? Dicas para o figurino? Não pensou em algum colega do Centro Cultural que se interessaria em algum papel?

    E ela? Caindo de tédio! E ele? De tão confuso e frustrado saiu sem nem dizer “Feliz Natal!” ou “Boas Festas!”


    De qualquer forma, somente Shakespeare poderia agora uni-los. Entenda-se, somente o mundo do teatro poderia. Pois Elen (e Elisa!) explicitaram um certo incômodo com sua presença (suas freqüentes visitas!) na Rádio. “Hector, preciso te pedir uma coisa.” Ele era todo ouvidos. “Quero te pedir para não voltar mais à Rádio, senão a gente pode ter problemas com o Diretor.” E olhava para lisa, e HD olhava para Elisa. Mas o silêncio da outra não era um apoio a uma das partes? E HD percebeu que as duas se distanciavam.

    Meio mundo estava sendo convidado para o projeto da adaptação de “Othelo”, inclusive Hélio Lúcio para o papel do protagonista. Fora outras figuras em ascensão, a incluir o jovem Alberto, que além de ator e performancer, estudava dança. Poderia encarnar o esbelto e sedutor Cássio. E Desdêmona, obviamente, seria ressuscitada pela beleza e juventude de Elen Lauria. Pedra de fundamento da idéia toda!

    Eis a bela aurora do ano de 2004! Ouvindo pop rock na Rádio nas noites de sábado. E ligando para as garotas, a pedir clássicos e progressivos, baladas e até punk rock. Não pode, contudo, deixar de fazer um visita em certa noite de sexta-feira. E ela enroscada no silêncio, e ele insistindo num diálogo que qualquer um podia conceituar como monólogo. E sem conseguir sair do prosaísmo quando ela comenta “hoje a noite está linda”.

    Encaminhavam-se para o portão, ambos percebendo que a visita terminou. Ele buscava exemplos televisivos para ilustrar os próprios sentimentos.

    - Viu ontem a nova minissérie? Os modernistas em São Paulo? Viu? Aquela cena que lembra cena de romance. E na qual a própria atriz lembra disso! Os amantes e os momentos perfeitos!

    Ela ainda mais silente. Eis o portão.

    - Precisamos agendar um passeio. Aqui nada há de romântico. Nada de cenas poéticas. (pausa) sei que nada posso te oferecer. Não tenho poder para fazer despertar em você um sentimento (nem ao menos um por cento do que estou sentindo). Espero que você leia os poemas. É como se eu estivesse conversando com você...

    O silêncio era definitivo. Ela estendeu a mão, que ele aceitou nas suas. Beijou a face amada e se distanciou na noite.


    Ele agenda entrevista com cenografistas, especialistas em vídeo, anota o telefone de pelo menos dois contra-regras, entrega-se a sondagem de possíveis diretores. Pois se o roteiro é por sua conta, alguém precisa cuidar do elenco.

    A primeira diretora agendada havia sido assaltada na tarde anterior e talvez o fato explicasse a pouca atenção, mas ao fim de duas horas de intercâmbio cultural conseguiram chegar a um acordo quanto ao elenco de amadores. Profissionais são caros, profissionais são esnobes. HD a esperar que a peça fosse logo montada e até animado com a possível verba via Fundo Municipal de Incentivo à Cultura, a lembrar o curso com promotores culturais e aquela papelada. Algum problema? Bastaria ligar para o Alfonso Lucena.

    A diretora (com quinze peças no currículo!) indicou uma lista de nomes, entre artistas e produtores, além de professores de arte cênica. Com uma proposta de cronograma de ensaios e pré-produção diante dos olhos, HD tentava conciliar o eu-profissional com o eu-amoroso. Estaria fazendo tudo isso somente para agradar Elen Lauria? Caso a resposta fosse sim, todo o seu empreendimento poderia ir por ‘água abaixo’ diante de um simples “não” da parte dela. Caso a resposta fosse não, ele percebia diante de si um desafio colossal combatendo contra os moinhos gigantes da burocracia e da produção cultural. Seria ele suficientemente profissional para levar tudo até às últimas conseqüências? (Ou somos sempre levados por impulsos passionais?)

    E as tardes desperdiçadas ao telefone fazendo contatos? E aquelas tentando localizar Elen? Telefona para Elen, avisam que ela não está, então ele telefona para Elisa, e ela atende cordial,mas nada sabe do paradeiro de Elen. Uma hora depois, ele liga novamente, Elisa-pura-simpatia atende e comentam fenômenos da música pop. Uma hora depois, nova tentativa para a casa de Elen, ela atende (ufa!) e como ele já sabia, ela não está muito interessada em conversas. Impressão sua, ou em alguns momentos ela é até sarcástica?

    Ele: Eu sou seu anjo. Caí na terra.

    Ela: Eu já vi esse filme. Com Nicolas Cage.

    Ele: na verdade inspirado num alemão, o Win Wenders. Mas não desconversa. Eu sou seu anjo. Vim te ajudar.

    Ela: Até contra a minha vontade? (irônica) E não era melhor continuar anjo? Por que caiu?


    Missão para Elisa: localizar um filme sobre Othelo, de 1998, com o ator Laurence Fishburne, “Sim, aquele mesmo depois no papel de Morpheus em “Matrix – The Movie”. Você que é freqüentadora obsessiva de videolocadoras!” Mas logo o genioso Crânio é quem movimenta-se nos bastidores, cheio de conselhos, em alertas sutis sobre projetos passionais, “Não se ganha a guerra com o coração” e coisas do mesmo naipe.



    Numa quinta-feira à tarde, é Crânio quem telefona. Encontrou a fita. Othelo, USA/GBR, 1995. Diretor: Oliver Parker. HD acerta (eis a agenda ao lado) a visita no sábado à tarde. E encarrega Crânio de convencer as garotas. E ao desligar, HD já está pensando em bombons e flores.

No entanto, como esperado, as cenas de sábado não ocorrem. Sob o sol desgastante, HD chega a casa de Crânio e nada das garotas! E nada de filme. A fita carecia de renovação e o pai fora cuidar dos trâmites. E ninguém avisa! “Mas, Hector, a fita foi alugada na quinta-feira!” Mas HD irritado não ouve ninguém, e discute com o prezado genioso a luta vã do artista, enquanto Crânio (para domesticar o amigo com ares saudosistas) insere no aparelho de vídeo uma fita com shows e clipes do progressivo Jethro Tull.

                                           “Sitting on a park bench
                                     eyeing little girls with bad intent.”

                                       Sentado no banco do parque
                                       Olhando as garotinhas com más intenções.



    À noite, o Pop Rock Show. HD ainda irritado e febril. Telefona para lembra-la que ele existe, solicita músicas (umas baladas românticas ao estilo hard rock dos anos 80, com solos de guitarra longos e lamentosos) e ela logo avisa que está fora d peça. Ele nem acredita, “Que isso! Assim? Pelo telefone? Precisamos conversar com calma.”, como se ela estivesse terminando um louco ‘affair’ que nem começou! Ms ela, irredutível, “Já pensei. É o que quero.” Com frieza bem feminina. E ao fim não tocam as músicas que ele pediu e ofereceu – para elas mesmas!


    Mesmo febril, HD apareceu na casa da Elisa. Domingo à tarde. A irmã aprontando-se para sair com o noivo. Elisa também planejando sair – mas com Elen. E ela telefona, chamando a amiga. Sem dizer que HD está ali diante dela, reclinado no sofá. Conversam sobre a peça, produção porém sem elenco, o que pode fazer? Ela esforça-se por se mostrar interessada, e seguem em comentários sobre a vida acadêmica (ela cursando Publicidade) e HD relembrando fatos e datas de sua própria, ora ou outra tecendo comentários sobre as bandas que se alternam na vitrola (ou melhor, no moderno aparelho de som 4 cabeças com bandeja para seis compact discs), e bem poderiam ser confundidos com um casal apaixonado se ali houvesse paixão ou algum tesão.

    Elen chega, exibindo vestido novo. Surpreende-se com a presença de HD, que se esmera m elogios. Elisa pede licença para ir se arrumar, o que HD interpreta como o melhor momento para sentar-se ao lado de Elen.

    - Qual o aviso que você tem pra mim?

    - Aviso? Nada. Só e disse que estou fora da sua peça.

    - MINHA peça, não! NOSSA. Eu esperava o interesse de todos. Do jeito que você falou (não sei se foi impressão minha) parecia estar se livrando de uma imposição, uma obrigação. Acho que realmente fiquei muito empolgado com o projeto. E fiquei correndo atrás de todo mundo – telefonado, insistindo... Eu custo a me entregar a algo e quando o encontro, fico meio bitolado. Mas e seu silêncio? Você estava ‘fora’ desde o início?

    - Eu achei legal. Mas fiquei pensando. Tem que ser feita com o coração. Agora vou para a faculdade... Não dá tempo.

    - Realmente. É uma peça que pede dedicação. O coração todo. Mas e o seu silêncio? Não dava opinião... Até pensei que sua família era contra. São todos religiosos e julgam o teatro como uma coisa mundana, do demônio...

    - Não, eles até apóiam. Não foi por isso. Eu fiquei calada, mas sou assim mesmo. Na minha. Topetuda.

    (E peituda, ele pensava, atento ao modelito.)

    - Ok. Vamos engavetar a peça. Vamos esquecer a grana que a gente poderia ganhar. Você até compraria um computador e embolsaria umas cinco mensalidades da facul... Vamos esquecer esse 2004 possível. O que será o seu 2004 agora?

    - Estudar, estudar. Faculdade. Cursinho de inglês. Tirar carteira de motorista.

    - Entendo. Eu já pensei nisso tudo. Um tempo atrás. Mas quero pensar em um projeto em conjunto. Você vai precisar de trabalho, daí precisarmos fazer a promoção de algum evento. Música, circo, teatro, exposição...

    Ela o observa com aqueles olhos claros e frios cortando até às entranhas. Ele não suporta e passeia o olhar pela sala. Estante, TV, relógio dentro de um quadro, um ramo de flores artificiais na parede, retratos de crianças num playground, estante, TV, relógio.

    - Eu preciso montar algo. Bem que eu tentei, mas... Meu sonho é montar uma empresa de produção cultural. Gerenciar celebridades. Mas ainda sou muito tímido, muito limitado. Mas tenho os contatos, conheço produtores, promotores, mídia e divulgação. Mas preciso ser mais do que pretensioso...

    Ela folheia letras traduzidas de canções do hit parade. Observa-o, vez ou outra. Ele tenta ser simpático.

    - Eu te entendo, Elen. Você é introspectiva, por mais que se esforce para parecer descontraída.(pausa) E os poemas? Leu?

    - Ah, não. Não tive tempo. Tanta coisa.

    Ele esforçava-se por ocultar a decepção. – Mas deixei poucos. E foi mês passado. Ah! Você não gosta de poesia!

    - Gosto. Gosto sim. Mas preciso estar numa boa, um clima legal, para ler. Estou lendo muito pouco. Tem uns dois livros que comecei e deixei de lado. Desânimo total...

    - Você precisa ler os poemas como se eu estivesse conversando com você. (pausa) Por que acha que eu escrevo?

    Ela, ainda folheando as traduções. – Para desabafar o que não pode expressar, dizer. Deixa no papel as mágoas.

    Ele, sorrindo. – Eu escrevi um poema assim... (pausa) E você, por que escreve? Se sente incompreendida?

    - Não. Eh, sim. Às vezes. Mas escrevo sobre o meu dia, para poder lembrar depois. As coisas que fiz, com quem conversei. Só isso. É que me percebo diferente...

    - Entendo. Nossos talentos nos deixam deslocados, afastados. Mas os artistas se compreendem. Mesmo que não confie a ninguém o que julga intimidades...

    - Não. Nada a esconder. Meu diário fica em cima da cômoda. Qualquer um...

    - Não fica acorrentado e debaixo do colchão? As outras meninas...

    - É íntimo, é coisa minha. E ninguém mexe.

    Antes que o diálogo decline, Elisa reaparece. Cabelos molhados. Mas logo retorna ao lavabo. HD retoma os fios.

    - Seu diário... (pensado alto) Mas, e agenda? Programa, por exemplo, o que vai fazer no dia vinte e oito de janeiro? Dez dias no futuro?

    - Não. Não me preocupo assim com o futuro. Eu até agendava, mas... Gosto de pensar no hoje.

    - No entanto, faz planos para o ano inteiro...

    Ambos se perturbam com a contradição. Silêncio.

    - E o “Diário de Bridge Jones”? Ela começou a escrever um relato íntimo e percebeu depois um caráter, digamos, literário na escrita. E foi um sucesso. Fizeram até filme. Quem sabe o seu diário...

    Surgindo do banheiro, Elisa passa no corredor. Elen percebe. Dá sinais de impaciência.

    Ele insiste. – gosta de comédia romântica? Você viu “Um Lugar chamado Notingham Hill”?

    Ela se levanta, até bruscamente. – Com licença.


    E vai ao encontro de Elisa, no quarto, onde ficam uma eternidade. Ele reclina-se no sofá e fecha os olhos. Esforça-se para não pensar.


                                                “My Heart is broke
                                                 But I have some glue”

                                            Meu coração está partido
                                            Mas tenho um pouco de cola



    Ecos de um Nirvana surgem lá no fundo da mente. Imagina-se diante do Crânio. “Nunca pensei que pudesse me enganar tanto!” E lembra-se até de Marx, que dizia que se o amor não desperta amor no outro, que “se de homem amando não se tornar homem amado” o amor é impotência, inútil tragédia.

    As amigas retornam. Obviamente que os perfumes chegam antes. E que perfumes! E como exageram! Mas não se arrumaram para ele! Não se enfeitaram para ele! “As jovens em flor vão se casar, mas não é com você, não adianta reclamar, não é assim um poema do Drummond?”, ele se dizia, mordendo os lábios. E diante dele uma outra Elen, outra totalmente. Nada de vestido comportado e modos de menina-de-família! E sim uma saia curta, pernas à mostra. (que pernas, meu Deus!) Camiseta curta e sensual (E que peitos, Deus meu!) Provocante. Onde a menina que entrou? De onde surgiu esta mulher?

    HD assim perplexo diante dos olhares de mofa.

    - Eu até acompanharia vocês ao shopping, mas tenho que encarar um compromisso... (Maldita agenda! Faltou dizer. É que faltou voz...)

    Ele diz isso pois sabe que elas JAMAIS vão esboçar qualquer convite, e que todo o estratagema já fora montado para que Elisa apresentasse certo tipo a (outrora) bem-comportada-menina-de-família Elen Lauria.

    Elas se despedem com risinhos vulgares. Ele se afasta.

    - Divirtam-se.




   Querida Elen,

    Janeiro já passou. Cinco meses desde que te conheci, em casa do amigo Wilson, numa conversa de variadas idéias, m pensamentos significativos, você entrou na minha estima.

    Gostei de teu jeito discreto. E mais: teu dinamismo. Onde encontraria uma pessoa assim, que estuda teatro, faz programa de rádio, lê filosofia?

    Foi um encanto, eu confesso. Deixei meu telefone, mas em vão. Casualmente nos encontramos no teatro – e você está com pressa... E passou-se outubro.

    Minha tristeza (e indignação) não suplantou a saudade. Liguei e te convidei para um evento cultural. Mas descobri que sua reserva, seu ar discreto, era desinteresse. Não poderia (nem saberia) despertar em você um afeto por mim.


    Não escolhemos a quem amamos, acontece. E você tão distante.

    Considero-te uma artista, e julgando tua sensibilidade, imaginei que poderia comunicar com meus poemas. Mas você gosta de poesia?

    Propus um projeto audacioso: uma adaptação de Othelo, de Shakespeare. Com poucos recursos, atores amadores, e ‘modernizando’ a peça.

    Mas descubro que você não se importa. Não opina, fica em silêncio.

    Em pleno janeiro e ainda tão estranhos um ao outro. Nem amizade nem nada. A tua amiga Elisa foi até mais gentil.

    Nem se importou em saber quem eu sou.

    Se você esquecesse, por um momento, o teu próprio umbigo, certamente ganharia um amigo.


                                                         De quem muito te estima


                                                                                              Hector
















(fim do cap2 da p3)


LdeM

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