domingo, 20 de março de 2011

continua o capítulo 2 de Flores no Asfalto


[...]

 
Importante diálogo metafísico e teológico entre HD e Crânio



    Preferiram assistir o pôr-do-sol na varanda. Wilson, ou o Crânio, como era conhecido, jogou uma coberta sobre as pernas, e deixou-se recostar na cadeira de rodas. Abotoando a camisa de flanela, HD sentou-se sob as cascatas de samambaias.

    - O problema então é o método? Está até parecendo o Descartes...

    - É verdade. Mas eu nunca consigo desembaraçar o novelo.

    - Livre-pensadores livrepensando...

    A mãe do Crânio surgiu, como boa anfitriã, a oferecer café. Ambos aceitaram. O poente trazia um aconchego e uma melancolia. O sentimento de finitude (do dia e da vida) precisava ser expulso pelas palavras. Por isso, HD continuou.

    - Já disseram mesmo que não sou filósofo apenas por falta de método e diploma.

    Os olhos do Crânio sorriram detrás dos óculos, mas ele nada disse. HD sentiu-se encorajado. Percebia-se a qualidade do interlocutor.

    - Precisamos considerar a coerência das abordagens, não as crenças pessoais ou coletivas. A crença é emocional a priori, mas o método é dado a posteriori. – como o Crânio concordasse, em silêncio, HD prosseguiu. – A resposta depende da pergunta. Isto é, perspectivas limitam a abrangência da resposta. E igualmente importante é considerar a Coerência enquanto consenso de argumentos contrários, numa certa dialética. Podem ser aceitas a réplica e a tréplica.

    - O que impede o confronto de crenças.

    - Concordo. Caso contrário, impossibilita o diálogo.

    Esfregava as mãos, pensativo, agora que o café esquentava a garganta. Podiam encarar um sol que agora não oferecia mais ameaças. - Uma primeira pergunta, Wilson, a saber, a possibilidade de almas, espíritos, sem a existência de Deus, considerando-se Deus enquanto Inteligência Suprema. Da condição dada, levanta-se duas perspectivas. A de Deus Eterno (é, foi, será) ou Deus enquanto Evolução (Foi, passado remoto, e Será, em futuro esperado).

    - Mas e as relações da mente humana com a Inteligência? Deixe-me explicar. Trata-se de Mente Humana além das circunstâncias (há na mente humana um reflexo da Inteligência Suprema, antes da existência do corpo) ou o Ser Humano é o resultado de circunstancias de nascimento e formação cultural, onde o meio social nos determina?

    - Faz sentido. Mas para evitarmos um pensar-viciado, vamos pensar diferente do ensinado. Por exemplo, para essa questão procurar não pensar de forma cristã.

    Estando o Crânio de pleno acordo, HD entrelaçou os dedos e despejou. – Possibilidade da existência da alma dependente da existência de Deus. Deus é a Grande Alma, que gerou tais almas. Alma só pode provir de Alma.

    - Como pode Deus-Alma Perfeita criar almas imperfeitas? Deus perfeito criar um mundo imperfeito?

    - Podemos enumerar cosmovisões. O Mundo foi criado perfeito e foi deturpado. O Mundo foi criado imperfeito devido a existência de duas forças (Bem e Mal) em combate. Deus perfeito se torna imperfeito ao fragmentar-se em numerosas almas (espíritos enquanto força ativa) para adquirir experiência. Cada um de nós é uma fagulha do fogo divino. Tudo é Deus. Há uma transmigração das almas do mais simples vegetal até o ser humano. Tudo compartilha o fogo divino. O Perecer é o criar de nova vida. Vivemos num mundo imperfeito, mas é o melhor possível.

    - Parece-me que em todas as cosmovisões, a perfeição é identificada com a Unidade.

    - O multiculturalismo não estava na moda.

    Sorrisos. Enquanto isso, o sol morria.

    - Evitemos digressões. A outra possibilidade. Almas existentes independentes de uma Consciência Universal dotada de Vontade. Mas é possível um Deus perfeito enquanto futuro, isto é, não é Deus quem forma as almas, mas as almas, unidas, o formarão. Igual na parábola dos trinta pássaros que buscam Almotássim, e não sabem que trata-se delas mesmas o que tanto procuram.

    - E Deus é a União de todas as almas, assim não havendo separação entre Criação e Criador, logo Deus não transgride as próprias Leis, Não que Deus seja limitado, mas Ele É O QUE É.

    - Não há milagre. Anotemos. Lembro de um sofisma. Deus pode tudo. Pode criar uma pedra que Ele não pode carregar? E Ele pode carregar esta pedra?

    - Labiríntico. Mas já parou para pensar que o problema do Deus-Um-com-todas-as-coisas é a impossibilidade de superação, de Transcendência, pois Deus é a Imanência Absoluta.

    - Um Criador não distinto da Criação.

    Eis a noite. Crânio desliza até o interruptor. A luz deita-se sobre as samambaias, prolongadas em sombras esguias. HD insiste. - Outra perspectiva. O conceito Deus só existe na Mente Humana enquanto superação das nossas deficiências. Deus enquanto projeção dos Anseios. Deus é Imortal, pois eu não posso ser imortal.

    - Deus é tudo o que não somos.

    - Complexo e tanto, não? – acariciando as folhas caídas sobre o alpendre, HD procura um roteiro no mapa mental. – Mas se eu disser “Anseio de Perfeição”, de onde veio a idéia de Perfeição, isso de querer superar-se? Somos (naturalmente) dados à Transcendência?

    - Se sim, há contradição. Pois, segundo a perspectiva, a Mente é construída socialmente, logo nada antes (exceto o aparelho neuro-sensorial). Então alterando-se a questão: a idéia de Perfeição enquanto uma predisposição que será estimulada, ou não, pelas circunstâncias?

- Faz sentido. Se não, é coerente, pois ainda o que chamamos de Transcendência é ainda condicionada, determinada, pelas circunstâncias. Somos o que aprendemos. “O homem é aquilo que come.” E até o mais original entre nós é ainda produto do meio em que se formou.

    - É mesmo um labirinto. – gracejou o Crânio, algo sério – Quais as possibilidades do Cristo bíblico?

    - A segunda pergunta. Para analisa-la é preciso avaliar os testemunhos do fato. A Bíblia ou os tantos manuscritos encontrados em cavernas na Palestina. Quanto a tais escritos a mesma avaliação: trata-se de inspiração divina, ou é literatura, ficção local? Se é inspirada, é Verdade, logo Transcendência, e se é ficção é construto temporal, a partir de lendas e fábulas.

    - Literatura é determinada socialmente, enquanto produto histórico. Então as abordagens se articulam de acordo com A, além das circunstancias, e com B, determinado pelas circunstancias.

    - Crânio, devo reconhecer que você diagramou muito bem! Assim, se consideramos a abordagem B, temos a leitura enquanto metáfora. As imagens descritas para chamarem a atenção. Pois se houve milagre, por exemplo, caminha sobre as águas, foi milagre para a mente humana, não para Deus. Voltamos a perguntar se há milagre. Existem tais alterações das leis divinas, leis físicas? Continuemos. Todo mito é reportagem. Ocorreu algum evento que originou a narrativa. Um rebelde político contra o Poderio Romano. Figura carismática que movimentou as massas. Tal figura foi revestida de atributos divinos ao longo de narrativas sucessivas e posteriores, num verdadeiro processo de canonização, enquanto o aspecto de luta política se perdia.

    - A Hierarquia monopolizou o Saber e delegou a Felicidade ao Outro Mundo, incentivando nos fiéis a Esperança.

    - Meus parabéns pelo realce das maiúsculas. Mas ainda não terminei. Hipótese do Reformador Religioso. Fortalecido após a descoberta dos papiros conservados lá nas cavernas junto ao Mar Morto. Isso ainda em fins dos anos 40. É possível uma ligação entre o reformador e os essênios, verdadeiros puritanos (desculpe-me o anacronismo), e comprovadamente excluídos do judaísmo hegemônico, tal qual os hereges durante o poderio católico-romano.

    - O reformador seria tal um Lutero...

    - Outro anacronismo, mas vale. Agora uma mescla de perspectivas, hipóteses e teorias. O Reformador enquanto processo. Houve o indivíduo e seu papel histórico. Talvez o filho de rei que foi ocultado meio a humildes campônios. Houve uma intervenção dos poderes, que se sentiram ameaçados. Houve o sacrifício, a condenação. Relatos orais posteriormente coletados. A versão dos evangelistas lida por Paulo de Tarso, aumentada pelos Padres da Igreja, e vendida como Verdade até os nossos dias.

    - Qualquer semelhança com Antônio Conselheiro e Canudos é mera coincidência?

    - A História se repete enquanto farsa?

    - Espártaco. Os Gracus. Babeuf. Vendéia. Contestado.

    - Você devia estudar História, Wilson. Deixaria seus professores em pânico. Mas talvez você devesse ler Gibbons, aquele clássico sobre o Imperium Romanum.

    - O problema é que lemos tradução. Melhor seria ler latim, hebraico. Não creio que tradutores sejam confiáveis.

    - Toda literatura é produto da época. Afinal, aguardavam o Messias. Era o zeitgeist, o ‘espírito da época’. Ou diríamos, a Mentalidade.

    - Entendo. O Messias. Mas quem – o que – estamos esperando hoje em dia?

    Não houve resposta.




    Quando Stevam Lucena folheou as obras, os manuscritos e trechos datilografados (naquelas velhas Remington, que nem se via mais) do finado poeta TH, tudo diante dos olhos de Alfonso, seu irmão, este não pôde acreditar no que via.

    - Tudo inédito? Tem certeza?

    Alfonso é daqueles que adoram novidades, e esta era valiosa. Mas e a família do falecido?

    - Família? Agora querem colher a prata que se formou do acumular das lágrimas?

    - Stevam, você está falando igual ao próprio TH!

    E estava mesmo. Stevam conseguia perceber que através da auto-outorgada missão de divulgar as obras destinadas ao mofo, ele estava dando um novo sentido a sua existência? Notaria isso?

    O caso é que a Sociedade Literária da cidade gostou da iniciativa. A novidade chegou à Biblioteca, onde JB mostrou vívido interesse, ms sobrou para HD resolver o que a Entidade  municipal poderia fazer. Poderiam ceder a sala de multimeios, o auditório. HD tanto opinou, que foi indicado como responsável pela organização.

    É que HD gosta da movimentação, e esta foi a caráter. Como atrair público para o lançamento de autor obscuro? E Stevam não tinha oratória para ‘segurar’ o evento.

    Stevam, sim, aquele jovem, ali junto a entrada, a olhar tímido até para a própria imagem refletida na porta de vidro. No barzinho, onde derramava-se canções de Zeca Baleiro, o irmão Alfonso sempre fazendo contatos. Alfonso, que HD conhecera recentemente, num curso da Prefeitura, sobre projetos para leis de incentivo à cultura.

    Estava empolgado, aquele jovem pálido. Alfonso (disso HD se lembrava) revelou algo dos problemas do irmão, com seus fracassos, drogas, e que o poeta TH era um velho amigo. O TH que igualmente não teve vida tranqüila, apesar do nível social da família. O poeta se matou na noite de Ano Novo.

    Mas nada disso constaria nas biografias. E a pensar bem, ninguém ali era de qualquer renome. HD, um funcionário. Alfonso, um promoter em início de carreira. Stevam, um ressurgido dentre os mortos. TH, um dos mortos.

    Mas um imagem grudenta. – Ó Alf, diga-lá! Você já foi à alguma recepção do Automóvel Clube? E com o seu irmão?




    Duas semanas sem as visitas ao genioso Crânio, e sem interlocutores interessantes, HD nota a ausência do jovem amante da Filosofia, que passava as suas tardes em companhia dos Pensadores. E bons interlocutores são raros.

    Da última visita HD comentou suas leituras metafísicas, por exemplo, aquele volume de Teosofia, da Madame Blavatsky, traduzido por ninguém menos que Fernando Pessoa, o que não causa espanto ao erudito Crânio, às voltas com textos sagrados hindus. E claro que Crânio sabe que a tal Madame é uma heroína russa que conseguiu acesso a certos segredos tibetanos, “Não, nada referente ao Dalai Lama, por favor. O Dalai já é pop!”

    Aquela manhã, a Biblioteca fechada. Aliás toda a região, comércio, colégios e escritórios, devido a queda da rede elétrica. Turbinas continuam a girar, geradores não param de gerar, mas a energia não vem aqui chegar! Qualquer semelhança com o monumental blackout de New York é mera coincidência? Ou trata-se de outra crise energética, outro ameaçador “apagão”? a fragilidade das grandes cidades é espantosa! É preciso concordar com o saudoso professor de sociologia que se espantava a cada manhã em ver o mundo ainda ‘funcionando’. E certamente não porque ele lera o Apocalipse (ou “Apocalípticos e Integrados”, do Eco)

    Você sai de casa. O comércio está fechado. As luzes apagadas. Os semáforos desligados. O brilho das vitrinas totalmente ausente. As escadas rolantes paradas. Os elevadores, idem. Os computadores desligados. A torradeira, idem. E por aí vai. Sua imaginação é desvairada demais. A Idade Média de volta após o cataclismo do setor energético. Somente a imaginação não se apagou.

    Pelo menos desta vez a civilização não acabou. Assim HD pode reclinar-se em sua confortável cadeira, após o almoço, e ler as tragédias do dia anterior. Notícias internacionais, pelo menos estas, já que ninguém sabe informar o que ocorreu na rede elétrica da região. Estamos preocupados com atentados a bomba lá no Iraque (e atentado contra a ONU!) e deixem-me ler.

    - Emprestado? Logo hoje?

    Um rapaz mostra-se visivelmente decepcionado diante da Bibliotecária (que não é a nossa conhecida Vera, agora em férias até a primavera) por não encontrar o livro desejado. Logo surge outro jovem interessado em material didático sobre artes cênicas. Lista de autores. Nelson Rodrigues. Dias Gomes. Ariano Suassuna. O rapaz comenta a ausência da outra atendente, que julga muito gentil, não que a senhora não seja, não é isso, e a Bibliotecária menciona as férias da colega, e o outro lamenta, mas pelo menos ela descansa, é que ela sempre me indica filmes.

    Pena que HD tem que cumprir seu horário ali até dezessete horas, pois está morrendo de tédio. As mesmas bibliotecárias com suas intrigas, e frases feitas, mascando as previsões do horóscopo, e os mil afazeres que se resumem a nada, ler, cortar, colar, ler..., e os mesmos bocejos intercalados por sorrisos de atenção.

    Depois descera ao Parque, ruminando mentalmente velhos diálogos e presentes monólogos, “O que te causa mais horror: que tudo seja um acaso, ou que tudo seja planejado, por Seres Supremos, por uma Inteligência Suprema? Então? O que mais te apavora: que após a morte nada exista, ou que encontre lá toda uma nova realidade, seja paraíso ou inferno? Não é tudo um imenso absurdo? O homem é bom ou é mau? Há coincidência ou é tudo Providência?”

    Mas as árvores não podem responder, nem os seres empoleirados nas árvores, e neste banco não se senta apenas um funcionário público entediado,mas um homem frustrado. Não que HD aceite isso facilmente. Para quê pensar nestas coisas? Ele deveria é estar estudando para o concurso do Patrimônio Público e elaborar projetos de tombamentos de casarões seculares para transformar todos em centros culturais. Havia outros metafísicos no mundo, eles que se esforçassem! Se virem, seus maníacos!

    No entanto, um simples fragmento de diálogo rouba-lhe a atenção. Aquela tarde mesma, ali na Biblioteca. Na mesa ao lado, um jovem ao estilo punk discute, até eufórico, com um outro jovem, possivelmente de formação cristã. “Deus nesse mundo podre?”, e o outro busca argumentos bíblicos, mas é interrompido, “Ainda que exista, é de todo inútil!”, e o outro emudece. Que argumentos teria? Ali estão os jornais. Guerra, fome, corrupção. Ah, são as profecias! Pobre crença. Empolgado, o anarquista não é mais racional, “Não existe não, cara!” e tenta se agarrar num argumento, por exemplo a biografia de Gandhi, “Homem, líder, sem recorrer a Deus”, e o cristão não pensa assim, “Havia a fé, sim! Sem fé nada é possível.” E eu tenho fé que daqui a pouco serão dezessete horas!

    Mas HD percebe crer, talvez não na esperança ou na Vida Eterna, mas na verdade. Que há algo ocultado atrás de véus e que ele precisa saber o que é. “Ora, que mistério é tudo isso! E eu não o conhecerei?”

    É assim que HD chega a casa de Wilson, o Crânio, para uma breve visita, mas vez ou outra prolongada até o jantar.

    - Você acredita em coincidência?

    Pego de surpresa, o Crânio desconversa, envolve a mãe no enredo, e ela fala em Providência, Destino, Profecia, e o Crânio se julga salvo. Mas HD volta às questões sobre os ditos encontros casuais. A anfitriã aborda os sonhos proféticos, Você sonha e realmente acontece. Como bom leitor de Freud, HD precisa concordar que alguns sonhos são “pra lá de surreais”, e que Jung tem toda uma outra linha de interpretação, com arquétipos, inconsciente coletivo, até a abordagem mística de vivências passadas, Mas aí a coisa se complica...!

    O Crânio oferece café, mas HD prontamente recusa, “Eu nervoso desse jeito e você aí a oferecer café?” E passam a sala de estar, onde tranqüilamente podem conversar sobre literatura. Iso quando HD não se dispõe a destilar seus rancores.

    - Olha se é coincidência. Altas horas, o telefone toca, eu acordo num sobressalto, atendo. Desligam.  Eu sonolento deixo o telefone meio fora do gancho. De manhã, logo percebo e vou me sentir culpado. O que estraga o meu dia! Só porque uma alma penada liga noite adentro!

    Folheando Baudelaire, HD julga encontrar traços suspeitos de reacionarismo. Até porque não há “imparcialidade”, que o autor reflete a sua “consciência de classe”, que comunismo é mesmo coisa de pobre, que se ele, Hector, fosse rico queria mais é que pobre sumisse. Agora, imagine, você, um tipo tal o Gandhi, advogado com carreira e carisma, e a preocupar-se com os miseráveis, andando em trapos, preocupado com um punhado de sal.

    - Trouxa! Os ricos dirão!

    - E não é? Eles pensam assim. Olha esse aí: que idiota! Bom que sobra mais pra nós!

    Coincidência ou não, soa a campainha. A mãe atende e recebe a visita. Uma jovem, amiga da família. Sorrisos e risinhos. A mãe é a anfitriã pronta a guiar a moça através daquele reino rumo a penumbra da cozinha. E HD agora tem dificuldade em reatar a conversa. O brilho no olhar da visitante?

    O Crânio ainda em comentários sobre a guerra na Mesopotâmia, e de súbito estão em Império Otomano, e num salto atravessam a Segunda Guerra Mundial, a estrada de Berlim a Bagdá. HD não pretende se demorar, mas o interlocutor está à disposição. O interesse alemão em diminuir a influencia britânica no Oriente Médio. A diplomacia de duas caras. O desmembramento após a Primeira Guerra. Todos querem ser amigos dos árabes.

    E HD só sorrindo, acusando o Crânio de usar uma estratégia para segura-lo ali. – Ah, você sabe que o estudo das guerras me interessa muito.

    E logo chega a hora do jantar, anunciada pelo peixe na chapa. O que muito agrada ao nosso HD, não um fã ardoroso de carne vermelha, talvez por velha influência de Darío Sabine, militante vegetariano. Sentado à mesa, HD é apresentado à visitante. Não aparenta termais de vinte anos, com olhos claros e curiosos, voz calma e pausada, melodiosa e treinada. Apresenta-se como Elen Lauria e revela estudar artes cênicas.

    O Crânio apresenta seu amigo Hector Dias como um apaixonado por literatura e filosofia e que Elen não se sinta tímida em expor dúvidas ou pensamentos.

    - E eu até hoje não terminei de ler “O Mundo de Sofia”...

    - O do norueguês Jostein Gaarder? Livro muito procurado. Uma boa introdução ao pensar, aos pensadores...

    - Volume e tanto. Calhamaço. E quem disse que eu tenho tempo pra ler? Ora no teatro, ora no cursinho. E sábado ainda vou fazer um programa na rádio...

    E HD reconhece aquela voz realmente! Crepúsculos de sábado, em melancolias, ouvindo melodias de um rock rural, ou pop inglês. E diante de seus olhos (incrédulos!) a materialização da dona daquela voz, rindo-se de bandas ditas alternativas e anunciando as novas queridinhas das paradas de sucesso.

    - O mundo é mesmo pequeno. Existem coincidências? – e HD lança uma olhadela ao pacato Crânio, ocupado com o omelete e o molho inglês.

    - Como é? – ela quer saber. Mas HD explica sucintamente que pode tranqüilamente emprestar o seu livro para a curiosa locutora. Ela agradece com um sorriso-colgate e reconhece que já deveria ter lido o tal livro.

    -Acho que perdi muito tempo na minha vida.

    Uma mocinha de dezoito anos falando tão profundamente assim já é o suficiente para atrair a atenção de HD, que promete solenemente trazer o livro na próxima visita.




    As escadarias da Matriz são o cartão-postal do nosso centro histórico, desde antes dos tempos do Curral. Nessas escadarias namoramos, conhecemos futuras esposas, protestamos e freqüentamos quermesses e peças litúrgicas para a edificação da alma e arrecadação de rendas.

    Talvez muito se diga sobre as tais escadarias, um excesso que não podemos evitar, coisa emocional mesmo, certamente por um vazio do que dizer. Mas a referência é necessária.

    A nossa Biblioteca, modesta, situa-se aos pés das escadarias que se derramam para a rua lateral, aquela dos edifícios que destoam de toda a paisagem colonial, e lá, meio ao cheiro de livro velho, onde adentro, junto com o Stevam, a folhear um volume do professor e poeta local Carlos Antônio, reencontro, em figura típica de leitor, o recém-chegado HD.

    Na verdade, encontrei o cara antes do almoço, na oficina de Produção Cultural, que nosso centro de cultura promovia, mas sem dar muita atenção. Apresenta-se correto e discreto, se levando muito à sério. Hector Dias, estudou História, é escritor, quer trabalhar com promoção cultural, natural do Barreiro, conhece a realidade da periferia, é arquivista na Biblioteca Municipal, e outros detalhes, que não digo esquecidos, pois nem ouvi.

    Não que o Sr. Hector seja desprezível, mas por um excesso de mornidão e confiança de funcionário público, e mesmo concordando-se com o Drummond que a literatura nacional é feito de funcionários públicos, mas não vejo nada literário irradiar dessa figura. Talvez já esteja contaminado pela burocracia.

    Foi Stevam quem empolgou com o tal HD. Afinal, precisamos de alguém que nos dê uma mãozinha para lançar o livro do TH. E o homem conhece o meio literário. Olhei para Stevam com toda a paciência do hemisfério ocidental, E eu não conheço?

    - Vejo que não perde tempo.

HD jogou um olhar de náufrago, levantando as órbitas de um mergulho num denso volume, que posteriormente descubro ser uma biografia (autorizada?) de Joseph Stálin.

    Apresentei um exemplar do recente livro de poemas do nosso caríssimo Carlos Antônio, ao qual dedicou dois minutos de sua preciosa atenção e poupou adjetivos ao qualifica-lo sucintamente, “Bom!”, e apontar “certa influência de Manoel de Barros”, e prometeu escrever um ensaio crítico sobre a obra, visto perceber toda a minha boa-vontade com a mesma. Estranhei o fato de ele querer me agradar.

    Depois o convite para o almoço. Agradecemos mui cordialmente e gentilmente recusamos. Pensou um momento e, olhando para o Stevam, disse ter encontrado na manhã anterior, ali mesmo, “um outro Stevam”. Corrigimos prontamente, quer dizer, “o-outro-Stevam”. Sim, pode ser, se o conhecem. Moreno, alto, olhar calmo, ms sem ocultar curiosidade, fala pausada, mas de súbito empolgada, mostra-se grande apreciador de Friedrich Nietzsche.

    Sim, é ele mesmo, o-outro-Stevam. E até imagino a cena. HD lendo atentamente a biografia do Stálin (no polêmico trecho da invasão nazista em 22 de junho de 1941, se o Grande Pai sabia ou não) e interrompido (ainda que polidamente) por um jovem moreno, alto, olhar calo, etc, a indagar (como o-outro-Stevam sempre faz) se “você estuda filosofia?”, pois seu projeto de vida é estudar filosofia (quiçá algum dia ele consiga!). E HD respondendo que “academicamente não, mas continuo folheando volumes de Marx e Sartre” o que, de imediato, rompe a timidez de outro-Stevam que se auto-convida para sentar (se não estou incomodando) dispostos a discutir o niilismo em Nietzsche até as últimas conseqüências (até a Biblioteca fechar).

    Com certeza, a gente reencontra o Hector, o HD, no lanchinho da tarde, e talvez o convite de Stevam o interesse. Por enquanto é deixar o literato em companhia de expoente autor local. Lembrei-me depois que aquele exemplar do Carlos Antônio era autografado.



    Cuidadosamente mapeou os trajetos da mocinha, e sabia onde exatamente cada localização, contudo nunca a encontrava!

    Exceto uma vez, quando HD foi ao Centro Cultural e Elen Lauria acabava de sair da aula de teatro, com as amigas, e concedeu-lhe um momento de atenção, enquanto ele, na escadaria, anotava um trecho de poema, que insistia em ruminar mente adentro. Olá, como vai você? Muito bem, e a mocinha?, Estamos aí, Ensaiando a nova peça?, Oh, sim, quilômetros de textos para decorar! Nisso, as amigas, já ao pé da escada, não demoram em convocar a mocinha com visíveis sinais de impaciência. Ela se despede com monossílabos e sorrisos. E desaparece.

    Ou no Centro Cultural, ou na casa do Crânio, ou na Rádio Comunitária. E os esperados encontros não ocorrem. Não que exatamente idealize conversas e gestos, mas está sendo devorado pela curiosidade. Quem é essa Elen Lauria?

    Talvez nunca viesse a saber, se não soubesse por meios indiretos de certa festa em casa da jovem atriz, e sutilmente se apoderasse do endereço da mesma em elaborado telefonema ao irmão do Crânio.

    É que após rondar o Centro Cultural e visitar a Rádio Comunitária pelo menos duas vezes, sem qualquer sucesso estratégico, e nunca encontrando a moça na casa do Crânio, ele, o nosso HD, resolveu ir a tal festa, sem convite! Invasão de privacidade!


    Meio as tias e primas, ela atende a campainha. De vestido longo e descalça. Cabelos presos junto a nuca, transpassados por varetas nipônicas. Infinda surpresa ao depara-se com sua figura. Mas vãos entrar! Muito educada. Apresentações e tantos vultos femininos. E ela não pode se dividir em tantas atenções, pronta a auxiliar a mãe nos doces e confetes ou em guardar os presentes da irmã, sim, pois trata-se da festa de aniversário da irmã caçula, menininha mui curiosa que quer de qualquer jeito saber quem é esse fulano!

    Obviamente ele nada pode dizer, ali deslocado, e nada pode fazer além de observar cada gesto da atriz, meio aos convidados, toda sorrisos, a trocar gracejos com as primas, bailando com sandálias transparentes e unhas brilhantes. De súbito, surge meio ao turbilhão de faces e saias, a esperada face e seu sorriso oferecendo uma bebida. O irmão mostra-se amistoso, mostra desenhos que esboça em telas. Os primos estão à distancia. Há um videogame sedutor ligado lá no quarto.


    Uma semana depois, HD telefonou, em trasbordante futilidade, mas interessado no que borbulhava naquela cabeça. Ela apreciava versos? Ele enviaria versos. Ela lia calhamaços de filosofia? Ele emprestou dois títulos de sua Biblioteca. Ela dedicava-se a estudos de língua inglesa? Ele não hesitou em emprestar gramática e dicionário. Ela é fanática por música estrangeira? Ele oferecia folhas e mais folhas com traduções de bandas rock ianque e pop inglês. E ela o que fazia?

    Ao telefonema, Elen Lauria era movida a argumentações, e todas partindo Dele. Era incapaz de iniciar um assunto e de alimentá-lo, ainda que fosse teatro (seu sonho, sua dedicação) ou música (sua diversão). Pausas longas e silêncios opressivos marcavam tais insólitos telefonemas. Mas HD tinha diante de si a chave que abre todas as portas e fortalezas, a saber, a paciência.

    - Mas, diga-me, Elen, o que achou de “O Mundo de Sofia”?

    - Sei lá. Parece literatura infantil, mas pelo menos eu descobri que existe vida inteligente no mundo das fábulas...

    Mas nunca se animava a terminar a leitura do referido. E assim não chegava a uma conclusão. E estava mais preocupada em estudar para o vestibular das Artes Cênicas, que era amedrontador, segundo comentários de antigas vítimas.

    - Elisa tentou no ano passado e não passou.

    Mas quem era Elisa? HD não tardaria a descobrir.


    Ele e o convite para o lançamento do livro do obscuro poeta TH, mas ela alegando já ter prometido sair com a Elisa. Assim sempre. Não era possível pois havia Elisa. Ou não poderei hoje, pois há um compromisso com Elisa. Faltava revelar que tinha um affair com a Elisa, trata-se da melhor amiga e dessas coisas a gene entende e até perdoa.

    Mas havia também o melhor amigo, Jaime. Que vez ou outra, ele, HD, ouvia semelhante nome e não conseguia chegar a um acordo consigo em como deveria ser semelhante figura. Mas não adiantemos.




    Levantou-se com a aurora, jogou a mochila nas costas e saiu. Perambulando pelas ruas estreitas da Lagoinha, suas ladeiras e casas seculares, a desmoronarem. Viu lá de cima o mármore dos túmulos, as lápides negras, as lajes brancas, e a capela no campo de morte.

    Descendo e ultrapassando os pés vagarosos rumo aos velórios, chega diante da inscrição em latim, MORITVRI MORTIS. Cumprimenta o porteiro e indaga sobre a inscrição.


    “Dos mortais para os mortos”, aqueles que vão morrer oferecem esta morada aos que já morreram. – assim esclarece o homem, encurvado sob o peso do tempo, a saber-se futuro habitante da macabra morada.

    Os seguranças da portaria ressaltam a proibição quanto o uso de máquinas fotográficas. O cemitério não é museu, convenhamos. Ainda que seja atração turística. E nem mesmo desenhos, e muito menos compilações de jazigos e nomes. E nada de recolher souvenirs. Pode comprometer o senhor, entenda.

    Adentra a sinistra morada, sendo envolto pelas imagens da dor, esculturas feitas de lágrimas e fé. Lápides negras tal ébano, lustrosas ou cobertas de flores secas, ou lajes alvacentas, ou amareladas por fungos. Algumas trincadas pelo correr do tempo, pela invasão de raízes vorazes. Árvores mirradas ali estendem sombras exangues sobre as criptas.

    Datas sobre as lajes, décadas passadas, testemunhas de gerações naufragadas, lembranças gravadas na pedra. Este aqui jurista, morto aos 65 anos, quantos filhos?, cinco netos?, 1890-1955, seguem-se citações bíblicas, “E Deus confortará...”.Sob um anjo infante uma triste inscrição, datas próximas, 27-08--05-09-1962. Uma vida mal desabrochou e já é uma chance perdida! Respirando uma semana entre os vivos, tão precocemente arrebatada! Um anjinho.

    Enormes monumentos da lembrança e da morte, os mausoléus, as criptas, os jazigos perpétuos das tradicionais famílias. Contraste com os campos verdejantes marcados por plaquinhas e algarismos negros e desbotados, na anônima morte no cemitério-parque. Não uma necrópole, mas um bosque onde floresce o absurdo.

    Mas aqui os mortos ilustres! Os fundadores! Os patriarcas! Descansam na companhia gloriosa da justiça, da Sabedoria, da Tristeza. Sobre eles, os Grandes Homens, o esplendor das Leis, ou o Bom Pastor, a pesarem sobre os seus ossos mofados.

    Até na decadência um elitismo, aqui um bairro nobre, aristocratas do Estado, junto aos muros, décadas de 60, 70, os bons pais de família, as reservadas mães austeras, as vovós sempre bem penteadas, os obedientes filhos do destino. Mármores em destaque meio a tripulação das eras. Que Deus tenha misericórdia!


                                                  Sônia Regina Dalmas

                                                  27.12.1980 – 25.09.1999


    Ao lado um casal de anjos. Suas asas se confundem. Uma jovem de mármore lamenta reclinada sobre o túmulo. Na pedra as manchas deixadas pela chuva e pelo sol lembram lágrimas que escorrem. Um Cristo Bom Pastor apascenta suas ovelhas sob as colunas dóricas.

    O tempo parou, mas o vento carrega folhas secas.

    Sônia A Rainha das Almas. Insônia das Almas.

    Sob as cruzes os vermes traçam esguias espirais tecidas entre as mortalhas das gerações.

    Quando saiu, pela mesma portaria, ninguém o incomodou.




continua...

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