sábado, 19 de fevereiro de 2011

mais trecho do Capítulo 1...

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    Outro evenement no bar do Santa Efigênia. Quem estava à mesa? TH, com elegância, e também Victor, com uma amiga, e Erik e Stevam. Somente TH não bebia – nem água mineral.

    Surge uma amiguinha do Erik (uma que todo mundo conhece...) e joga um olhar de perdição pra cima do TH, que continua num “papo-cabeça” sobre máscaras sociais, representações de gestos e falas, enquanto “expresso de egos enlatados” e “massificação das emoções inferiorizando a primazia da consciência, ou a doença da consciência, como podemos ler num Dostoievski” e outras neuras. E a amiga do Erik toda acesa pra cima do erudito vulto noturno. E ela vai insinuando um lado pessoal, quais os autores que ele aprecia e tal. E aos poucos a mesa se esvazia. Cada um inventa uma desculpa. Erik vai buscar mais cerveja. Victor vai ao banheiro. Pretendem deixar o casal à sós? Ms TH não muda o tom. O que ela gosta em literatura. Se já leu Sartre. O que pensa dos “sistemas desumanizadores alienantes”. Ela vai deixando o cara cair num monólogo, coisa fácil para o nosso TH-Hamlet! Vai se fascinando pelo desconhecido!

    Por fim, até o Stevam se levanta. Observa, junto ao Erik que serve a cerveja. Estranho casal, estranho jogo: nada de erotismo, apenas aquele monólogo – “words, words, words”.

    Por fim, a mocinha até desiste. TH se aproxima do grupinho, no limiar da calçada. Ali um Victor com olhar sorridente para o Erik, que sorri para o Stevam, que olha o vulto adiposo do Elias, que acaba de chegar. E TH no velho estilo “estou alheio a tudo isso”. “Então, TH, não convenceu a fulana?”, a ironia do Victor. Já o Erik revela que com lê foi diferente: não deixa passar as fulanas. Que aquela mesma... TH não se interessa, enquanto os demais observam as curvas femininas que se afastam sob a luz do poste.

    Não demorou alguém insinuar sintomas agudos de “boiolice” na frieza do poeta. Algum colega do Victor, na certa. Os representantes-mor do “lixo mental” da metrópole. E TH não silenciou. “Mas, diga-me, qual o problema com os, como você diz, ‘boiolas’?” Assim mesmo: todo gentil, politicamente correto. Aristocrata. O “lixo mental”, o colega do Victor, soltou um “O quê?”, olhando os demais. O Victor foi mais direto: “Ele quer saber por que os gays te incomodam tanto.”, e o rapazote: “Ah, cara! De gay eu quero distância!” E o TH, no mesmo tom gentil: “Digamos que o problema é se o ‘gay’ te paquerar.”, “Dá nojo! Meu tesão é por mulher, cara!” E o TH ainda mais gentil: “Ah, claro. E quem for diferente é nojento?”, e o outro se engasgou! TH agora num tom professoral: “É assim mesmo. Desde criança todo mundo incentivando. A namoradinha! Vai brincar com a filha do vizinho, meu filho! Você tem que ser o ‘pegador’ das garotinhas! Você tem que ‘comer’ suas priminhas!” E o colega do Victor ali só de espreita. E TH agora gentilíssimo: “E assim deve ser: todo homem com sua mulher.”

    O colega do Victor vertia todo o ódio no olhar, e soltava: “Eu sou homem! E homem gosta é de mulher!” E TH sutilíssimo: “Por que? Por prazer? Para reproduzir a espécie? Você dá livre vazão ao desejo? O que te impede de ter prazer com um homem?” E o rapazote era um ódio só! E o TH, sem pausas, “Você nem experimentou. Fica antes pregando conclusões. O prazer é o toque do outro, o corpo do outro...” Nisso Victor tece sussurros, junto a Erik e Stevam, “Só espero que ele não entre naquela viagem de alma feminina em corpo de homem! Senão sou obrigado a dizer que a minha alma feminina é lésbica!” Os outros riram, Stevam não.


    A polêmica poderia continuar se o colega do Victor não perdesse a paciência com a atitude deveras professoral do TH, que rebaixava o rapazote a ‘aluno’ e ‘neófito’. Assim um padre condescendente com um pupilo confuso. O rapaz explodiu, por fim, que o TH é um louco, um boiola louco, algo assim.

    E TH perdeu a fleuma? Nem um pouco. “Dizer que o louco sou eu, sem nem mesmo me conhecer, é uma forma de proteger a sua auto-estima, para considerar que nada altera na minha existência. Nós que achamos que modificamos a vida dos outros, e somos por todos reconhecidos, etc. para mim você nada significa. Um momento! Você vai dizer que é importante para si mesmo. Você e todo o seu vazio, cuidadosamente ocultado de você mesmo. Ou vai dizer que é estudante, ou pai de família, ou profissional corretíssimo, mas eu direi que está tão-somente cumprindo o seu papel no roteiro. Seus deveres sociais, seus instintos camuflados. Arrumar mulher, procriar, cuidar da prole, tirar um diploma, ascender na carreira, construir um casa para a família, e outras providencia. Nada significa para mim. Mas eu sei o que você quer – que eu te reconheça, em sua virilidade, como o mais realizado dos homens, o mais completo pai de família – daqueles que ficam a brincar com os filhos na praça, ou a passear no zoológico, aos fins-de-semana. Nada mais comum. Não exige explicação. Ou a nossa psicologia explica. Eu detesto este acúmulo de explicações que engolimos e nunca digerimos. Explicações. Aliás, não sei, realmente não sei, por que estou aqui te explicando tudo isso...”

    E, depois dessa, o colega do Victor até se afastou.





    Stevam voltou pra junto de TH, e no fundo, bem no fundo, dos olhos do poeta, havia uma sombra.

    Quando saíram do bar – onde Erik insistiu em ficar – Stevam e TH seguiram a Contorno e atravessaram sobre a ferrovia. Plena madrugada – tudo vazio no silêncio.

    Na ladeira, no escuro de um poste apagado, descem dois jovens, meio alcoolizados, e olhares inquisidores. Passam. Olham-se. Stevam pensativo, face impassível, e TH deslizando as unhas nos cabelos longos. TH com soturna roupa justa, apertada, denim & leather, jqueta luzindo.

    Um comentário a meia-voz: - Ei, mano. Casal estranho, aí! Era mesmo uma garota? Estranha, paca!

    E Stevam tenta entender, até rir-se do estupor e duvida dos rapazes diante da presença andrógina de TH, que Ada comentou.

    Noites depois, TH, todo afeto, perguntou a Stevam se ele já lera o romance “Retrato de Dorian Gray”, e emprestou um volume febrilmente sublinhado, anotado. Gesto que Stevam só entenderia tempos mais tarde. A Beleza sombria. O amor que não ousa dizer seu nome.





    O vulto já descia a avenida, quando Oto enfim o reconheceu. O Oto um tanto ocupado – acariciava as pernas de Carol, sentada em seu colo. Carol com as lindas pernas nuas aflorando de uma sainha preta justíssima! Apesar de ser uma noite até fria... Sim, TH descia a avenida – quase passou direto – atento em justar as luvas e abotoar o sobretudo. É que seguia concentrado...

    Percebeu os jovens, olhou a todos com atenção, reconheceu as fisionomias e particularidades, assim como se retornasse de futuro remoto ou, antes, um passado onírico, onde navegava na noite sem contato com a realidade presente, assim TH se dispôs, ainda com as luvas, a apertar a mão de todos, cordialmente.

    - Por que apertamos as mãos – foi o que disse, assim que se acomodou ao lado do Stevam e diante do Erik, ambos agasalhados e compartilhando um vinho – daqueles baratos, como sempre.


    Os dois jovens nada respondem. TH não se importa. Fala consigo mesmo, em voz alta. – Desde as guerras medievais, passando pelos duelos do romantismo, é costume, no ocidente cristão, apertar-se as mãos, principalmente os inimigos nas momentâneas tréguas entre as batalhas. É um sinal de honra, demonstrando não haver propósito de “ataque à traição” – e ele pronunciava com requinte – Exibiam as mãos tal uma prova de “não estamos armados”, prontos a negociar. Imaginem quando se reuniam os conselhos de guerra para as graves questões dos armistícios e alianças.

    E quedou-se pensativo. Agora mergulhava no passado. Certamente. De repente, se fazia ausente. Olhar longe longe. Exilava-se do presente. Diziam que era loucura em gestação. Por isso o rapaz abandonara a carreira de advogado – carreira que muito agradaria, enchendo de orgulho, o seu muito respeitado pai. Mas TH pouco se importava...

    Alguém comentava a divulgada profecia do fim do mundo, aquela conjunção de planetas, uma imensa cruz no céu, prometida para o sinistro mês de agosto.

    No bar, ainda pouco ocupado, ressoava uma canção ora pesada, ora clássica, com passagens cravísticas à la Johann Sebastian Bach, sem dúvida, de uma banda alemã. Certamente da coleção do Erik. O inusitado ali é que ninguém compreendia o idioma tedesco.

    - Tem que ser fiel, pô! Vocês ficam aí, com essa conversa de fidelidade ao movimento, e logo depois entram pra uma igreja qualquer, se convertem, arrumam uma mulher, casam sob as bênçãos do padre, ou pastor, sei lá, e montam uma banda de rock pesado evangélica!

    Era o esbravejar do Oto que tomava conta do barzinho. Certamente recriminava um pupilo indeciso na “fé”. Aléxis, o sombrio, estava à um canto, com um sorriso irônico. Saberia ele que, em tempos futuros, coisas de poucos meses, a Carol, que lascivamente ali estava, seria vista a procura de cultos evangélicos, tentando aliciar a desesperançada Sônia? Não saberia... Outros vultos de roupas funestas se insinuavam pelas mesas, ou desciam ao andar inferior, onde haviam mesas de sinuca

    TH foi o único a se perturbar com o discurso de Oto, que capturava uma garrafa de vinho e bebia furioso. Erik e Aléxis olhavam com indiferença. Stevam observava o sujeito que recebia a dádiva da ira de Aquiles.

    - Vejam isso. Não parece uma pregação de púlpito? – começou TH diante do Oto – Ele até usou o termo “fiel”. É assim que os grupinhos se formam e se protegem. O mais fanático insistindo que o melhor e o mais sensato é cada um permanecer ali no grupo. Infelizes os apóstatas!


    Os grupos ressaltam suas virtudes e desprezam os desviantes!, anotou Stevam, mentalmente.

    - As pessoas seguem pelas ruas e avenidas. Praças e becos escuros. – Em solidão. Uma multidão de solitários. – TH se empolga, e, numa pausa, até aceita o vinho, ainda que em copo descartável – O que busca? E tão aflitos? Um estilo, um modo de viver, um Sentido para viver – uma justificativa! Vestir assim e tal. Ouvir um som assim e assim. Crendo em suas ignorâncias, julgam pertencer a algo maior, um grupo. Que confere identidade, um pertencimento. – nova pausa, para o vinho.

    - Nascemos numa condição dada, não houve tempo para ensaios, já nascemos em pleno palco. Não há tempo para pensar, por si mesmo!, a maneira como vi viver, uma ética que vai nos guiar.

    Haverá Ética pessoal? Possível? Diante de uma Moral coletiva... Stevam anotava, mentalmente.

    - O script, o roteiro, o enredo, é dado pela sociedade onde nascemos, com suas tradições  normas, suas convenções e construtos lingüísticos. Alguns até se isolam, no seio da sociedade, para pensarem a vida e seus processos. Estudam as tradições e vivências, e esboçam éticas ideais. Tornam-se guias espirituais, líderes carismáticos, filósofos, mestres, e deixam de viver para pensarem, e permitem que muitos outros vivam – sem precisarem pensar.

    O tom didático não passava de tédio para os demais, contudo Stevam se sentia tocado. E TH não se importava minimamente com a desatenção da platéia! Monologava, um Hamlet ns brumas do asfalto.

    - Nem todos são fortes a ponto de serem originais. E o suficiente para doarem um Sentido próprio à existência.

    Stevam sentia-se angustiado, com a voz modulada de TH, como a subir de uma gruta. Ousou falar: - SE eu dependesse de terem me dado um “Sentido” para a vida, eu já estaria morto. Mas veja você, TH, que dá sentido a sua vida, proclamando, os quatros ventos, que a vida NÃO tem sentido!

    - E repito. Não há Sentido. Nós devemos criar ALGUM Sentido. E assim assumirmos a existência e continuarmos em frente. Vez ou outra aparece por aí um Sentido que pretende ser Universal: ora é a religião, ora é a ideologia, ora é a arte, ora é a Ciência. Aí retorna a religião, etc. Nós mesmos precisamos encontrar o Sentido para vivermos – dar Sentido a vida pela busca do Sentido. – E percebendo a atenção de Aléxis, a quem respeitava. – É o que penso. Se não fosse assim... Nada há mais que faça sentido para mim.

    - A vida é absurda, a morte é real.

    A voz profunda, no tom baixo, mas enfático, não deixava dúvidas.  Até Oto fora atingido pela gravidade das palavras do TH, que nada figurava de trágico, ali a compartilhar um vinho dos mais vulgares.

    Caiu aquele silêncio. Logo, angustiado, alguém deixara a trilha sonora rolando... uma banda áspera, mas generosa em melodias, onde guitarras rudes e sarcásticas duelam com solos de piano tristes e solenes. Canções em fuga de um castelo sombrio. Certamente outra preciosidade saída diretamente da mochila do Erik...

    Talvez, por carregar outros fardos, TH preferisse o silêncio, pois se levantou, em desculpas, com toda a polidez, ajeitando as luas, no mesmo gesto que fizera ao chegar. Stevam não hesitou em levantar-se. Também queria silêncio, queria paz. E quem não queria? Talvez, apenas o Oto, o que desejava o fragor da batalha, mas não naquele momento, a receber os beijos de Carol. (Ah, o descanso do guerreiro...)

    Assim, somente o Stevam acompanhou o poeta. Andavam em silêncio, os sapatos em ritmados ecos na solidão das ruas. Subiram a avenida até as sombras da praça. Outros vultos noturnos, de faces sombrias, perambulavam meio aos bancos, iluminados por faróis indiscretos, ainda que raros nestas horas mortas.

    - E essas crianças? – dizia TH, num gesto de profeta. – São a prova do instinto de auto-destruição . em beijos e abraços, com suas camisetas cadavéricas... não se assuste. Trata-se apenas do enlace de Eros e Thânatos, o Amor e a Morte. É que os gregos adoravam personalizar... De luto, elas seguem. Em vestes vitorianas, num passado adornado com um nada sutil cheiro de mofo. Rondam os cemitérios, as praças abandonadas. Roubam crucifixos para enfeitarem as suas tumbas, digo, os seus quartos confortáveis. Onde, sob os castiçais estilizados, lêem poesias tumulares. Isso quando não acessam internet e discutem a melhor forma de cometer suicídio. O que fazem? Revertem o sadismo para o próprio eu – por culpa, infligem sofrimento a si mesmos...

    Um jovem de skate passava numa nuvem de poeira, a cortar o discurso. Assim, o TH desfez o gesto. – auto-destruição. E logo seus grupos se desagregam. Nada há que seja real união. Vivem dispersos, cada um a carregar um cemitério na cabeça.

    - Nada mais autoritário que um adolescente. – Stevam se desviava de um grupo de cabelos longos, que certamente não daria passagem. – Ainda mais em grupo. É de discriminar mesmo: só é da minha turma se for assim! Não aceitam dissidências, mesmo porque se consideram uma dissidência – do mundo.

    - Deve ser o retorno, do qual disse Nietzsche. Sentir-se assim no século treze, ou quatorze, meio aquele pulular de seitas e heresias. Eram os cátaros, os anacoretas, os valdenses, os franciscanos, os dominicanos, os fraticelli, e outros tantos! Hoje temos multidões, pluralidades de diversidades, modas e estilos, consumindo um estilo de consumir! Desajustados ao modelito da griffe da contestação, seja um clubber, seja um punk, um neo-hippie, um fã de rock pesado, um adorador de Bob Marley. Um saudosista da era psicodélica – e de fato ...

    E, de fato, passava um senhor de certa idade, longos cabelos brancos, com uma camiseta, onde figurava um prisma fragmentado um raio de luz num arco-íris, e nas costas, em garrafais, PINK FLOYD.

    E TH continuava, os olhos agora faiscantes. – Olhe todos. Olhe bem. Podemos criticar? Olhe para eles. Olhe para nós mesmos. Semelhantes, sim. Estamos igualmente de luto. Assim seguimos: tão importantes! A julgar a humanidade. Enfrentamos o mar de faces. A multidão são os outros, pois eu, EU, sou o centro do universo. O Ômphalus. Sempre o protagonista, nunca um figurante qualquer. Pontos de vista, perspectivas. Não podemos criticar. Seria uma crítica contra nós mesmos. Seria esbravejar contra uma imagem no espelho. Se os desprezamos, ao contrário de afirmarmos nossa imagem, a fragmentamos ainda mais. Somos diminuídos na mesma proporção. “Não fazer ao outro o que não queres que ele te faça” é uma bela fórmula, não? Mas somos egoístas demais. Então, viva o amor-próprio! Eu vivo na minha colina e você, na sua colina. Entre nós – o abismo! Nada de estender pontes. O vácuo não pode ser transposto.

    De súbito, da penumbra, um vulto: um jovem e sua mochila. Um passo adiante, a solicitar um cigarro. TH não concedia atenção. – O tempo que eu perco com semelhantes figuras!

    É que TH já vivia sua fase amargurada. Antes se esforçou por ser sincero, generoso, e sofrendo com a incompreensão do mundo. Temia, em íntimo tormento, ser absorvido no mar de faces. Então tornou-se, com o tempo, um ser ensimesmado, a confiar em poucos, concedendo atenção a alguns privilegiados – Stevam era um destes “Eleitos” – o que era um traço de aristocracia, com cinismo sutil, acariciando uma perversidade que outrora ele temia. Não sofria com o Mal ao redor, mas sentia-se mais cruel que o Mal do mundo.

    - Ei, Stevam, é o seguinte! Temos medo de morrer. Se eu tivesse aqui, armado, e, empunhando a arma, a apontasse par o brilho dos seus olhos, você ajoelharia, implorando por piedade!

    Estranho, realmente estranho! Um perverso TH capaz de crimes pavorosos! Sem calor humano, sem fleuma, sem nada. Um amontoado de frustrações e amarguras! Stevam lembra-se do momento. Passados quatro outonos. Engolia em seco. Naquele silêncio, na solidão das ruas.

    - Mas o mundo é anti-estético. Deve ser destruído. E sou parte deste mundo, e, portanto, devo ser destruído.

E afastou-se na avenida, sob as árvores, sem mais despedidas ou acenos. Os passos, e seu som marcado, foram engolidos pelo silêncio noturno.





    Não sei se a iluminação do lugar estava em pane, mas as ruas estavam sinistramente escuras. Naquele quarteirão apenas um poste aceso, lá no outro extremo.

    Pois foi justamente decido a escuridão que encontrei a boate, um calabouço.

    Era mesmo um calabouço – literalmente. Tratava-se de um porão. Ao nível da calçada apenas era notada a saída do ar condicionado e, por uma vidraça, os relâmpagos dos globos de luz. Globos em giros de multicores.

    Um grupo de jovens com roupas escuras compartilhavam bebidas junto a escadaria. Não era noite fria, e, como eu andasse, logo me sentiria sufocado ao entrar. Dobrei o blusão e perguntei, na portaria, se ali poderia deixar o agasalho, pois temia perdê-lo meio ao agito alucinado. A minha mostra de precaução e bom-senso causou surpresa. A moça junto a roleta (tipo aquelas de lotação) exibia pesada maquilagem, sorrindo ao dizer que era problema meu, pois ali não era guarda-volumes.

    O segurança (não mais gentil) grunhiu que só impediam a entrada de garrafas de bebida e obviamente armas, sejam quais forem.

    Não discuti, jamais discuto. Ainda mais em tais situações. Se o meu irmão estava ali precisava encontra-lo.

    Uma garota (uma noturna até linda) se aproxima, logo agarrando o meu braço e tecendo gracejos obscenos. Dois rapazes trocam sorrisos. Intuí ser uma garota de programa, vendo em mim um potencial cliente. Mas não a afastei (ah, o seu corpo quente!), isto que me envaidecia. Estranho isso. Disse que ela era bonita (apesar de um tanto vulgar) e ela sorriu, não sei se irônica ou agradecida.

    Sussurrava coisas, acariciando minhas coxas. Assim tão gratuitamente. E às vezes engolia pílulas, ou pastilhas, brancas, que não eram exatamente balas de menta... Ela bebia muita vodka, muita mistura de campari – coisas fortes.

    Daquele barzinho, logo a entrada, adentramos a pista de dança, ainda que o estilo de som ali não fosse exatamente para danças, mesmo sob as hipnóticas trilhas techno, entrecortadas por guitarras desafinadas e gementes, tornando o ambiente opressivo. Denso e agressivo. Uma voz urrada, gutural, imperiosa. Ou uma voz masculina lúgubre chorando a opressão. Ou uma voz feminina meiga e desamparada.

    Meio a trilha sonora do fim do mundo, meio as garotas que desmaiavam devido ao ar abafado e a falta de água, e aos rapazes que as beijavam à força, alisando-as freneticamente, sim meio a tudo isso eu olhava à procura do meu irmão.

    Mas estava abafado. Se era para aquele inferno que ele perambulava, ainda não tinha chegado.


    Na calçada, mais grupos de jovens se aglomeram. A bela noturna, que estivera ao meu lado, deixou-se escorregar até o meio-fio, e vomitava no bueiro. Bebeu demais, imaginava. Mas, logo me afastei dela. Na esquina, junto a outros sujeitos, estava o Víctor.

    - Ei, Victor, esbarrou no meu irmão por aí?

    - E aí, chegado! Pois ele não vem pra cá?

    E prosseguem elogiando a noite detonada, o som esquartejante. E preparam-se para entrar. Insistem para que eu os acompanhe, mas lembro que espero mu irmão. Resisto e encontro-me sob as estrelas. E os fios de alta tensão.

    Uma voz comentava que ali estava mais interessante que lá dentro. Senti um estalo na mente: TH ali conversava com um cara da idade do meu irmão, e igualmente chamado Stevam. Conversavam sentados ao meio-fio, indiferentes ao drama da garota, prostrada, a respirar as podridões da sarjeta.

                     “Mais comme un viux paillard d’une vieille maitresse,
                      Je voulais m’enivrer de l’énorme catin
                      Dont le charme infernal me rejeunit sans cesse”

    TH recitava Baudelaire e esperava que entendêssemos. Expliquei que a garota bebera demais. Eu mesmo até dei um tempo, pois o gole era forte. Então a turma do Victor voltou e eles tinham vinho, coisa barata, marca vulgar, no entanto, era doce e aceitei.

    - Quem pode amar uma criatura daquelas? – TH perguntava, com algo de dor no tom irônico.

    - Ela deve ter amado muito. Se entregou muito.

    - Hoje quem deseja esse corpo em trapos?

    - Não exagere. – eu intervi – Fala como se ela fosse uma velha!

    - Meu caro, nesse corpo de vinte anos há mil anos de sofrimentos!

    O outro-Stevam, ali ao lado, observa tudo com olhos ébrios de insana inteligência, não entende como duas almas se afinavam, perguntou de quanto tempo nos conhecíamos.

    - E alguém conhece alguém? Nem que cem anos convivesse contigo, eu te conheceria. Você se conhece? Pensa que eu te conheceria se te filmasse a vida toda, vinte e quatro horas por dia?

    - Então, o que liga vocês? Amizade?

    - Não creio! Existirá? Ou trata-se de interesse? Uma companhia, uma posição social, uma opinião que reforça a nossa. – TH agora m lança um olhar irônico – É o abismo que nos une.

    Olhava os outros, a mão pálida baila no ar, apresentando-os:

    - Veja-os! O que une estas crianças? Um símbolo comum? Uma ideologia? O culto ao prazer?

    - Um estilo de som. Um visual. – arriscava-se o outro-Stevam.

    - Sim, e nada mais do que o desespero.

    - A única coisa que compartilham? – eu perguntei.

    - O que mais poderiam compartilhar?

    - Estão afogados em narcisismos. – pensava alto, o outro-Stevam.

    - Sim, narcisos sem qualquer criação. Imagens espelhadas distorcidas... um vazio interior, depois de dinamitar todas as pontes até o outro.

    - Estão aí andando em grupinhos. Uniformizados...

    - Um rebanho de solitários. Eis o que temos.

    Sabendo que TH nada prega que seja semelhante a laços comunitários, ou coletivos, como antídoto ao solipisismo, pude entendê-lo. Que agora a solidão é praticada em grupos! Que verdadeiros solitários estetizam suas solidões encerrados em si mesmos. Não se vangloriam de distanciar do outro. Usavam o abismo pra se conhecerem e se esquecerem.

    - Grupinhos de não-adaptados assolam a cidade. – ironiza o outro-Stevam.

    - Mas são adaptados. À inadaptação deles.

    - É contra, então, que estetizam algo assim?

    - Ora, não sou contra nada. Estetizem o que quiserem: até essa farsa.

    - Ele está com ciúme do modelito. – ria-se o outro-Stevam.

    - É, você anda sombrio, TH !

    - E não uniformizado. – e se levantava – E no mais, eu estou de luto. Por toda a humanidade.

    E tendo TH se afastado (nada mais disse) convidei o outro-Stevam para esperar o meu irmão, ali junto à entrada. Perguntei ao Victor se o encontrou lá dentro (não que confiasse no Victor, já meio ébrio, ms não me animava a voltar ao tal inferno)

    O caso é que Victor enrolava um assunto com aqueles músicos, agora que Erik aparecera, e todos esperavam o Oto (e ele nem apareceu)

    - O Alfonso está meio incomodado aqui.

    - Não imagino o porquê.

    - Que isso, cara! Esse jeito de “tô fora, mano!”

    Erik sorriu. – Ele está apreciando o espetáculo.

    - Sim, mui instrutivo e vistoso. – respondi, sem sorrisos.

    - Ele ‘tá tirando a gente, não vê? – um dos músicos voltou-se para o Victor.

    - Ele está ironizando. Relaxa.

    (E o sujeito fazia aquela cara de ‘preciso expulsar o intruso de meu território’, a agarrar-se desesperadamente a sua frágil identidade, e de tão inseguro, se mostra agressivo. Não é que precisa ficar sempre se reafirmando?)

    - Eu não preciso ficar me explicando.

    Então o Victor e o outro-Stevam resolvem esfriar a fervura.

    - Que isso? Que isso?

    - Ele está meio grogue.

   - Te incomoda ou não? – o mal-humorado retrucava.

    Eu, também sem humor. – A você incomoda?

    - Eu me divirto aqui – o músico olha ao redor – Densa desgraça ao redor. Você é que está incomodado.

    - Meu prazer não passa pela auto-destruição.

    - Você está incomodado. (ele vivia repetindo isso) Mas o caminho está livre, você pode ir. (Falava como se fosse a autoridade local, a conceder licenças de ir-e-vir.)

    - E você jamais se incomoda, se inquieta? Aceita tudo?

    - Toda essa podridão é coisa nossa, vem daqui (e apontava o coração) o mundo todo padece do infortúnio do desejo (eu sabia que tais conceitos só poderiam vir dos versos do TH) e não vamos negar isso.

    Claro, vamos criar flores sobre a fossa.

    Não sei onde tudo terminaria, se o Stevam não surgisse. O seu lado, o baixista e um outro, que eu desconhecia.

    - Me patrulhando, é?

    E me evitava. “Serei o guardião de meu irmão?” Mas quando ele se preparava para entrar, eu: - Stevam, ainda não consegui o que quero. Mas não significa que eu desista, que nada vale para mim.

    - Eu sei, e daí?

    - Ela morreu também por causa da banda, do fim da banda... não tinha mais nada...

    Um sorriso doloroso rasgava a sua face:

    - Você tem medo de que eu faça o mesmo.

    E ficamos longos segundos, um diante do outro, olhos baixos (não ousávamos trocar olhares, ou tocar no outro, estávamos à léguas de distância!). Então, sem nada dizer, ele entrou.

    Não iria ficar ali a discutir com aqueles idiotas. Como me visse afastando, o outro-Stevam veio no meu encalço, queria saber se eu ia embora.

    Disse que sim, afinal o que faria ali? – Incapazes de entenderem uma ironia, esses sujeitos! E, quando abordo algo sério, eles prontamente encaram como ironia.

    - Quem muito ironiza, se auto-ironiza. O cúmulo da ironia é a postura séria.

    - Ah, obrigado! Muito confortante, isso!

    Ah, os “belos e malditos”! Que belos atores soturnos! Ele pensava o mesmo, certamente, ali ao meu lado, até o fim do quarteirão, onde, na alameda que desce até a avenida, eu deixara o carro. Ofereci carona, ele recusou. Seguia para outros rumos.



Um epílogo ::::

Quando cheguei em casa foi conferir o poema que o TH recitava. É mesmo do Baudelaire, e chama-se “Épilogue”. Uma tradução livre eu arrisco: “Tal um velho devasso de uma velha amante, / eu venho me embriagar com a imensa puta, / cujo charme infernal sempre rejuvenesce.”





(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)

(outono/ 2002)


    Ontem fui ao velório do senhor Sílvio Avelar, o pai do TH, que morreu de câncer.

    Não sei se eu estava muito indiscreto, mas todos me notaram assim que entrei. Todo de preto, cabelo solto, figura pétrea, entrei no recinto solene, ocupado pelos semblantes pesados dos parentes do falecido.

    TH cabisbaixo junto ao caixão, acompanhando a tia, que agora seria a responsável, a matriarca. Lembro que TH perdera a mãe aos dez anos. TH, uma verdadeira máscara, sem emoções. Eu ofereço meu abraço e condolências, “Pôxa, triste isso.”, com um esmerado tom fúnebre na voz. Mas sei que TH sente total repulsa por essas ritualizações da morte, estas encenações públicas da dor da perda. Afinal, o que significa o falecido para mim?

    O falecido estava não só abatido, mas desfigurado. Os últimos dias da doença foram horríveis. Imagino o sofrimento do TH vendo o pai definhar dia após dia. Mas TH igual a um padre na extrema unção, “Se há algo do qual temos certeza é sem dúvida a morte”

    São as únicas palavras que trocamos.

    Nenhum conhecido nosso ali nos jardins do velório. Os parentes, de ostentada classe média alta, com suas roupas de etiquetas e marcas, exibem olhos vermelhos e gemem sob a perda do nobre advogado. Talvez até algum cliente, livre de processos e penalidades, aqui venha expressar seu reconhecimento.

    Não sei se sou frio, insensível, mas todo aquele luto não passava de mais uma convenção social. “Hipócritas, fingem tristeza!”, eu resmungava pelos cantos.

    Alguém mastiga um sanduíche, junto ao bebedouro, outro conversa sobre política. Não percebem que o morto é insubstituível? Que não se perdeu um advogado de renome, mas uma pessoa? Uma perda irreparável! No entanto, não fui cobrar isso de ninguém, até porque eu não conheci o falecido quando ainda vivia. O que sinto é uma mágoa, em comunhão com TH. É agora órfão, esse meninão de quase trinta invernos, e vai ter que aturar a tia, ali ao lado, com olhares fascistas.

    Um corpo velado num ataúde ricamente adornado, envolto na pálida luz dos círios, destinado a um sepulcro na colina, no campo verdejante, na igualdade dos vermes. Não poderia suportar mais, chego junto ao TH, “Preciso ir embora”, enfrento aquele olhar, “Desculpe eu não ir ao enterro. Cemitérios sempre me deixam deprê.”

    E saí na noite, era mais de meia-noite, realmente!, a indagar sobre vida-morte-vida, tudo passa, os passos passam, eu blasfemo contra a fatalidade, não mais do outro, mas a minha. Estou revoltado – contra a minha morte. Que virá um dia, uma noite... tudo passa, tudo passará... o mundo passa!

Mas não adianta uivar contra a lua, ofender os altos Céus, a inclemência do Altíssimo!, pois nossa morte é diária e sutil, e eu passo a cada novo passo.



 [...]


LdeM

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