sábado, 5 de fevereiro de 2011

segue o cap. 1 de Flores no Asfalto


(do diário de Stevam Lucena) (fragmentos)


(verão de 2000)


    Cansei de ver a menina à distância. Sei que ela estuda no Estadual, dois quarteirões acima. E confirmei o fato quase derrubando o seu vulto apressado no beco da Norberto Mayer.

    Na pracinha, na volta, ela com as amigas, mas depois segue pela João César sozinha.

    Percebo que ela ouve os meus passos. Terá estremecido? Não sou nenhum vampiro em busca de vítima. Além do mais pouco falta para meio-dia e o sol não estava nada tímido. 

    - Posso te fazer companhia? – eu digo, eu é que sou o tímido aqui. – E aí, gata, vamô dá um rolé? – é o que deveria ter dito.

    Ela segue adiante. Não mostra estar surpreendida. Sufocando o susto? Anda mais decidida. Altiva.

    - Então não posso te conhecer? – eu insisto, mas quase desistindo.

    - Olhe, cara, estou com pressa.

    - Ora, o que é isso? Não é todo dia que você passa aqui, assim sozinha, não é? Sempre com suas amigas...

    “Imagine, o cara me patrulhando!”, o olhar dela deixa explícito.

    - Olhe, o meu namorado deve estar me esperando ali na praça.

    A praça a menos de um quarteirão.

    - Namorado? É, realmente existem uns caras de sorte, não é?

    Nunca devi ter me menosprezado assim. Ela voltou-se, irônica.

    - É mesmo. Outros, não.

    - Se algum dia quiser me encontrar eu apareço ali no bar do Coreto, sábado à noite. Té mais ver.

    E saí, atravessando a praça, mão no bolso. Frustrado. A fantasiar que a vontade dela era dizer que não tinha namorado nenhum, e de repente poderia me chamar de volta, perguntar meu nome. Ou então dizer que apareceria no bar do Coreto, sábado à noite.

    Mas fiz tudo errado. Quem manda ela ser tão parecida com a Sônia?




    Por que Stevam, em suas noites de insônia, sofria o peso das lembranças? De um ano, ou dois, sepultos no passado. Quando as risadas (ou meros esboços de sorrisos irônicos) de Breno, o líder de tantas zombarias (além das torcidas organizadas), golpeavam como um medicamento de efeito retardado, que fica alojado nas veias e, de súbito, substitui pálidos sintomas por outros, mais torturantes.

    No primeiro dia de aula, deslocado num mundo de sorrisos e esperanças juvenis, Stevam deixou-se à janela a observar a vastidão do Campus, com suas avenidas e alamedas internas, onde estudantes transitam em seus dias de aprendizado (ou não), entre desejos e advertências.

    Entra uma estudante. Cadeiras se arrastam. Stevam olha por sobre o ombro – e vê-se diante de uma alucinação! Sônia, sua colega de classe? Um espectro agora a sua companhia? Ela, assim preocupada com sua solidão? Bem, os cabelos são mais claros. Mas é a mesma pele, o mesmo corpo, a mesma expressão no olhar, aquele rosto meio oval. Apenas o cabelo diferencia – não é tão escuro quanto o de Sônia, o que realçava a palidez... mas Sônia pode ter tingido o cabelo!

    E – glória das glórias! – ela é a primeira pessoa a dar-lhe atenção! Na aula de filosofia, quando a classe é dividida em grupos de discussão, Leila (eis o nome dela!) convida o Stevam para que o solitário participe no grupo dela.

    Mas – desgraça das desgraças! – precisava ser o grupo do Breno? Ele com seu sorriso sarcástico, suas piadas sem graça, mas que sempre arrancam risadas...

    Mas o que Stevam não esquece é a cena no segundo dia das provas específicas, quando no vestibular, e ele, atrasado, chega à sala e ouve o rapaz próximo à porta, a comentar com uma garota, “Menos um”, a apontar, lá no canto, a única cadeira vazia. Logo a ser ocupada por Stevam! O rapaz percebeu – mas logo disfarçou. Mas era indisfarçável aquele ambiente de competição. Eram concorrentes, não?, todos são candidatos – as vagas são poucas! Não havia espaço para piadinhas, e muito menos amizade. Cada um por si – e contra todos!

    Como Stevam poderia ser amigo de um sujeito que desejou a sua não-inclusão, a festejar com antecipação, sua ausência?

    Breno pode até ser inteligente (tem ótimas habilidades lingüísticas – vide os trocadilhos), mas nunca entenderia os abismos da solidão do Stevam, que vivia a indagar-se “Por que uma pessoa dessas decidem estudar psicologia?”

    E era, certamente, a mesma pergunta que Breno fazia a si mesmo – à respeito do Stevam.





    Após a miragem de uma ressuscitada Sônia Regina, na primeira de sua curta e melancólica vida acadêmica, Stevam encontrou-se só, nos corredores solitários do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, ouvindo ‘Kid A’ do Radiohead.

    Primeiro dia de aulas. Apresentações. Fósforo entre os dedos, antes que se apague.

    - Leila Lorena Trivelli, dezenove anos, belorizontina, adoro ler, leio muito sobre psicanálise, Freud, Jung, e outros, e gosto de passar o fim-de-semana no campo...

    O fósforo quase lhe queima os dedos.

    Dedos que ele beijaria para aliviar a dor.

    E Ela o convidara para integrar seu grupo de Filosofia A!

    Certo que Stevam andava mesmo em busca de uma paixão, mas tendo um contato de terceiro grau com a Esperada era como se uma chama o chamuscasse.

    - Stevam Lucena, vinte e dois anos, contagense, do Eldorado, e gosto de literatura, eu escrevo uns versos, tenho uma banda, quero dizer, espero voltar com a banda, e...

    O fósforo belisca a unha. É jogado ao chão.


    Talvez foi naquele momento que Olga o notou. Também aquele lance de banda. Tem menina que adora cara que tem banda! Isso quando ela também tem uma banda, ou pretende ter.

    Olga não perdia uma oportunidade de parar Stevam no corredor, perguntar sobre a banda, se ele tocava teclado a muito tempo, se já havia gravado um CD, e outras curiosidades que já entediavam o Stevam. Mas certamente se Leila fosse a interessada... No entanto, Leila não faria tais perguntas.

    - Stevam, você já leu Sartre?

    Ele não acreditou e se voltou. – Não. Quer dizer, uns contos. Por que?

    - Que dizem ser nauseante.

    - Às vezes é mesmo. “O inferno são os outros”. Meu pai é que lê muito. Tem uma biblioteca e tanto. Escreve algumas coisas também. (Pó, mas ela não perguntou sobre o meu pai!) O Sartre parece ser muito, como eu vou dizer, muito existencial, existencialista.

    Aí Breno aparecia. – Eu prefiro Dostoiévski.




    Quando Stevam deixou atrás de si o refeitório, vulgo “bandejão”, já era aquela noite juvenil, de brisas em carícias, e presenças difusas. Vultos noturnos deslizam no Campus. A noite toma posse de tudo, a descer sobre os seres e as coisas. Abrigado, sob os arbustos da pracinha, viveu o momento cercado pelo entrechocar de sons. Os alto-falantes do barzinho da Biológicas e o coro de vozes. Viu, um lampejo, o palco armado defronte da praça. Viu a tenda erguida, o circo da infância. As vozes subiam, ondulavam, desciam, confusas, fundidas na estridência das caixas de som. Cantos sedutores de sereis metálicas, harmonias de rangidos e grunhidos. A banda ajustava o equipamento.

    Talvez as árvores o deprimissem, naquele oásis separado das abóbadas do anfiteatro, no pouco verde limitado pelo complexo das Exatas. Havia algo no ar. Saiu e andanças, para onde os passos levarem, mas com um olhar atento, evitando assustar os casais nas escadarias, entusiasmados na penumbra. Passos adiante, mãos nos bolsos, a mochila em vaga presença, fardo supérfluo. Andando como quem nada quer, lento, braços junto ao corpo. Algo no ar, sim, noite grávida, prometia. Mãos nos bolsos, olhares ao redor, na arena do circo, sem tenda, encarando, vez ou outra, os passantes. Foi descendo as escadas, uma voz o alcança, num tremor, “Oi, Stevam!”

    Gaguejou um “Olá!” diante de Amélia, flutuante num traje noturno. Contudo, ele seguiu adiante, rumo ao palco, na movimentação dos preparativos. Pediam um eletricista. Contornou o esqueleto de metal, a escapulir para o outro lado. Pinça uns papéis do bolso, ajunta todos na carteira, inventa compromissos, depois se acusa de esquecimento, deixa as mãos nos bolsos, com a desculpa da noite fria, vai contornar o espelho d’água da Biblioteca Central, e encontra-se novamente diante da Biológicas, desvia-se de um grupo em vozes alteradas, pensa desaforos, e enfrenta a luz do barzinho, com a densidade do som, as faces pintadas junto às mesas.

    Olhares fixos pedem explicações, O que ele anda fazendo por ali? Ele em dissimulações, fingindo estar em busca de alguém, de algo, do tempo perdido, mas as faces não desistem, fixas em gestos no quadro, um painel cubista, um tanto deformadas, em perfis, em bocas assim abertas, risos dilatados. Felizes, todos satisfeitos. Nada a fazer ali. Saciados, eles. Supérfluos, ele ali – um visível excesso. Vai até o fundo do bar, saguão manchado de cores, ao espantar-se com as caricaturas nas mesas e com as faces nas paredes! Até o limite mesmo, o nariz nas paredes, a tocar o grafite, a aspereza, a agressão das cores, até nauseado voltar-se, em volteios, andando em ziguezague, ao cruzar entre as mesas, transpondo a entrada, pronto para furar as sombras dos arvoredos.

    Sem abordar qualquer náufrago, sem rancor. Fiquem aí neste mundinho: preciso seguir adiante! Novamente o palco, a sugar os olhares ao redor, todos a procura de algo, alguém – um apoio, um rumo, um Sentido – banco, pedra, resto de grama, onde descansar as pernas fartas de vaguear pela plena plenitude.

    - Ó Stevam! Vem cá!

    Sim, novamente a Amália. Ele aproxima-se. Ali as três Deusas, as três Parcas. Em trajes noturnos. A simpatia de Amália, a seriedade de Leila e o jeito intelectual de Olga.

    - Perdido por aí, Stevam?

    - Veio para o show? – era a voz de Olga, agora atenciosa.

    A outra, presente, mas discreta, a hermética Leila. Sem ânimo, como se percebia à algum tempo, deixando-se à deriva. Notava-se algo.

    Não, não está perdido. Estava ali na biblioteca. A tarde toda. “Não viram? Não falei que ele vai longe!”, Amália mastiga as sílabas junto com a goma sabor cereja. Ele, todo modéstia! Aproveitando o tempo. O trabalho de Gestalt...

    - Ó, não! Nem me fale! Trabalhos out! Get out!, querido! Viemos nos divertir, ora!

    Stevam não entendia como Leila agüentava. Sim, diversão, “Embriagai-vos...” As moças disfarçam. Uma distorção vem desculpar o deslize irônico. Um músico afina o instrumento na agudeza das agulhas. Olga atenta (Olga que toca violão), “Belo acorde!” Ouçam isso ... um dedilhado assim...” em gestos, dedos em passeio, deslizam ao longo do braço.

    Amália, olhar carregado. “Você toca, não é, Stevam?”, Sim, Teclado (modesto) “Violão, também?” Bem,... as cordas exigem certa destreza... treino dedicado. Pitada de talento também... “Mas com essas unhas!”, Amália desce os olhos nas unhas longas do rapaz, que recebe de Olga a provocação “Existe talento?”

    - Pois é. Não sei ao certo. Tanta metodologia científica que já não tenho certeza de nada. Tanta coisa que julgava ser sólida e real – não passavam de miragens. Ando até mais calado. É só dizer algo – e é “Senso Comum”.

    As outras é que atuam, mas Stevam observa Leila. Todas olham com certa condescendência. Um rapaz em confissão de fraquezas...

    Amália agarra o braço de Olga, “Vai montar uma banda? Verdade?”, “Ah, ninguém entende! Uma banda? Tocar aonde?”, “É que suas letras são muito sérias, Olga. Dá até uma ‘fossa’!” E os olhos pintados de Amália se voltam para Stevam, “Só deprê, essas meninas! Olha a Leila aí. Acorda, garota!”, e encarando o rapaz, “Você curte é literatura, poesia. Eu sei, Stevam.”

    - É, eu escrevo. Meio deprê também. É que eu leio muita gente atormentada. Castro Alves, Augusto dos Anjos, Baudelaire. Fernando Pessoa.

    - “O Livro do Desassossego”, diz Olga, soturna.

    - Ai, meu deus! Que deprê! Só deprê! Deixa disso! – Amália, elevando os ânimos. Mas o fardo sobre os ombros de Leila-Atlas começa a pesar sobre todos.

    - Ela nem precisa fazer cara de quem freqüenta análise.

    Amália, nessa pontaria certeira, atinge Leila, que então enfrenta o olhar de Stevam, “Elas só querem me animar. Fui arrastada. Um show alucinado! Proclama as histéricas!” Stevam, sem saber o que fazer, arrisca: Eu perdi uma amiga. Vivia à base de anti-depressivos. “Distúrbio bipolar”, Olga se arriscava. Era psicológico. O corpo sofre porque a mente sofre.

    - Ora, por favor, gente! olha a cerveja aí! Sorrisos! – Amália resolve intervir. Em vão.

    - É para entender tudo isso que estou estudando psicologia.

    Diante da confissão dele, vem de imediato a Olga: “Para entender os próprios problemas?”

    - É. (desvia o olhar) Diversão, Amália? Esquecer a dor de existir, você quer dizer. Comentar o pesar com certa distância, de preferência com luvas cirúrgicas. Podemos te ouvir o professor em seus devaneios sobre a Angústia, sobre a Náusea. É didático. (Diante das ironias, s colegas murcham.) eu li “A Náusea”, do Sartre. Aliás, li não, só enfrentei um pouco além da metade. É claustrofóbico, é...

    - Nauseante! – Olga vira a cerveja num gole. – Coisa de dar realmente náusea.

    - Ha Ha! Ler “A Náusea” dá náuseas! – Amália ainda insistia no clima festivo, não poupava risadas. Consciente do riso nulo, ela tentou suturar. – Desculpa, gente! Mas vocês, hein? É de morrer de tédio!

    Amália talvez desista, vai afastar-se para junto das barracas, vai providenciar cerveja. Encontra outras colegas. Saudações, beijocas, risinhos. Ajeita as trancinhas. No grupinho, destacava-se outra garota (se não me engano, o nome dela é Shirley), sempre a atrair atenção, abraçando as outras.

    - Se ficar analisando, a gente não vive... – suspira Olga, algo constrangida.

    Ali o “bizarre love triangule”: o triângulo ali era mesmo bizarro. Olga encara o Stevam, que só percebe o fardo noturno sobre a Leila.

    - Mas o pior é sair analisando os outros: o Freud da galera!

    - O analista ‘selvagem’. Um chato! – Olga num complemento ao desabafo de Leila. Toda aquela cena a oprimia, a sentir-se ilhada no mar de risos e ruídos.

    Stevam não suporta mais. – Vocês ficam? Eu vou indo. Descansar um pouco... – dizia atento aos olhares de Leila. – Divirtam-se.





Barreiro, 22 de abril de 2002


  Darío,

    Inicio esta apresentando desculpas pela demora. Mas é este um período difícil – e a faculdade está devorando o meu tempo.

    Hoje estive em Contagem, ocupado em distribuir currículos, e parei na praça do Eldorado, merecido descanso após ter percorrido cinco agências, e procurando paz meio a agitação urbanóide, abri a Antologia Poética, do Drummond, e tentei encontrar-me ali, entre versos, em avessos, além ousando pensar-e-sentir além do mar de mesmice, “O poeta declina de toda responsabilidade /na marcha do mundo capitalista.

    Reli, semana passada,o conto “Erostrato”, do Sartre e tive arrepios, reli o Drummond (aquele poema que fala que não podemos “dinamitar a ilha de Manhattan”; li “On the Road”, do Kerouac, aquele beatnik, onde o narrador imagina árabes chegando para explodir Nova York (olhe que o livro data de 1954!); comecei a leitura de “A Condição Humana”, de Malraux. Arrepios – mais arrepios.

    Arrepios, sim. O Erostrato odeia os homens e os humanistas, e até parece um vírus ou um mutante. Mas, no entanto, é justamente humano! O chinês no livro do Malraux sofre crises existenciais – ao estilo Clarice Lispector – antes de consumar o assassinato. Ambos humanos, demasiadamente humanos!

    Pois é. Estava na praça. Lia o Drummond – reclinava a cabeça, pálpebras cerradas, meditava – e eis que “me chega um cidadão”, a pedir fumo, um cigarro, “Fumo aí, irmão?”, “Não tenho.” Depois outro mendigo, prostrado no jardim, entorpecido. Outro a banhar-se nos jatos de água dos canteiros. Tudo em local público, cinco horas da tarde! Ele lá, de calção, banhando-se com uma velha marmita deformada, um troço todo amassado e cheio de ferrugem. Um sorriso desdentado. Passo ao largo. Posso amá-lo? Não somos ambos vítimas? Quem me assegura que amanhã não estarei lá, sob a torneira pública, a banhar-me com semelhante sorriso acéfalo, agradecido pelos progressos da bela civilização?

    Na praça, sob as árvores, os trabalhadores cansados, o vendedor de espelhos, o de capas plásticas para celular, o de revistas de saúde, ad infinitum. As putas, os desempregados, os andarilhos, os parias, os varredores de rua, e os varridos-para-debaixo-do-tapete, “pois é, pra quê?” E eu lendo os poemas, como se desafiasse tudo e todos – o barulho, o excremento das pombas, o vai-e-vem dos transeuntes, os risinhos das garotas, o pigarrear de um ancião curvo e tropeçante, os ousados skatistas, o relincho das buzinas – e eu ali dentro dos poemas,

                                   “Não vou queixar-me da vida
                                     ou falar (mal) do governo brasilial.
                                     Nem cicatrizar ferida
                                     resultante do meu ser-no-mundo-atual”
                                                                   (Conversa Informal com o menino)

    Contudo, a amargura – estou lendo a quarta parte de “Memórias do Cárcere”, onde Graciliano Ramos revela a indignidade nos porões da ditadura varguista, e lembro que pouco diferem dos campos de concentração nazistas ou ‘gulags’ stalinistas. O homem devora o homem. Por que de um extremo ao outro?

    Estatismos e totalitarismos e democracias falidas. Por que insistem em valores caducos? Atacaram o valor Moralidade-Religião e não criaram novos valores. Então precisam encher o mundo de policiais, agentes, radares e câmeras. Antes: “Comporte-se, Deus está vendo!”, agora: “Sorria, você sta sendo filmado!”

    Espero que você aí, no Velho Mundo, esteja em melhores lençóis, pelo menos é felizardo por ter se livrado da TV brasileira. É a esperança de seu amigo Hector, assombrado por cultos-propagandas, sem casa sem emprego, mas com todo “o sentimento do mundo”.




    Foi em certo crepúsculo que Stevam Lucena encontrou TH em casa do Oto. O TH chegara pouco antes, o buscar o sossego na rusticidade quase rural da quase chácara do Oto (que assim cultivava os mesmos gostos do Germano, que vivia nos limites da zona urbana, quase adentrando os campos e as plantações)

    Para o Stevam, o TH já andava irritado, blasfemando contra os religiosos e seus proselitismos, “que te param no meio da rua e te enchem com lendas hebraicas”. Então o Oto não podia ficar calado, ele com seu anti-semitismo, anticristianismo exemplar.

    Mas o problema para TH é outro, pois ele jamais afirmara que somos umas argilas pensantes (ou os ‘caniços pensantes’ de Pascal), e que só restam dúvidas. As dúvidas que os religiosos exploram. E se há um Além, um Juízo Final?

    Stevam, pouco efusivo nas saudações, deixa-se acomodar numa poltrona, sem intervir no quase monólogo. Até porque nunca vira TH tão, digamos, pouco fleumático.

    - Os cristãos – eles mesmo se assumem assim – examinam autores – Freud e Jung, ou Nietzsche – todos iconoclastas, de um modo ou de outro, e citam um trecho ou outro que interessa às suas doutrinas! Dizem assim: Olhe, meu filho! – pois a atitude é de paternalismo mesmo – você é um revoltado contra Deus por que você transferiu para Ele, o Pai de todos nós, a revolta que você nutriu contra o seu pai carnal, contra a dominância e a sua submissão.

    E não era verdade?, Stevam se indagava, tentando lembrar quando ouvira, em depoimento do próprio TH, sobre os dogmatismos do pai um tanto zeloso. O pai e o tio discutiam sobre o dogma da Trindade, um Deus ao mesmo tempo é três! A Questão da Trindade, pois ambos haviam lido Jung. E um jovem de treze anos presenciando a discussão. Dois irmãos se atacando por conceitos metafísicos. O pai de TH não oculta a irritação, naquele diálogo conflituoso Bíblia versus Bíblia. TH não entende, mas se incomoda com a animosidade. Para o pai, Deus é Três, para o tio Deus é Um. TH entra na conversa, e lembra da moderação, que o caso não é tão grave para que dois adultos (e irmãos!) se ataquem assim. Mas o pai não só mostra-se intransigente como áspero, e irado (como um bom cristão) num grito e um tapa: “Não é grave? Rapaz, estamos falando sobre o Nosso Deus! O Nosso Senhor Jesus Cristo e o Santo Espírito! Morda essa língua!”

    O que de fato ocorre, pois com a bofetada a língua de TH foi parar entre os maxilares, entre os dentes. Ele sente o gosto de sangue na boca. Até hoje.

    Mas TH já continuava sua palestra: - Mas os bons filhos de Deus não citam Freud quando ele fala que agarramo-nos às nossas crenças por estas representarem valores relevantes na construção de nossa identidade. Quanto mais atacam nossas crenças, mais nos apegamos a essas, pois as crenças – dizemos as NOSSAS crenças – somos nós, e negá-las seria negar a nós mesmos – o que quer que seja isso! Negar a tradição cristã ocidental seria negar todo sacrifício anterior para construí-la, o sangue das Cruzadas, as fogueiras da Inquisição, e assim negar o nosso contexto, só possível devido a tanto sangue e fumaça enegrecida!

    Oto resmungou algo sobre o dito de Cristo que não viera trazer a paz, mas a espada, e que o Cristo era ora um polemista ora um resignado, “Daí a César o que é de César”, ou não passa daquelas imagens de porta de igreja, ora menino na manjedoura, ora martirizado.

    - Mas qual versão de Cristo? Qual Cristo? Cada biografia, uma nova personagem. O Cristo de Mateus ou de João? O Evangelho segundo Constantino? Quatrocentas mil biografias do Messias? Uns dizem que ele era um rebelde anti-romano, outros dizem que agregou construtos religiosos a sua imagem, passando-se por Filho de Deus, ou que alguém fez dele o Filho de Deus. Uns dizem que ele era de linhagem real, merecia ser rei, daí Herodes querer mata-lo, outros dizem que era pobre mesmo, mas rico no Espírito, o Filho de Deus, crucificado por questões de Estado, traído pelos judeus, raça maldita. E inda existem aqueles que conseguem a proeza de aceitar e misturar todas as versões anteriores! Pois foi instruído junto a príncipes, onde já se viu um filho de carpinteiro com tal erudição e oratória? Não, convenhamos, era pobre e peregrino, não era dono nem das próprias sandálias, e seu Conhecimento vinha diretamente do Trono Divino (pois ele é Deus, defendem),poderia nascer filho de lixeiro que já saberia, em si, a Enciclopédia Britânica. Alguns vão dizer que amou mulher, teve até filha (vide Graal e merovíngios), outros vão defender, até a morte, que ele foi casto. Qual Cristo é o seu Cristo?

    O TH tinha mesmo que ser filho de quase Pastor ali pregando diante de sua quase congregação (Teria ele consciência dessa imagem? Ficaria ofendido se alguém a insinuasse? Como veria a si mesmo naqueles momentos de torrencial desabafo?) – Vejam como é difícil ler a Bíblia. Muitas tradições, do aramaico, grego, sírio. E a versão em latim, a Vulgata, a dos Setenta, etc. não há em latim um equivalente para o termo em aramaico? Faremos uma aproximação. O copista poderia estar um tanto cansado quando trocou os sinais. Fora os monges, doutores, falsários descarados! Percebam um exemplo: Cristo na cruz, olha para o dito bom ladrão, “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”. Entenderam a sintaxe? O emissor diz que hoje (agora) anuncia que algum dia, no futuro, na Ressurreição, o ladrão estará com Ele no Paraíso, ou o emissor quer dizer que hoje (hoje mesmo) o ladrão já vai ascender aos Campos Elísios? Então, a frase é outra se, “Em verdade te digo, hoje, que estará comigo no Paraíso”?

    Se o TH fazia questão de um detalhe de vírgula, imagine quanto aos conceitos teologais! – Isso de imanência e transcendência depende do ponto-de-vista. Pode ser a Imanência de Deus através da nossa Transcendência, ou a nossa imanência através da Transcendência divina, ou ainda criamos a Transcendência-Deus numa evasão de nossa imanência. Afinal, TRANSCENDÊNCIA é existir algo-lá, além-de. Não se assustem, Deus existe quando cremos nele, ele existe se muitos crêem nele, ou ainda deus APENAS existe se cremos nele, sendo o que é, uma concentração de energias psíquicas e crenças polarizadas numa massa crítica simbólica qualquer. Entendem?

    Oto limitava-se a acariciar seus gatos, enquanto Stevam bocejava. Não por desinteresse, que TH falava muito bem, convenhamos, mas era o tédio existencial. Tipo: com ou sem Deus tudo a mesma m...

    - Vendo Sua Criação, Deus cindiu-se. Um lado confiando nas Potencialidades Humanas, e outro lado, ironizando os Humanos à cada tropeço. Assim, Cristo é o lado que confia, e Satã é o que duvida.

    - Satã em Deus? – Stevam não pode evitar o assombro.

    - Por que não? Talvez Deus o tenha arrancado de si e arremessado ao inferno, como um recalque.

    - Inferno: o Inconsciente de Deus?! – Stevam, novamente assombrado.

    - Novamente: Por que não? Lá se amontoariam todas as lembranças e desejos reprimidos. O quarto de despejo da Psiquê Divina.

    Stevam perplexo (posso lembrar perfeitamente este momento) e o TH didático: - Deus precisa dos Homens, até mais do que o inverso – Ele sabe que somente existe se os Humanos acreditarem nele. Cristo tanto proclamou que confiava nos Humanos até a Morte, que teve de cumprir, teve de provar diante do Diabo.

    - “Perdoai-os pois eles não sabem o que fazem.”

    - Mas essa pode ser a maior ofensa contra a Humanidade! Será que não passamos de um monte de crianças balbuciantes e prepotentes?

    Oto parece não entender o alcance da discussão (Não que o Oto seja um simplório, mas o TH é um tanto metafísico ) e TH precisa ser mais performático. Vai se aproximando da mesinha, onde, a um canto, ao lado do cinzeiro em forma de crânio, destaca-se um tabuleiro de xadrez e peças talhadas à mão (presente do próprio TH) e didaticamente prossegue:

    - Os cristãos, os espiritualistas, os transcendentalistas jogam o mesmo jogo, sobre o mesmo tabuleiro – e apontando as peças – O bispo, este cardeal, o médium, o xamã, a sacerdotisa, o monge budista, o xintoísta, o espírita, o brâmane. E o que o materialista faz? Isso! – e abateu a mão sobre as peças ao longo do tabuleiro, derrubando todas sobre a mesa, onde deslizam, caindo no tapete – Negam o jogo! Nada além-do-corpo. Somos neurônios, aminoácidos, ácidos nucléicos, flutuações hormonais, e nada mais.

    (Quase se podia ouvir um bater de asas negras e um crocitar, “Nothing More.”)

    - Os materialistas estão dando tiro no escuro. O caminho mais rápido para a conversão religiosa passa pelo curso de física quântica. Leiam Fritjof Capra! Incerteza, exclusão, salto fotônico, energia torna-se matéria, onda ou partícula? Deus não joga dados, Código Genético, Singularidades, Hipótese Gaia. Sim, cada um e seu Ponto de Mutação. Buracos negros no córtex cerebral. Neuróglias suicidas. Entendem?

    Oto, acariciando os gatos: - Do que ele está falando?

    - Que de tanto os caras saberem (ou julgarem que sabem) ao fim não sabem nada.

    - E não é assim? – TH, atento aos pupilos – Quanto mais síncrotons constroem, mais templos enchem. Quanto mais centrifugam a matéria, mais espiritualistas realizam congressos. Quanto mais quebram átomos e contam quarks e mésons, mais angustiados exumam dogmas e aceitam crenças.

    - Saiba qual o seu anjo da guarda. Onde estão os seres astrais? Quem são os espíritos de luz? Você acredita em duendes? Ou em gnomos psicodélicos? Sua banda de rock é satanista? Você já viu a sua fada madrinha? – Stevam estende a ironia.


    (Lembro que quando anotei este diálogo, rabisquei no fim da página: Marx combate o Espírito Absoluto Hegeliano, enquanto Darwin suporta os espiritualistas evolucionistas, e Nietzsche e seu amigo Rudolph Steiner (?) e a Logosofia (??), além de Freud a ridicularizar o “sentimento oceânico”, e a lamentar o desvio de Jung com seus arquétipos e mitologias.)

    (O Valêncio quando leu as anotações, acrescentou: Spinoza reage a Descartes, Marx reage a Hegel (em um nível), Kierkegaard reage a Hegel (em outro nível), Nietzsche reage a Kant e Schopenhauer. E nada mais.)




(do diário de Stevam Lucena)

  abril 2000


    A Gestalt de grupo se resume a interação entre os indivíduos. Suas volições distintas sendo dirigidas, em coesão, para um objetivo comum. Seja este objetivo espontâneo ou dado exteriormente. Digamos que a presença de um líder, uma diretriz, norteia a somatória das volições do grupo.

    Mas qual será o nível de integração do grupo? Até onde os indivíduos se agregam em prol de comum objetivo? Não foi iniciativa do grupo. Foi sugerido e proposto, ou foi exigido e imposto, inserindo os indivíduos numa atividade, apresentados os meios de ação. São sugestionados a participarem, sem idéia previa, sem planejamento, apenas “são-jogados-na-situação’.

    O riso é um tipo de defesa? Se o indivíduo não se integra, ele pode flutuar sobre a situação e considerá-la ridícula. Se o indivíduo mergulha na situação, não pode ironiza-la, pois senão estaria se ironizando, pois o indivíduo e a situação são uma-coisa-só. O Ser É na Situação.

    Para haver o riso precisa-se de um deslocar. O Ser daria boas risadas se entendesse sua condição? Poderia rir do ridículo de ser-um-com-a-situação ?


    A defesa surge no inconsciente ou passa por instancias associativas de nível superior? Ou melhor, eu me entrego ao riso se percebo o ridículo, o diferente, o inusitado, o deslocamento, ou apenas por notar-se jogado-na-situação? Mas, de qualquer forma, preciso notar a situação! Preciso saber onde estou!

    Tenho outro ponto. O riso é contagiante. Um tem a percepção da incongruência e se entrega ao riso, e outro (que nada percebeu) pode rir igualmente.


    Quando num grupo surge uma nova proposta, há um súbito desequilíbrio, e as consciências (os conjuntos de percepções) assimilam e se adaptam – ou recusam. Assim é devido a proposta ser estranha ao momento-de-consciência de cada um, irrompendo na estrutura (Gestalt) até ser assimilada. Se o grupo (a entidade global) aceita, cada indivíduo se torna anônimo, imerso na estrutura, e aceita igualmente.

    Os indivíduos se anulam (numa volição coletiva) ao aceitarem a nova proposta e, enquanto grupo, se entregam aos ditames e as exigências desta, se dissolvendo na coletividade da ação, “Eu não faço, o grupo é que faz”. O grupo alça alturas jamais ousadas pelos indivíduos m si. O que importa não é a individualidade e sim a proposta, o propósito, a ordem soberana, a ser executada, visando cumprir a expectativa gerada. Daí a força (e o perigo) dos exércitos, das gangues, das torcidas organizadas, das manifestações de massa.

   Logo o trabalho grupal segue por si mesmo. Não são os indivíduos que trabalham, é o trabalho que se faz através dos indivíduos. A tarefa dada confere um significado de momento. A atividade cuja conclusão é esperada.

    Não havendo resistência, novidade, mas aceitação, o trabalho flui, a atividade é executada. Não há interiorização da proposta, mas aceitação grupal, “O Líder salvará a nação, devemos ajudar ao Líder em sua missão”.

    A questão aqui é: o que define o Grupo? A atividade, o propósito considerado comum. E o grupo deve estar à altura da atividade.



    Rir do absurdo. O que é rir? O que é absurdo? Uma situação nova? Se assim fosse o estar-no-mundo não seria risível? Mas a criança ri, espanta-se. Até a fase adulta, o Ser aprende a Aceitar, achando tudo NORMAL, socialmente dado, pronto.

    O risível, a comédia, é o esforço humano, a civilização, a sociedade. O trágico, o triste, é a condição humana.

    O riso é uma exteriorização do desconforto, é um pro-jetar-se. O riso nasce da percepção do descompasso entre o ideal e o vivencial.

    Assim, o riso não se distancia da angústia – o que explica o chamado ‘riso nervoso’, quando se ri, na mais abjeta miséria!

    Quando entro em uma biblioteca, ataca-me uma ânsia de riso, diante de miríades de títulos, tanto conhecimento pra quê? Para repetir os mesmos erros? É quando, em minha angústia, ataca-me a vontade de rir do esforço humano em chegar a lugar nenhum.



 
continua...


LdeM

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

mais trechos do cap.1

...

(trechos do diário de Sônia Regina Dalmas
encontrado entre os pertences de TH
por Stevam Lucena em início de 2003)



    “Aqui vou escrever um pouco do que estou sentindo nesses dias que passam lentos e pesados, e de algum medo também.”

    “Eu estou aqui, vim falar de mim, preciso refazer a minha vida.”

    “Quando aqui cheguei fiquei até feliz pois ainda estivesse em casa eu tria morrido, e também não teria a oportunidade de ter conhecido tantos outros, assim, sem rumo, meus irmãos.”

    “Deus, por que que tudo no começo é um mar de flores, com o passar do tempo começam a s pétalas a deixarem apenas os espinhos?”

    “Sabe, Deus, o porquê digo isso, porque quando conheci o Oto ele me tratou muito bem, pois conhecei o cara num barzinho ele me olhando – queria ficar comigo? – mas como sempre sou um pouco desligada e nunca gostei de me aproximar de alguém que as pessoas falam. Olha, menina, ele tem uma grana, hein!, se eu fosse você ficava com ele! Eu odeio isso! Então o tempo passou, aí chegou enfim o dia em que eu precisava do Oto, e fui revê-lo. Logo no show ele agarrando a Carol.”

    “Agora não sei o que Oto está me julgando. Uma oferecida, uma pessoa mais que falsa, sem moral, até prensando mesmo que posso querer conquistá-lo ou o Stevam. Achando ele que sou a pior pessoa do mundo. Mas ele no fundo, no fundo ele sabe que eu seria incapaz disso, mesmo porque eu estou precisando muito dele, e até mesmo se não estivesse.”


(páginas em branco)(uma folha rasgada)


    “Olha, meu Deus, eu estou novamente te implorando para que me dê uma luz do que devo fazer nessa hora de medo, que me envie um emprego, e que me dê um lugar para morar, é tudo o que desejo neste momento. E no meio não deixe que Oto e mande embora agora porque não tenho para onde ir, e o meu maior medo assim sem rumo na vida, pois não tenho quem ligue pra mim, ninguém por mim.”




    - Carne moída ou bife?

    A mãe, dona Hilda, se encontra indecisa diante do balcão de frios. Ao seu lado, HD segura uma embalagem de pizza pré-preparada, pronta para ir ao forno.

    - Na dúvida, leve uma bandeja de cada.

    E empurrou o carrinho para mais perto. Não sem antes pedir licença a um outro cliente, um senhor alto e grisalho que fazia compras com a esposa atenta a uma calculadora. O supermercado de repente está cheio, naquela tarde de sábado. Mas logo lembrou que estavam ali a quase duas horas!

    - Ah! mãe, vê se anda logo! A senhora com esse talento para ‘fiscal do Sarney’!

    E desnecessário. Agora temos um presidente proletário no poder. Foi difícil mas o sindicalista chegou lá. Ainda que não mudasse nada, ao menos havia uma preocupação social. Foi o que ressaltou em seu discurso de posse. A família toda ali reunida, acompanhando a ascensão de um Silva ao cargo maioral. Havia um tanto de messianismo nisso, era inegável. Mas o povão é assim mesmo.

    - Eu preferia um frango. Para fazer um strogonoff, sabe...

    A mãe ainda não se decide. Era assim mesmo. Passariam ainda mais um hora dentro do ambiente de ar condicionado.

    - Por mim, pode levar o frango também. Mas vamos logo!

    - E a massa para lasanha?

    Rumo a seção de Macarrão. E o desfile de preços e promoções. O preço do tomate, o preço do feijão, a inflação sutil, o dólar vai se equilibrar, cuidemos do nosso comércio exterior, só os intelectuais no poder é que.

    - Desde que você voltou, Hector, eu tenho que colocar, no mínimo, uns cinco pacotes de macarrão a mais. Até parece que tem sangue italiano... E o feijão, então? Preciso pesquisar os preços, filho.

    E deixa no olhar o mesmo sendo de dever, o mesmo que ele percebera na tarde em que encontraram o candidato a prefeito, apertando mãos e beijando criancinhas. Acabou eleito. O povo sabe reconhecer um corpo-a-corpo! Mas a dona Hilda se perfilara, pois finalmente apertava a mão de uma autoridade, ainda que possível autoridade! Mas a pesquisa de boca-de-urna era cifra inatacável!

    Ou então aquela vez em que encontraram um grupo de jovens desordeiros na avenida central. Dia da Independência, 7 de setembro. E ela toda perplexa. “Quem são estes baderneiros? Um perigo!”, e HD se voltou para os jovens punks, e sussurrou, “Que nada! São estes aí os mais inofensivos!”, mas ela toda séria, o senso de ordem e disciplina, durante toda a data cívica. Talvez por ter se casado com um funcionário público...

    - Arroz integral. Farina de mandioca torrada. Está conferindo? Já chegou a quanto?

    - Passou de cem.

    - Ainda falta as gelatinas e a massa de bolo. Também o tempero. Agora lembrei.

    E continuam a peregrinação por entre preços e promoções, produtos e promessas, guloseimas e crianças manhosas, “mamãe eu quero!”, e quem não chora, não ganha, e “está bem filhinho, mas uma só, hein!”, e depois eis o garotinho novamente, “Quero um doce de leite!”, “Mas querido, minha vida, eu não comprei o de chocolate?”, e por aí a pantomima.

    - A Biblioteca não fica longe?

    - Na área central. Ônibus na porta.

    - Mas é longe. De repente, você numa...

    - Pois é, mãe. É temporário. No apartamento eu não poderia ficar. Eu não te disse que o Flávio é noivo?

    - Ah, meu filho, isso eu sei! Ms do Barreiro pro Centro, todo dia? Está bem que melhoraram as linhas de coletivos, mas...

    - Não que eu goste. Morar no centro é melhor, claro. Mas sem um tostão? Volto apenas para me reorganizar. Até conseguir aulas, ou sei lá, outros cargos. Peso em política. Novos candidatos brotam por aí. Talvez precisem de assessores...

    - Você quer geléia? Tem também goiabada. Ah, uma delícia com queijo! Daquele que o seu pai trouxe da roça...

    - É. Bom. - e jogava os produtos no carrinho, não sem se esquecer de somar os preços nos valores da calculadora. – Chega a cento e trinta. Mais alguma coisa?

     - Na lista já risquei. Acho que ou levar uma vassoura.

    - Tá bom, mãe, tá bom. Então vamos. Mais de duas horas que estamos aqui!

    - Ah, vê se pára de me apressar! Você quis me ajudar, agora tenha paciência!  Não me apavora não!

    - Agora entendo porque as mulheres é que vão às compras.

    - Mas é mesmo. Se os homens fossem ao mercado, quebrariam o orçamento da casa! Passavam com pressa e tudo e compravam o mais caro! É preciso comparar os preços, as marcas...

    - Sei, sei. Vamos lá, mãe. Não temos o dia todo.

    - O que você vai fazer? Sair? Namorada?

    - Não, não. Ainda bem. Nenhuma para me encher... Preciso é terminar um conto. E depois digitar. É mesmo. Depois eu nem vou ter tempo.

    - Eu nem sei pra que você escreve tanto. Para os jornais? Quanto eles te pagam? Ah, se você fosse hoje um advogado como eu sempre sonhei! Mas fica aí: escreve e escreve. E nada!

    E a mãe se afastava, rumo a seção de limpezas, onde pretendia encontrar uma vassoura. Precisaria limpar a casa, o quartinho, agora que HD retornava para o lar, doce lar. (Doce lar?)

    “E tenha paciência, Hector”, ele se dizia, “é por pouco tempo”, e que a sorte e a providência o atendam.





    - Preocupado? Por que não aceitar a trilha que vai do berço à cova?

    Quando Stevam ouvia TH, com sua voz monótona, não conseguia entender por que havia procurado o amigo de Sônia. Nunca tivera muito contato com ele, um ser muito reservado, que surgia vez ou outra nos ensaios da banda, sempre à noite, nunca confiando muito.

     - O que quer dizer com isso?

     A língua passeava nos lábios, antes de despejar palavras.

    - Ela não tinha mais nada. E agora não precisa de sua piedade.

    - O que não entendo é sua hostilidade.

    Os dedos se uniam num aperto. – Por que se interessa tanto? Ela que se arrastou até a morte pedido apenas compreensão. Você nada compreenderá agora.

    Pausa.

    - Quem a conheceu? – TH olhava acima dos olhos de Stevam, encarando o círculo lunar que se elevava. – Será que era louca? Era uma menina sem rumo? Talvez igual a todo mundo hoje em dia.

    Stevam se humilhava diante da altivez. – nem insinuei isso. Talvez tenham dito. Não eu.

    - Uma questão de respeitar a memória dos mortos? Uma pobre coitada? Um ato de desespero? Coragem ou covardia? Sangrar até o fim.

    Pausa.

    O luar se infiltrava, Stevam seguia o contorno das unhas. O bar era agora uma tenda no deserto. A clientela se dispersa, poucos ainda em monólogos com seus copos.

    A voz de TH ainda existia. – Realmente se importa tanto? Quer entender o ser humano? O sofrimento no qual é capaz de mergulhar, se afogando?

    - É um sofrimento familiar...

    Nem parece que TH tenha ouvido. – queria que ela vivesse, que ela continuasse, por medo da morte?

    - Somos os covardes, então? O primeiro homem consciente deveria ter se matado?

    - Não, nem heroína, nem covarde. Uma pessoa consigo mesma.

    Outra pausa. (Ambos constrangidos)

    Para que se lembrar dela? O que lembrar dela? Só a prejudicamos, prendendo-a em nossas mentes!

    - Quer que a esqueçamos? – se surpreendeu. – Mas por que? Se ela foi tão estimada? Imagino que ainda é...

    - Você não entende. Esta lembrança a qual você insiste em se agarrar é uma caricatura. Um fragmento dela. E tudo vai se esvaecer igual a fumaça. Esqueçamos os mortos.

    - Quer dizer que incomodamos aos mortos com as nossas lembranças?

    - O que mantemos é apenas uma imagem mutilada, um momento petrificado, uma fotografia borrada. Nós os aprisionamos, fazendo-os viver em nossa mente. O que julgamos que eles foram. Eles desejam é desaparecer livremente.

    De súbito, se levantando, TH se recusa a ficar assim, falando de Sônia, numa conversa de boteco.

    - Não sou um revoltado, mas sim um suicida ainda vivo. Essas músicas, esses gritos, falam de morte, luto, visões agônicas. Assim preferimos falar do que fazer, estetizar para não praticar.

    Mas já ao havia mais diálogo. Um em monólogo, o outro sofria.





(do diário de Sônia Regina)


    “Agora vou contar um pouco da minha vida desde criança.”

    “Lá com meus três anos já me lembro de algumas coisas, os gritos, as ameaças, mamãe descontando em mim todas as suas brigas com meu pai, mas o tempo passou e fui para a escola, onde adorava ir para ficar longe dela só assim a gente não brigava. Então todas as vezes que ela ia me ensinar os deveres de casa ela puxava meu cabelo, enchia meus braços de beliscões, só para que eu aprendesse a fazer o dever direitinho.”

    “Vivi a minha vida quase toda no meio de gritos e brigas, meu pai batendo em minha mãe porque ela respondia, mas não tinha ninguém para bater nele... sempre quando batia nela eu entrava no meio e apanhava também.”

    “Eu agradeço a eles por ser essa pessoa que sou hoje, rebelde, encolhida, e antipática, pois a vida inteira vim esperando dela ou dele um diálogo, um carinho, e nunca tive isso.”

    “Ai meu Deus será que não chegou o fim do mísero sofrimento não?”



(anotação de TH) (encontrada por Stevam Lucena)


    Meu pai é meu melhor amigo – oposição é verdadeira amizade, diz Blake – ele nunca esteve perto de mim quando eu precisei, mas nem assim parei de pensar nele.

    Penso que se ele morresse hoje a única coisa que eu desejaria era morrer junto – o que faria sem ele? Preferiria morrer antes dele porque sua morte me seria atordoante.

    Por isso eu peço aos Deuses que o abençoem e que nada de mal lhe aconteça.




    Após uma noite de sonhos inquietos, aliás comentados com a irmã, HD mastiga uma torrada, sempre anotando frenético, atento aos dígitos cambiantes no celular.

    Lá fora chove com timidez, ele segue, pensativo, rememorando sonhos que nunca antes tivera, evitando as poças de lama, e, como ainda chuvisca, acena ao primeiro táxi. É daqueles que aceitam mais um passageiro por vez. Lá está uma loira, no banco de trás do motorista.

    Prontamente, HD indica seu destino e, discretamente, dedica-se a observar sua companheira naquela manhã úmida até nos pensamentos. Ela é loira, mas de um loiro meio enferrujado, de feições pouco germânicas, algo mais para traçados célticos. Dedos delgados, bem tratados, mas sem jóias. Uma aparência modesta – uma secretária de consultório dentário, possivelmente. Uma vendedora de lojas de moda, talvez. Uma beleza singular.

    Nem um minuto e um terceiro passageiro – um homem de meia idade, a carregar uma pasta um tanto obesa, entra, em comentários com o motorista, aqueles de sempre, que a chuva veio refrescar um pouco aquela semana de calor – “Mas é tão-somente uma pausa, camarada!”

    HD não dispensa muita atenção com o recém-chegado – imaginando, em conjecturas, no caso de tratar-se de um vendedor de seguros, suponhamos – sem desviar a avidez dos olhares deitados sobre a silenciosa jovem ao seu lado, muito tímida aliás, que nem ousa olhar meio de lado. HD já nem disfarça, devora aquela beleza com os olhos, a pele leitosa, s pernas em sensual escultura, a sandália abrigando pés divinais. Uma gaulesa? Jeune fille em fleur? Sim, não mais que vinte anos. E mais: sua fisionomia não lhe é estranha! Onde já vislumbrara aquela beleza antes? E vai pensando em aborda-la. “Olá, bom dia! Desculpe-me, mas a senhora – ora! Ela não usa aliança! – a senhora mora em tal e tal?”. Não, não, como se percebia um pleno idiota. Mas ela ali, ao alcance da mão – e tão distante! Por que era tão difícil de alcançar? “Desculpe-me, mas eu já vi belezas as mais líricas, mas a tua é singular!” Ridículo, homem, ridículo, isso lá é coisa que se diga?! “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam ridículas se não fossem cartas de amor”, já lembrava Pessoa. Impossível alcança-la! E ela arruma o cabelo, e fios caem ao longo das têmporas, encobrem as orelhas que merecem uma mordida! As unhas sem tinta, os dedos dignos de uma pianista! A saia lembra a simplicidade estética dos ambientes refinados! “Eu, pobre poeta, diante de tua beleza...” A beleza e a distância. “É como se eu não estivesse aqui. Ela me anula mentalmente. Nada significo. Nenhuma atração. Ou ela disfarça também? Sou um incomodo? Um olhar vampiro? A lembrar-lhe sua condição de mulher? Sempre desejada? Sorvedouro de olhares? Fonte de galanteios? Rangendo os dentes a cada cantada? Será pudor – ela nem move a cabeça – diante de mim?”

    O cidadão, ao lado do taxista, comenta algo mais – O quê? – trechos de manchete de jornal local, editoriais de folhas nacionais, o novo governo enfrentando as bases políticas, sei lá, HD dá a mínima. “Troco o conteúdo da Brittannica pela mais singela informação: qual é mesmo o teu nome?” Ignora o (possível) vendedor de seguros, tanto quanto a jovem o ignora. Na mesma proporção. Na plena acepção dos geômetras. Por que as pessoas se ignoram? HD não! Ele gostaria de ter “um milhão de amigos”, como diz a canção. O que não suporta é que os outros vejam através dele, como se não passasse de uma lâmina de vidro! Ou um espectro!

    E então ele se lembra! Aquela face, aquela beleza loira: sim, do sonho! A atendente da Biblioteca que lamenta não poder aceitá-lo, enquanto usuário, devido a seus ‘antecedentes’! e ele vai abordar a moça: “Sonhei contigo esta noite!”? Coincidências? “Existem? Eu sonho com a moça e ei-la aqui, ao meu lado! Devo revelar tudo? Não, ainda não sou assim tão louco! Mas acontece que poderei nunca mais ver sai face de promessas! Sim, nunca mais!”

    Bem, HD vai assim a ruminar renúncias e meditações outras, quando a moça acena ao taxista. “Ela vai descer!” grita o seu mudo desespero! Ela ajeita a bolsa, alisa a saia, se prepara. Ela desce, a face se destaca contra o vidro golpeado pelas gotas débeis, na manhã de chuva tímida – e ele ainda a observa. Ela se distancia desfocada pelas gotas.

    O táxi avança. HD pergunta ao motorista:

    - O que funciona aí no prédio?

    - O Arquivo.

    HD observa o prédio se distanciar na chuva.




(do diário de Stevam) (fragmentos)


(outono de 2000)


    Às vezes observo o meu pai, este revolucionário de classe média, que anda pela casa, a procurar problema apenas para se dedicar a soluções. Se descobre uma janela fechada, ele abre, se aberta, ele fecha. Se o saleiro está no fogão, ele coloca sobre a mesa, se está na mesa, ele desloca para o armário. Igualzinho aquelas dons-de-casa. Não pode mudar os sinais de transito da rua, ao pode alterar o próprio transito, não pode deslegitimar uma eleição para o conselho de saúde ou para a associação de moradores, não pode mudar o país, muito menos o mundo, mas pode mudar a posição de do vaso de flores sobre a mesinha da sala-de-estar.


(duas páginas adiante)


    Quando folheamos livros sempre encontramos pérolas. Na biblioteca do meu pai não faltam ostras cobertas de pó. Não gosto de entrar ali, até porque me lembro de Sônia e certas frustrações. Mas vou à estante, encontro um nome na vertical, Jean-Paul Sartre. Abro o livro, passo as páginas, uma linha se destaca, algo como só se é homem quando se encontra algo em nome do qual se prontifica a morrer, algo assim, não copiei o treco e duvido que possa encontrá-lo novamente.

    Fiquei o dia inteiro pensando no trecho. Algo precisa dignificar a vida a ponto de entrega-la.

    Eis aí algo que não faz sentido para Oto, que sente a vida valer pela vida – e nada mais!

    Mas Alfonso, meu irmão, agora todo contente com seu título de eleitor, a discutir política, pronto a raptar os volumes marxistas da biblioteca. Quer a todo custo encontrar algo que seja digno de luta, algo que justifique um engajamento.

    Seria interessante um debate (claro que impossível!) entre o Alf e o Oto. Pois ao Oto basta gozar a vida, nada de justificá-la, e não importa se é apenas um fenômeno fisiológico ou encarnação punitiva, a vida é vida e pronto, vamos aproveitá-la.




    Flávio escolhera uma peça mais literária. As cartas de Van Gogh. Tratava-se de um monólogo, e muito elogiado.

    HD percebeu o sufoco do amigo ao manobrar o carro sobre a calçada. Na pressa, seria um sufoco procurar uma vaga. Sábado à noite então!

    Apagados os faróis, o impacto seco da porta. Acompanhava-o a bela e jovial Stella, atenta ao cabelo e pinçando os bilhetes dobrados de dentro da bolsa.

    Uma noite de sábado calma ali na Getúlio Vargas. Junto a porta envidraçada, uma jovem joga ao longe o cigarro, entediada, antes de entrar. HD observa a lista das peças em cartaz, os casais que se aproximam, o abraço protetor dos rapazes, o jeito irônico das mocinhas. Ou uma janela que se apaga no edifício defronte. Uma brisa, e gotas deslizam no rosto, ao erguer a manga longa da jaqueta, no gesto de enxugar-se, deixa entrever um brilho no olhar.

    - Só esperando a minha chegada?

    Flávio estende a mão, em sorriso infindo.

    - Há tempo. Eis que as luzes se apagam.

    - Andando na chuva?

    - É, as gotas ainda caem. – e derrama o olhar sobre Stella, aconchegada a Flávio – Espero que seja uma boa peça.

    - Espero que sim. Ator muito elogiado.

    Stella sorridente. HD tenta sorrir. Nem que para agradá-la. Toda essa cautela com as mulheres. Mas nada de bajulações, elogios daqueles vazios.

    Adentram a salinha, e Stella pressiona o braço de Flávio, num sinal de que ela reconhecera alguém. Sim, nas cadeiras da frente estavam um colega de Flávio e uma mocinha de vestido neo-hippie.

    - Fugindo das comédias?

    O colega sorriu e concordou que realmente só divulgavam comédias, que tinha até comédias demais, apesar de que o pão e circo é sempre um remédio aplicável em tempo de crises e eleições. E nem citemos a Copa do Mundo.

    HD gostou do bom senso do colega. Flávio conduziu as apresentações. Hector Dias. Lino Matias. Até rimou! A menina se chama Cíntia.

    - Pesada. Oprime mesmo. Essa música clássica.

     A voz de Cíntia era até morna quando respondia ao comentário de Stella sobre o clima (não, ela dissera atmosfera) opressivo (ou opressiva) do ambiente. Penumbra. Sinfonia. Onde estava o ator?

    - Quase velório.

    Era que Flávio detestava coisas mórbidas.

    - Mas imagino que não foi só idéia sua, essa de vir...

    A insinuação de HD fez Flávio se voltar. – Foi elogiada. Coisa fina. Não é aquele pintor que cortou a própria orelha?

    E tentava se desculpar. Que não lera a biografia do artista. Apesar de saber que ele sofrera um destino trágico. Flávio e a sua mania de ficar se desculpando por não sentir-se bem informado. Mas quem hoje em dia está bem informado? E sobre o quê?

    - Ei, Tiago, tem lugar aqui.

    A voz de mocinha mimada arranhou as suas costas. Duas amigas se acomodavam e guardavam lugar para um jovem de penteado arrepiado. Nem no teatro se tem sossego. Aquela agitação da platéia destruía a atmosfera solene. Ou pesada, como dizia a Cíntia, que estava ótima naquele vestido ao estilo anos 70, só faltava uma flor no cabelo e um disco do Caetano.

    No palco, um círculo de doze velas. Aqueles círios de velório. Todas apagadas. No centro um litro de cachaça? Alguém sugeriu uma macumba. Vozes dispersas. Talvez umas cinqüenta pessoas ali, naquela claustrofobia barroca.

    Nada a temer nessas trevas. O ator move-se ao redor. Onde estará? Ressoam passos trôpegos quando eleva-se um hino religioso de um barroco alemão no romantismo triste de piano e violino. Passos à sua direita. Surge uma chama. A voz na solenidade de um texto bíblico, talvez o livro de Jó, ou os Salmos. Os olhos brilhantes refletem a chama dançante. Eu sou nada, tu és tudo, Senhor.

    Um reverendo em gestos mínimos? Voz cativante e passos incertos, o ator em serviço de culto. Vela a vela acesas, num carinho para acender cada pavio. Parece um centro espírita, ironiza alguém.

    Uma carta para o irmão. Quer mostrar-se útil, orgulhoso em agradecer uma ajuda. “O pão que comi veio de uma alma caridosa que me despreza.” HD notava o vulto de Flávio a sua esquerda. O irmão que o acolhera. Não sou um vagabundo, sou um pássaro engaiolado. Como livrar-se da gaiola burguesa? E do livre mercado?

    Flávio comovido com o drama do pintor, que sofria por amor, golpeado por um “jamais”. Ah, sim, o momento do amor, unindo as cabeças dos casais, a jovem sonhadora reclinada sobre o peito do amado. E HD de braços cruzados, incomodado por essa onda de romantismo. Talvez a pobreza nada significasse para um estudante, um poeta panfletário. Mas o pintor soubera o que é pobreza. Hoje seus quadros vales milhões, mas enquanto vivo cursara a universidade da miséria: só vendera um quadro, e ao irmão. Uns setecentos. Girassóis e catedrais retorcidas. Catedral distorcida (que o colega Lino comentaria depois) assemelhar-se mais a um bolo de núpcias, ‘derretendo, claro, em plena festa”. Claro, claro. O irmão subiu na vida e eu fiquei aqui, serei o pobre pintor a morrer na penúria. O ícone do artista reconhecido apenas depois de morto. “Artista bom é artista morto”. Depois de morto ganha busto e estátua em praça pública!

    O ator bebendo no bico da garrafa, lendo um soneto de Shakespeare, “como é belo!”, encontrando papéis todos amarrotados nos bolsos. A caricatura do alcoólatra ou a personalização da miséria? O que se pretende? Representar o desassossego de um pintor que decepou a própria orelha. Certo, mas, convenhamos que o tipo parece mais um perturbado, senão uma caricatura mesmo. Cuspindo assim a bebida, aproximando-se da platéia, encontrando assento ao lado da garota tímida, ou beijando a mão de uma oferecida. O que temos aqui? Um pobre bêbado, um tipo que encontramos pelas ruas. Todo gênio é ridículo assim? Empunhando uma garrafa, humilhando-se pelas ruas. Um flâneur. Baudelaire será sua companhia? Rimbaud, Edgar Allan Poe? Poetas bêbados! Joyce pelas sarjetas!

    Na vida encontramos os vendedores e os perdedores. Os caluniados e os que caluniam. Este vulto bêbado pede compaixão? Querem que eu sinta piedade do infeliz artista? Falta de grana: só isso. Dêem um dinheiro e pronto: um novo cidadão. Se comprassem os seus quadros, posso imaginá-lo a desfilar acompanhado por donzelas nos salões de Paris ao lado das personagens de Marcel Proust.

    Mais papéis exumados de seus bolsos revirados. Aspira o perfume da amada nas cartas que ostenta seus “jamais”. Outro coração transtornado de paixão e não correspondido. O vulto do jovem Werther. Se a garota topasse a transa ele não ficaria nessa. E essa Cíntia até que tem belas mãos, alisando assim o cabelo ali do colega. E Stella tem lábios de desejos ainda que apertados de tensão.

    Que Flávio tem bom gosto, todos sabem. Stella é juventude. Alguma emoção sensual. Duvido que ela reconheça um quadro de Van Gogh! Nem pensar! Ah! Flávio é meu melhor amigo. Meu irmão mais velho, aquele que sempre fez falta.

    O pintor espera que o irmão escreva. Apesar de estranhos um ao outro. Eu sou um inútil diz ele espera assim que a Fortuna então. E entorna a bebida sobre a cabeça. Mantém o um olhar febril sobre a platéia. Platéia parva inculta incapaz de sofrer decentemente. Deviam ter comprado os quadros do homem, enriquecê-lo. Assim não seria outro gênio vitimado pelas próprias mãos. As mesmas mãos que domavam a febre despejando sobre as telas as cores alucinadas e esboços deformados em perspectivas de delírios.

    Aquele brilho? Lágrimas? Stella emocionada, agarra-se ao braço de Flávio. O texto é forte, sim senhor. A mocinha é sensível. Precisamos aplaudir de pé ! Imagine o desgaste psíquico do ator! À vontade platéia aplausos ele agradece do fundo do drama monólogo sombrios interpretação agônica aplausos!

    HD ficou à espera de Flávio no vestíbulo. A platéia que saía parecia menor do que a que entrara. Poucos têm sensibilidade para a (como é que Flávio disse?) “interpretação agônica”. O ator certamente não entrou nessa por grana. Talvez por sentir gosto no mórbido, na loucura, nas ânsias auto-destrutivas. Pregará a redenção religiosa?

    O colega de Flávio chegou junto ao cartaz da peça. – E aqueles autores que ele citou? E ficou observando HD, atento o cartaz.

    Todos acabam rodeando HD, tenso, lendo (pela milésima vez!) o tal cartaz, no que era imitado pelos outros.

    - Sei que leu sonetos de Shakespeare.

    Era Cíntia quem se exibia. Flávio agradecia com o olhar, mas a informação nada lhe dizia. O colega (como é mesmo o nome? Matias?) lembrava de pintores holandeses, mas do século dezessete. Rembrandt. – Muita penumbra.

    - Forte aquilo de jogar bebida (era bebida mesmo?) sobre a cabeça. Um louco. – Cíntia continuava empolgada, enquanto o ar frio da noite esfriava os demais.

    - O ganho dele é a arte – “l’art pour l’art” – explicava o Matias ao Flávio agora a procura das chaves do carro.

    - E inútil?

    Matias respondeu logo: - E utilidade é o que? Se ele crê servir a sua arte! Ser útil em que? Em que poderei ser útil?

    - Ora, não é o que ele repetia o tempo todo? Não é, Hector?

    Flávio não podia ver HD à parte que logo o envolvia. Fazer o que? Vamos responder.

    - Ele precisava se justificar. Apenas não era útil ao que a família julgava utilidade. E aquela repetição é apenas fraqueza.

    Matias, entre as mulheres. – Velas de velório, não? Você bocejando, hein, Stella?

    - Ah, era o escuro. Não a peça!

    Flávio girava as chaves. – Quando entrei pensei que fosse macumba. De repente abaixava uns espíritos...

    De certa forma sim. – HD voltava-se, professoril. – A arte ali é fazer o texto viver, através daquela boca, através dos gestos. O ator é portanto um médium, pois encarnou o texto, o (digamos) espírito textual.

    Cíntia, toda atenção. – Legal essa de “espírito textual”.

    Matias (percebendo o perigo?), evasivo. – Bem, precisamos ir. Não jantamos ainda.

    Flávio apressa-se em abrir o carro, enquanto o casal flutua sob o brilho dos anúncios de néon.

    - Mas vejo que você não gostou da peça, Hector. Nem cumprimentou o ator.

    - E você fez questão de ir lá? Aliás você puxou os aplausos.

    - Ora, a interpretação é, como eu disse, agônica. Profunda.

    - Aplaudiu o ator ou a dor de Van Gogh?

    Era a vez de Flávio com o seu olhar de ‘eu não te entendo’. Mas HD continuou: - Aplaudiu o texto? Um lamento nascido do desconforto e da rejeição? Então acaba de aplaudir o sofrimento humano.

    Flávio se ocupava em tirar as folhas secas caídas sobre o pára-brisa. Esforçava-se para conter a irritação. Mas seu desejo de conversar era maior. Daí não pensaria duas vezes em oferecer carona ao amigo.

    - Entenda, Hector, eu aplaudi a arte, a interpretação. O texto nada é sem o ator, sem a vivência estética dele. Texto e atuação: um jogo só.

    - Seu senso estético é apurado, eu reconheço. Mas o que fizera ali é a estilização dramática das cartas de um miserável.

    Encostado no carro, Flávio até desistira de entrar. Parecia até gostar de encarar o amigo que falava e falava.

    - É difícil ser diferente. Sei que poderia ter escrito carta igual para o meu pai. Ele sempre me considerou um inútil, um vagabundo. Eu poderia ser um funcionário de carreira, um militar à serviço da pátria. Mas um filho poeta ninguém merece! Um filho estudante de Humanidades! É uma pena mas não me enquadrei no conceito que ele faz de utilidade.

    Então Flávio ofereceu a carona, HD preocupado em tornar-se inconveniente pensou em recusar, mas o diálogo não terminara.

    - Recuso a estetização do que quer que seja. Importa a expressão, a denúncia.

    - O problema é a estética...

    - Ir ao teatro, contemplar o sofrimento humano, chorar com Hamlet, depois degustar um farto jantar, e uma noitada num motel. Não muda nada.

    - E, para você, Hamlet é broxante? É de perder o apetite? Agora entendo porque as comédias enchem...

    O olhar de Flávio no espelho interno denunciava que ele meditava sobre a ‘arte engajada’. Stella sorria, “Isso está ficando complicado”.

    - Não nego a beleza. – HD agora queria se justificar. – Mas não a beleza em nome da beleza. Mas na expressão de uma revolta. A arte enquanto mudança...

    - De paradigma? – Flávio interrompia. “Paradigma” é um de seus termos prediletos.

    - Mudança de atitude. Para de achar tudo ‘normal’.

    - Está vendo, Stella? O Hector aí pensando que toda estética é uma espécie de ocultamento!

    Flávio, inclinado sobre os cabelos da garota, diante do sinal no vermelho. Arriscava uma língua na orelha. Ela abafava um riso, ou um protesto.

    - A Beleza disfarça o horror do mundo. A Beleza é a flor no esterco. Não passa de uma necessidade de alívio.

    - Não há beleza em seus versos? Se entendi...

    - Não pretendo esconder a desgraça em versos rimados e alexandrino. Não quero aplausos para os meus versos. Se o mundo fosse outro, estas denúncias nem existiriam! O contexto é mais importante que o texto.

    - O problema do Hector, sabe qual é, Stella? – Flávio falava como se HD estivesse ausente. – É esse excesso de panfleto, de palavras de ordem, de slogan, de aforismas.

    HD oculta sob o sorriso o seu menosprezo.

    - Escrevo sobre o mundo que me agride. Não glorifico o sofrimento, apesar de saber que faz parte, a obra requer o sofrer, mas importa a construção além daquilo que faz sofrer. Sem a superação, a arte (o que chamam de arte) é inútil. É mero entretenimento.

    - Apenas o engajamento liberta?

    - Ora, libertar de que? Estamos em gaiolas acolchoadas. Celas aconchegantes, com ar condicionado. Engajamento político? Outra ‘panelinha’, outro ‘inner circle’, no jogo? E muitos estão à espera da cela que merecem.

    - Às vezes você me preocupa, Hector. – Flávio se voltava, quando parava ao sinal fechado.

    - Flávio, as peças são para quem paga. Quem pode se divertir, e depois um bom vinho e noite ‘caliente’ sob os edredons. Peças engajadas não pagam nem o figurino dos atores!

    - O seu radicalismo é que me preocupa.

    - Qualquer um que ‘fala demais’ é radical.

    Aí Stella fazia aquela cara de “pensar demais leva à forca” atenta ao diálogo sinuoso dos rapazes. Ela que era o silêncio em pessoa. Somente entraria na conversa se dessem choques! Sua timidez não nascia d ignorância, sendo disciplinada e informada, mas do medo do excesso. E a fala é um excesso.

    Flávio percebia o olhar da companheira e esboçava outro indicando que não pressionaria mais o amigo. Mas era HD quem insistia!

    - O que eu vejo é muita estética sem conteúdo. Roteiros imensos sobre o nada. E sem um terço do talento de um Beckett, diga-se...

    - A estética à serviço de...

    - À serviço de quem? Ora, você sabe muito bem, Flávio! De quem deseja passar uma camada de verniz sobre a lata oxidada!

    - Até poético!

    - Não brinca! Se eu mostrar o mundo tal como eu o vejo, aquela plateia realmente ficaria vazia!

    - Ficaria apenas a sua revolta!

    - Ser revoltado é não pensar como espera que você pense. E não seguir o ‘script’. É ser espontâneo no meio do espetáculo. É tirar a máscara e rasgar o véu.

    - Um deslocado diante das exigências? Lembro que você já disse uma vez que somente nos percebemos em atrito com as exigências.

    - Somos um eu-diante-dos-outros.

    - Vamos devagar, Hector. Pensa que o ator ali deu seus passos trôpegos em vão? Simulou loucura para a diversão mórbida de alguns? Diremos burgueses, como você diria, sem esperar reação algum? Ou você queria que ele fosse hostilizado, ou mesmo – apedrejado?

    Agora Flávio até esquecia os olhares de Stella, não só meio ao falatório, em angústias, mas com o pé um tanto pesado de Flávio sobre o acelerador.

    Se ele agrada é porque não surgiu o efeito esperado? Aplaudir, cumprimentar, como eu fiz, foi a coisa mais ‘acomodada’ a se fazer? Tomar atitude para sair da gaiola acolchoada (que muitos invejam) é mais estressante que um aplauso catártico? Ver a interpretação como uma atuação artística e não como um conhecimento a aplicar na minha vida absurda, eis aí a defesa que assegurar a minha acomodação?

    Era HD quem estava desconfortável. Não pretendia irritar o amigo, mas não sabia medir as palavras. Stella se agitava.

    - Mas isso vai só complicando!

    O carro saiu da avenida e entrou no bairro. Dois quarteirões se seguiram em silencio. Flávio estacionou com perícia. Não pretendia nem arranhar a lataria! E o seguro vencendo em 2002... Preocupações outras. O rapaz desceu e foi logo abrir a porta para a sua Stella. A moça que observava o nosso HD como um derrotado na arena. É que HD gaguejava...

    - Sabe, Flávio? Não quero ser o chato. Mas você tem uma segurança que eu não tenho. Material e espiritual. Bens terrenos e sua fé. Eu nada tenho e em nada crio. Falta-me apenas aceitar a cicuta co todo o peso do mundo e honrá-la como fez aquele Sócrates.

    Mas Flávio não estava para erudições clássicas e tragédias gregas. A garagem se abriu e ele manobrou o quatro-portas. De volta, abraçou Stella. Não convidou HD para entrar. Apenas esperava que o quinto ato terminasse.

    - Sabe, Flávio? Sabe o que encontramos ali? Ladainha religiosa, solenidade barroca, a Bíblia aberta iluminada como se fosse a luz no fim do túnel. A volta triunfal da religião. Se é que algum dia foi embora... Preciso ir. Espero não ter estragado a noite...

    Flávio não fez esforços. Estava até aliviado. Stella piscou. Cúmplice, o casal deixou que HD se afastasse.


 continua...


LdeM