quinta-feira, 15 de setembro de 2011

mais Capítulo 5 da Parte 3

[...]





    Outro sábado e o crepúsculo. Em rubros reflexos nas janelas do ônibus, onde Stevam Lucena se acomoda, anotando os edifícios do hipercentro, o fluxo de carros rumo a capital, em cuidados para não amassar o blaser.


    Passou-se uma semana, desde que conheceu Bianca Maria, e volta a Belo Horizonte para uma noite de autógrafos do escritor Rafael Santos, o conhecido "Vampiro", devido a temática soturna de seus contos, e do romance, agora em tenebroso lançamento. Stevam Lucena aceitou o convite do escritor, naquela noite no Poesia Sombria, após elogiar as 'metáforas sangrentas' de seus textos e dizer-se ansioso folhear o tão anunciado romance.

    Pois o escritor Rafael Santos não o presenteou, e Stevam jamais folheou o romance, intitulado "Noite dos Vampiros", mas o que se registra é sua entrada num mundo o qual palidamente imaginava. E percebeu tal iniciação, com um sorriso de caráter indefinido, e indefinível, quando adentrou os labirintos espelhados do ambiente asséptico do shopping center, onde alguns vultos noturnos já se insinuaram e admiram as vitrines e ascendem nas dinâmicas escadas rolantes e exibem faces pálidas, temendo reflexos no mundo de espelhos.

    Guiado em literária busca, por ninfas sombrias, com seus cabelos longos e rubros, e seus vestidos vitorianos, e seus braços nus, e seus coturnos agressivos e não menos charmosos, Stevam Lucena encontra a famosa Livraria S., no faraônico shopping center erguido em antigo campo de importante clube futebolístico, em plena Olegário Maciel, onde, quadras abaixo, o portentoso templo pagão de polêmica seita neo-cristã exibe ali no mundo dito moderno, e até pós-moderno, todo o absurdo da fé.

    E então foi recebido por Rafael, o "Vampiro", o autor, ocupado em autógrafos e fotos, rodeado pelas mencionadas ninfas, com indisfarçável sorriso de malévola realização, a posar para o fotógrafo, ninguém menos que Márcio, o "Barão", aquele mesmo, o catedrático, aquele com o costume de entregar-se a longos colóquios ao telefone com a senhorita Amanda, a "Valkyria", segundo confissões dela, sim, autor de fotos onde o destaque é o referido sorriso e o volume rubro-sangue em suas mãos.

    E Stevam Lucena encontrou-se diante de colinas de brochuras, seguindo vultos meio as cascatas de revistas, trocando saudações junto a colunas de best-sellers, encolhido diante das muralhas de lançamentos, na topografia da Livraria, junto aos potenciais leitores, todos perdidos numa floresta símbolos, naquele poço sem fundo de sabedoria e entretenimento a tragar a todos os desavisados.

    E o jovem autor Rafael Santos, o "Vampiro", continua sob o flash do sempre cordial Márcio, o "Barão", diante dos livros em torvelinhos de uma cascata de sangue, gotejando caracteres sobre as folhas maculadas e manchando dedos esmaltados, soturnamente esmaltados, quando duas garotas trocam sorrisos cifrados, para um disparo da câmera, para um momento pinçado da efemeridade.

    Stevam Lucena encolhe-se a um canto, enquanto chegam os leitores, muitos advindos de uma matinê sombria no terminal turístico, onde não se importam, esses jovens aspirantes a vampiros, nem mostram temores, de derreterem-se ao sol das quatorze horas desta abençoada terra tropical, ainda que ajeitando os sobretudos, ou coçando a marca indiscreta da cruz ankh, aquela de tradição egípcia, ou retocando, com sutileza, os traços da maquilagem, os leitores chegam, ofuscados pelo brilho, mas com seus inseparáveis óculos escuros, e adentram a acidentada geografia das montanhas de lançamentos e dos pampas dos mais vendidos.

    Após a sessão de fotos, Márcio, o "Barão", aproxima-se de Stevam Lucena, ainda atordoado, e aponta alguns volumes, vistosos e coloridos, tratando de sagas celtas, guerreiros medievais, aventureiros virtuais, espiões internacionais ou conspirações industriais, além de best-sellers sobre Jesus Cristo e Maria Madalena, enquanto Stevam Lucena ousa algumas questões, "Qual a filosofia de Stephen King? Qual a pretensão de J.R.R. Tolkien? Qual a magia de Harry Porter? O bruxinho e sua vassoura adestrada...



    Folheando os livros e elogiando suas figuras e fábulas, Márcio, o "Barão", não destina muita atenção ao inquieto interlocutor, isto é, ao curioso Stevam Lucena que ironiza a "floresta de símbolos", que vem entreter os incautos, que não querem compromissos, só 'contos de fadas', "Quem vai morrer em nome da sociedade igualitária? Quem vai morrer em prol da libertação dos povos? Quem vai morrer pelo corpo de Cristo no pão e o sangue de Cristo no vinho?", mas, o "Barão" não quer saber de viver ou morrer por idéias ou crenças, e sua atenção é drenada para junto de outras jovens vampiras que se materializam, sim, todas sugando atenção, essas estilosas mocinhas pálidas e anoréxicas de classe média urbana, prontas para as dinâmicas fotos.

    Ainda atento aos best-sellers, seja aquele sobre a linhagem messiânica e o sorriso da Mona Lisa, ou aquele sobre o psicanalista apolíneo e o filósofo dionisíaco, Stevam Lucena não percebe de imediato a chegada de Fabrício, o "Andarilho Noturno", jovem conhecido desde aquela noite na Praça, quase dois anos se passaram, quando trocaram versos de Edgar Allan Poe, e agora o "andarilho" está dedicado às leituras freudianas e assemelhadas, em seu curso de psicologia, o mesmo curso que Stevam abandonou (já se passaram três anos!), e o neófito Fabrício destaca "páginas de Campbell, que bebeu da fonte de Eliade, que se embebedou de Jung, etc", e, acompanhando o raciocínio, Stevam chega até "Homero e seus heróis angustiados, que matam o pai e se casam com a mãe, ou navegam rumando para casa, e nunca chegam, ou"

    - Enredo do teu próximo conto? - quer saber Rafael, o autor sob os holofotes.

    - Não. Comentamos aqui sobre a "Odisséia". O mito do herói que, após sofrer duras provas, perdendo os amigos, até chegar em sua casa, encontra-se apto a ser elevado aos cumes da Glória!

   - E daí? O que vem depois? - a dúvida de Fabrício, todo eufórico, que talvez esteja a almejar a referida Glória.

    - Lembro que, segundo Nietzsche, que leu Vico, que leu os pré-socráticos, a história é cíclica: paz, estagnação, rebelião, conflito, até nova paz, estagnação, etc.

    E Stevam Lucena já não sufoca o pensamento de que Hamlet talvez ficasse nauseado, mas "palavras palavras palavras" não faltam, e Márcio, o "Barão", desfila, a colecionar fotos, com luzentes sorrisos de vampiras obscuras, e Túlio, o "Penseroso", recém-chegado, em termos irônicos, classifica, rotula, e cataloga, a produção livresca hodierna, enquanto ocupam os vácuos meio as estantes, e Stevam Lucena folheia "O Livro do Desassossego", que recebe pálido elogio de "Penseroso".

    - Vampiros morrem afogados em New Orleans! Bairro francês debaixo d'água! Onde está o Lestat? E agora, Anne Rice?

    - Conferências sobre vampiros às três da tarde na marginal Tietê, ou matinê para teenbloods (jovens vampiros) no Matriz, ou palestras sobre magia no aterro do Flamengo...

    Contudo todos alheios às observações de Stevam Lucena, enquanto o "Penseroso", inquieto andarilho, desbrava a topografia de encadernações e brochuras, os nobres cavaleiros do Templo Sombrio, vencem a fotofobia e não hesitam em folhear volumes com capas coloridas e gravuras exóticas, enquanto o Autor se registra em outras poses, e o "Conde" e seu séquito, com "Rainha", "Espectro", "Anja", e outros tantos, marca o ápice da noite de autógrafos e eis a fila a se formar diante das cascatas de capas rubras.



    Ao lado de Stevam Lucena, o "Conde", Marco Aurélio, está atento ao desfilar de ninfas, espectros, bardos e bárbaros, enquanto seus olhos perspicazes não vê tão-somente o encolhido Stevam Lucena, mas o prodigioso "Morpheus" de seu Templo Sombrio, aquele "Senhor do Sono", que, sempre insone, adentra, noite adentro!, os sacrários do Templo, onde tece ácidas e irônicas críticas nos escritos dos 'cavaleiros' e ousa compartilhar versos e contos, os frutos de suas insônias.

    E os 'cavaleiros' se dividem em grupos, por afinidade ou interesse, de estante a estante, onde os títulos pululam, em arrotos garrafais, "A Saga da Família McLeod", "como Influenciar Clientes - Curso Avançado", "A Verdadeira História de O. S. Parker", "A Anfitriã Ideal - em 3 Módulos", "Magia para Principiantes", "Como tornar-se Mago em 10 Lições", "Manual do Vampirismo", "Manual da Bruxinha Moderna", "Confidências de um Professor de Ensino Médio", "Verdadeiro Manual do Astrólogo Antenado", "Enciclopédia de Gafes e Trocadilhos", "A Vida Secreta do Senador", "Assassinatos na Academia", "Homossexualismo e a Fé Cristã", "Maracutais na Corte Petista", "Convivendo com Egos Inflados", e.

    - Pois eu penso que 90 por cento dessa papelada é entretenimento, ou, como diria o meu irmão, "indústria cultural".

    E, ao seu lado, Marco Aurélio, o "Conde" concorda e aborda questões de suma importância e pertinência, a constar a "validade literária", a "legitimidade artística", "a arte pela arte", "o poeta é um fingidor", e.

    - O ficcionista é um mentiroso profissional...

    - Literatura para salvar o mundo?

    - Tenho aqui comigo umas idéias...

    E Marco Aurélio, o "Conde" expõe suas idéias sobre uma coletânea de contos, com revisão de Márcio, o "Barão", e crítica autorizada de Stevam Lucena, o "Morpheus", e alguns param, concedem atenção a um trecho, unem a outros fragmentos, alheios, a desconhecerem a narrativa completa, e seguem, no útero aprazível da Livraria, ventre de vidro e plástico, com seus dedos jovens, com nódoas de nicotina e curiosidade, tocando com lascívia as páginas ensanguentadas de delírios.

    São os vultos que deslizam de um conceito a outro, uma nota bibliográfica a outra, de traduções esdrúxulas a prosas sem qualquer credibilidade, de confidências ou casos verídicos, de sociedades secretas ou biografias não-autorizadas, de sagas familiares ou genealogias absurdas, além de manuais de redação e etiqueta, lições de bons modos, crônicas sobre futebol, denúncias de bastidores da política, promessas de auto-ajuda, confissões de uma dona-de-casa, diário de um presidiário, ou de um taxista, a escolha, memórias de uma garota de programa, romances juvenis sobre amores cibernéticos, manuais de como sobrevier ao shopping center, ou de como sobreviver a cultura de massa e.

    - Para criticar a mídia, você precisa estar na mídia...

    - A crítica da indústria cultural já faz parte da indústria cultural...

    - Show de rock é programa de família. Eu, por exemplo, levo a minha filhinha aos shows...

    - Quem leu a segunda parte da saga? Ele renasce do inferno? Ou é levado pelas almas condenadas ao suplício no jardim dos esqueletos?

    Mas ninguém espera resposta, e Stevam Lucena une-se aos 'cavaleiros' para uma foto em conjunto, e segue-se outra, e os autógrafos se fazem raros, ainda que alguns curiosos se percam meio aos compêndios de anatomia humana, ou tomos de filosofia política, ou estudos de literatura brasileira, ou compêndios de seitas esotéricas, todos aqueles temas de A a Z, de estilo a localização geográfica, diante dos leitores, ou antes, os leitores diante de um jogo de espelhos, deformados, seguindo uma procissão caótica de sonhos e fragmentos da memória, na ânsia por vidas passadas e sagas jamais vividas, talvez preocupados com a eternidade da morte e a brevidade da vida.

    Depois, Stevam Lucena acompanhou bardos, ninfas, espectros até a praça de alimentação, ofereceu saudações finais ao autor Rafael, o "Vampiro", e igualmente ao nobre Marco Aurélio, o "Conde", e a todo o seu séquito, além de agradecer enfaticamente toda a atenção recebida, sim, atenção a ele dispensada, preferiu seguir em suas andanças envolto na brisa noturna.




Belo Horizonte, 05 de setembro de 2005

Como vai, querido Stevam?

Desejo que muito bem.

Foi um prazer receber a sua carta. Só não esperava que você
estivesse tão aflito. Desculpe se aparentei desinteresse em algum
momento. Apenas não olhei para você como um pretendente ou um
poeta romântico. Tentei conhecer um pouco mais o Stevam poeta e
pessoa, reconhecer no seu olhar o ser que você é, seus medos e
desejos. Pois ao contrário de você eu vejo a poesia em todo
lugar, olhares furtivos, nas esquinas, nas calçadas, até no
catador de papel.

Mas desejo que não carregue a dúvida de que você me desiludiu,
ou que não me agradou. Muito pelo contrário, te achei simpático
e cavalheiro. E sabia muito bem que eu já gostava de você
antes de nos conhecermos pessoalmente.

A única coisa que me assustou, é que você está atrás de uma
companheira, ao contrário de mim, que busco a solidão. Mesmo
assim quero continuar a me comunicar com você, e espero que o
que eu penso, não nos impeça.

Espero mais cartas suas, com poemas, crônicas, e todas as
coisas que você quiser compartilhar comigo.

Gosto muito de você Stevam, e desejo que nossa amizade
cresça.

                Beijos.

                                    Bianca Maria




    Mais uma semana se passou, antes que Stevam Lucena encontrasse Bianca Maria, que ele, em vão, convidara antes, e ela preferiria passear com o amigo Taz, quando da noite de autógrafos, e agora aceitara, "pois você é excelente companhia", mais curiosa em conhecer o centro histórico do que assistir a peça "Esperando Godot", obra de Samuel Beckett.

    Nada contra Beckett, exímio autor, e absurdo dramaturgo, e se não o fosse teria ao menos a honra de ter sido secretário do mestre James Joyce, nada contra a peça, sempre elogiada, ainda que pouco compreendida, a cada nova montagem, mas tudo devido as promessas de Stevam Lucena em ser um lúcido guia turístico, "vou querer saber tudo, vou te encher de perguntas!", ela sorria, e em passarem agradáveis momentos no parque ecológico.

    Entregaram-se a ardoroso abraço, e Stevam sempre "com saudades", ali na estação do Eldorado, pois ela, Bianca, viera de metrô, desde o Calafate, ela toda de vestes soturnas, ainda mais espectral, com cabelos curtos e óculos reluzentes, e uma bolsa, muito discreta, e ele todo de luto, cabelos soltos, e indiscretos óculos escuros, passados vinte minutos do crepúsculo, o que assinalava o seu atraso, e ela disse, "já estava me sentindo esquecida aqui!", e ele usou a desculpa do trânsito, e dessa vez era mesmo verdade.

    Encaminhando-se para a parada de ônibus, lado a lado, Bianca Maria percebia uma calma maior em Stevam Lucena, e ele reconheceu "estou seguindo os seus passos, no seu ritmo", e ela sorriu, "É, percebi. Tanto melhor", e oculto, pelos óculos escuro, ele piscou, uma vez que todos os sorrisos, que dela brotavam, deviam ser cuidadosamente registrado, devido a raridade do fenômeno.

    E no trajeto do ônibus, acomodados lado a lado, Bianca Maria não poupava perguntas, "Eram muitas as suas curiosidades", e "que shopping é aquele?", e "que área industrial é essa?", e "que centro histórico é este?", e Stevam Lucena, com toda a paciência deste mundo, atento a cada sílaba que vazava daqueles lábios desejados, trêmulos, rubros, luminosos, que "é o shopping que alguém disse que afundaria, por ser construído sobre um campinho, ou antes, um pântano, ou areia movediça, sei lá, onde realizavam festivais de música, e os Titãs estiveram aqui em 86 ou 87, não lembro, e eu podia ouvir lá de casa, uns cinco quarteirões de distância, e este é o centro industrial do município, e de fábricas de bolachas até artefatos pesadíssimos de aço para metalúrgicas, e estamos onde tudo começou, com a pousada dos tropeiros, rumo ao Curral Del-Rey, e aqui realizavam a contagem da boiada às margens do córrego das Abóboras, e esta é a Matriz de São Gonçalo, esta é a Casa da Cultura, e vamos descer diante do prédio da Prefeitura, e perambular no parque..."

    E era isso mesmo que Stevam Lucena pretendia, abrigando em seus anseios um passeio crepuscular no parque, sob a névoa fria das árvores, tal aquela noite quando retornou com Stevam Valêncio, que mora vinte quarteirões abaixo, e convidar a simpática Bianca Maria a se sentar sob uma imensa parreira, e, abraçados, com indiscutível ardor, sugar daqueles lábios o prazer ainda não conquistado desde a Praça, tudo isso ele pretendia, e para isso desceram, cúmplices, na próxima parada, e ele apontou a entrada de um condomínio de ricaços, "Estância dos Hibiscos", e indicou o Parque logo após a curva, mas para seu desgosto, e para isso ele não se preparara, descobriu estar fechado, em reformas, no intuito de "melhor servir ao cidadão".





    Visivelmente frustrado, Stevam Lucena, agora sem o óculos escuro, procura um assunto qualquer em sua mente abalada e nada encontra e Bianca Maria, ao seu lado, toda silente, se deixa conduzir até as escadarias de pedra bruta da Casa de Cultura, de onde ele mostra a arquitetura do século 18, os entalhes nas ciclópicas rochas que apóiam a alvenaria secular, e o cruzeiro, e a rosa dos ventos, aliás, um galo eriçado, aplumado no centro de norte-sul-leste-oeste, e Stevam Lucena sem mais o que pensar, sem mais o que dizer, lembra de um fato, narrado ali mesmo por JJ, ao lado de Valêncio, sobre "um amigo, dos tempos de colégio, que ali morrera atropelado, exatamente diante daqueles degraus rústicos, onde, se procurarmos bem, vamos encontrar manchas de sangue dos negros escravos que arrastavam, e encaixavam, estes blocos, e bem aqui (e Stevam apontava, mórbido) o rapaz caiu, atingido por um ônibus, aliás, o mesmo ônibus no qual viera, do qual ele desceu ali (e apontou três passos adiante), e o ônibus manobrou na curva e o motorista não se apercebeu e tudo tão gratuito, não é?, morrer assim, mas por que estou falando disso?..."

    Magoado, até com exagero, Stevam sentou-se no degrau, junto a porta, debaixo da qual vaza uma luz tímida, e Bianca, agora solícita, acomodou-se ao seu lado, e ele diz, "Por que toda essa morbidez? Por que tenho de ficar lembrando dessas coisas? Era para tudo ser romântico! E eu pensando em tragédias!", e ela diz, "você se deixa abalar muito fácil. Fica se exigindo tanto! Lembro que eu já disse, da última vez, que é só aproveitar o momento. Nós dois aqui juntos...", e então ele diz, como a agarrar uma corda lançada de um bote, ao naufrágio do transatlântico, "Você gosta de mim?", e ela, sem mudar o tom, "Eu amo todos os meus amigos. Todos eles. E você é um amigo.", e ele, agarrando firme a corda oferecida, "Mas você sente algo especial por mim? Eu não sou atraente? Você não me deseja? Você me ama?", e ela é salva por um ruído de porta rangendo se abrindo em filme de terror B e passos ressoando às suas costas, depois uma voz entre indiferente e curiosa, "Vocês vieram para o filme?", e eis um rapaz, de óculos, cabelo longo, amarrado, em jeans e blusão azul-anil, a dizer-se responsável pela sessão de cinema alternativo, ali na Casa de Cultura e Stevam Lucena e Bianca Maria, acabam aceitando, não só para fugirem ao constrangimento, mas para beberem água, uma vez que não há tempo para assistir ao filme, que é romântico, e Stevam, que é analfabeto em cinematografias e nada entende de sétima arte, pensa ser ou "O Piano" ou "A Casa dos Espíritos", mas possivelmente nenhum destes, e Bianca não mostrou-se muito interessada, demorando-se mais no bebedouro, "pois o remédio dá muita sede", ela esclarece, e se entretém no toalete, enquanto Stevam admira quadros, ao longo das paredes, ou modelitos de prédios históricos em caixas de vidro, perfeitas maquetes do patrimônio cultural, e ela já vem e agradecem ao rapaz do cinema alternativo, mas lembram da peça no Centro de Cultura, marcada para dali a quarenta e sete minutos, e eles preferem a brisa noturna.

    Mas a brisa noturna está um tanto agitada, e é o vento que traz frio, um frio que Stevam Lucena igualmente não previra, e assim sem agasalhos é salvo literalmente pelo calor humano de Bianca Maria, que se deixa abraçar e seguem juntos nas ruas vazias de casarios de outrora, com portas ao nível da calçada, sem jardins nem alpendres, tendo somente modestas janelas de madeira e reboco rachado, e aos fundos promessas de quintais, frutas e roseirais, e Stevam diz, "Eu não te assusto? Com estas mudanças de humor? Essas tragédias todas?", e ela responde, "Sim, me assusta, e ainda mais quando abro o envelope e eis um cartão - "Meu Amor" - e ele, não entendendo, "Por isso você ficou assustada? Mas você sabe que eu te amo!", e ela, sem mudar o tom, "Você me ama? Mas você nem me conhece! Ah, Stevam, você é tão carente! Está tão louco por um amor!", e havia todo um tom maternal ali que Stevam, meia década mais velho, não foi capaz de aceitar, "Mas eu te amo desde os teus poemas, aquela busca por amor, um amor sofrido! Eu te amo desde os teus e-mails, e quando ouvi a tua voz!", e ela, impertubável, "É que você precisa amar alguém, é isso. O que eu represento para você?", e ele só ofertou o silêncio, pois de fato não conhecia aquela mocinha ao seu lado.




    Meia hora antes da peça, nas escadarias da Matriz, admirando o polvo de luz e sombra que é o corpo da cidade, com seus tentáculos de pontinhos azuis de néon e rubros de mercúrio, até o horizonte e sua manta de fuligens, ambos, Stevam e Bianca, lado a lado, a blusa dela ali compartilhada, ele em temores, claro que não apenas devido ao frio do anoitecer, em ventos envolventes, e ela em cuidados, ambos emocionados, tão sublimes que não ousam beijos, beijos tão esperados, que, quando acontecer, nada mais terá de lírico, perdido estará na prosa do asfalto, mas não adiantemos.



    São três casas restauradas. A primeira, a contar da Matriz, é rosa, em tom desbotado, e abriga espaços para oficinas. A segunda, a do meio, mas ampla que as irmãs, é azul, quase anil, e abriga o teatro, também usado para projeção de filmes, vez ou outra. E a terceira, a menor, é amarela, reluzente ouro, é preparada para receber e abrigar exposições de arte, de pintura a esculturas. Todo o conjunto recebe o nome institucional de Centro de Cultura, mas é conhecido simplesmente por "as casas".


    E Stevam Lucena, ao lado de Bianca Maria, ali diante da Casa Azul, e ele procura conhecidos, principalmente KL, o irmão de JJ, ao qual pedira a gentileza de reservar os ingressos, mas, por sorte, surgem desistências, e o casal pode entrar sem mais obstáculos, e encontram poltronas disponíveis na terceira fila, bem ao lado de Stevam Valêncio, "prazer em conhecer!", inclina-se cordial diante de Bianca Maria, e o espetáculo é encenado.

    Dois mendigos e uma espera. Quem será o tal Godot? E aquele desconforto todo? Os mendigos não se suportam, mas também não se separam! O que está unindo os coitados? O medo da solidão? Mas surge um proprietário, o que se diz dono daquelas terras, debaixo da árvore na estrada onde esperam o tal Godot, e o tipo arrasta um servo, um escravo, e por instantes é entretenimento aos mendigos e ao público, mas somente a vertigem das cenas impede o tédio das repetições e das situações, com diálogos absurdos e gesticulações surreais.

    - Você aprecia Beckett?, Stevam Lucena inclina-se para Stevam Valêncio, mas este cochila, certamente por noitadas e insônias, excesso de trabalho ou pesada carga de leituras, Parmênides, Platão, Aristóteles.


    E Bianca Maria é toda atenção, tal Stevam Lucena já percebera em semelhante momento anterior, e ela não aceita ser distraída por ele, não ouve comentários, e até recolhe o óculos escuro, que serve de brinquedo entre os dedos dele, incapaz de repouso, sempre sem lugar para os braços, para as pernas, ali tirando os sapatos ou abrindo os botões da camisa, para em seguida fechá-los, "ah que inveja da calma de um TH, do sossego de uma Bianca Maria!"


    E Godot ainda não apareceu e outro dia igual ao outro, o mesmo absurdo e os andarilhos não conseguem se separar um do outro, ambos presos aquela espera, e Stevam Lucena é só ansiedade, enquanto Bianca Maria nem pisca e Stevam Valêncio, abraçado a si mesmo, cochila de boca aberta. Talvez o tal Godot jamais aparece, e talvez seja esse o absurdo, o de esperarmos alguém, ou algo, que jamais virá. Um Sentido, uma missão, um Salvador, uma renovação. Seja o que for, ou seja quem for, é algo sempre para amanhã. "ah, se eu morresse amanhã!"




    E quando a tortura finda, pois para Stevam Lucena aquela encenação foi um purgatório, com um Virgílio adormecido e uma Beatrice distante, todos a se erguerem em aplausos e o auditório ressoa em puro entusiasmo, pois convenhamos que encenar os absurdos de Samuel Beckett não é coisa fácil, e aguardemos a referência para momentos futuros, quando Godot, volta e meia esperado, será chave, ou metáfora, para ilustração de certas turbulências mentais em amores igualmente tempestivos. Mas nada de anteciparmos.

    Agora, diante da Casa Azul, de volta o frio da noite, Stevam Lucena conversa com um mais desperto Stevam Valêncio, enquanto Bianca Maria demora-se no toalete, certamente a engolir outra de suas pílulas, e compartilham comentários sobre a peça, sobre Godot, sobre Beckett, sobre a arte cênica, e Bianca está de volta, toda leve e flutuante, e Stevam lucena reafirma a apresentação, a lembrar que "a Bianca é a que conheci na internet, de Belô, a 'beata da noite', lembra-se? Ela escreve também. Acho que até te mostrei um poema dela, sobre amores que sangram...", e Bianca Maria e Stevam Valêncio trocam rasgos de papéis com endereços eletrônicos, e seguem a trilhar o calçamento rústico de pedras cheias de arestas, aquele calçamento, restaurado e conservado, tal as construções, dois séculos antes, e seguem até a parada de ônibus, ora em silêncio, ora em risos fugidos, e Stevam Valêncio em despedidas, e Stevam Lucena e Bianca Maria ficam lado a lado, e trocam olhares, e o ônibus vem.

    "Tenho um presente pra você", ele diz, e ela sorri, "Ah, é mesmo! Adoro ganhar presentes! E ninguém me dá presentes!", e ele mostra o livro, uma coletânea de poemas, alguns simbolistas, alguns de cordel, todos regionalistas, e ela é toda gratidão, em abraço sincero, prensando-o contra o assento do ônibus, que segue sem obstáculos pela noite vazia, e ele faz questão de acompanhá-la até o portão azul do sobrado, aquele, já descrito, onde ela reside, com sua mãe, sempre atenta ao relógio, e uma gatinha, muito serelepe, e ouvir aquele "obrigada por tudo" é tudo o que ele queria e tudo o que ele merece.




Dom, 11 set 05 tarde


 Querida Bianca Maria,

  Mil abraços!

    Agradeço a tua carta tão sensível, e os teus poemas (principalmente aquele que diz "Acalma-te coração!" - escrito pra mim?)

    Mas eu continuo confuso com o teu desejo de solidão, de não se entregar a um novo amor. É medo de amar? Eu fiquei assim um tempo, desde a última perda, e ninguém mais ocupou meu coração.

    Eu poderia aqui escrever que 'não vivo sem você', 'és o ar que eu respiro', 'venderia a alma para ficar contigo' e outros chavões sentimentalistas, ou simplesmente, 'te amo, Bianca', mas tudo isso ainda é pouco (ou risível) quando eu entro em desespero noite a dentro pensndo que eu posso te perder! Se isso não é amor, então o que é?

    Apaixonado pelos teus poemas, agora devoto da autora dos poemas. Mas não consigo ser afetuoso como desejo. Ainda sou "o poeta e não aprendi a amar", e vivo arquitetando mundos interiores, "momentos sublimes".


    Acho que sou infeliz porque penso demais (tal o pobre Hamlet, e os andarilhos de "Esperando Godot" e não expresso meus sentimentos com clareza - pois sinto-me acuado. Muita paranóia, não é?

    Bianca, eu te amo! O que mais eu posso dizer? Afinal, eu conheço o poema do Manuel Bandeira, "se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você...", então como posso te provar que não sou apenas mais um poeta, mais um "fingidor"?

    Abraços (bem apertados!)


                                                   Stevam





    Pois combinaram um encontro no coreto do Parque Municipal, no crepúsculo de terça, pois às segundas o Parque é fechado para manutenções. E, de fato, quando Stevam Lucena chegou, poucos minutos depois das cinco horas, pôde avistar, lá da escadaria, o vulto encolhido de Bianca Maria, possivelmente lendo, lá no coreto.

    E, realmente, ela estava concentrada na leitura, demonstrando surpresa ao notar sua chegada, em um abraço de confiança, mas sem entusiasmo, e ele não conseguiu distinguir o título do volume, pois ela se levantou, com seu jeans surrado, e uma enorme mochila, convidando-o para "vamos dar comida aos peixes", o que ele, de início, não compreendeu.

    Mas, para surpresa de Stevam Lucena, Bianca maria trouxera uma colorida ração para peixes e, despejando-a, na palma da mão, dispôs-se a distribuí-la aos peixes, junto às margens. No entanto, ele queria se sentar, ali nos bancos junto a ilha da Anita Garibaldi, ali tão sozinha!, e abraçar e beijar a doce Bianca Maria, seduzindo-a com folhetos de ventos poéticos, com sugestões de passeios, mas ela queria porque queria alimentar os peixes!

    E, muito gentilmente, Stevam se ofereceu para carregar a desprorpocional mochila de Bianca, que dali seguiria para o cursinho, no Edifício Dantês, já descrito, e transportava, pois ele, nada educado, abriu a bolsa para constar a pesada carga, nada mais que cinco volumosos cadernos, uma bolsinha com lápis, canetas e lapiseiras, além de uma blusa de frio.

    Mas, toda reservada, Bianca recusou, "gosto de carregar eu mesma as minhas coisas", e Stevam se limitou a fazer o que ela pediu, ou sutilmente ordenara, isto é, alimentar os peixes! E estes subiam eufóricos, e disputavam os flocos da ração e ela soltava palavras de incentivo aos favoritos, aquela carpa com listas vermelhas no corpo laranja, ou aquele exaltado e corpulento verde-musgo com bigodes, e que bigodes!, e ela sorria, via-se que se divertia, enquanto ele, com gestos mecânicos, e com outras frustrações, se permitia jogar migalhas aos pobres seres aquáticos, e ela notava, pois dizia, "Stevam, é engraçado de se ver, você assim, com essa cara, parece que é um suplício", e o suplício era não conseguir abraçar aquela doçura e beijar aqueles lábios risonhos.

    E Stevam aprecia sinceramente o sossego que emana de Bianca, quando oferta aqueles grãos, aqueles flocos, aos peixes que sobem em turbilhões, e escorregam uns sobre os outros, e revolucionam, em redemoinhos, as margens, onde, apoiado a grade, ele admira o perfil de Bianca, tal fizera aquela noite no teatro, a primeira peça, a do Otelo, ou na escadaria da Matriz, antes da peça do Godot, o mesmo perfil que pretende esconder algo, um enigma a esperar solução, o que ela quer de mim afinal?

    E ele é incapaz de perceber que Bianca quer uma companhia, e ela aceita a presença dele, enquanto voltam, junto ao coreto, rumo as escadarias, pois o Parque será fechado, juntamente com a noite que se aproxima, e ela precisa estudar, "há uma carreira a minha espera", e Stevam sabe bem o que é nutrir tais ambições, que ele já nutriu várias, e perdeu todas, e nem sabe porque ainda vive, e talvez seja porque existem belezas em formas humanas, como é o caso desta Bianca Maria, que segue ao seu lado, na Afonso Pena, tecendo planos para o futuro, a vida acadêmica, e não há razão ou modéstia que seja barreira ao fluxo destes sonhos.

    Diante do Acaiaca, e suas carrancas, subiram a lateral da Igreja São José e se viram no quarteirão fechado da Rio de Janeiro, e ela diz, "Olhe só, o Taz", sim, pois o velho amigo de Bianca Maria, o nostálgico Luiz Meira, o conhecido 'Taz', ou 'Gato Félix', para os amigos, estava debruçado lá me cima, no barzinho da Galeria do Rock.

    Era a oportunidade de Stevam Lucena conhecer os colegas de Bianca Maria, visto que, antes de entrarem para as aulas, ficavam perambulando pelos corredores, namorando bandas e álbuns, trocando suspiros e confidências, meio as camisetas e discografias, elogiando aquela tatuagem, ou esperando a autorização de papai, e a boa vontade de mamãe, para colocar um piercing na sobrancelha ou na língua.

    E os assuntos? Bandas apocalípticas, ou que se dizem assim, e versões sombrias de clássico do Rock, e aquele álbum do Nick Cave?, mas eu prefiro Velvet Underground, mas quem te disse que o Type O'Negative regravou esta música?, eu já mostrei o clipe com as meninas suicidas?, e assim vai, até cinema B, e invasões alienígenas, o que estes jovens andam vendo, meu bom deus!, enchem os seus miolos juvenis com todo tipo de contexto cultural, e discutem realidades alternadas, universos paralelos, os Homens de Preto, somos experimentos de aliens? Somos diversão para os anjos? Somos um acaso total e absurdo?, quem assistiu ao filme três da série X?, que eu tive pesadelos com aquela música!, e Bianca Maria olha para o topo dos prédios, ali na Praça Sete, e pergunta, "quem escreveu este roteiro? Eu quero saber", pois detesta imaginar que pode estar num programa de computador, num filme mal-produzido, e não ter controle sobre a própria vida, e Stevam lembra-se de "Matrix - the movie", e o desconforto de Neo diante das pílulas, a escolher a ignorância salutar ou o conhecimento atroz e golpeante, queres a azul ou a vermelha?

    Mas Stevam Lucena sabe dos compromissos de Bianca Maria, sempre atenta ao relógio do colega, e se abraçam como bons amigos e 'Taz' não oculta um sorriso, talvez de ciúmes?, e Stevam Lucena menciona o sarau nos jardins paradisíacos do Palácio das Artes, e Bianca aguarda intimamente a menção, pois, ainda futuramente, encontrar-se-ão naqueles jardins.





    Quem encontra Alfonso distribuindo sorrisos? E estende a mão à Vladimir (isto é, Dalton) que está ao lado do outro-Stevam? Quem? Todos acompanhados por uma garrafa de vinho barato, e sentados nas escadarias de pedra bruta da Casa da Cultura, sim, exatamente naquela onde, uma semana antes, Stevam Lucena se declarara a Bianca Maria.

    E Alfonso vem abraçar o ainda sem fôlego HD, que acabava de aceitar a garrafa, que passa de mão em mão, de boca em boca, e não poupa votos de amizade, e que esqueçam todos os desentendimentos e HD, todo constrangido, vê-se claramente, tenta acalmar o amigo, aceitando os votos de amizade e prometendo evitar futuras querelas, ou desacordos, que foi o termo que ele usou.


    Mas HD sabia que Leir Macedo era o mestre de cerimônias, pois se trata do lançamento de um livro de poemas, justamente daquela poetisa que participou do show literário de um ano e meio antes, e que agora finalmente é debutante.

    De fato, Leir Macedo nota a chegada, não exatamente triunfal, de nosso HD e, após abraços efusivos, de bons camaradas, não hesita em convidá-lo para uma 'simbólica participação' no sarau que ora se inicia. E HD concorda, desde que encerre o evento, "pois o meu poema é dos longos!"

    - E esse olhar preocupado, Dalton?

    E Dalton não oculta suas aflições, e, como HD desconfiava, todas devidas a amores mal-resolvidos.

    - Preciso ligar para a minha donzela. E nem posso demorar aqui, sabe. Me empreste o celular um momento, sim?

    Como bom comunitarista que é, e ativo socialista, HD empresta o telefone ao camarada, que se ausenta. Mas nem notou a falta, pois os convidados se reúnem sob as árvores do quintal acolhedor, e "jovens em flor" desfilam, acompanhadas ou não, e casais se acomodam em carícias, e famílias se mesclam aos literatos, e todos assinam um espesso livro de presença.

    - E esse papo de 'donzela'? - parece que Alfonso está por perto. - Vocês estão parecendo o Bishop!

    Mas Dalton se afastava e não ouviu. Mas HD desabafou, não exatamente num sussurro, pois várias faces se voltaram, estarrecidas. - Pois eu estou precisando é de uma xoxota lírica.

    Claro que Alfonso não hesitou em seus risos de deboche, mas outras senhoras e senhoritas se aproximam e não é de bom-tom semelhantes comentários em reuniões públicas e ainda mais partindo de tão honrados literatos.

    - O Hector está meio afetado. - diz o outro-Stevam, aceitando outra taça de vinho, agora que o garçom surgiu novamente.


    Tudo seria um tédio se não estivesse ali o Leir, o show-man, que é "o pior cover do Bono Vox" e com seus poemas gestuais e seus versos multimídia, mas Alfonso é também convidado e lê seu poema "Andanças" já celebrizado, e recentemente premiado em concurso literário de importante faculdade interiorana.


    De súbito, Dalton está de volta, mais aliviado, a amada concedeu mais uma hora de prazo, e uma certa mocinha, antes só, quando ele folheava livros na biblioteca, agora passa acompanhada, pois é sempre assim, quando ele se interessa por alguém, pode saber, ela vai estar acompanhada! Mas Dalton continua concentrado, pois em breve será chamado para os seus poemas ora politizados ora escatológicos.

    - Que se exploda!
      Toda forma de razão e repressão!




    É assim que ele, o Vladimir, começa e depois piora, em sua obra de demolição da sociedade hipócrita, segundo crítica de Hélio Lúcio, ilustre (e estranhamente) ausente (isso se considerando ter aceito todos os convites de HD para eventos de Aurelius Magnus, os saraus no bar, e os de Délcio Palma, tal aquele no sítio, música, teatro e poesia, no entanto interrompido pela chuva...), mas é que Hélio diz, "ele começa assim e depois piora, fica panfletário, parece que está fazendo um discurso, igual um bolchevique, sei lá."

    - Que se exploda!
      Os manuais, as academias, os rituais!

    Um grupo performático se apresenta e HD aproveita para ir ao toalete. Seu rosto se expande no reflexo do espelho. Percebe-se algumas olheiras? Melhor prender o cabelo novamente. Até porque o cabelo cresce rápido. É necessário aparar. Cuidarei disso. E aquela ruiva, que tal, hein? E essa língua de esclerosado? Eis a escova - dê um jeito! Mas a ruivinha está acompanhada, meu chapa! Tem razão. Escova, escova, escova a língua. Assim está bem melhor.

    Quando HD volta ao quintal, Leir está convidando o Stevam Valêncio, poeta e pensador, expert em "A República", de Platão, e "Metafísica", de Aristóteles, mas que, no entanto, não se entregara a qualquer palestra cerebral, mas tão-somente ler seus poemas com um quê de expressionistas, "é o nosso Trakl, não?", empolga-se Alfonso, ao lado de HD, que só agora conseguiu ser servido pelo garçom. E eis que surge uma bandeja com pão de queijo e outra com empadas.

    É o seu momento. Vamos ler umas colagens de Allen Ginsberg, com uns trechos de Álvaro de Campos, com citações de Carlos Drummond de Andrade, e assim torturaremos esses subliteratos por eternos vinte minutos! E ficou mesmo dezoito minutos falando!, e teve gente que não gostou, mas ele só se notou quando a ruiva sumiu.

    É elogiado no corredor, principalmente por Leir macedo que vem acompanhado de um jornalista que providencia dinâmica troca de endereços eletrônicos, hector_dias@XX.com.br, sim, senhor, e enviarei cópias, sim, senhor, muito grato, sim, senhor. Mas a ruiva foi embora e isso é o que incomoda. E a taça de vinho não é consolo o suficiente.

    É fim de festa, e muitos trocam despedidas. Na biblioteca, Alfonso expôs recortes de jornais com artigos de ambos, isto é, de Alfonso e HD, aliás, Hector Dias, escritor, e o citado endereço virtual. Mas e o cocktail? Então, ele volta para surrupiar umas uvas, e, coincidência existe?, uma voz derrama-se em seus ouvidos.

    - Gostei do teu poema.

    Pois ao seu lado, ao lado de seu braço direito que pinça as uvas de uma bandeja de prata, uma mocinha de sua altura, branca, ainda mais branca graças a um cabelo loiro, visivelmente artificial, em cachos até os ombros, com uma saia daquelas de hippies da praça da Estação, e uma bolsa no mesmo estilo, com pulseiras e adereços do mesmo estilo, só faltando uma flor na cabelo, e cantando alguma do Mamas and The Papas.

    - Obrigado. Mas era uma colagem. Misturei versos meus, com de outros autores.

    - Um panorama sombrio da nossa geração.



    - E como ela fala bem! Que domínio lingüístico!

    - Você estuda Letras? Escreve?

    - Estou no quarto período. E escrevo. Mas para mim mesma. Não sou de ficar mostrando...

    - Ora, mas então a gente precisa trocar uns textos!

    E HD pinçava as uvas, e ela passava maionese esverdeada na face rugosa da torrada, com leveza e decisão. Mordia com visível prazer e HD já pensava em outra utilidade para aqueles lábios carnudos.

    - Você tem e-mail ? - ele perguntou, a demonstrar pouco interesse, ou se houver algum, não passa de curiosidade literária.

    - Tenho. Quer anotar?

    E HD nunca foi tão dinâmico em localizar um rasgo de papel nos bolsos, e ofereceu para que ela anotasse, e em seguida anotou o dele. Partiu o papel em dois e se entreolharam. cibele.alvez@X.com

    - Amanhã mesmo eu envio o texto.

    Ela agradeceu, e outro-Stevam apareceu, para se despedir. E HD não encontra mais nada para dizer.

    Também seguindo rumo ao hipermercado, HD acompanhou o outro-Stevam, todo curioso em saber quem era a mocinha. HD ficou sério, mordeu os lábios e disse:

    - Tenho algo a dizer sobre essas meninas da Letras... mas fica pra próxima.




[telefonema - dom, 18 set 05]
(pouco depois das 18 hs)

Stevam: Oi, Amanda! Tudo bem?

Amanda: Oh, Stevam! Vou bem, e você?

Stevam: Preocupado. E o seu humor? Ando acompanhando as flutuações de ânimo, dia a dia, registradas no seu blog. Sabe, o blog é uma espécie de diário de bordo, é confessional, mais do que literário. Eu é que prefiro o mais literário.

Amanda: É, eu li os seus comentários. Estou meio perdida... Mas eu continuo animada a ajudar você com o seu blog.

Stevam: É, andei pensando. Preciso pensar em certos detalhes. Um tema, um título atraente, e até algumas fotos, mas eu não sou fotogênico, assim não seriam fotos minhas, mas ilustrando, de certa forma, os textos.

Amanda: Posso ajudar, sim. Vou enviar umas sugestões...

Stevam: E o clima aí, melhorou? Você comentou sobre os problemas respiratórios, devido a falta de umidade. Melhorou?

Amanda: deixei uma bacia com água, aqui no meu quarto... (risos)

Stevam: Então, seu rumo agora é o Rio?

Amanda: Acho que em dezembro, eu vou. Minha irmã vai casar...

Stevam: Ah, até que enfim, uma resolução. Toda vez emq eu menciono o Rio, você desconversa...

Amanda: [risos constrangidos] Vou, se minha irmã pagar. Viajar é ótimo. Não suporto este deserto daqui...

Stevam: Posso pedir dois favores? Você ler um texto pra mim? E, não que eu seja amigo do "Barão", mas por que criar atritos com ele, que tanto te elogia?

Amanda: Ah, o Márcio? Sabia que o nome do "Barão" é Márcio? Mas já estou de bem com ele, que nem fez muito caso, ele é legal. Quer que eu leia um texto, meu? Mas aí eu preciso procurar no computador...

Stevam: Então eu ligo daqui a pouco.

{dez minutos depois]

Stevam: Então, Amanda, já achou o texto?

Amanda: Ah, é preciso mesmo?

Stevam: Sim, é muito importante.

Amanda: É um texto sobre ausência, solidão, essas coisas.
[Lê um longo texto]

Stevam: Muitas imagens fantasmais do passado, hein?

Amanda: Ah, você entendeu o tom de "exumação"...

Stevam: Mas você se prende muito a esse amor que você perdeu. É preciso superar o passado, sobreviver ao presente, arquitetar o futuro. E se você escrevesse uma peça, ou um conto?

Amanda: Mas eu comecei a série "Pesadelos", até enviei a primeira parte, mas a continuação não apareceu até hoje... [risos]

Stevam: Posso divulgar o texto?

Amanda: Não sei porque você gostou.

Stevam: Por causa da sua escrita espontânea, natural, sem pretensão de obra-prima, e assim, muitas vezes, nascem as obras-de-arte. Sem artificialismos ou estilísticas vazias, e lembrei agora da Clarice Lispector, que escrevia sem esquemas, sem emendas, e nem relia nem revisava. E eu noto esta naturalidade nos seus textos, Amanda, que são autêntica literatura, não esnobismo.

Amanda: Ai, será que entendi tudo o que você disse? Obrigado pelo elogio que me toca.

Stevam: E falando em arquitetar o futuro, que tal o Rio?

Amanda: É, se minha irmã concordar, quero estudar lá. E se minha mãe concordar também, pois se a maioria dos meus colegas têm problemas com o pai, e você também, não é?, eu vivo em desavenças com a mãe. E hoje meu pai está aqui, e vai comprar sorvete e espero que seja sorvete de amendoim...

Stevam: Hoje você está alegre, e eu estou meio deprê...

Amanda: Ah, meu anjo... prometo escrever.

Stevam: Ah, eu gostaria de conversar a noite toda, mas...

Amanda: Eu sei. Então, abraço, beijos...

Stevam: Um grande abraço!

Amanda: Tchau.





Domingo, 18 setembro 2005


  Querida Bianca Maria,

   Meus abraços!

    Ah, querida, se pudesses imaginar o quanto a tua voz é agradável! Eu poderia ficar horas e horas conversando contigo!

    E tuas histórias, teus relatos de observadora! Dançando ao som das máquinas, batendo os pés em compasso ao som do motor!

    Imagino-te tecendo os contos, apenas para abandoná-los - por não suportares a totalidade, por te contentares com os fragmentos.

    Parece-me que não crês na coerência.

    Imagino-te, tal Clarice Lispector (com a máquina portátil sobre os joelhos, escrevendo obsessivamente), criando mundos em palavras, tal os teus poemas, mas com enredos, perspectivas, diálogos, pessoas e caricaturas. Toda uma linhagem de contos que testemunham o olhar da observadora atenta e disposta a ver lirismo em tudo.

    Mas estás disposta a abrir teu coração? Dizes que não desejas confissão, mas desabafar as inquietações, verter as mágoas no papel. Mas não queres comunicar? Não queres que alguém leia, um outro olhar testemunhe? Afinal escrevemos para alguém.

    Assim, ainda que deteste os blogs, esperas que alguém leia a tua vida. Se não fosse assim, escreverias para as tuas gavetas (o que seria lamentável, pois tens um talento que precisa ser aprimorado)

    É por isso que eu te amo, Bianca.

                                                               Stevam




 [continua...]



LdeM



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