sábado, 3 de setembro de 2011

Capítulo 5 da Parte 3 (início)




Parte 3


Capítulo 5



    Foi num crepúsculo de sábado, em fins de agosto, com o coração pesado, que Stevam Lucena saiu para encontrar Bianca Maria. No ônibus vazio, de olhos fechados, relembra todos os e-mails que haviam trocado desde maio, e, mais frequentemente, desde junho, com uma súbita pausa em meados de julho, que ele veio a saber ser devida a uma doença, na verdade, uma crise depressiva, e ela reaparecera em agosto, a se desculpar por sua ausência no Leis da Noite, evento onde imaginavam se conhecer.

    Haviam marcado na Praça da Liberdade, diante do vulgo Rainha da Sucata, e ele estaria lendo, de cabelos soltos, e ela segurando uma rosa vermelha, igual aquela que ostenta em seu e-mail. Stevam Lucena, com sua mais elegante roupa preta, cabelos soltos, batina engraxada e um blaser caído sobre o ombro, chegou à Praça três minutos após as dezoito horas e procurou um banco vazio. Encontrou-o diante da estátua, ou antes, do busto do Bias Fortes, defronte do Palácio da Liberdade, de forma a garantir uma visão completa da entrada do vulgo Rainha da Sucata, além dos ipês que floriam amarelos, e abriu uma antologia de poemas de Cruz e Sousa.

    Levantou os olhos pouco depois e de fato notou um vulto feminino, de cabelos curtos, a atravessar para a Praça, meio ao "rio de aço do tráfego", como ele intimamente considerou, e a se aproximar dos jovens a beberem nos modestos degraus diante do busto do Bias Fortes, mas, no entanto, a jovem, muito jovem realmente, não exibe a esperada rosa vermelha. Stevam Lucena puxou o celular e ligou. A conhecida, mas pouco ouvida, voz respondeu clara e gentil, "Sim, estou diante do Rainha da Sucata", então ela ali está realmente, não trata-se de miragem afetiva. E Stevam levantou-se, atravessando o "rio de aço do tráfego", meio ao rugir dos motores e o reluzir dos faróis, e abraçou a moça, Bianca Maria.

    Com seu vestido roxo e preto de modelitos de outrora que, depois, ela revelaria ter pertencido à sua avó, ainda viva, ela acrescentaria, Bianca Maria ofertou a rosa vermelha. Com seus olhos brilhantes detrás das lentes dos óculos, com inusitadas florezinhas no cabelo curto, parecia ter saído de um filme noir.

    Atravessaram diante do tráfego, e ela estendendo a flor, e ele atento ao sinal a se abrir, temeroso e emocionado, aceitou e cheirou as pétalas, meio às buzinas e o cheiro de óleo diesel, e isso até inspirou seu lirismo quando, posteriormente, escreveu um poema lembrando aquela noite, "Rosas no noturno da Praça", mas não adiantemos.

    Agora, infelizmente, o banco, outrora ocupado, é agora abrigo para um atleta vespertino que descansa, e assim Stevam Lucena e Bianca Maria iniciam os primeiros conhecimentos em passos ansiosos (os dele) e vagarosos (os dela) rumo a outros bancos possíveis. E ele oferece um envelope com sonetos, os quais ela lê atentamente e agradece, e ele reclama do incômodo do trânsito e convida-a para outro banco, quiçá junto a fonte luminosa.

    Constatam, no entanto, não haver banco disponível, visto a afluência de casais em ambiente tão romântico, e vislumbram o coreto, onde, em tarde futura, se deixarão registrar para fotografias, e Stevam Lucena, agora, em íntimos desassossegos, já amargurado, desfia comentários biliosos sobre a superpopulação, que o mundo está cheio de gente, que não há espaço para mais ninguém, e ela sorri, assustada com o rumo da conversa e a peculiaridade da temática, e com aquele tom de discurso, como se a conhecesse a muito, muito tempo.




    Encontram um banco na alameda central, sob as palmeiras imperiais, notando as luzes no Palácio, e Bianca Maria pergunta enfim se ele é mesmo assim tão fã de literatura e Stevam Lucena comenta um poema de TH, o poeta, seu falecido amigo, Thales Henrique, ou Thomas Henrique, como outros pensavam, enfim abordam o limite (se há) entre o lírico e o prosaico, a impossibilidade do romântico, certo poema de Cruz e Sousa, e outro dela, de Bianca Maria, sobre feridas que ainda sangram, e dele, de Stevam Lucena, sobre jovens góticos no cotidiano de asfalto, e lê o poema, na íntegra, e ela é toda atenção, a elogiar, finda a leitura, o poder de observação e descrição do autor, que agradece e sente-se muito envaidecido.

    Bianca Maria, num esboço de sorriso, insiste nos elogios e agradece os elogios dele, Stevam Lucena, quando dos comentários dos poemas dela, Bianca Maria, e que o poema é, para ela, uma forma desesperada de deixar vazar as emoções, as dores e frustrações, não muito preocupada com formas e formalismos, e ele, Stevam Lucena, apóia esta livre fluência da poética de Bianca Maria. Estão, assim, atentos aos lances verbais um do outro, agora distantes de faróis e buzinas, tendo ali, separando-os, fisicamente, e unindo-os, simbolicamente, uma rosa vermelha, enquanto são observados por vultos humanos que passam, que ousam palavras, que propagam risadas, e vultos caninos que tracejam entre os canteiros, alarmados por seus ásperos donos, ou notados por outros casais, por cúmplices de delícias ou invejas.

    Comentam os textos, o lirismo desesperado dela, o olhar irônico dele, e ele quer entender o porquê do nick " a beata da noite", e ela explica que é uma ironia das colegas, que gostam de "insistir nisso de 'beata', mas pode ser é o contrário, sabe?", e brilha no olhar uma discreta malícia, e ele lembra da família, a mãe que é meio mística, o pai, filho de portugueses, que é um escritor frustrado, e pergunta sobre a família dela, onde mora, desde quando, e ela diz morar no Calafate, com a mãe, divorciada, e que o pai aparece vez ou outra, e que já morou na Zona Sul, "Onde estão as minhas amigas."

    Eis que surge um responsável pela limpeza dos locais públicas e o ruído da vassoura no calçamento e o bulir dos pedregulhos minúsculos e o ressoar das cerdas rudes e a poeira, que se levanta, provoca nova migração dos jovens que ainda mal se conhecem (e talvez jamais se conheçam), e Bianca Maria revela, muito educadamente, ter sede e encaminhar-se, agora mais tranqüilos e harmonizados, em um compasso adquirido, pelo contato de duas temperaturas, ou, no caso, de duas velocidades, e Bianca Maria bebe a água jorrante e revela que o remédio provoca sede, e Stevam Lucena, não muito atento, também se inclina para beber água, e ela, se oferecendo para acionar o mecanismo que libera o jorro, se aproxima, mas ele agradece.

    É quando ele indaga sobre a doença que a aflige, e ela, meio sorrindo, revela ser depressão, daquelas bioquímicas mesmo, da geração prozac e lexotan, e ele espera que ela não fique 'deprê' na faculdade, onde o formalismo mata a arte, "a melhor maneira de odiar a literatura é estudar Letras, os estudantes comentam nos corredores", ele diz, até porque ela menciona o vestibular próximo, e ela se prepara num cursinho, "o que pretende estudar?", ele perguntou; "o que acha?", ela pergunta, toda enigmática, "Espero que seja Letras, ou teatro, algo assim", ele supõe, e ela diz, "É letras mesmo", e ele, "Ótimo! Assim você vai cuidar da revisão dos meus livros!", e ela revela o desejo de ser professora de literatura, daí ele agora não ocultar críticas aos professores que destroem nos alunos o gosto pela arte literária.

    Um andarilho se aproxima resmungando, um tanto hostil com a felicidade (tão momentânea!) dos casais, reclinados nos bancos da Praça, e exige um espaço naquele banco para seus pertences, a dizer, "essa não é a da Liberdade, mas da libertinagem!", mas Bianca Maria não terminou ainda de reevocar lembranças de seu trabalho com telemarketing, antigo emprego, pois essa de ser "mentirosa profissional" é que a derrubou, e ele diz que ela "somatizou o estresse" e então surgiu a depressão, e continua em discurso sobre a sua carreira artística, promovendo os poemas do falecido amigo, e trabalhando com digitação, e que se arrepende por não ter estudado teatro, isto é, atuado em teatro. E resolvem ir ao teatro, portanto.

    Atravessam a Praça, seguem para o teatro, Stevam Lucena a sugerir que ela faça teatro, para melhor lidar com a depressão, e passa a elucidar a figura do ator-protagonista, Alberto Stevam, amigo de HD, Hector Dias, amigo do irmão, Alfonso, e que foi sugestão do HD, sempre 'ligado' em eventos artísticos, "pois é o trabalho dele", e Stevam Lucena revela um certo desconhecimento quanto a exata localização do teatro, enquanto descem a Avenida Brasil, e mostra-se ansioso, e Bianca Maria ainda a tentar acompanhar o ritmo dele, enquanto abordam o cinema nacional, e ela lembra de um filme sobre dunas e praias e ondas, e ele confessa que nunca viu o mar, e atravessam a Avenida Afonso Pena, e ela diz que um dia ainda, juntos, se encontrarão diante do mar e suas ondas e suas dunas, e ele pensa que se confundiu, tenta ligar para o ator, mas imagina-se que Alberto se concentra no camarim, e em breve já em atraso, mas encontram o teatro, na área hospitalar, e entram na hora exata, sob o clamor da sirene.

    Ela faz questão de pagar o ingresso, "mulher moderna", ele sussurra, e ela sorri, "depois eu pago o lanche", ele diz, e ela concorda e entram, afinal, na atmosfera início de século 20 com aquelas canções do rádio, as primeiras e primordiais, e Bianca Maria adora, e observa tudo muito concentrada, e é observada por Stevam Lucena, que livrando-se dos sapatos, ou botinas, como queiram, reclina-se na poltrona, admirando nela o perfil, a calma, a leve fragrância.

    Trata-se de uma comédia sofisticada, onde a trilha sonora de todo adequada ao protagonista a interpretar um Otelo canastrão, de ego inflado e pose de patético ensimesmado, e os atores dançam entre as fileiras de poltronas, a misturarem-se com a platéia, e Bianca Maria assiste a cada detalhe e gesto com dedicada concentração, quase em letargia, somente as suas pálpebras se movem, mas ao lado, Stevam Lucena, ao contrário, tenta relaxar, mudando de posição, ora dobrando, ora estendendo as pernas, ora massageando as solas dos pés, ora esmagando com os dedos os contornos das clavículas, e ela toda concentrada, mas, ao final do espetáculo, ela aplaude de pé, enquanto ele grita um altissonante "bravo!", como ouvira tantas vezes da boca de HD.

    E pensando em HD, Stevam Lucena vai ao palco, oferecer seus elogios ao jovem ator Alberto Stevam, o "Otelo canastrão", e colhem autógrafos, enquanto Stevam Lucena elogia a atuação, e apresenta Bianca Maria, a elogiar igualmente os textos dela, e ela agradece, ruborizada, e lembram de HM, amiga em comum, autora de três livros de poemas, e lembram de HD, que hoje em dia vive de vender livros de 'causos' de Délcio Palma, sim, nos bares, após saraus regados a vinho e insuspeitadas ousadias.

    Após as despedidas, ele abriga a rosa vermelha que, por pouco, não foi sopisada no palco, e ela ajeita as flores minúsculas nos 'tic-tacs' do cabelo, e resolvem atravessar rumo ao Parque Municipal, e ele então sugere "um vinho ali no Maletta" e ela revela não beber, devido aos medicamentos, e ele lembra de uma lanchonete diante do Parque, mas está fechada, e ela sugere a lanchonete "sempre aberta" diante do Centro de Cultura, o "Castelinho", a "Pastelaria da Janaína", donde podem observar a imponência do Edifício Arcângelo Maletta, mas ainda seguem diante do Palácio das Artes, ao atravessarem a Afonso Pena, ela se entrega à uma crise de baixa-estima, revelando que a muito tempo não sai com alguém e tal, e ele pedindo a ela que interrompa semelhante auto-depreciação, que é importante ter amor-próprio, e lembra daquelas mocinhas que, quando convidadas, dizem que vão pensar, que "vão dar uma olhada na agenda, assim insinuando que talvez outros dez caras querem sair com elas", e ele pergunta se ela sofreu muito no último 'affair', isto é, relacionamento amoroso.



    Atravessam em silêncio o largo da Faculdade de Direito, e ele insiste, na temática "amor", lembramos, se o aspecto físico é mais importante que a afetividade, ou se faz parte, "pois alguns casais só encontram na cama", ele diz, e ela lembra das idealizações, "de repente descobrimos que o outro é igual a gente mesmo", mas estão diante da lanchonete, e faróis deslizam na Avenida Augusto de Lima, e ele sugere uma vitamina, e ela aceita, mas não dispensa uma coca-cola, apesar dos protestos dele, e voltam ao inconcluso (sempre incompleto!) assunto "relacionamentos", onde abordam namoros via celular, via e-mails, via cartas apaixonadas e apaixonantes, e ele aproveita para solicitar, muito sutilmente o endereço dela, e ela escreve num modesto rasgo de papel, em boa caligrafia, "Bianca Maria Messias, Rua Suiça, 1313, Calafate, Belo Horizonte", e estende a caneta, como a dizer "Quero o seu endereço também, querido" e ele escreve "Stevam Lucena, Rua Paineiras, 77, Eldorado, Contagem", e ela não oculta antigas desilusões e bebe a coca-cola e ele entende e admira a pele branca e macia que se destaca acima do coturno quando o vestido se retrai, e ele pensa que a afinidade afetiva é mais importante que a atração sexual, pois o "amor nasce de uma metáfora".

    Conversam ainda sobre moda, vestes sombrias, festas "ao estilo vampiro Lestat", cortes de cabelo, a moda da nobreza, a revolução francesa e a simplicidade (na época) da moda burguesa, mais prática, no entanto, e isso ele diz, "A burguesia vem repetindo os erros dos aristocratas, com essa concentração de renda, ostentação e tal", pois ouvira o HD falar o mesmo, que "a roda da história gira e gira, roda e roda, e uma geração contesta a outra, a anterior, os pais contra os filhos, e os filhos matando os pais, igual aquela estudante em Sampa que matou os pais que dormiam e tal, e a miséria taí, qualquer um pode ver, olhe ali a portaria do Maletta, só lixo e mendigo, e as nossas lágrimas fúteis diante dos mendicantes e inválidos", e ainda bem que HD já fizera discursos sobre isso, e agora Stevam Lucena pode usar as palavras do outro, "Veja o século 20, e todas essas experiências, e regimes políticos, e formas de governo, os fascismos, os discursos de Hitler, os ditos socialismos, os milhões de mortos, nas guerras e campos de concentração, veja o preço que pagamos, nós, as pobres cobaias!, o preço que pagamos para existir, nessa tragicomédia de erros, por isso não vou ver comédias, e isso é o TH quem dizia, pois pra quê, ele dizia, já que vivemos uma ao vivo e a cores?"

    E Bianca Maria ouve tudo atentamente, e lança olhares inteligentes, aquela pequena lição de História é interessante, ainda que não seja conveniente ao espírito do encontro, digamos, que nada mais tem de romântico, quando pedintes roubam a atenção e mendigam moedas, "Há liberdade?", Stevam Lucena pergunta, e continua, "Acho que cada um é o que conseguiu ser, é o que dizia o meu analista freudiano, e realmente seja assim, ou seja, todos são vítimas, são fantoches, então onde a liberdade?", e ela, muito gentilmente, indaga, quando ele acerta a conta, "Quanto eu te devo?", e ele, muito sério, diante da 'mulher moderna', "Absolutamente!... não deve nada. Eu faço questão...", e sobem a Augusto de Lima, e vislumbram a vitrine de livros na Imprensa Oficial, e descem a Augusto de Lima, ela às voltas com questões de adolescência, "que ninguém entende a gente", e ele, diplomático, consola, "Você sentirá falta da sua juventude", e ele decide acompanhá-la até em casa, e ela sorri, "minha mãe diz que todo poeta é louco", e ele sorri, "pois ela está certa."

    E Stevam Lucena não pode ocultar a sua fobia diante do trânsito, nos frêmitos da praça Raul Soares, e ele confessa, "Sonhei que morria atropelado", e ela já percebera, desde a avenida Brasil, ou desde a Praça, diante do Rainha da Sucata, mas guardava tais impressões para si mesma, e ele oferece balas, destas com alto poder refrescante, e ela aceita, enquanto tece imprecações contra o inchaço das periferias, usando conceitos e idéias já debatidas com o irmão ou com o amigo socialista, ou com o amigo poeta falecido, e ela segue ouvindo e ouvindo, e quando se acomodam no ponto de ônibus, ele está inquieto, e ela esforça-se para acalmá-lo, ao aconselhar, até maternal, "viva os momentos com calma, saboreando, para não precisar lamentar depois", e agora é ele quem ouve, aquela voz macia, e doutrinal, de angélica procedência, e ele explica, ou tenta explicar, que seu desassossego é causado pelo mundo hostil, "é como se eu sentisse um fardo nas minhas costas."

    E naquela parada de ônibus, onde muitas vezes ainda trocariam despedidas, com tristeza nos olhares, ele comenta a imensidade, e a complexidade, e a toxicidade, das metrópoles, "e se Belô já me aterroriza, imagine São Paulo, Nova York, Cidade do México! Já leu sobre o blackout de Nova York? E sobre os atentados? A cidade grande é o pesadelo concreto, e de concreto!", e pesa o silêncio tenso, e que se perpetua quando embarcam no coletivo e quando se acomodam e as paisagens se deslocam lá fora, enquanto ele a observa, aspirando a presença dela ao seu lado, ela que pouco desvia o olhar dos vultos que se afastam, dos edifícios que desaparecem numa manta de escuridão toda perfurada por iluminadas janelas.

    Descem, minutos depois, e ela descreve o bairro, a praça da igreja, a saudade das amigas, e ambos temem referências a si mesmos, e ele só deseja abraçá-la, mas continua tímido, ainda quando se aproxima um certo portão azul, e um muro alto, que protege um sobrado, e ela está triste, "eu moro aqui", e ele limita-se a menear a cabeça, mordendo os lábios, e despedem-se diante do portão azul, com um abraço, e ela diz, assim, "obrigada por tudo!"





    Quando HD chegou ao bar cultural (sim, aquele mesmo das noites de música e poesia ao lado de Edgar e Aurelius Magnus) encontrou Benito, ali acompanhado por uma cerveja e um livro daqueles volumosos.

    - Estudando?, HD pergunta.

    - Não., responde Benito, É hora do lazer.

    E HD percebe se tratar de um romance brasileiro sobre as favelas do Rio e os tentáculos do narcotráfico, "Cabeça de Porco". - Ainda bem que você encontrou seu tempo de lazer. Com essa vida de correria que levamos ...

    E Benito concorda, levantando o olhar. E HD continua: - E aquele papo de que teríamos mais tempo de lazer do que de trabalho? aquele lance de trabalhar quatro horas e viver bem? E todas essas máquinas, e eletrodomésticos, e inteligências artificiais, e não temos tempo nem para responder os e-mails!

    Benito marcou a página lida e repousou o livro. Vestia-se bem, o produtor cultural. Simples e sóbrio, um blaser decente, e fumava calmamente, e bebia sossegado, e não desviava o olhar dos lábios agitados de HD, que continuava:

    - Uns morrem de estresse, trabalhando doze horas por dia, enquanto outros morrem de fome, desempregados. O que mostra a ineficiência do sistema.

    - Que visa o lucro. - Benito finalmente abaixa a guarda.

    - Um lucro burro! Daí o sistema econômico exploratório cair por terra! Por suas próprias contradições, enquanto a elite repete os mesmos erros da nobreza, sempre a olhar para o próprio umbigo!



    - Mas e a flexibilização? - arrisca Benito, encarando a capa do livro.

    - Ora! As mudanças para continuar o mesmo! Pois não continua a mais-valia? É o lucro burro!

    - E também não há condições de sustentar a todos. Veja a questão ambiental... - e a cerveja descia macia e gélida, enquanto Benito inclinava-se na cadeira, olhos fechados, a deixar espuma no bigode latino - Mas e se tudo cair, digo, o sistema? Socialismo ou barbárie? A sociedade igualitária ou o mundo de Mad Max?

    - Nem sei se igualitário, mas uma sociedade mais racional, com riqueza distribuída, talvez próxima daquele modelo de Lênin, com soviets, ou 'câmaras setoriais', ou 'comitês' locais, e unidos, ou representados num conselho dos comitês.

    - Meio parlamentar, ainda. Democracia representativa? Talvez a queda de poderes centrais, logo imperialistas, leve a um modelo anarco, assim descentralizado, em rede.

    - Mas quem unirá os pontos da rede? Quem se responsabilizará? - HD apresenta suas dúvidas.

    E, certamente, continuariam em semelhantes discussões sociológicas, se não surgisse o Edgar, o músico. E um vento após sua entrada, em triunfo. Ele, sempre bem disposto, carismático, afinal, o que a fama não faz? E HD cuidando dos botões da camisa de flanela. - Até parece que o Edgar veio arrastado pelo Katrina!

    Sorriram, os três, ao gracejo de humor negro, pois todos liam frequentemente os jornais e sabiam que o citado furacão, ciclone tropical, havia devastado a tradicional New Orleans, palco para artistas que, principalmente para Benito, eram mundialmente admirados. E assim, disfarçaram o mal-estar, com Benito costurando impressões sobre eventos culturais.

    - Em rede, como eu disse, com parceiros, quero dizer. Funciona assim com eventos. A ocupação das praças, por exemplo. Não é, Edgar? Contamos com divulgação da Prefeitura, com cobertura das rádios comunitárias, e levamos o grupo teatral Pegadas Periféricas, que doou o cachê e aí alugamos vans para buscar todo mundo. E os caras misturam RAP e performance, e até algo circense, se você se lembra, HD, quando foi?, ora, em junho! Você recitou Ferreira Gullar!

    Sim, HD se lembrava. Ah, o evento na praça! Imaginava encontrar a Simone ("não a de Beauvoir") pois dizia a si mesmo que Aurelius não perderia a oportunidade e assim convidaria a amiga, mas nada disso aconteceu e HD ficou junto aos músicos, e o único poeta num raio de cem metros e sem saber o que fazer, pois nunca decora os próprios poemas e, na verdade, nem se preparara.

    - E tem mais: veja esse pessoal do "Comida de Boteco", que começaram modestos e tal. E olhe hoje! A captação de patrocínio que os caras fazem! Daí eu digo: precisamos de estratégia para a captação de recursos! Parar de pagar pra trabalhar! Eu encontro os artistas, e artista merece uma grana, não é? Mas quem paga? Daí o marketing cultural...


    E a conversa seguiria assim se o garçom não tivesse aparecido com a porção e o caldo solicitado, e Edgar não aproveitasse para comentar sua dieta de fome. - É que estou um pouco gorducho.




    E HD nota o olhar contrariado de Benito, que "não é o Mussolini", como ironizam os colegas, afetos e desafetos, pois, ainda que proclamado anarquista, não consegue evitar um certo "ar mandão" muito célebre em seu histórico xará, ainda mais quando é interrompido, o que muito se assemelha ao olhar de ódio bem visível em Hélio Lúcio toda vez em que alguém lhe corta a palavra, em semelhantes condições!

    - Eu percebi mesmo... A barriguinha, aquele risinho das fãs...

    Sim, o velho Edgar ali diante do seu caldo de feijão (com salsinha e cebolinha) em banalidades, enquanto Benito faz rodopiar o garfo no espaguete, e HD agradece os oferecimentos de ambos, por que acabara de jantar em casa. sim, os velhos amigos, de ano e meio, diga-se, e Edgar preocupado com estéticas, a nova mania da classe média, essa de estética corporal, enquanto HD cultiva recordações do show de início do ano, não aquela coisa de barzinho, mas um mega-show que Edgar promovera no clube campestre e lá estava Simone, mas (raios!) acompanhada por um figurão, da Secretaria de Cultura (claro!), de mediana meia-idade, e ela não se importava lá muito com 'barriguinhas' e ela nem se dignou a saudações mesmo que discreta, e ele não se aproximou.

    - Talvez se você praticasse dança... - HD precisa sugerir algo, não é sociável ficar só calado. - É mesmo! Muita gente prefere dançar do que malhar em academia...

    - Mas não queima calorias... - diz Edgar, agora mais preocupado em degustar o caldo.

    - Então experimente andar a pé. Ou está de carro aí hoje?

    E Edgar lança um olhar meio de dúvida, igual aquela vez, um mês após o show no clube campestre, quando HD virou-se, irônico, para Edgar, "mas o seu show é comentado até hoje! Também foi a única coisa que aconteceu em janeiro...", e Edgar finge não entender a ironia, do tipo "não é que tenha sido bom, mas foi o único", pois não pode se pretender sentir-se ofendido por HD! Afinal, convenhamos, quem é HD?

    - Sim, faça como eu. - HD insiste. - Fique por aí, andando, perambulando, andarilho convicto, e nem vai precisar de academia e tal.

    E acontecera mesmo. Na festa do aniversário de Edgar, ali mesmo, no barzinho, HD não encontrando coletivos noite adentro, e sem grana para laçar um táxi, resolvera seguir a pé, e assim marchou três horas, na noite de névoa, desde o centro histórico. Sim, na festa onde ficara outras duas horas diante de Simone que só sabia desfilar comentários sobre os bastidores da prefeitura, as festinhas da Secretaria (a de cultura, claro!), como a deixar claro que não caíra nos braços de HD devido a impossibilidade do poeta em oferecê-la semelhantes prazeres.

    - Mas eu ando muito. Venho a pé para a faculdade.

    Claro que ele anda, mas não duvido que use o carro para ir a padaria da esquina! Ou então pedia à empregada. Como daquela vez em que o visitei, precisando tratar dos detalhes do evento sobre o "Clube da Esquina", o tal evento que nunca ocorreu!, pois não vou mendigar apoio de ninguém, nem mesmo do Victor-Hugo que é dos velhos tempos, e já estudou comigo, o cara, quem diria, e eu em conversas com Edgar, na sala de TV, ele atento a novela das seis, aquela global, sobre "almas gêmeas", e chega a empregada, com sorrisos e uma bandeja reluzente, a transbordar de fatias de pão de forma, bolachas, manteiga, requeijão, refresco de caju, leite morno, café, e HD aceitou o leite e continuou a insistir no item patrocínio, enquanto Edgar unia bolachas com manteiga ou montava sanduíches com requeijão, e nunca concluíam o assunto, pois o celular se esgoelava e Tony confirmava o show, e era num bar, no centro histórico, onde Aurelius agendava seus saraus, mas ainda não era inverno, era um outono sem novidades. HD foi ao show, e recitou poemas em espanhol, como ainda faria em maio, no evento da Simone, e ela nunca o perdoou, sim!, quando ele ironizou aqueles amigos dela, "aqueles burocratas, ratos de gabinete", e Simone mesmo dissera, confirmara a vadia, que estava saindo com o tal burocrata-rato-de-gabinete e que ele era o terceiro no comando, na ordem hierárquica, logo o tesoureiro, e que passaria o fim-de-semana no sítio dele, fazendo o quê, imagino, a vadia, mas ela não me deve satisfações...

    - Mas, Edgar, essa sua vida sedentária... - e Benito também não podia ficar calado. Não diante de Edgar, o velho camarada!, ainda que espumando de banalidades.




    E HD no show, barzinho acolhedor, e lá estavam Tony e seu saxofone caríssimo, e Guilherme e sua guitarra azul-anil-metálico, e também um baterista, que ele encontraria tempos depois num show de rock na praça, mas no momento não conhecia, ou se o conhecera já não se lembrava, mas isso não importa, e estava Aurelius, morrendo de tédio, e talvez de cansaço, pois mofando na redação até aquela hora e já passava de vinte e duas e nada de conversar sobre liberdade e determinismo, como da última vez, antes do sarau de segunda ("segundas intenções"!), com Wagner e seu violino, com HD admirando o cuidado de Aurelius para com o filho, a morar com a mãe, depois de um casamento mal-sucedido...

    E não pode deixar de observar os cuidados paternais, e de se perder em pensamentos, ele, Hector, que não é pai, nem se imagina enquanto tal, impressionado diante daquele brilho no olhar de Aurelius ao contemplar o filho, o projeto de jovem, o rapaz com diploma, o filho do filho, a filha do filho, a filha do filho do filho, a quinta geração, os ta-ta-ta-alguma-coisa, ou, e Hector, ele, está arqueando as sobrancelhas, temendo uma interrupção da descendência, onde o darwinismo social mastiga e engole, o darwinismo do origem das espécies, onde uma mão armada numa rua escura, um gesto impensado, um disparo gratuito, a contração de falanges num gatilho, e eis um corpo beijando um chão de asfalto, banhando-se em crescente mancha rubra, e Aurelius pisca, busca o copo, a cerveja, língua a passear nos dentes, mas o filho ergue outro olhar, um brilho úmido de pálpebras inocentes, papai, outro sanduba, e Aurelius, sorrindo, esquece a descendência, o Darwin das espécies, o beco escuro, e acena à figura solícita do garçom, por favor, outro sanduíche!

    E Aurelius não esperou para julgar a dicção de HD ao ler trechos de "Song of Myself", de Whitman, ou os poemas de García Lorca, em español suspeito , ou os poemas de Paul Celan, em alemão, idem, ou os poemas de Arthur Rimbaud, num francês um tanto melhor.


    - ... HD tem razão, essa de andar um pouco não é má idéia. Passeie com o Bill, por que não?

    Bill é o cachorro, cão-de-guarda, de Edgar, mas o que é isso interessa? Lembro aqui daquele show no bar, pois é onde conheci a Bruna, a "Bela Luna", pois além da rima, era essa música do Paralamas do Sucesso que Edgar e sua banda tocava, e o sorriso da garota era tão arrebatador (uau!) que quase esqueço das declamações, desorbitado depois da fuga de Aurelius, e Edgar só tivera tempo de chamar-me a mesa onde Bruna está acompanhada de duas outras princesas, mas não igualmente simpáticas, inclusive uma delas eu encontrei aqui, semana passada, a Patrícia (não é?), e ela prometeu enviar um e-mail com novidades sobre a amiga (também o orkut?), mas nada feito, até hoje, e nunca revi aquela Bruna, mas aquela noite, aqueles sorriso, aqueles versos rabiscados em guardanapos, foi o delírio, enquanto o sax de Tony transtornava os nossos peitos e a guitarra de Guilherme gemia alegre e solenemente em nossos tímpanos, a "Bela Luna" queria saber mais sobre a minha vida e eu logo vi que ela era do tipo "ansiosa", pois fumava com fúria e nem esperava o cigarro acabar, logo o esmagava contra o cinzeiro em forma de ostra e erguia os olhos claros e ignorava as amigas, que despejavam ironias, e ela nem se importa, e lembravam incidentes de uma festa e Patrícia ( que só depois é que Edgar revelou o nome da donzela), a mais morena, com traços de índia, só tecia alegorias irônicas da amiga, e eu me voltei para a Bruna, quase loira, com olhos marinhos, e disse, "com amigas desse naipe, você nem precisa de inimigas" e ela sorriu ( aquele sorriso!) e eu quase gozei!

    - Mas você, HD, tão calado! - Benito acende um cigarro, enquanto observa Edgar e seu caldo de feijão, o mesmo Edgar que finge (outra vez!) não entender a 'alfinetada' de HD, quando daquele lance de "faça como eu, fique por aí, andando a pé"

    - Estou pensando na vida mansa aí do Edgar... - disse, e observou a reação do amigo, que erguei um olhar brilhante, engolindo o caldo fumegante e limitando-se a engolir junto um sorriso.

    Mas Edgar não é desses que se deixam ofender. É um "espírito nobre", com toda a generosidade possível, daquele tipo que "concedo-a-você-meu-caro-o-privilégio-de-ser-meu-amigo", é isso, claro!, e eu que dormi no quarto de hóspede de sua confortável residência, enorme para três moradores, visto que a irmã era casada, e os três empregados, eu sei do que estou falando!, e depois do show onde não consegui beijar a "Bela Luna", pois as amigas (amigas?) não deram um tempo, como é que pretendem conhecer um cara legal (!) se não dão nem oportunidade, e saem todas juntas, em grupinhos, essas meninas!, a ironizarem os caras, e até a si mesmas!, e fica um grupinho de caras numa mesa e um grupinho de garotas em outra e não se entrosam e não se transam e voltam solteiríssimos para casa!

    - E terminou aquela música, aquela com o Alves...

    E eu dormi agitado, pois Edgar guardara silêncio quando perguntei sobre a Bruna, aí ele mencionou a Patrícia, e que dela ele surrupiou o número do celular, mas da "Bela Luna", nada! E nada mais disse, estava morrendo de sono, ele, e abandonou-se sob a ducha quente, enquanto eu folheava "Os Maias" do Eça de Queirós, livro que ele depois emprestou para alguém e nunca mais viu, e eu me interessei em ler, mas não foi dessa vez, e depois eu entrei no box e ducha morna, como eu gosto, e fui dormir, afinal, eram três horas da matina!

    - Aquela com o Alves? Não, até hoje! O cara sumiu...

    - Talvez voltou para Sampa...

    Sim, o Alves, o multi-instrumentista, moreno, de estatura mediana, mineiro, mas criado em terras bandeirantes, logo, paulista, e carregava a esquina da Ipiranga com a avenida São João no fundo do olhar e queria porque queria compor uma música com o Edgar e lá apareceu no domingo, eu que acordara às dez horas e fiquei a conversar com o simpático Sr. Sávio, funcionário público, igual ao meu pai, com aquele papo de política rés-do-chão e intrigas de gabinete, que fulano vai se candidatar mas somente se contar com o apoio de beltrano e a aprovação de siclano, forte líder partidário, financiado por uns 'coronéis', como o amigo sabe, e aquele papo de funcionário que mais se ocupa de boatos do que da organização dos arquivos.





         E o Alves apareceu e serviram o café-da-manhã, pois almoço ali só lá pelas duas da tarde, e a mãe apareceu, acompanhada da filha, que viera para uma visita de domingo, e arrastando o marido, que estuda Teologia em importante instituto evangélico, mas nisso o Edgar já ressuscitou e mastigava um pão de queijo, e o Alves, todo sedutor, puxava um violão e queria aliciar o anfitrião para a composição de uma melodia com leves influências de Milton nascimento, onde Alves teimava em inserir uma letra a la Mutantes, e eu não hesitava em metáforas surrealistas, e quem havia lido André Breton?, ninguém, claro, mas ouviam Zé Ramalho e Raulzito e entenderam, 'colhemos gemidos na brisa do mar', foi um de meus versos que eles acolheram.

     - Não, se o Alves fosse embora de definitivo, ele ligaria. Vai embora sem se despedir dos amigos? E eu é que preciso me despedir. Tenho aula de lingüística agora. - disse Edgar e se levantou. E HD lembrou-se do caderno de latim aberto na mesa da varanda, e o esforço de Edgar em conciliar a carreira artística e a pose de bom estudante.

    Benito observa o músico se afastar, e lança um olhar a HD, que finge profunda concentração ao cardápio, onde, numa folha interna, lê um poema haicai do amigo Aurelius, pois pressente a ironia do produtor.

    - Você foi bem amável com ele, hein.

    - Por que?

    E HD não evita mergulhar nos olhos daquele Benito, promotor cultural, poeta bissexto, amigo de Edgar e Simone, adepto do anarquismo, individualista, que já defendeu, certa vez, enquanto esperavam o ônibus, que "sentir-se livre já é liberdade plena" e "o anarquismo não é sistema social" pois "poucos se libertam, a maioria continua sendo servos da máquina", enquanto ele, Hector, defendia a "ação social, pois ou todos são livres, ou ninguém é livre" e que "liberdade pessoal, tal a moral 'pessoal' ou a 'minha' religião, é auto-engano, afinal usam-se de serviços e pessoas, e assim se mantém a 'mais-valia' e a alienação", e aí Benito ironiza, "eu descobri que posso viver sem geladeira...", e em seguida acenou ao ônibus, e embarcou disfarçando um sorriso.

    - Por que? Ora, você está com tédio de todos nós! Aqueles que rodeiam Simone e que nunca te ajudaram. Ou você acha que eu não sei que você ficou aqui, junto a porta, mais de uma hora, alugando os ouvidos da Simone? Na festa do Edgar. E você nem lembrou de cumprimentar a família do cara e depois saiu irritado, sem despedidas, e por quê?, pois não é que a Simone mencionou o Braga? E foi isso mesmo! HD, o Grande HD, você acha que eu não te conheço? O Big HD!

    E Benito conseguia desmontar o sempre suspeitoso HD, com toda aquela demonstração de amizade aberta, ainda que falando de cima para baixo, algo paternal, com condescendência até, pois está convicto de sua contribuição à saúde mental do amigo. E claro que, depois dessa, HD vai encolher-se até sumir no canto do bar, igual daquela vez quando, um dia antes do sarau do Aurelius, ao perambular entre as mesas do bar, oferecendo versos e livros aos casais apaixonados, encontrara-se cara a cara com Simone e o tal Braga, esquecidos do mundo, em beijos um tanto indiscretos, e percebera o quanto Simone era boa atriz, e que não a procuraria mais, e que desejou dizer o mesmo que dissera a Elen, ano e meio antes, "Divirta-se!", mas resumiu-se a um "Tudo de bom", e afastou-se.

    - O Big HD! Vamos! - e Benito saiu primeiro e logo se separam no estacionamento. E Benito agita as chaves igual fizera o tal Braga, igual o cara que dera carona a Bruna, a "Bela Luna".





    O Edifício Dantês, na Praça Sete de Setembro, abriga um importante curso preparativo ao exame vestibular e ali estuda, ansiando por uma carreira acadêmica, a nossa Bianca Maria, que atraíra, como sabem, com suas teias, na rede digital, a atenção de Stevam Lucena, que para o cursinho se encaminha, ele que ali já estivera, ano e meio antes, a procura de Stevam Valêncio, que agora já cursava a faculdade, às voltas com pré-socráticos.

    Stevam Lucena viera a Belo Horizonte convidado por Marco Aurélio, mais conhecido como "conde", no "Templo Sombrio", o próprio animador das noites lúgubres e dançantes, que além do "Leis da Noite", agora promovia o "Poesia Sombria", e assim Stevam numa promessa a Bianca, algo como uma "breve visitinha", antes que ela enfrentasse as aulas (e uma ocasional prova de Química...), e ela nem acreditou até perceber o vulto subir a rampa à entrada do curso, ou ainda antes, quando o notou, quando ainda dentro do ônibus, o jovem todo em azul-anil, "parecendo os Smurfs", como ela ironiza depois, a entrar numa padaria ali da Avenida Amazonas, e ele dissera que "para trocar um dinheiro", mas depois confessou que resolveu comprar umas balas. Então Bianca acompanha a eufórica subida, ofegante escalada, a de Stevam, que já se imaginava deveras atrasado, mas ainda não eram dezoito e trinta, como poderia ter conferido no celular, caso tivesse se lembrado.

     "Já estava com saudades!", e Stevam Lucena abraçou a jovem, ali muito diferente, assim mais esguia, sem o vestido, aquele volumoso, no final de contas, e sem contornos femininos atrativos, numa calça jeans surrada, numa camisa comum, nada havia daquele encantamento de sábado, à noite, na Praça, no teatro, e nos seus sonhos quando lia cada e-mail e pensava que, diferente de Amanda, tão distante, aquela Musa estava por perto, na cidade vizinha, nos labirintos da Capital, mas Bianca Maria não se considerava Musa e Stevam Lucena realmente nada encontrou da musa naquela figura sem atrativos, mas que simbolizava toda uma procura, toda uma espera quando lia na caixa de entrada dos e-mails o nome "Bianca Maria" e o nickname "A beata da noite".

    "Já estava com saudades!", e ela correspondeu ao abraço e os olhos claros brilharam atrás dos óculos, "Eu pensei que você não apareceria", ela disse, mas depois revelou que o percebera entrar na padaria, quando o ônibus parou ao sinal vermelho, e ele estendeu em envelope com mais poemas, os sonetos que ela, "a beata da noite" inspirara, com sua simpatia e discrição, mas é porque ele ainda não a encontrou no "Leis da Noite", e esse mal-entendido custará a felicidade de ambos, mas agora ainda estão na portaria do cursinho e Stevam quer convidar Bianca para o aclamado "Poesia Sombria" e ela sorri, "Ninguém vai me corromper", e revela sua preocupação com as aulas sobre relevo brasileiro e sobre o ponto de fusão e ebulição, e ela aceita o envelope, mas vai abrir o mesmo só no intervalo, e é quando encontrará o cartão artesanal, com uma ressequida pétala de rosa, e as palavras "Meu Amor", que a deixará, a partir daquele instante, toda sem rumos.

    Mas ela ainda não abriu o envelope e ali ela está, a Bianca Maria apresentando poemas em rascunho no caderno, versos inéditos, que ela não divulgou na net, nem divulgará, revelemos, mas Stevam Lucena desce os olhares com intenções críticas, e ela fecha o caderno, entre tímida e irritada, mas não entende que ele planejara, em seus sonhos que sempre se esfumaçam, tê-la finalmente nos braços ainda aquela noite, lá no Poesia Sombria, que ele não deseja "passar solitário, perdido em penumbras íntimas", e ela irredutível, incorruptível, com um encontro marcado com a topografia e as escalas térmicas, o que se revelaria inútil, visto que não seria aprovada, mas isso ainda é futuro, e ela, de momento, recusou o convite do jovem ansioso, e deixou-se abraçar e entrou para as aulas, deixando sozinho o sonhador.




    E subindo a rua Rio de Janeiro e depois a rua da Bahia, Stevam Lucena se percebe nas alamedas parisienses da Praça da Liberdade, onde tudo começou, onde conhecera, a exatas noventa e seis horas, a jovem que acabara de abraçar, e ainda desejava, mas agora incapaz de aceitar que ela preferira a tortura da sala de aula aos abraços e beijos que ele lhe reserva, e assim ele sentou-se, no mesmo (o mesmíssimo!) banco, onde se acomodaram noites antes, e escreveu seu centésimo soneto, no que despejava toda a influência de um Thales Henrique, do qual, Stevam imagina, ser o discípulo e continuador da obra, da missão, se é que TH se julgava envolvido em alguma 'missão'.

    O soneto surgia solto, mas amarrado em rimas preciosas, enquanto a fonte luminosa continua fluída e fulgurante, com estátuas gregas de semblantes e corpos pagãos, brilhando num contraponto aos prédios de vidro, quadrados, angulosos, assimétricos, que ladeiam a Praça, a poucos metros, e a cada verso uma imagem de delírios ansiados, pois ele ousara imaginar a boca rubra de Bianca Maria na sua boca, e os braços brancos de Bianca Maria ao redor do pescoço, com dedos delicados a massagearem sua nuca, agora tensa e reclinada, ele que não passa de vulto cabisbaixo a rabiscar passionais num papel amarrotado, num banco de praça, enquanto casais enlaçados a derramarem sorrisos no passeio sob as sombras das palmeiras, meio a fragrância das roseiras, no frescor úmido junto as fontes.

    Não agüentava mais de angústia, suportava a si mesmo a cada volta da caneta, nervosa tal os dedos que a conduzem, arranhar o papel fino e frágil, mas foi salvo pela lembrança do compromisso, pois, mesmo com a ausência de sua 'beata da noite' não poderia faltar, uma vez que prometera ao "Conde", e percebeu-se, sempre assim, admirando-se por observar a si mesmo, a descer a ladeira da avenida Bias Fortes, rodeado por casarões de décadas passadas, divisando à distância o letreiro mutante do Edifício JK, com suas letras inquietas, marcando "20:38", ou seja, descansara por quase duas horas, lá no quase sossego da Praça, a buscar nos versos um alívio para a ausência tão presente, visto que Bianca Maria não é apenas corpo, é também símbolo.



    Quando Stevam Lucena, com seus lentos passos pesarosos, chega ao terminal turístico, tudo ainda está silente sob as goteiras, mas encontrando, apoiados na escadaria, os vultos soturnos de Márcio, o "Barão", e Rafael, o "Vampiro", que esperam Marco Aurélio, o "Conde", mas acham que Túlio, o "Penseroso", já chegara e não se enganam, pois uma sinuosa melodia densa e pesarosa vaza por entre as grades, e os vultos, ainda a trocarem impressões sobre o que se espera de semelhante evento, em plena quarta-feira, e adentram o recanto penumbroso do matriz, onde se derramam aquelas melodias ásperas e lamentos fúnebres, quando "Penseroso" se entrega às intimidades com suas músicas favoritas.


     E quase é possível imaginar uma procissão de monges em hábitos solenes, uns de branco, outros de preto, a trilharem as areias de uma praia desolada, ao som de "Atmosphere", Joy Division, ou as chaminés fumegantes de "Blue Monday", New Order, e as sirenes ensandecidas e as faces perdidas de "How soon is now", Smiths, e em conversas sobre símbolos, metáforas, arquétipos e correspondências, quando surge a presença do "Conde", sempre altivo e ainda simpático, a receber as saudações dos convivas junto ao bar, e ao seu lado a beleza carismática da "Rainha", codinome de Lídia, estudante de Farmácia, e o casal conduz os demais ao ambiente quase sombra, quase luz, da pista de dança, onde, envoltos pelos acordes e archotes, em íntimos golpes, de um Sopor Aeternus, evocando a dança da crueldade, ou de My Dying Bride, revelando o fenecer da beleza, os poetas sombrios, pois não podem ocultar, por muito tempo, o que são, a invadirem a penumbra.




Stevam Lucena acomoda-se nas poltronas laterais, quando o "Conde" lembra os propósitos do evento, desde "a sua concepção nos abismos de meu inconsciente", e agora "os impulsos líricos devem ser libertados", e Stevam levanta-se para homenagear um poeta maldito, lendo sonetos de mágoa e fúria, em forte emoção, "Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro" e "Tu és o louco da imortal loucura", e esse poeta maldito é Cruz e Sousa, e "Penseroso" afasta-se da mesa de som, e vem recitar um poema, que todos logo percebem ser uma letra de Renato Russo, em sua idolatrada banda Legião Urbana, e, Stevam pensa, certamente, Sônia Regina assim o teria feito, quando a letra menciona uma garota trancada no banheiro e ela está se cortando, e a imagem vagueia um momento, como a um palmo a sua frente, e agora é Amanda, com as coxas cortadas, os braços cheios de listas rubras e ele abre um envelope e eis uma folha encharcada de sangue, e que até gotejara, se não tivesse viajado três dias, e agora seco e escurecido, o sangue, ali repousa em suas mãos, agora em sua mente, pois a folha, pesada e assustadora, já fora devolvida.

    O que desperta Stevam Lucena do devaneio, no qual de súbito mergulhara, é a voz alta e profunda de Mário, o "Barão", em declamação de áspero poema de "Penseroso", e aparece o conhecido LL, que estivera distribuindo textos por todo o hotel, por ocasião do Carnaval Revolução, a mais de um ano atrás, lendo agora seus decassílabos perfeitos, e Stevam Lucena resolve ler poemas de amigos, sejam vivos ou mortos, e lembra o poema de Thales Henrique, "É ao crepúsculo que a sombra funde-se / a outras tantas numa só..." e o poema de Hélio Lúcio, "Existências vãs! Existências vãs pra pensar em morrer!", e, exausto, sentindo as palavras queimarem na ponta da língua, tal um ácido simbólico que ali deixassem, ouve "Barão" declamar um poema muito depressivo daquela amiga on-line da Amanda, a "Valkyria", a pouco amistosa Sofia, a "Sombria", e é por isso, por esses golpes sucessivos, que Stevam se levanta novamente e lê seu poema "Questionares", "O que são os olhares de tédio além de restos de juventudes febris? O que são os sonhos além de lembranças do útero?" e não esquecendo de dedicar a leitura ao pensativo "Penseroso", Túlio, sempre em andanças, e que, depois todos ficam sabendo, é um dos aniversariantes da noite, a receber alguma atenção, a sentir-se reconhecido.

    E, acomodado na penumbra, Stevam Lucena é assombrado pela ausência de todas aquelas que mereceram ao menos um palpitar de seu coração, uma falecida Sônia Regina, com longos cabelos negros em cachos, deslizando na pele branca e brilhante, a sussurrar, em seu colo, "Eu sei que você gosta de mim", e uma distante Amanda Lins, com olhos que ele nunca viu, com uma pele que ele nunca sentiu, a escrever "Daria tudo por um abraço teu", e uma desejada Bianca Maria, próxima, mas descrente do amor, com olhares frios e lábios rubros, a dizer "Ninguém vai me corromper", enquanto desabam as sinfonias soturnas e se elevam as árias macabras e irrompem as vozes de lamento, em poemas de decadência, "quando eu retornar ao pó, quem me salvará?", numa mórbida busca por tristeza, ainda que os pares rastejem dançantes, e os seus corpos jovens a se moverem num exótico bailado, enquanto luzes piscantes criam extensões, filiais e free-lancers, de delírios incontidos, e tudo é demais para ele!

    No bar, onde busca um consolo numa taça de vinho, Stevam Lucena encontra o sonetista LL, que precisa ser ouvido, e derrama sua transbordante obra, uns cem sonetos de rara expressão e raríssima precisão formal, o que denuncia toda "a síndrome da influência", devido as horas de devaneio, bebendo nas fontes simbolistas e parnasianas, e o, agora introspectivo, Miguel, o "Arcanjo", se aproxima, com um brilho de ansiada revelação no olhar, mas entrega-se à leitura dos sonetos, que LL cobre de comentários e referências, julgando finalmente ter encontrado bons interlocutores, mas a voz do "Conde" ecoa distante, na verdade, ali na pista de dança, a evocar as Musas e convocar os poetas, a desferir em si mesmo sua punhalada fatal!




    E retirado o cadáver do "Conde", um cadáver até sorridente, entra em cena o "Penseroso", a declamar novamente o poema onde a vida literalmente violenta a alma, e Stevam aproveita o clima tenso para ler um trecho do "Maldoror", de Lautréamont, com ambiências vampíricas, ainda mais após a exibição de trecho de filme sangrento, uma cortesia de Alan, o "Espectro", quando "criaturas da noite fogem dos nossos piores pesadelos e se deitam ao nosso lado em nossas camas, agora gélidas como túmulos", para o frêmito de todos os jovens em busca de adrenalina, não importa qual seja.

    "E como estou cansado dos poetas!", assim grita Zarathustra, usando a voz de Stevam Lucena, que se lembrou de Nietzsche, depois que Márcio, o "Barão", lê um poema de seu amigo Rafael, o "Vampiro", sobre, obviamente, vampiros e outras figuras espectrais, e o tom é perfeito para que Lídia, a "Rainha", relembre versos que, na verdade, são letras da banda Radiohead, pois todos vivemos numa imensa casa de vidro, ou estamos atentos as faces no fundo dos poços da memória, na declamação de "Barão" ou assustados com quimeras, como arrisca LL, em seu soneto.

    Mas o pesadelo não acabou, a ausência não foi preenchida, as faces ainda são estranhas, "as pessoas são estranhas quando somos estranhos", dizia o Morrison, e mais estranhos estes apelidos, que se pretendem assustadores, Espectro, Vampiro, Profano, maldita, e mais estranhos perceber-se ali naquela indecisão entre a luz e a escuridão, a esconder de si mesmo num antro de sombras, a negar-se perguntas, pois assusta-se só em imaginar as respostas, que podem não  ser gentis, e muito menos de mínimo, e necessário, consolo.

    Se as melodias não trazem qualquer paz, e arranham a superfície da pele e a delicadeza dos tímpanos, e nada concedem além de mais desespero, e alguém ainda se diverte!, alguém ainda ousa rodopiar na pista enlaçando sua companheira de orgias, que podem não ser apenas mentais e virtuais, ou ambas, enquanto alguém, Stevam Lucena, se debate meio ao lamento da tragédia alemã, junto ao pranto da guerra civil croata, sob a depressão insinuante dos bardos ingleses, sem encontrar refúgio nas trevas, pois ainda ali se espelham as ausências, quem ele ama, aquelas que ele deseja, nenhuma se dignou a surgiu sob um facho de luz piscante a ofertar um bálsamo, nenhuma!, pois certamente ele não merece, pois prometera a falecida, em solene promessa, conservar sua memória, legar para a posteridade o que ela foi, o que ela ainda representa, e prometera escrever um livro, um romance dark, diante do túmulo dela, e quem disse que e não ouviria as promessas?, afinal, não importa, ousamos promessas é para nós mesmos, e por isso adoramos quebrar uma por uma.

    E há um chamado lá fora, a noite chamando, "eles sempre me chamando", um eco de Ian Curtis, o mestre de seus pesadelos, num desejo da noite de absorver todos os desgarrados, todos aqueles à deriva, e só resta a ele, Stevam Lucena, distribuir despedidas, presentear o poeta Miguel, o "Arcanjo", com um soneto de recente composição, e deixar-se guiar pelo frio da noite, a lembrar-se de tudo e a lamentar ausências tão presentes, "Será que Bianca Maria já está dormindo?"





Noite de quinta-feira, 1º set 05


Querida Bianca,



Sinta-se abraçada.

Como estás?

Espero que estejas bem ao receberes esta.

Ando pensando muito naquele sábado, quando nos encontramos e
fomos ao teatro.

Eu imaginei um encontro todo lírico e acabei deixando que
minha inquietação (e desassossego) tornasse tudo prosaico
(e irônico).

Será que assim eu te deixei desiludida? Será por isso que eu
te deixei cansada?

Imagino que idealizavas um poeta todo romântico com flores
na lapela, e tal. Mas não sou um poeta, sou um desventurado
que se julga poeta.

Sou até muito irônico com esse lance de 'romântico', que se
tornou outra moda de consumo. Sou freudiano demais para
acreditar em amor e felicidade.


Não quero encontrar uma garota para sair na noite. Quero uma
companheira. Já tenho 25 anos e estou solitário - pois não
encontrei uma mulher que me compreendesse.

Logo que eu te encontrei senti uma familiaridade muito grande.
Ali uma pessoa alheia ao "rio de aço do tráfego" segurando uma
rosa vermelha, sozinha e à espera.

Posso dizer que me senti muito à vontade ao teu lado.
Mas será que ficaste desiludida? Não sou o que esperavas?
Lembre-se: eu gosto de ti. Agrada-me pensar em ti. É isso.

Mil abraços.
 

Stevam Lucena






 [continua...]


LdeM

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