domingo, 14 de agosto de 2011

...mais trechos do Capítulo 4 ...


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Manhã de terça, 26 abril


Querida Amanda,

Acordei cabisbaixo, minha irritação de ontem tornou-se depressão hoje. Vou escrever para ver se sobrevivo até a hora do almoço.

Peço desculpas pelo e-mail afetado, a sua mãe é um porre! Só de pensar que ela leu tudo o que escrevi me deixa de cabelos em pé!

Mas o assunto desta carta é mais psicológico. Ao saber que serás obrigada à sessões com psicólogo, elaborei aqui um Manual de Sobrevivência, visto toda a minha experiência com estes amados profissionais.

Eu digo isso porque já cansei de ler psicologia e até aguentei dois semestres do curso, aí descobri que meu analista, por sua vez, tinha também um analista! Os psicólogos são tragicômicos, mas os psicanalistas são autores de ficção!

A diferença básica entre o psicólogo (ou psiquiatra0 e o analista é que o primeiro vai te ver mais como uma doente, enquanto o segundo vai te achar muito interessante, e lembrar romances de Dostoiévski, então o psicólogo/psiquiatra vai querer te curar, te enquadra nos padrões aceitáveis, mas o analista vai querer te ouvir, e te decifrar.

Assim, diante dos analistas, eu aconselho uma conversa franca, mas sem confissões, enquanto diante do psiquiatra mantenha a formalidade, mas sem cara fechada (senão ele te rotula de sociopata!), e converse com moderação.

E se o psiquiatra é um obcecado por padrões, o analista é um sujeito culto, filósofo-amador, que freqüenta cafés culturais no sábado à noite e tem uma amizade via internet. Então o analista pode se tornar até um bom confidente, mas o psicólogo é sempre um 'agente da autoridade externa'.


                   do teu Stevam





De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Para: Templo Sombrio [templosombrio@XXgrupos.com.br]
Assunto: sobre a moral laica
Data: Wed, 27 Apr 2005 - 18:04


    Percebo que as discussões partiram da figura Papal, passando pela Igreja enquanto Instituição, e já chegou à questão da moral e a figura de Deus enquanto fundamento para a Moral.
    Eu tenho pesquisado, em vários textos, a construção de uma Moral Laica, a partir do que foi deixado por Nietzsche e Sartre, e em parte recuperado por Umberto Eco e Salman Rushdie. Pois não concordo com a afirmação de Dostoiévski que "Se Deus não existe, tudo é permitido".
    Penso que nós , humanos, podemos estabelecer leis justas e cumpri-las, dispensando a figura divina e outros transcendentes (inclusive os imperativos de Emmanuel Kant, ao qual respeito, mas que ainda é muito religioso)

    Uma Moral laica tem a princípio o enunciado de que o ser humano é capaz de guiar a si mesmo, de produzir e valorizar suas próprias obras. Não há aqui qualquer questionamento sobre livre-arbítrio (pois, desde Hegel, sabemos que há os determinismos sociais e históricos), nem qualquer conceituação de Queda ou Pecado, nem promessas de qualquer Redenção através de Penitências, etc.
    Mas tudo sendo relativo (pois não há uma Verdade), cada aspecto do Real é visto sob vários prismas. Faz sentido defender um Direito Natural? O homem é naturalmente lobo ou cordeiro? Ou precisamos apoiar (e construir) seriamente um Direito Racional e Universalista?
    Se o referencial for a 'ordem natural', o que está mais próximo da natureza: o Vaticano ou o Marques de Sade? Somos parte da Natureza ou somos suficientemente afastados desta, por uma Civilização? A Natureza será a base de nossa Ética? É mais natural o método da Tabelinha, mas não é menos natural a lei do talião, a lei do mais forte.
    Podemos falar em uma ética que vem da Natureza? Faz sentido defender um DIREITO NATURAL ?
    Apesar da Ação Afirmativa do ATEÍSMO derivar de uma negativa (DEUS NÃO EXISTE) é ainda dotado de um a priori válido: Agir sem considerar qualquer Providência Divina. Criar as próprias leis - não há humanismo sem leis, como alguém citou por aí. O ATEÍSMO é uma vantagem sobre o AGNOSTICISMO (que nada afirma) e sobre o NIILISMO ( que tudo nega).
    Mas tudo o que escrevi aqui é muito superficial. Posso entrar em detalhes, em cada ponto, caso perceba um interesse.





De: Morpheus [stevam_lucena@XX.com.br]
Para: Templo Sombrio [templosombrio@XXgrupos.com.br]
Assunto: eu sou moralista?
Data: Mon, 2 May 2005 - 20:34


    Eis que estou a receber uns PVTs muito confusos de um interlocutor ( o qual prefiro manter anônimo), a denominar-me (com certa aspereza) de 'moralista'.
    Ora, em certo sentido sou 'moralista', não da moral judaico-cristã, mas da necessidade de uma moral. Sim, pois não vivemos sem uma moral e não há 'moral individual', pois toda moral é um construto normativo coletivo. Uma norma a ser seguida pelo maior número possível de indivíduos numa coletividade.
    Seguimos uma moral 'legislativa' - as leis públicas - mas sob uma ética cristã (que se diz cristã) num sistema econômico mercenário. Confuso, não? Pois é isso mesmo. E se não criarmos uma real Moral, estamos fadados a viver sob a arcaica e indigna moral cristã. "Se vocês seguirem as regras morais básicas, podem ser tão antiéticos quanto quiserem."
    Podem andar de luto, com cruzes invertidas, e trajes vampíricos, desde que paguem a roupa, o luxo, a tal maquilagem, sendo a fonte de renda para alguém, sendo consumidores de camisetas e álbuns de bandas. E precisam ter uma fonte de renda, para pagarem ao menos a consumação mínima. Podem andar de cara fechada, nos fins de semana, desde que trabalhem a semana inteira, com um adorável sorriso nos lábios.
    Ou seja, somos uma concessão da sociedade, somos olhados com desprezo por aqueles que, se pudessem, seriam intolerantes, pois, se pudessem, seriam bem intolerantes, pois, se pudessem, eles nos queimariam em praça pública.

    "Viva bem, faça isso!" e não se pergunta sobre se tal prática é saudável para o vizinho! Pois não somos, hoje, individualistas, narcisistas e hedonistas?
    Precisamos criar novos valores!


                          Stevam Lucena




Nas montanhas, 08 maio


Querida Amanda,


Escrevo ao som de "Vampiria", a nossa canção.

Escrevo também um conto sobre uma jovem implorando por eutanásia, e sei que vai gerar polêmica.

Cada acorde da canção traz consigo uma imagem e um retalhar do coração, uma espera, que sei, se estenderá por dois longos anos.

Mas prometi encontrar-te e quando eu prometo, eu dou o sangue para realizar.

Voaremos juntos nas noites de tédio, compartilhando temores e versos, nas nuances da decadência e do torpor.

Escrevo porque preciso e é necessário que leias, que possa abrir o teu coração, minha preciosa rainha, para então voarmos juntos para longe. Se realmente é o nosso destino, então precisamos construí-lo, imaginá-lo a cada instante. Se vamos nos encontrar um dia, precisamos moldar este dia desde agora!

Se és o meu destino, real destino, e único amor, se somos as faces da mesma moeda, então precisamos nos lançar contra todos os obstáculos - que são imensos - e realizar este sonhos, esta crença de todas as crenças.

Entregar-se um ao outro à distância é um sonho, é um delírio, isso eu sei, mas como impedir? Imagine um cidadão em Moscou se correspondendo com uma jovem londrina; imagine um cara em Nova York escrevendo para um mocinha em Denver; e uma mulher em Roma prometendo amores para um apaixonado em Estocolmo; ou um poeta chileno enviando postais para uma escritora espanhola.

Amores em cartas, versos em e-mails, beijos on-line, todas as formas modernas e pós-modernas de amor, de contato, de afeto.

Ah, que medonho! Tu somente lerás estas linhas daqui a uma semana!


do teu Stevam



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Noite de terça, 17 de maio

Nas montanhas de Minas...


Minha Querida Amanda,

Receba o meu abraço apertado.

Agora um pouco mais calmo, após um crepúsculo em som e fúria, ouvindo um pouco de som pesado para despejar em catarse o ridículo que me cerca.

O melhor que me aconteceu foi ter recebido a tua carta hoje, e ansiosamente esperada, e assim que cheguei.

Mas ainda continuo aflito com o teu tom evasivo, pois não respondes as minhas dúvidas.

Eu alcancei um frágil equilíbrio entre a loucura e a sensatez e vou mantê-lo. Mas confesso que andas abalando minhas estruturas - alguém distante e surgida tão de repente!

Tento entender o que me levou a dar-te atenção, entre mais de cem pessoas que circulam pelas Listas nas quais participo, e tento entender, talvez nunca consiga. És aquela que tenho esperado?

Mas hoje sou menos sombrio do que era a cinco anos atrás, quando assustava a vizinhança. Hoje sou digitador, servo das máquinas, escravo dos teclados e monitores.

Esclareço mais: morpheus, hoje, é uma parte de mim. E digo isso por um motivo simples: hoje sou um cara que constrói, não mais um destruidor, ou auto-destruidor. Não creio em deus nem no diabo, e aquela pose de 'sombrio' já era, pois é ainda ser um cristão, então preciso criar novas leis e nova moral, e deixar o que é sombrio e putrefacto e então construir o que é vital e real.

Espero que entenda. Já quis morrer, quase me matei, mas hoje eu quero viver, e viver intensamente.


      do teu Stevam





Entardecer de sexta-feira
Vinte de maio


Querida Amanda,

Por que não haverá de existir o amor?

Ora, é claro que há um monte de idealizações. Sentimos curiosidade, atração, fascínio, desejos sexuais e chamamos de Amor, daí a vulgarização do sentimento.

Se pensarmos bem não há amor, pois há um egoísmo a visar a satisfação física e deixar descendência. E o Amor seria uma palavra bonita para ocultar anseios egoístas.

Por que me senti atraído por ti, minha Amanda? Ora, por que foste atraída para mim! Tu és a aquela que ficou atraída primeiro, ao elogiar versos que enviei para um grupo com mais de cem participantes. Lembras que perguntei logo: por que eu? Nem tu mesma sabes. Eu aceitei a tua admiração e deixei que nutrisses um sentimento. Confesso que não te amei até aquele ataque de ciúmes - depois do Leis da Noite de março.

Mas continuo pensando que o teu transbordamento (digamos assim) foi prematuro. Nasceu do teu desejo (e necessidade) de ser ouvida. Tu me amas porque eu te ouço.

Mas deixo claro que não posso ser seu analista, não posso ficar carregando pesares dos outros (os meus já são imensos), e isso (esse despejo de mágoas) aqueles ao teu redor percebem e aí te abandonam. E se não perderes esta mania de 'despejar' nos outros o teu desassossego, vais ficar sozinha - realmente.

Não vejo o mundo como um 'jardim de esqueletos', e sim um 'jardim selvagem sem deus', um belo corpo (Gaia) que todos nós estamos destruindo, todos nós somos culpados, e a nossa geração nem era para existir.

Mas não trata-se de um jardim de esqueletos, pois aí seria difamar a própria vida, e é isso que os religiosos fazem, caluniando a vida na Terra e prometendo um lugarzinho no Reino dos Céus.

Nossa tristeza só faz aumentar o número de fiéis nas igrejas e templos e seitas e doutrinas, é triste, mas é verdade.

Aos demais seja dado pão e circo, panes et circensis.


     do teu Stevam




Madrugada de quinta-feira,
26 maio


Querida Amanda,

Eu perdi o sono! Estou insone desde às cinco horas - depois de um sonho bizarro!

Parece-me que eu estava presenciando uma conferência, um congresso, sei lá!, de ETs. Eles estavam discutindo medidas para salvar a Terra. Isso mesmo, salvar a Terra - de nós, os humanos! Ou seja, pretendiam eliminar a todos nós para assim salvarem a pobre Gaia!

Eu até que tentei protestar - mas é como se não estivesse lá! Eu não passava de uma visita etérea! E as criaturas - que pareciam até respeitáveis, sem aquela de olhos esbugalhados ou orelhas pontudas - discutiam como reduzir a população humana, como eliminar os restos mortais, como despoluir a atmosfera, assim mesmo, como se fôssemos umas bactérias no corpo de Gaia, e eles, fazendo o diagnóstico, indicassem a cura!

E os ETs estavam certos - tudo o que discutiam era verdadeiro! O uso de combustíveis fósseis, o despejo de poluentes nos rios, o uso de pesticidas, tudo o que um bom militante do Greenpeace deve saber.

Eu estava quase convencido de ser realmente um vírus, um câncer, que, de tão horrorizado, eu acordei!

Não que eu pretenda agora entrar para o Greenpeace, mas eu acabei por entender a mente de um ecologista, pois nós estamos realmente destruindo este planeta! E se os ETs estiverem realmente aqui preparando uma operação 'anti-bactericida' qualquer?

(Lembrei de um filme em que um cara perguntava a um outro: "você acredita em ETs?" e o outro, "você pode estar falando com um." E sorri meio diabólico! Horror, horror, horror!)

Ai, Amanda, pedi o sono mesmo - vou reler as tuas cartas!

    Beijos,

                   Stevam





Amanhecer de sexta-feira
27 maio


Minha idolatrada Amanda,

Esta foi mais uma noite revirando-me na cama - noite povoada de sonhos breves e confusos.

Sonhei que estava hospedado num hotel onde ocorreria um desfile de moda - e de súbito, estava rodeado de beldades - brancas, morenas, ruivas - todas jovens, cheias de promessas de futuro prazer. Mas todas eram inacessíveis - eu não podia possuí-las - e esta era a angústia do sonho: tantas garotas e todas longe do meu alcance!

Depois sonhei que estava numa cidade, esperando um ônibus de viagem e as ruas foram, subitamente, invadidas por torcedores de um time de futebol, que começaram a agredir e assaltar os transeuntes. Na angústia de ser um dos agredidos, acabei acordando.

Mas o mais interessante, surreal e complexo, foi o segundo sonho, entre o do desfile e o da cidade invadida pela torcida de 'hooligans'.

Eu resolvi ir a um sarau, na Praça da Liberdade, e de carro. (no sonho eu tinha carro e sabia dirigir!) Pois bem, de tão preocupado com o carro, nem participei do sarau, fiquei à margem. E quando volto a rua onde estacionei o carro - não o encontro! Estou apavorado e não faço mais do que perambular pelas ruas. Mas por fim encontro o meu carro, em outra avenida, junto a uma cabine telefônica. E, quando vou abrir o carro, o orelhão toca. Aí cismei que era pra mim mesmo, e fui atender. Um cara se desculpava por ter usado o meu carro - um tremendo fdp! (mas sem indagar: quem era o sujeito afinal?)

Entro no carro, mas (surreal) estou no banco de trás, atento ao motorista. Que motorista? Ora, eu mesmo! É que um outro-Eu está dirigindo! E eu (eu-mesmo) tentando entender o enigma. Mas acabei distraindo a atenção do Eu-motorista e tudo acabou num acidente. Por décimos de segundo, pensei que estivesse morto. No entanto, estava numa enorme mansão, toda pintada de branco, tal uma clínica para loucos. Havia uma mesa e duas cadeiras e um vulto vem se assentar - convida-me para acompanhá-lo à mesa. Ao ouvir a voz percebo que é a mesma do telefonema. (e o cara é um clone do meu antigo analista!) Ele, o dono da voz, se identifica como o Roteirista, diz escrever todos os sonhos, inclusive o sonho onde me encontro - aprisionado. (Num canto do enorme aposento, surge outro vulto: uma senhora idosa, numa camisa-de-força, e que fica se arrastando pelo chão e (surreal!) subindo pelas paredes.

O Roteirista tentava me explicar a criação dos sonhos e apresentava exemplos: "queres conhecer a Amanda-Valkyria, não é?", ele dizia, "mas qual Amanda?"

E levou-me a um recinto onde haviam inúmeras variações de um sonho: havia uma Amanda-Valkyria sorridente, morena-jambo, de vestido sedutor; havia outra Amanda-Valkyria melancólica, toda de luto, sentada num canto; havia uma Amanda-Valkyria, mais sociável, sentada à uma mesa de bar, ali a esperar-me; havia outra Amanda-Valkyria toda de branco, seguindo para o altar! Haviam muitas Amandas, todas as possibilidades, todas as projeções do meu desejo, e eu fiquei paralisado - afinal, qual era a Amanda verdadeira?

Fiquei tão abalado que me revoltei! Não, eu não poderia ficar preso naquele sonho - EU POSSO CRIAR MEUS PRÓPRIOS SONHOS!, gritei e me atirei pela janela! Nada havia além - eu precisava criar! Levitando, eu decidi o que seria o chão e o que seria o céu, o que seria luz e o que seria trevas! Eu escolhi a posição das estrelas, eu esbocei o traçado das ruas! Escolhia a roupa dos transeuntes, estabelecia a rota dos veículos, acendia o brilho nos olhares! Mas o sonho ficou tão complexo - tal a escolha de qual variante era a 'real' Amanda-Valkyria, aquela sem máscara - que encontrei-me perdido em meus próprios domínios - e acordei!

Nem pude meditar muito, o frio das montanhas me envolvia, e eu adormeci. Estou num ponto de ônibus, cercado de malas e valises, pronto para deixar aquela cidade (que logo seria invadida pelos temíveis 'hooligans'...)

O que pensas disso tudo, minha querida? Talvez minha esquizofrenia não esteja tão controlada como eu pensava! Eu, que fico a observar a mim mesmo, serei, ao mesmo tempo, o médico e o louco?



     do teu Stevam





Noite fria de sábado,
28 maio


Querida Amanda,

Fiquei o dia inteiro pensando se deveria ou não narrar alguns outros sonhos (da última noite e da anterior) pelos conteúdos muito kitsch ou pateticamente erótico. Mas lembro que anoto todos os meus sonhos, não por exibicionismo freudiano, mas para prosseguir no processo de conhecer mais a mim mesmo.

Noite de sábado, até agora esperando um telefonema, uma possibilidade de sair pra noitada - mas nada. Este tédio está me afetando (e como costumas dizer, "estou funcionando com dez por cento da minha capacidade mental")

Visitando a cripta de Coffin-Joe, o Zé do Caixão. Kitsch? Sim, pois é uma idealização a partir de um contexto midiático: o ser das trevas, mas ainda cult, ainda pop. Zé do Caixão obviamente dorme num caixão, e numa cripta a la filme de vampiro B. Uma cripta toda úmida e enevoada de teias aranha. Tudo que idealizamos para um lado dark da existência, no sentido de "eu gostaria de viver/morrer numa cripta a la filme trash." E o Sr. Mojica Marins o que pensa disso tudo? Em que medida ele se identifica com a personagem?

Labirintos e erotismo: eu procurava um dado serviço num edifício moderno. Não sei se loja de departamento, se hotel, se repartição pública, sei lá. Mas devia ter vários andares e mil segredos. Mas devia ter vários andares e mil segredos. Três elevadores escalavam e despencavam do caule de concreto e vidro. Eu observava o movimento dos apressados vultos humanos e tentava cronometrar o abrir e fechar dos elevadores. Não tinha um guia e nem noção de aonde ir. Só de estar ali já era uma atmosfera surreal. (Aquele edifício simbolizava o mundo, o próprio cosmos.)

Até que uma mulher surgiu de um dos balcões, com um vestido formal, um crachá reluzente, um sorriso conveniente, toda sensual. Mas eu não conseguia delinear a fisionomia, somente os longos cabelos negros, ao melhor estilo Iracema. E ela ficou ao meu lado, esperando o próximo elevador.

Dois executivos desceram, e eu e a linda mulher entramos. Ela acionou um número no painel e a ascensão rumo aos céus começou. Não sei se era impressão minha, mas o espaço do elevador encolhia ou a mulher se aproximava de mim. Em segundos estava a beleza em meus braços, os lábios mordendo os meus - e o terror lúbrico de que alguém entrasse nos próximos andares.

Eu a apertava em meus braços, eu procurava as reentrâncias íntimas - úmidas e cálidas - manipulava ali com perícia e ela delirava. Em breve, eu a deixei de quatro no piso - os corpos se refletiam nos espelhos internos - e iniciei ansiosa penetração, e quanto mais veemente, mais ela gozava. Mas o elevador chegou - ao último andar? - eu gozei. Ela se levantou, alisou o vestido e sorriu. Desajeitada, arrumou o cabelo lustroso, enquanto eu subia o zíper. Mas a face era enevoada, somente o sorriso em esplendor, somente a silhueta de antigas lembranças e futuros prazeres.

Quanto tempo ficamos a nos contemplar? Um segundo? Um século? Não sei. O elevador ameaçou prosseguir viagem e eu a observei vaporizar-se nos amplos corredores - a meio quilômetro da superfície terrestre. Só então notei um brilho plástico no piso: o crachá, que ela perdera. Eu notei a face, sem as feições que eu possa agora definir, mas com o nome bem visível e memorável: Amanda Lins.

Acordei.

Realmente tinha gozado e tal.

Pronto aí está. Narrei o fato. O que te parece? Será que as minhas perversões estão mais efervescentes? Será que o meu corpo está exigindo um outro corpo a mil km?


Muitos abraços,

                                     do teu Stevam





Segunda-feira, 30 maio
Noite de chuva melancólica


Querida Amanda,

É impressionante o quanto nossas vidas se assemelham! O quanto estás sofrendo o mesmo que sofri! Sim, o mesmo desassossego, o mesmo lamento, a mesma solidão e distanciamento!

(acabo de ler a tua carta. Estou no quarto, trancado, no mais inquietante silêncio.)

Quão perfurantes as tuas dúvidas e apreensões! São as mesmas que me atormentaram! E o quanto fui perseguido! Meus CDs quebrados, minhas roupas queimadas, meus posters rasgados! Então saí de casa - perambulei, tentei seguir meu caminho...


Mas se antes eu odiava as pessoas, hoje nem isso eu estou a sentir! Nem amor nem ódio - somente apatia! (Às vezes, me assusto com minha total indiferença pelas pessoas. E perco noites de sono a indagar por que eu te amo. Eu que pensei jamais amar novamente - um tempo sem romances e etcs -, eu que só acumulei mágoas. Então eu percebo que te amo, Amanda, e é por tua consciência de teu sofrer, e por conseguires tirar beleza do que é tristeza.)

Amanda, não perca o teu valioso tempo odiando as pessoas - somente algumas merecem atenção, e pouquíssimas, o teu afeto. (pois, como dizia o meu analista, cada um é o que conseguiu ser, cada um tem sobrevivido a golpes de toda espécie e intensidade - o que notamos andando pelas ruas e povoando o mundo são destroços humanos, seres fragmentados e desamparados, que buscam consolo no divertimento ou na religião - o meu maior medo é tornar-me, um dia, semelhante a estes zumbis frustrados e recalcados)

Estás perdendo muita energia com o teu ódio - e destruindo a ti mesma. Não vou ficar aqui com ares de moralista, passando sermão, dando conselhos, mas é certo o que eu digo: ódio, rancor, fumo, álcool, café, drogas, religião, noitadas, tudo isso só vai te entorpecer e te destruir! Eu sobrevivi a tudo isso!

Continue simbolizando a tua dor em literatura - continue criando sinfonias líricas a partir de teu sofrimento - continue construindo castelos meio às névoas de teus pesadelos.

Eu continuarei aqui, todo ouvidos, pronto para recolher as tuas lágrimas de plangente lirismo.


                                do teu devoto Stevam



(carta enviada em 02 de junho)

manhã de terça, no colégio,

Meu querido,

Estou aqui tentando encontrar as palavras certas para te dizer, pois há muito a ser dito, e o tempo é escasso.

Ontem eu fui a uma lan house; precisava ler e responder e-mails, preencher meu relatório de estágio, rever meus amigos do chat, e foi bom pra mim. Eu estava em cacos e consegui mudar meu humor, ficar esperançosa.

Resolvi seguir os teus conselhos. É uma mania terrível ficar jogando desassossegos nos outros. D. já havia me alertado sobre, mas a mudança além de gradativa é muito lenta. Ora, por que tu achas que sou tão evasiva? Há ainda muito sofrimento e muitas chagas.

Agora, eu não vejo problema algum em você desabafar comigo. Realmente há pouquíssimas pessoas em que podemos confiar. Quero que sempre fale seus problemas para mim. Vou tentar te ajudar.

Literatura realmente não é um bom investimento, embora seja prazeroso. E o pior: o artista só é reconhecido quando morre! Eu acho que você deveria voltar para a faculdade, fazer qualquer coisa, e enquanto isso correr atrás dos seus sonhos literários.

Ai, querido, sinto muita dor de cabeça agora. Depois eu escrevo mais.


                               Beijos

                                                  Valkyria





Manhã nublada de quinta, 02 junho


Querida Amanda,


Estou apavorado com o teu sangue! Estou amedrontado com os teus cortes! (revirei a noite toda na cama com visões de sangue, e vampiros e matanças, eu sugava o teu sangue menstrual, sem comentários!)

Estou a entender a tua reserva quanto à sexualidade (esta idéia de sexo enquanto vergonha, invasão, pecado, coisa suja) e estou arrependido de ter enviado a descrição do sonho erótico (no elevador), até porque nossa relação não é erótica, mas afetiva.

Desculpe-me o meu lado pornográfico. É o meu lado pervertido, mas o mantenho sob controle.

Repito que nossa relação é afetiva, nunca insisti em erotismo, nem insistirei (apesar de haver transas on-line, e etc) toda essa febre é uma fase, pois estamos nos descobrindo, revelando coisas que ninguém ao nosso redor conhece (nem merece conhecer)

Preciso de ti, Amanda, para entender a mim mesmo e para cooperar/compartilhar os meus destinos literários. E a distância é ainda traumática (ainda estou imaginando um cidadão em Los Angeles escrevendo para uma paixão de Detroit, ou uma mocinha em Roma namorando on-line com um jovem em Moscou, e assim o amor à distância se intensifica a cada linha trocada, a cada telefonema, a cada noitada na internet...) mas superemos isso e vamos criar um laço, se não eterno, durável. Tenha paciência e pare de se flagelar!

Eu te quero saudável e forte. Não me faça ter piedade. Não quero uma coitadinha.


       do torturado Stevam


[...]


LdeM

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