quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

continua o Cap. 1 de Flores no Asfalto

 Cap.1 (cont)



(do diário de Stevam Lucena)


(fim de 1999)



    Um mês se passou. E a imagem dela vai se apagando. Perco os contornos, lembro de sorriso e gestos descontínuos.

    Por que nós que sabemos como a vida é, sob que condições rastejamos, por que nós que sabemos que existimos, devemos morrer?

    Por que morrem antes os conscientes? Veja aí, o mundo entupido de adormecidos imbecis, seres vegetativos, cumpridores de deveres, estes continuam e se reproduzem!

    Os de pensamento morrem jovens! Não suportam! Restam os sonâmbulos.

    Ainda bem que eu amo muito a mim mesmo, me amo até demais, senão eu já teria ido embora.

    Por que eu, que sei que existo, devo morrer? Ou o saber não altera nada? Só aumenta o sofrimento?





(início de 2000)


    Minha mãe com seus enlevos místicos diz que o que faltou a Sônia foi a fé, “tenha fé e siga”. Mas não vê que fé é para deslizes e fraquezas. O desejável não é a fé, e sim que não houvesse necessidade de ter fé, com condições melhores para viver, e não uma selva onde ficamos indagando o tempo todo se a vida é digna de ser vivida, quero dizer, o problema não é a vida, mas condições sob as quais se é obrigado a viver.

    Uma constante luta mesquinha, não aquela glória que Oto almeja, luta onde não somos mais que mercenários! Viver assim é insustentável.

    Ela, a insone Sônia, recusou-se a ser cúmplice do patético espetáculo.





    Caro Hélio Lúcio,


    Sem cerimônias. Tenho lido os teus versos, e “tenho febre e escrevo”. Rabiscando mágoas na folha em branco, “confissões difíceis pedem folha branca”, escreveu Carlos Drummond de Andrade (que sempre está a acompanhar-me pelos caminhos repletos de pedras – e muitas afiadas)

    Escrevo sobre os teus versos, e aprendo a lê-los, a recitá-los, a reviver a emoção que os gerou. Sem tal ‘ressurreição’ toda leitura (e crítica) é vazia. Para ler Pessoa, tenho que me imaginar Pessoa, em Lisboa pós-Primeira Guerra, e aquilo tudo. E ler Cesário Verde. Tenho que ser muitos como ele foi.

    Escrevendo sem outro remédio, e sem qualquer lucro. Escrevendo como terapia, tal dizia Hemingway (e que, semelhante a Pedro Nava, não conseguiu ‘curar-se’ com a escrita)

    Assim escrevemos por maldição ou benção? Inspirados em quê? Sobre o quê? Gotejar, suar versos sem saber! Encher páginas sem um porquê!

    E tal febre pode ser apaziguada? Nunca? E se não tiver algo a dizer? Só ardor, ardência, carência?

    Por favor! Escrever é transbordar – e rumo ao Outro! Queremos é gritar, queremos ser lidos, mas por ânsia, ansiedade, caridade?

    Sempre escrever, pois o mundo não basta. Desconforto vertido em rimas, na métrica do coração. Contra o tédio, o horror, o fosso.

    Passeando rimas, como desejava Rimbaud, nós colorimos a feiúra ao redor, o lixo, as pontas de cigarros, os guardanapos amarrotados, as latinhas de cerveja, o sorriso creme-dental do outdoor. E as rimas são nossas, pois são nossos os poemas.


    Não importa se formos incompreendidos. Nem todos ousam relancear os olhos pelos abismos da alma.

    Muitos vivem na superfície, jogando grãos aos pombos ou ruminando jingles televisivos. Não levam suas vidas à sério (se é que se trata de ‘suas’ vidas) Tudo é ridicularizado – ou idolatrado. Não há consciência crítica. Todo interesse resvala em consumo, todo erotismo em pornografia, toda ânsia em vício.

    Não podemos – em nossa busca pelo Outro – tornamo-nos reféns desse olhar alheio. É preciso autenticidade (tal dizia Sartre) para sermos alguém (na criação de nossa própria identidade) a partir do que fizeram de nós (nossa família, nossos professores, nossos sacerdotes, nossa classe...) e entoarmos um hino – ainda que aloucado, para alguns – que seja inteiramente nosso.

    E depois podemos até divulgar, a propagar as chamas entre outros ‘ansiosos’, ‘excêntricos’, como rotulam aos que transbordam.

    Gritaremos ao mundo, sem sarcasmos (pois quem leva à sério quem ri de si mesmo?) mas com punhais de lúcido êxtase e odes de vorazes verdades! Desmascarando o lugar-comum e denunciando a triste condição humana (que a TV falsifica) ao propormos novas perspectivas, ainda que em equilíbrios instáveis.

    A “procura da poesia” é a busca do leitor, daquele que nos entenda, nos receba igual a um irmão. Pensamos nele quando esboçamos cada sílaba – tal penso em ti enquanto escrevo – pois desejamos tirar nossa velha pele, nossa máscara suja.

    Escrever tal um desabafo, mas num desafio.

    Tudo isso eu demorei aprender, e agora te presenteio.

    Espero novidades (aqui nenhuma realmente ‘nova’) e mais versos.


    Cordialmente,


                        Hector Dias





    TH, um dos convidados da festa?, a leve surpresa, quando Stevam o encontrou em soturno colóquio com o casal Oto e Carol, na porta do casarão. JP desceu (com umas sandálias meio hippie) para tecer cumprimentos aos convivas. Oto curioso quanto a generosidade do anfitrião quanto ao quesito ‘bebidas’.

    - É só o Ariel dar uma voltinha para criar confusão...

    TH ouvia os comentários dos vultos junto a varanda. Universitários, presumia ele. Stevam degustava uma caipirinha, só observando. Oto, de olhos nos movimentos da Carol, a lembrar que o Premiê foi passear logo na região das mesquitas. Alguém lembrou das cenas das pedras contra os blindados. Temporada de diálogos sobre o Oriente Médio. Um aluno de Ciências Sociais inclina-se para melhor apurar as terminologias.

    - O problema é a terra. Guerra por território.

    É o acadêmico que iniciou o assunto. Dois calouros abrem uma cerveja, oferecendo um gole ao músico que chega. Também estudante, traz um violão nas costas. Agradece e vai para o seu canto.

    Faltava agora TH falar em ódio ancestral, ou algo assim. Oto podia destilar seu darwinismo social com lindas fraseologias sobre o mais forte e o mais apto, lembrando sua única citação de Machado, “ao vencedor as batatas.”

    Os colegas de JP pouco se importavam. Aliás, duas garotas diante da televisão – no intercine – era mais interessante. Um dos mestrandos – pois JP, óculos fundo de garrafa, era também mestrando – chegou na varanda justamente quando Oto soltava uma de suas tiradas toscas, “Pó, cara, eu ia tomando até cair. Chapado mesmo. Todo grogue. Acordava então caído pelas ruas, o cabelo todo sujo de vômito...”, e nem voltou mais. Nem apareceu mais ninguém.

    Todo ansioso, Stevam pediu outra dose. Ouvi com satisfação o papo senso-comum dos sem-diplomas. Bem mais interessante que aquele monte de acadêmicos com cara de professores de ginásio de interior. (O problema de Stevam é ser preconceituoso. Mas quem não é?) alguém até animou (a mulher de JP?) a chamar os vultos da varanda, Tem salgadinhos na copa, mas ninguém deu a mínima. Ficavam lá. De olho nas estrelas.

    - Quem tem o monopólio da violência? Os cristãos nas Cruzadas, na Inquisição. Perseguem tanto quanto foram perseguidos pelos romanos. Os alemães massacraram judeus, os turcos matam armênios, os judeus atacam campos palestinos, os iraquianos jogam gases nos curdos. Os desbravadores massacram índios. Ocupação romana, agora ocupação israelense. Vejam que um pedacinho de terra. Oásis e deserto. O perseguido ontem, o perseguidor hoje. “A História s repete como farsa.”

    O estudante (quem seria?) estava verborrágico. Oto, girando a cabeça, sondando a localização de Carol. Alguém se aproxima da garota, o suficiente para Oto esquecer a conversa.

    - Criado na religião, o mundo (como dizem) é a tentação. Ou o ‘mundo’ é hostil, irracional, fútil, e vou buscar refúgio na igreja. Tanto igreja como mundo são manifestações da única e mesma ignorância.

    O estudante empolgado, Stevam nota o ódio nascendo nos olhares do amigo Oto, e TH em mesmerizada atenção.

    - Consolar-se na igreja, e o mundo continua lá fora, além das paredes. Não é aceitar o mundo nem se esconder na igreja. A solução é MUDAR o mundo.

    - Um só desejo. Ampliar a Igreja até os limites do mundo, ao evangelizar e converter o mundo. Uma só comunidade, domesticada na liturgia.

    As frases de TH são breves e enfáticas. Oto já nem percebe. A silhueta de Carol, na escadaria da garagem, dando atenção a um ‘maurício’, consegue nublar todo o seu semblante.

    - Sei, sei . – continua a estudante, como se TH o estivesse interrompendo. Imaginaria estar numa palestra? – Fé e poder. Justificação da força. Para separar o joio do trigo, não é? Pois não existem os maus e os justos, os condenados e os eleitos? Ou os justos suportam a opressão dos ímpios, aguardam a recompensa nos Céus, ou os justos tomam o poder e eliminam os maus aqui na Terra mesmo.

    - É devorar antes que te devorem.

    Por um momento, para a perplexidade de Stevam, Oto volta à conversa. Mas Carol já sumiu de novo! Pressente-se um escândalo. “Aquela puta!”, Oto passa lá embaixo, furioso! JP não quer incidentes. Um grupinho se possa do som e monopoliza.

    Na hora de irem embora, todos os olhares à procura de TH. Ele também sumiu.





    Aconteceu na manhã seguinte ao inominável atentado contra os nova-iorquinos. Sim, ele, o nosso HD, caminhava pelas ruas atormentadas do hipercentrodowntown de Belo Horizonte, capital dos mineiros, quando ali, em plena Praça Sete de setembro, na esquina com Carijós, no exponencial calor da manhã, e nem eram ainda dez horas, e um cidadão quase a atirar-se diante dos carros, que deslizavam como sempre desde a Rodoviária, e ele, o pregador, em suas proclamações do apocalipse, sim, a derrocada total e final, se prorrogações!

    - E uma bola de fogo consumiu os infiéis, quando Gog encontrou Magog no campo de morte e os que não temiam ao Senhor dos Exércitos se viram cercados pelas hostes angélicas que cuspiram fogo sobre os que não reverenciaram o Sangue do Cordeiro que...

    E nisso o sinal ficou realmente vermelho-sangue (para a sorte do pregador, pois caso contrário...) e os veículos ficaram ali amansados não pela Palavra, mas pelas leis de trânsito, e o Profeta (muito bem trajado, aliás) continuou sua litania:

    - ... mas os que aceitaram foram acolhidos na Paz do Senhor que os abençoou com a Vida Eterna na Luz do Seu Trono de Luz que abriga os Mártires que entregaram suas vidas ao...

    Mas HD estava com mais fome física do que espiritual e foi se abrigar ali no Café Nice, onde apontou dois pães de queijo e um suco de caju, enquanto dois senhores, com seus respeitosos cabelos brancos, comentavam as “invasões bárbaras” e muito solenemente compartilhavam jornais com manchetes sobre os atentados às imponentes torres do complexo do World Trade Center, na Ilha de Manhattan, na manhã do dia onze de setembro, isto é, na manhã anterior.

    - Colheram o que semearam.

    - Mas aquilo foi um exagero! Coisa para a mídia! Covardia!

    - Morreu muita gente! que nada entendia de política externa...

    - Pelo menos Pearl Harbour havia gente dos militares mesmo. Aqui atacaram civis, funcionários, gente que ia trabalhar...

    E HD ouvia, ocupado em mastigar o fantástico pão de queijo, aquelas cabeças subitamente sábias pela idade e pelo acontecimento (“Quem diria! Parece coisa de cinema!”, Flávio comentou, diante da TV)

    - Os States não levantam um dedo para garantir a paz. Não entram em negociações para conter a poluição. Não são nada gentis em seus acordos comerciais. Não dão muita idéia para o que os outros estão pensando...

    - Isso se chama prepotência.

    - Não, se chama superpotência. Cada época tem o Império que merece. Seja Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma...

    E de súbito, as palavras se perdiam, pois HD se via povoado de imagens! Daquelas exaustivamente veiculadas na TV, nas capas dos jornais, onde uma bola de fogo beijava uma coluna ereta e faces em espanto se erguiam para os céus agora cobertos por um manto de fumaça, negra em novelos. Então novamente (por outro ângulo!) um imenso abutre (não! É um Boeing!) vem pousar na torre e vozes se erguem nas calçadas. E depois helicópteros em enxames e corpos sem faces que se precipitam (“Inferno na torre”? ou assemelhados?), com um diferencial: é tudo REAL! Não é trailer de filme enlatado ianque, não é ensaio para um filme de um milhão de dólares! As torres desabaram MESMO! de verdade! E aquelas pessoas correndo, se abrigando em lojas e subterrâneos, com suas gravatas e valises e notebooks, não estão num filme sobre os bombardeios de Londres, nem num documentário sobre a fúria de Hitler, nem num filme histórico sobre os ataques da OTAN sobre Belgrado, não! NÃO! Aqui tudo é a mais real e física e horrenda realidade! Uma realidade feitas realmente de fogo, destroços, sangue, suor, fumaça e horror!

    - O que sobrou do sonho americano?


    HD não sabia, por enquanto tentando deglutir um horror entalado na garganta.




(do diário de Stevam)

  abril 2000


    Preciso encontrar o substrato ao qual me prender, pois os sentir-se distanciado, despregado do tecido da realidade, traz o sentimento de vazio, vácuo, como se a imensidão cósmica aumentasse, a atingir níveis que não se tem consciência, não se pode exprimir em termos, pois a comunicação é falha, nem a linguagem nos deu formas de expressar. A linguagem já não pode mais pavimentar o caminho.

    A linguagem delimita o que pensamos em relação ao que sentimos, e a sociedade entrega a moral a seguir, o valor tradicional, o não ter dúvidas (pois tudo sempre foi assim mesmo...), tudo dado de antemão, para que não possa haver questionamento.

    Assim não tenho termos para expressar o que eu sinto. Serei artista – inventarei os meus termos. Mas ainda é necessário encontrar o substrato. Criar, pois ainda não foi criado.


    Por que a risada diante de um fato da vida? A vida é engraçada – ou melhor, é tão deslocada em relação a mim?

    Rir ironicamente das próprias risadas? Mas se eu me desloco com relação à vida a ponto de rir! Seja agora ou do passado (ou no passado não era Eu?) – o que me dá o direito de rir hoje do que fiz ontem? A vida na qual sou contínuo, na qual sinto minha continuidade?

    Não vejo problema em compartilhar minhas vivências com um grupo, se todos se propõem a tal, ms como, se não consigo apreender o sentido dos risos, do humor nisso – como entender a que nível o que sou transmitido aos outros?

    Não entendo se tais risadas são defesas mentais ao que foram – do tipo “fui brinquedo dos meus irmãos” – ou se acham tudo tão deslocado e irônico com referencia ao que são hoje – o que provoca o humor?

    Mas alguns nada humorados, e se estão rindo é para agradar ao coordenador que tenta – pois é preciso uma coesão no grupo – enxertar algo humorístico na atividade. Várias referências se repetem, poucas variações são notadas.

    Não vejo problema em contar minha história. Mas aí o que fui, o grau de existência que ali se armazena – a partir do qual eu sou HOJE – será motivo de risadas?

    Mas, por que as pessoas riem? Ouvem um CD de um sujeito contando seus problemas, num tom melancólico de voz, e continuam rindo.


    Percebo a fragmentação nas encenações dos papéis. Estudar Teologia e não crer em Deus, ouvir rock’n’roll e seguir para a missa de domingo, ser médico, receitar vida saudável e depois ser flagrado fumando no banheiro.

    Há alguma Coerência? Pois o cidadão não se apercebe de seu Ser, pois sua vivência é socialmente dada, assim cada idéia e ação, e o Ser não se destaca com o propósito de entendê-la, questioná-la.

    Identificando-se com o papel social (a máscara tornando-se a própria face!), aceitando-o, o Ser vive sua inautenticidade.

    O caminho asfaltado pela sociedade é alegremente trilhado pelos atores sociais, integrados.





    Onde encontramos HD ao longo do conflituoso segundo ano do século vinte um após o atentado midiático às torres nova-iorquinas?

    Preso à sua classe e a algumas disciplinas dependentes na imensa e obsoleta grade curricular, HD encontra-se às olas com aulas excessivas e professores cínicos. Não encontrou emprego e vive da mesada gentilmente e responsavelmente enviada por seus progenitores.


    Qual a importância de HD pra a economia ao longo do referido ano?

    Nenhuma, visto sua baixa taxa de consumo, limitando-se a duas refeições diárias de baixo teor calórico, o que levou o estudante a manter-se em seus conhecidos e bem dosados sessenta e sete quilos. Não comprou o aparelho de som que desejava e nem começou a pagar as prestações da casa própria. Muito menos investiu qualquer quantia em jogos, jogadas e jogatinas. Não arriscou na mega-sena, nem bolão de Copa do mundo, e desprezou terno, quina e jogo do bicho.


    Visto o baixo poder aquisitivo do mencionado estudante, onde terá encontrado abrigo para os seus momentos de estudo e repouso?

    Incapaz de pagar a pensão por mais um trimestre, o nosso HD foi socorrido pela Providência, não a Divina, mas de seu amigo Flávio Toledo, que mobilizou um apartamento de dois quartos com varanda, no Gutierrez, no propósito de se casar com a noiva Stella Lauria, vinte e dois anos, secretária, ainda no ano de dois mil e dois, mas transferido para dois mil e três, devido a imprevistos financeiros. HD foi convidado a ocupar o imóvel e conserva-lo limpo e arejado.


    Que preocupações ocupam a mente e o tempo do jovem estudante em decorrência de mudanças quanto ao local de moradia?

    Além de manter o apartamento limpo e arejado, o de não ser flagrado levando mulher ao mesmo.


    E quanto à vida acadêmica do jovem estudante pode-se evocar novidades?

    Após as férias compulsórias devido à longa greve dos servidores e professores, os semestres foram compactados, o calendário acadêmico transtornado, os prazos mais limitados e os estudantes mais estressados. Mas devido a intervenções conselheiras de seus colegas, o nosso HD não desistiu. Muito grato ele eternamente será a Selma Faria, que se diplomou, não no segundo semestre de dois mil e um (posto que inexistente), mas no primeiro de dois mil e dois, e antes de partir presenteou o rapaz com importantes dados bibliográficos e anotações.


    É possível a enumeração das dificuldades enfrentadas pelo estudante em sua vida acadêmica quanto a disciplina e professores?

    Tirando as disciplinas trancadas (Metodologia e Civilização Ibérica) e as reprovadas (Estatística A e Estatística B), e as que mereceram C (Monografia e Português Instrumental) e as que levaram B (Geopolítica e Filosofia B), e as que todas as demais se destacaram por excelente aproveitamento em classe e avaliações, em se considerando que nenhum professor (exceto o de Sociologia) jamais se incomodou com o aluno em sala. Não que o de Sociologia o perseguisse, pelo contrário, era o único que percebera a existência do aluno.


    Alguma informação quanto à vida amorosa do estudante é digna de nossa atenção?

    Lembrando-se de Naína (juridicamente, Janaína Fontes) com nostalgia, HD pouco se relacionou afetivamente, deixando-se à deriva, a experimentar bocas e orgasmos sem qualquer compromisso. Lamenta, no entanto, não ter seduzido a loirinha da floricultura. Tendo percebido que mocinha fora demitida do estabelecimento, não mais a encontrou.


    Alguma outra ausência se insinua na vida afetiva ou social de nosso estudante?

    Os bons amigos estão dispersos pelo mundo. Literalmente. Alex (Alexandre Alves) continua no sul de Minas, as cartas são raras, já não se entendem quanto a revolução e a Teologia da Libertação. Darío Sabine encontra-se na Europa, atualmente em Barcelona, aperfeiçoando-se em espanhol e catalão, e enviando cartas lingüístico-filosóficas. Everton Reis entregou-se de vez ao movimento sindicalista e sua agenda não deixava lacunas, visto seus apoios de classe a candidatos do partido trabalhista. Flávio Toledo era o mais próximo, mas envolvido com religião e mulher, suas duas paixões, a espiritual e a carnal, não separava muito tempo para HD, em raras partidas de xadrez nas tardes de sábado. Quanto à família, a mãe Hilda, o pai Ramiro, e as irmãs Débora e Luana, residentes na periferia, a saber, na região do Barreiro, à vinte minutos do hiper-centro, HD se dispunha a visitá-los nos fins de semana, pelo menos duas vezes por mês. Mas evitava conversar com a mãe sobre religião e com o pai sobre política.


    Sabendo de antemão ser o estudante cidadão bem informado e de alta formação intelectual, quais as manchetes, datas e fatos que tiraram o sono de HD enquanto bebe café sem cafeína?

    Entra em vigor o Euro. Máfia dos combustíveis envolvida na morte de promotor na zona sul de BH, 25jan. Ações militares na fronteira Afeganistão-Paquistão. Fórum Econômico Mundial com pauta social, Nova York, 31jan. Fórum Social Mundial em Porto Alegre, até 05fev. A morte do filósofo francês Pierre Bourdieu. Manifestações em Nova York. Em Porto Alegre, Fórum reúne babel de insatisfeitos. Redução de juros ajuda na recuperação da economia norte-americana. Fim do racionamento no dia 19fev. Reunião do BID em Fortaleza. Multinacionais crescem na década liberal. Negociações sobre a cota de aço com os EUA. Show de Roger Waters no Pacaembu em 14mar. Presidente Bush só apresenta retórica aos pobres. Líderes mundiais se reúnem em Conferência em Monterrey, México. Coligações políticas entre PMDB e PSDB. Ofensivas israelenses. Argentina em recessão e o ministro Cavallo continua preso. Campanha presidencial francesa um tanto tediosa. Pressão para a aprovação do “fast track” no Senado dos EUA. Chirac e Jospin? Não! Chirac e Le Pen! A Direita no segundo turno! Multinacionais rivais se unem para vender lado a lado. Cofres públicos reembolsa empresas por prejuízos devido a crise energética. Sem-teto fazem mega-invasão em áreas de São Paulo. Presidenciáveis desfilam nos bastidores. Dívida pública monstro! Ânimo belicista dos EUA e a ameaça nuclear. Anos FHC rendem um bilhão de dólares em juros ao FMI. Brasil é espinho para congressistas ianques. Crise derruba o otimismo da América Latina. Morte de jornalista em favela carioca. Prisão de procurado narcotraficante. Copa do Mundo 2002 na Coréia do Sul e Japão. Escândalos financeiros, queda das ações, estagnação japonesa. Crise nas Bolsas de Valores gera estresse. O “fast track” e as negociações bilaterais. Economia ameaça republicanos em eleições legislativas norte-americanas. Hollywood pretende passar boa imagem dos agentes da CIA. Eleição presidencial mantém instabilidade na Bolsa. Trabalhistas assumirão o poder? Montadoras de veículos enfrentam quedas nas vendas. EUA e o desemprego estrutural. Programa petista deve flexibilizar metas de inflação. Saúde frágil do Papa João Paulo II. Argentina em busca de um candidato. Anti-americanismo pelo mundo. Depoimentos de sobreviventes do atentado às torres gêmeas. “Brasil em Guerra Social”, diz a ONU. 11 de Setembro: um ano depois. Retorno de importante banda de pop rock brasileira. Eleição dos trabalhistas. Ex-metalúrgico no poder. Estudante de Direito mata os pais em bairro de classe média em São Paulo. Centenário de Carlos Drummond de Andrade. Centenário de “Os Sertões”. Plataforma petrolífera afunda. Candidato eleito visita Washington (é elogiado pelo Fundo monetário). Facções criminosas em ação.


    Curiosos, percorrendo com os olhos os títulos na estante de nosso prezado estudante, que volumes encontrados reforçam as impressões quanto as suas preocupações com temas de cunho humanístico?

    De cima para baixo, da esquerda para a direita, catalogamos um volume excessivamente manuseado de “O Cânone Ocidental”, de Harold Bloom, outro não menos manuseado de “Antologia Poética”, de Carlos Drummond de Andrade, além de contos de Saul Bellow, “Mosby’s Memoires”, no original; além de romances de Jean-Paul Sartre com destaque para “Sursis”, ao lado de “Os Versos Satânicos” de Salman Rushdie, e de “O Nome da Rosa” de Umberto Eco, apoiados em uma antologia de pomas de Maiakovski, por sua vez reclinada em um folheado “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, que mantém em equilíbrio estático um volume de “Quarup” de Antonio Callado, excessivamente sublinhado. Embaixo temos títulos de Marx, ao lado de um volume de “A Lista de Schindler”, de Thomas Keneally, por sua vez ao lado de “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawn, carregado de anotações, prensando um fino volume, a saber, “O Horror Econômico”, de Viviane Forrester, acompanhado por “In the tracks of Historical Materialism”, de Perry Anderson, edição dos anos 80, e “A História Nova”, de Jacque Le Goff. Segue-se um volume de “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, os dois volumes de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, ns prisões do regime varguista, caídos sobre um livreto “Cândido”, de Voltaire, que se encosta tímido em “O Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, que é ninguém menos que Fernando Pessoa!, em notas rascunhadas desde 1929, mas publicado somente em 1982, volume que espreme “On The Road”, Jack Kerouac, no original. Na próxima prateleira, percebe-se traduções de poemas de Walt Whitman e Rilke, além de “Aleph” de Jorge Luis Borges, ao lado de um volume de “O Mal-Estar na Civilização”, de Freud, ao lado da peça de Dias Gomes, “O Pagador de Promessas”, junto a peça “Calabar” de Chico Buarque e Ruy Guerra, apoiados em “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, além de antologias de poesia brasileira, como uma dedicada a Ferreira Gullar, ao lado de “Era inevitável a Revolução Russa?”, de Roy Medvedev, edição de 1976, apoiado em “1984” (no original) de George Orwell, lado a lado com “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto.


    Quanto à produção acadêmica e literária algum trabalho a ser mencionado?

    Após considerar a leitura de quinze livros técnicos e trinta e dois títulos literários, HD distribuiu a papelada das gavetas em pastas e descobriu que produzira três ensaios, a saber, sobre Malthus, sobre a Era Vargas e sobre Maio de 68. escrevera nove contos, sendo quatro longos. Esboçara sua monografia sobre a Ditadura Militar. Datilografara vinte e cinco poemas, que sobreviveram a auto-crítica. Refizera duas crônicas, ironizando a histeria coletiva. Iniciara um conto sobre um crime no anexo da Biblioteca de Letras. Ajudara Selma a terminar a monografia sobre o renascimento na França. Vendera um prólogo sobre a Guerra do Paraguai por cinqüenta reais.


    Quais recordações guarda HD dos longos dias e longas caminhadas ao longo do conflituoso segundo ano do século vinte e um?

    Um beijo roubado no barzinho da Biológicas. Uma noite no teatro com Flávio e Stella, onde encontra um casal de colegas. A visita de despedida de Darío Sabine quando prometera se auxiliar mutuamente no sentido de se tornarem famosos escritores latino-americano. As tardes de sábado jogando xadrez com Flávio (apesar de ter ganho apenas uma vez, numa tarde em que Flávio reclamava da gastrite). Lendo poemas de Carlos Drummond de Andrade na sombra da praça e rascunhando carta para Darío Sabine. A rádio rock noite adentro tocando blues e clássicos dos anos 70.




continua ...



LdeM

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