quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Capítulo 1 de Flores no Asfalto

Romance DESENCONTROS GRAFADOS


Parte 3 - Flores no Asfalto






  Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.”


(Carlos Drummond de Andrade, “A Flor e a Náusea”)





Parte 3

Flores no Asfalto


Capítulo 1


     Sob um sol a declinar, HD percorre a Avenida com seus casarões preservados, naco de papel em mãos, localiza o número. Ouviu lá dentro a campainha numa trinado breve e a moça – a secretária? – surgiu na varanda.

    - Aqui funciona o Acervo?

    Diante da resposta afirmativa, ele galga as escadarias.

    Um salão. Retratos nas paredes, mas ali ela não estava. Na segunda porta, uma mesa, ela ao telefone – “Então?” e, atenta à voz fio adentro, ouvia dele a resposta, um tanto embaraçada, “Na Biblioteca... me disseram, indicaram... aqui um acervo à disposição... para leitura e pesquisa...” Ela entendeu enfim e dispôs-se atendê-lo, ele a perceber que à sua presença ali é que se devia o diálogo paralelo.

    A jovem o guia pelo corredor, uma Beatrice, rumo aos reinos luminosos, aos empíreos literários, e mergulharam numa atmosfera de papéis amarelados e volumes empoeirados. Uma biblioteca arcaica. Um acervo de grossos volumes, muita literatura, e jornais semanais, “Suplementos Literários?”, ele pergunta, ele que nem ao menos se apresenta.

    - Temos. – apontando uma estante ela sorriu – Mas um tanto antigos.

    Ele notou os jornais velhos, mas seu olhar mirava aquela que os indicava. Um reflexo nos óculos delgados, os olhos eclipsados, em névoa leitosa (o sol entrava de lado), e os fios dourados de um cabelo atado e comportado (que o sol dourava mais), u sorriso de riso fácil, sem escândalos, uma sutil cicatriz (o sol foi engolido de súbito) lhe assinalava a base de um pescoço inquieto, a cabeça girando, acompanhando a mão em flutuares e volteares de maestro, indicando os volumes.

    - Poesia é o que você quer, não é? Aqui as antologias, as coletâneas, lançamentos. Quer os nacionais? Eis aqui. Do Acervo – apoio nosso – estes.

    E na mesa eleva-se uma colina de volumes e brochuras. “Por onde começar?”, ele é que hesita, “autor, data de publicação? Biografia de cada um?” Ela mostra ser de algum auxílio.

    - É que anda a coisa meio tumultuada, não organizei ainda. Não é bem pela ordem de autor, sabe...

Ele, cabeça jogada pra trás, olhar absorto, imaginava a possibilidade de escalar cinco prateleiras, em lance duplo, dez vezes uns quarenta volumes, quem sabe, somente em uma das paredes! Comecemos pelos poetas, pelos novatos. Estes ainda não consagrados, se é que o serão algum dia. Para cada um aclamado, uma centena nas sombras do esquecimento. Estes que publicam livrinhos de tiragem modesta e manda um pra mãe, pra tia do interior, pro melhor amigo... e um para as bibliotecas, os Acervos. Comecemos por estes.


    Ele falava muito, pois era imperativo ocultar o nervosismo. “Por que não se acomoda?”, ela, solícita arrastando um cadeira. Ele: “Olhe, é muita coisa. Muitas raridades. Mas trata-se de um acervo um tanto seleto, digamos bem pessoal, não?”

    - Ah, sim. A biblioteca de nosso patrono e fundador. É o núcleo do acervo atual.

    - Muita literatura, realmente.

    E o diálogo foi se arrastando nesse convencional, ela a pinçar volumes nas estantes e ele anotando autor, biografia, bibliografia, ela rearranjando os óculos, ele deslizando a caneta, ela atraindo atenção sobre letras enquanto em volta dele borboleteava atenções inconfessáveis (cantarolando rocks ianques, don’t stop the dancing...) borboleteava pela sala, e ele arrastou uma cadeira – e foi então que uma bola de fogo irrompeu pelas vidraças, invadindo o aconchego algo monástico do acervo, um sol que poente ainda renascia, últimos estertores, aceno final, num dia a findar.

    De sentar-se ele desistiu e resmungou impropérios contra um sol tão inconveniente, e a jovem ofertou outra cadeira, junto a estante, e ele retoma papel e caneta, o trabalho recomeça, aliás, quase, ele lia uns sonetos. Ela foi atender o clamor do telefone, e voltou logo. Ele lia ainda os sonetos, que descobrira serem do fundador. “O primeiro soneto dele.”, ela sobre os seus ombros querendo saber o que lhe prendia a atenção. “Bela sonoridade, algo de Camões.”, ele disse, e ela não mostrou entusiasmo, “Não gosto de Camões, é tedioso, sempre o mesmo. Aliás não gosto muito de poesia.” Uma pausa, pois ela não queria agora quebrar o entusiasmo dele, “Eu adoro romances.”, ela confessa então. “Ah!”, ele agora observa a moça ali tão perto, tal borboleta, e a imagina mergulhada numa densa brochura à lua mortiça de um abajur, torcendo pela Escrava Isaura, e apedrejando o Primo Basílio, mas alto lá! ele quer ensina-la a como apreciar um soneto, e descobrir o quão sublimes eles são! E segue-se uma lição completa: a forma, dois quartetos, dois tercetos, a sonoridade, sílabas tônicas e débeis, rimas alternadas, inversas, concatenadas, abba, abab, aabb... Mas ela não mudou o tom, “Ah, é, eu sei. Sublime,  até. Mas é uma chatice!” Ele insistia, “Mas há outros autores que não tocam numa nota só, que experimentam outros assuntos, até metafísicos.”

    Mas a jovem ocupava-se em afagar os romances na estante, Macedo, Machado, Alencar, Guimarães Rosa, outros mais. O assunto não podia esmorecer. Ele: “Eu gosto de romances pesados, densos. Já gastei dois anos na leitura de um: ‘Os Irmãos Karamázovi’, do Dostoiévski.”

    Mas ela relanceou o olhar pela estante (ele percebeu o reflexo das lentes), “Ah, eu nem tanto. Olhe este! Li rapidinho. Apontava um volume de Defoe, ‘Moll Flanders’, mais obeso que o livro russo, e ele: “Ah, eu li ‘Robinson Crusoé’”, ela curiosa, “Viu o filme sobre a Moll Flanders? Ela rejeitada, discriminada, mas lutou, sabe. Sem abaixar a cabeça. Tempo m que mulher não tinha vez.”, “Ainda mais se não for moça de família”, ele completou, mas já ouvia as ofensas que as senhoritas sob suas sombrinhas bordadas, e com suas luvas de pelica, gritavam à pobre Moll, e ouvia as ondas lambendo as rochas, insinuantes na praia naquela ilha onde um náufrago, cofiando a barba, constrói novo lar, e batiza um certo Sexta-Feira, então nativos outros, nada amistosos, do outro lado, podem...

    - E o que você busca – ele voltando-se – digo, o que te atrai neles? Não soa estranha a linguagem? Descrever uma sala de jantar em três parágrafos! Para descrever uma pessoa, para descrever você eu gastaria parágrafo e meio, e ao longo da narrativa. Bem, estamos no século da imagem...

    Ela num sobressalto, “Mas eu gosto das descrições. Imagine os lugares, as roupas todas, o bigode dos fidalgos”, ela bailava entre os volumes, “Gostei daquele sobre a Capitu.”, “O ‘Dom Casmurro’...”, ele atento, “Você gostou? E aí, acha que ela traiu?”, “Ah eu acho! Muito dissimulada, ela!”

    Não mostra muita solidariedade de gênero, esta aí, o rapaz pensando, mas disse: - Mas você acreditou nele, no Bentinho? Um ser amargo, algo rancoroso, e casmurro?

    - Não entendo.

    - Ora, imagine, você convive com alguém, o Sr. X, e então o Sr. X torna-se suspeito, aparenta certos deslizes, infiel, digamos, e você o que é? A biógrafa dele! Você acha mesmo que será imparcial, neutra, em sua visão à respeito dele? Sem s deixar dominar por ressentimentos, e mágoas cultivadas? Pense, se Capitu traiu realmente, você estará lendo o desabafo de um, desculpe-m, de um corno! Imagine!

    Ela, rindo-se, “Mas eu acreditei nele! Juro!”, ele, idem, “Ora, precisa ler outras versões! Porque se a visão fosse em terceira pessoa a coisa seria outra. Um autor, o Sabino, o do ‘Encontro Marcado’, escreveu nessa perspectiva. Um outro mais recente escreveu como se fosse a própria Capitu que desabafasse o rolo todo.”, o que ela andaria pensando desse blá-blá-blá, isso ele pensou, mas em bom som continuou, “E o tom machista, hein? Não notou? Como ele se refere às mulheres? Ta certo, que trata-se de uma época bem mais repressora, mas...”

    Ela, já impaciente – Ah, mas não vi nada disso! – ela, podemos dizer, o encarava perplexa – Foi a história que me fascinou!

    - Ah! – ele entendeu. A jovem apontava outros volumes, ele esquecia as anotações. Romances para quebrar o tédio da vidinha? Outra madame Bovary? Isso ele pensou.

    Mas o pensamento não foi longe, não. Ela ali exibia um volume de Contos, “Ah, achou a Clarice”, ele seguindo os movimentos, “Gosta da escrita dela?” A moça esboçou discreta careta, “Ah, cansativa, sabe? Um desconforto até. E esse do ovo e da galinha! Bizarro!”

    Ele, todo paciência. – Imagino. Ela complica, digo melhor, ela APROFUNDA um pouco as coisas, vê coisas que não vemos, além do convencional, sabe? Uma barata no guarda-roupa. Quer algo mais banal?

    - Nojento! – agora sim uma careta.

    - Pois é, ela olha a barata e diz: Olhem este mero inseto, espécie que milênios cobre a terra, e milênios ainda cobrirá, cada inseto, O INSETO, entende? E eu, a Clarice pensa, ser humano, complexo, consciente, não duro um século. Este inseto aí, milênios! Não são as baratas que infestam nossos lares,  nós é que assombramos o mundo delas! Tudo isso numa simples barata, a se esquivar entre as frestas!

    Ufa! E ele sentiu ali uma ruga de fastio, e a última coisa que desejava era entediá-la (nada apavora mais um rapaz do que sentir uma jovem entediada ao seu lado!), “Ah, mas você deve estar farta de literatura! O dia inteiro aqui, entre livros e escritores. Só gostando mesmo!”, mas ele foi gentil, “Ah, mas eu adoro ler! Aprendo muito, sabe.”

    Então imagine um escritor que em sua arte consiga unir a profunda emoção, o thriller de um best-seller, com a profundidade de uma Clarice. Pois é, este seria o ideal do Escritor. Uma boa história, mas sem superficialidades. Personagens profundos, mas sem chatices, pieguices. Não acha?

    O que ela achava? Muita coisa. Mas a tarde findava, era a hora de fechar o Acervo.

    - Ora, assim você me confunde. – e indicou um livro-ata para que ele assinasse.

    - Como é mesmo o seu nome?

    - Bete. – ela virou-se para resgatar um novelo de lã. Ele se voltou, saindo, deixando vazar as palavras – O meu é Hector.

    Ela ocupada em fechar as portas – já muito generosa em mostrar o salão de reuniões, aquele igual ao da Távola Redonda, mas com os retratos dos Cavaleiros. Num mural esvoaçavam poemas.

    Mas, como dissemos, era hora de fechar.

    E após o desencontro dos nomes, ele colou o óculos diante do sol em agonia e seguiu pelo corredor rumo a escadaria, sentindo a presença às suas costas, ele um Orfeu apreensivo a duvidar se era sua Eurídice a segui-lo. Literatura demais por hoje, ele pensando.

    - E a rua tal e tal?

    - A próxima.

    - Então nos despedimos aqui. Eu sigo a próxima.

    - Quando vos vemos?

    - Na próxima oportunidade.

    - Então até lá, Hector.

    - Claro...

    Não, não é possível, Beatrice, Eurídice!, ah! ele esquecera o nome dela!





    Era até um quarto acolhedor, nas noites frias. Mas ainda era maio, um outono igual a outros tantos, Stevam Lucena tirando os sapatos, abrindo as janelas. O quarto escuro. Inicia uma procura concentrada pelo interruptor. A mochila e os embrulhos no chão. Acende a luz e leva tudo para dentro. Vai à cozinha. Deixa lá o embrulho com pão e legumes. Silêncio. Vez ou outra a intromissão de um veículo na avenida. Gritos, frenagens, buzinas.

    Stevam reaparece na sala (o quarto). Tira a blusa. Joga a mochila sobre o divã. Roupas jogadas sobre os móveis. Agora apenas de cueca. Andando pela sala, vai até o aparelho de som e seleciona algo, um blues, um jazz. Mas cai em suas mãos um CD de clássicos: BACH e MOZART. Abre a capa do CD, mas encontra a obra de uma banda outra. O nome escrito em canetinha vermelha: ANATHEMA.

    Em gestos lentos, pesaroso por lembranças, Stevam introduz o CD no aparelho e fica pensando – em Sônia.

    Lembra onde encontrou o CD – nos despojos do amigo TH (ah, eu fui mesmo lá?) um livro, talvez o livro de cabeceira, da pálida Sônia. Todo ferido por traços rubros, e com papéis de bombons entre as páginas, ESPUMAS FLUTUANTES, CASTRO ALVES.

    Encontrou tudo no caos que se alojou na casa do amigo TH, que muitas vezes não devolvia as gentilezas dos amigos. Ou aconteceu? Lembra apenas dos constrangimentos com o revoltado, e agora competente programado, Oto Marques, nada encrenqueiro, nada punk, mas um yuppie, saindo para a night na Savassi, namorando em cada (dela!) depois de se livrar de Carol (que todos sabiam agora viver com Aléxis, o amigo de bandas anteriores e encrencas remotas) não guardando mais que uma mágoa difusa, canalizada para leituras grotescas com ilustrações de Beardsley.


    Vultos sombrios vagueiam pelas praças. Stevam rastreia na memória velhas relações de grupo, duvidando se conseguirá captar a atenção da nova geração. Rapazes de uns quinze anos, ar de enfado, no desprezo ao consolo da religião, e seu deus entediado, quando chega um terceiro, ainda mais fúnebre, lembrando um evento, com músicas e poemas, e em recordações do amigo TH (dos poemas de TH). Certo interesse. LEIS DA NOITE, diz o recém-chegado.

    Stevam distribui suas despedidas, pergunta o nome da cada um (novo hábito!) e encara a noite, algo emocionado. A quem oferecerei o que sou? Anda ao longo das praças, noite adentro. Versos de TH povoam a sua mente terrivelmente desperta, “Quando a faísca da Intuição queima O barril de pólvora da Consciência”, e da solidão de Germano (onde estará o Mestre?), sem rumo, três horas da madrugada, num banco de praça.

    E seus passos o conduzem ao casarão onde viveu o amigo TH. Ele somente percebeu quando estava no portão. O que sobrou do portão. Não saberia dizer se restauravam ou demoliam o prédio (prédio, não, um sobrado, no muito, coisa da década de 30, sei lá), pois a tia, sempre a mostrar-se consciente d preservar o renome da família belorizontina, figurante nos anais de Abílio Barreto, não hesitou em se apossar do que sobrara do patrimônio do irmão (se não me engano, o pai do TH, renomado advogado, morrera menos de seis meses antes!) e mostrando logo serviço, pois voltemos, sua imagem e da família etc, mandara dar um retoque no sobrado, visando negociações (talvez uma venda).

    A tentação foi, para Stevam, encontrar a janela lateral aberta (melhor explicando, sem as travas de madeiras) e pular o muro não é difícil. Escombros e material de construção. Degraus na meia-luz, o luar filtrado por vidros quebrados (o luar difuso atravessa vidraças, sua voz balbucia)

    Encontra o quarto de TH, porta aberta, mais material de construção, ferramentas. E, a um canto, empilhadas, mais de uma dezena de caixas, fechadas à fita adesiva. O que será? Também duas cadeiras, e uma mesa (onde TH se debruçou tantas vezes! Escrevendo em noites de insônia!), tudo coberto por fina poeira, e ornado por tremulantes teias. TH escrevera ali. (Um Museu! Eis o que ergueria ali!) as caixas convidam à profanação. Exalando mofo, lá estão as roupas de TH (que a tia nem se dignou em distribuir), roupas, em sua maioria escuras (sombras de corvos!), mofadas, a apodrecer.

    Stevam separa a calça menos poída, a camisa furada, encontra as luvas, etc e recolhe tudo numa sacola. Livros, na outra caixa, volumes e mais volumes. Poesia alemã, clássicos ingleses, romancistas brasileiros, ensaios sobre metafísica, tudo ali, a apodrecer. Nas folhas de um clássico de Goethe, FAUSTO, ele encontra manuscritos – será letra de TH? – não! Stevam reconhece a escrita de Sônia (aqui? Mas por quê? A menos que o livro seja dela, e TH não devolvendo...)

    Stevam guarda as páginas pautadas (folhas de caderno, Sônia distraída na aula de Química, rascunhando desabafos...) e percebe o tesou dos inéditos de TH numa pasta, desordenados mais originais. (Nota: manuscritos datados até 31 de dezembro de 2002. O corpo de TH foi encontrado no dia seguinte.) Tudo ali abandonado, tudo a tornar-se alimento para as traças. A tia nem fizera questão, a digníssima senhora...

    Um ruído, lá fora. Passos? Ratos? Outro intruso? As páginas cobertas por letras frementes e idéias febris são mais interessantes, “Quando o Sono é um ensaio para a Morte”, e Stevam nem concede atenção à prudência, esquecendo assim o cuidado com a própria segurança, estando em propriedade de terceiros, examinando posses de terceiros. A tia que algum dia desconfiasse! Um processo? Mas é ele quem abriria um processo, em nome da Amizade exigiria a posse das obras do Poeta e o mundo conheceria sua genialidade! Assim como Max Brod revelou as pérolas de Kafka.

    Sonhos, delírios à parte, Stevam até rumina boas intenções. Acabou adormecendo por ali mesmo, sob os restos de uma existência. Uma tumba de silêncio (para aproveitar imagens dignas de TH) e desperta, ao amanhecer (só dormindo duas horas), a cabeça pesada, cansaço em cada polegada do corpo. De súbito, num estertor, lembra onde está, jazendo sobre escombros, teme ser surpreendido a qualquer momento por alguém, um pedreiro, sabe-se lá, mas o caso é que domingo. A manhã de paz. O atordoado apóstolo na tumba do Mestre (outro Messias na vida de Stevam?) reúne seu espólio e abre outras caixas – mais livros, mais manuscritos, mais obras! Poe, Byron, Blake, Baudelaire, originais marcados a bico de pena! É um orgasmo de arqueólogo! o que possui. Diante da múmia de Tutancâmon, diante do baú de Fernando Pessoa!

    (Nota: Evidentemente, convenhamos, será longa e desgastante as polêmicas judiciais antes que Stevam – e seu irmão Alfonso – possam adquirir proeminência sobre tal espólio, uma vez que a tia, sempre precavida, levantará provas de uma ultrajante invasão)

    Está em suas lembranças, todas embaralhadas, a sua presença no sarau de poemas macabros, alguns dias depois daquela noite na ‘tumba’ de TH (não se lembra da Tumba de Baudelaire? Célebre poema de Mallarmé, aliás presente entre as obras mofadas do poeta suicida) Caminhando na noite, sem ânimo para coletivos e faces ocas, o desejo de Stevam é por sossego. São vinte e uma horas e trinta e três minutos quando ele chega sob as goteiras do Terminal Turístico JK, diante da casa de shows, um velho calabouço, hoje Matriz. Não sabe que se inicia, não apenas exclusivamente para ele, toda uma nova fase de existência. (mas não antecipemos)

    As músicas são despejadas nos jovens trajados de luto, com suas faces maquiladas ocultado olhares febris. Figuras dos séculos 19 ou 17 desfilam por entre os pilares, quando fumaças se elevam numa bruma atemporal. Em que época estamos? Indaga a três vampiros (sic) ali imóveis junto a escadaria (abaixo do nível da rua) e eles se entreolham, O cara ta bêbado. Ele, Stevam, está uma figura e tanto. As roupas são as do TH, com odores ancestrais – um tanto apertadas (pois TH era alto e magro) – mas dignas de nota. Alguém conhece o TH? Poeta, mente febril. Não, não conhecem

    Stevam transita, olha os cartazes, vê as fileiras de orelhões azuis, agências de vendas de passagens interestaduais. Um nervosismo o incomoda. Senta-se na escada e tenta lembrar um poema de TH – e passa a escrever os versos num rasgo de papel. Dois outros jovens chegam. Stevam se aproxima. TH? Não, não conhecem nenhum TH, poeta, mente febril. E Stevam Lucena? Não, não conhecem. É a nova geração. Muito prazer, sou Stevam Lucena. Muito bem, trocam cigarros e passam a comentar poemas. Um com camisa de banda, outro de cabelo longo, parecendo Castro Alves. E este recita um trecho de “À uma taça feita de um crânio humano”, “Que este vaso, onde o espírito brilhava, Vá nos outros o espírito acender”, e passam a falar de Byron, Álvares de Azevedo, e Stevam cita Blake e Poe, e aquele com camisa de banda, crânio quase nu (a cara do vocalista do Coldplay), comenta um livro que o ‘Castro Alves’ ali citara, sobre Deus e a Consciência, se Deus é tudo, é possível ofende-lo? Sílabas, palavras, merda. Deus está neste cigarro, nesse escarro. É possível fazer algo que não esteja programado? O futuro, o que será, já é?” Aí o ‘Castro Alves’ apresenta Deus “como um entediado no Todo que se fragmenta para ter novas perspectivas, e a Consciência Total, a Mente Cósmica é a Soma de todos os Olhares, todos somos Deus, eu sou Deus.”

    Trocam cigarros, a conversa sem exaltações, bons diálogos platônicos com ausência de Sócrates, mas os rapazes desejam entrar no evento, como é mesmo o nome? LEIS DA NOITE. Até porque mocinhas pálidas e perfumadas adentram sedutoras. Stevam não deseja incomodá-los mais (pesar de seu desejo de conversar e se explicar), mas antes pergunta os nomes, e deixa um cartão para contato – cartões de TH!

    Ao subir ao nível da rua e encontrar as fendas luminosas nos edifícios, alguém se aproxima de Stevam. É um dos rapazes que encontrara na praça, o silencioso que mostrou o folheto do evento, que se apresenta como HK (não fez reverências ao Oto naquela noite, antes da ‘invasão’?) e tecem comentários sobre as belas garotas pálidas, embaladas pela sedução soturna de um Depeche Mode. Mas Stevam deita a sugestão de uma tour (“somos andarilhos, não?”) pela cidade. Seguem a avenida Augusto de Lima, parando nos bares diante da Imprensa Oficial ou do excelentíssimo edifício Arcângelo Maletta – onde Stevam procura olhares conhecidos, olhares de poetas em crises de inspiração ou carentes de vendas e carinhos, onde sabe que encontros se fizeram e desencontros se sofreram, ah, se essas paredes falassem!

    Os vultos sobem a rua da Bahia, admirando a arquitetura antiga ainda presente, o exotismo do Centro de Cultura – que todos chamam de Castelinho – e Stevam assume claramente (ou obscuramente) as posições de TH rotulando os prédios modernos – concreto, aço, vidro – “meros caixotes”, acusando a ausência de beleza no mundo (ou ao menos, na cidade) quando alcançam o frescor da praça, lá no alto, a da dita Liberdade, perdidos em observações de desenhos clássicos, contornos renascentistas, detalhes líricos, até a vertigem de descer, agora na ladeira da avenida Bias Fortes – acabam por retornar ao velho calabouço.

    Plena madrugada, alguns pares desfilam pelo bar, e Stevam a sentir-se distante, tal um não-convidado no Grande Banquete, enquanto dançam aos acordes de um New Order ou soltam sílabas nas pausas de um Joy Division, “Love Tear Us Apart Again”, o Amor vai nos separar novamente. Stevam já sente uma saudade do futuro, que começa ali, naquela noite, e ele pouco desconfia.





    Anoitecer de quinta-feira e, nas ruas de ar interiorano, HD subia a ladeira rumo a um cruzeiro anil num céu quase estrelado e de um anil ainda mais profundo. E uma capela lá no alto erguida, as portas e janelas em destacado anil, em contraste com as paredes de cal, remotas ao século 18, alvenaria de época, o casario algo solene. Nos bancos de pedra, em posição elevada, abriga os que ali chegaram, trilhando a ladeira, divisando lá de cima a cidade em sua face moderna, luzes que se estendem aos horizontes, meio ao ondular das serras.

    Uma platéia que se acomoda nas cadeiras diante da fachada de cal, enquanto uma equipe de som prepara os equipamentos, azeitando os amplificadores para os primeiros acordes. Que logo ressoam. Castanholas, um entrechocar de conchas, e uma mulher, moça ainda, algo de espanhola, de cigana, mas, observando-se, ela não vem só. Um longo lençol se estende às suas costas e na outra extremidade um vulto, surgindo sob a luz do poste, mostra-se um homem jovem, encurvado, cabisbaixo, a sofrer. Algo de um penitente, e seminu com sua coroa de pétalas, e não de espinhos. Uma figura de Cristo. E a mulher – quem seria? Maria, a Mãe? Ou Maria Madalena, a arrependida?

    Uma ladainha a lamentar a solidão na alma, os dois vultos seguem até a elevada cruz anil, algo de celeste, onde se prostram, assim, a mulher assentada, e em seu colo vem amparar o jovem cristo, e assim imobilizados, imagem da Pietà, escultura a fixar na pedra um profundo sofrimento.

    E sobre eles relampejam flashes fotográficos, e a mulher, com uma voz densa e morna, recitando então um longo poema, onde uma família m miséria se desfazia de seus bens, comendo o relógio, os móveis, vendendo tudo para sobreviverem, até que a mãe ousou deixar no quintal uma bacia cheia de água, onde lá se refletiu o luar, e então a mãe fez descer a lua para dentro da bacia – e todos jantaram a lua! E as crianças saíram ruas afora a pedirem ajuda, e foram rejeitadas, “Não vê que é pecado, desprezar quem te quer bem!”, repetia a voz em emoção.

    E lentamente, como se doloridos todos os movimentos, e sofridos todos os gestos esboçados, ele e ela, sob a cruz anil, se erguem. Ele encosta-se ao madeiro numa crucifixão, e na face uma marca de dor; ela se afasta, como se o abandonasse, para interagir com as pessoas ao alcance da mão, mãos na mãos, numa imensa roda. Que começa a girar.

    “A linda rosa juvenil, juvenil, juvenil...” A voz se eleva, abandona o tom sôfrego, pungente, “vivia alegre num solar”, as crianças logo entendem e lá estão junto ao ator, o cristo que se unia a elas numa cirandinha., “Mas uma feiticeira muito má, muito má”, e a roda pôs-se a girar! “Ciranda, cirandinha...” E o povo que afasta as cadeiras, abandona também a cara feia e a perplexidade dos olhares, e lançam uns aos outros um leve olhar – de criança! “O anel que tu me deste era pouco e se acabou.” Sorrisos surgiam, ousam romper o cativeiro das faces. “É de cravo , é de rosa, é de manjericão.”

    Alternam-se as cantigas de roda, aquelas de nossa infância, das quais nem nos lembramos mais, e tudo girava mais célere, num redemoinho, os braços se esticam, a corrente se rompia, mãos se afastam. “Caranguejo só é peixe na vazante da maré, palma, palma, palma...” E em uníssono as palmas se chocam, e pernas saltam! “guerreiros com guerreiros fazem ziguezigue, e zá!” e gargalhadas estrondam, “o sapo não lava o pé...” mas a roda já passa o seu clímax, “como poderei viver, como poderei viver, sem a sua, sem a sua, sem a sua companhia?”, e os atores, ele e ela, começam o lento relaxamento dos ânimos, contentes com o sucesso deste resgate popular, aos mostrar que a solidão e o desprezo ao próximo tem cura: a vida em comunidade, o convívio, o calor humano de uma cantiga ingênua, o reencontro com a tradição perdida com a massificação, o retorno às cirandinhas de nossa infância. Sim, o centro histórico na noite morna volta a ser uma cidade interiorana!

    Todos retornam às cadeiras, quando se seguiu à apresentação musical, um saxofone a soar íntimo, e um teclado de notas eufóricas, num transe instrumental, algo de jazz e bossa nova, a selar o anoitecer sobre a colina. As crianças, alunas de uma creche, em gestos, simulam colher flores. Logo, ao som de “Rosa de Hiroshima” outras crianças se jogam ao chão, se arrastam, como se atingidas por tiroteios, em fuga louca, “pensem nas crianças...”, sim, pensem nas crianças sob ataques e miras laser, sob bombardeio de Napalm, sob mísseis tomahawk! Toda a estupidez da guerra ali representada, nas faces contorcidas das crianças!

    Depois a surgir uma senhora em farrapos, a entoar uma cantiga, um lamento, ao denunciar um despejo, e, ali esticando um varal, começa a estender suas roupas e trapos. Sua situação algo trágica, assim despejada na rua, mas na cantiga e em seus gestos vazam algo de cômico, e através de um apurado talento para a mímica, numa sessão de pantomima, a lembrar Carlitos.

    Finda a atuação, ela se apresenta, a lembrar o apoio das crianças, os pequenos atores sob bombardeio. Foi logo aplaudida e a música veio descendo, em profundos acordes de tom familiar, acolhedor, naquele calor bem mineiro, de prosa de beira de fogão, num aconchego de melodias, sonoridades tropicais, Aquarela do Brasil, a festejar a noite, de estrelas e notas.

    Um poeta se ergue, figura paterna a embalar o filho, Meu nome é Aurelius, vou compartilhar com vocês alguns versos de minha autoria, sobre o absurdo da guerra e seus mísseis de precisão nada cirúrgica... E com fina ironia, desvela o absurdo borgiano. É em semelhante clima, que HD se apossa do microfone para derramar seus inquietares também sobre o ridículo da guerra, a chuva de mísseis sobre Bagdá, “um massacre tecnológico”, onde foi parar toda a nossa diplomacia?, e é com olhares de aprovação é acolhido pelos poetas.


    Sim, os jovens sedentos de poesia que se erguem e emprestam suas vozes às Musas, aos Bardos, aos versos de um Camões ou de um Vinícius de Moraes, até que BH esbarra em um poeta made in BH, um moreno alto, porte de atleta, olhar de enigmas, em estranho versejar sabe-se lá se latim macarrônico ou árabe. Nada demais, o poeta esclarece depois, imagine ler os meus versos no sentido inverso... E prontamente distribui as cópias xerocadas de seus poemas, Ainda não tive a graça de encontrar um editor...

    Sim, “o artista tem que ir onde o povo está”, lembra o presidente de importante instituição acadêmica concedendo o ar de sua presença excelsa, exaltando em seus belos versos parnasianos o Amor, a Família e a Fidelidade.

    O saxofone voltou a romper a noite junto a capela, um canto de cisne, uma despedida, uma promessa de retorno,  e de reencontro. Ali, diante do poeta visitante, Pois eu pensei que fosse mesmo latim..., recebido por imensos sorrisos, Hélio Lúcio, à vosso dispor.



continua...


LdeM



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